O labelling approach e as novas possibilidades criminológicas

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Resumo: o presente trabalho busca uma breve explanação sobre a criminologia e as possibilidades abertas pelo labelling approach, ou viragem criminológica, momento em que o fenômeno “crime” ganhou novas perspectivas de compreensão. Anteriormente a criminologia centrava suas atenções somente no indivíduo delinquente que, pelo seu crime, deveria ter algum problema intrínseco que o levou àquele ato, buscando-se um “porquê” no ato de delinquir. A partir do labelling passa-se a questionar o próprio crime em si, ou “por que certos atos são criminalizados e outros não”, momento em que as teorias conseguem expandir os horizontes e enxergar com mais complexidade o que alguns entendem por um simples fato “típico, ilícito e culpável”. Essa compreensão mais ampla é mais do que necessária, em tempos nos quais os binarismos pouco nos ajudam diante da complexidade social.

Palavras chave: criminologia; labelling approach; viragem criminológica

Abstract: the present work seeks a brief explanation about the criminology and the possibilitites opened by labeling approach, or criminological turning, at which the phenomenon "crime" has gained new understandings. Previously criminology focused its attention only on the delinquent individual who, for his crime, should have some intrinsic problem that led him to that act, seeking a "why" in the act of crime. From the labeling, one begins to question the actual crime itself, or "why certain acts are criminalized and others not," at which point theories are able to expand horizons and see more complexly what some understand by a simple fact "Typical, illicit and guilty." This broader understanding is more than necessary at a time when binarisms do little to help with social complexity.

Sumário: Introdução; 1. Modelo Consensual x Modelo do conflito; 2. Criminological turn, obra outsiders e a teoria interacionista do desvio; 3. Das possibilidades abertas pelo labelling approach; Conclusão

INTRODUÇÃO

A criminologia, assim como todo o pensamento, é uma construção. A forma como se trata o crime e o criminoso fazem parte disso e estão submersos em décadas de discursos das mais diversas frentes. Inicialmente com teorias menos complexas, onde se afirmava que a criminalidade era uma patologia do indivíduo, até teorias mais abrangentes onde se valorizam questões culturais, econômicas, políticas e sociais.

No contexto europeu de um iluminismo nascente, com a valorização das verdades cientifícas e, ao mesmo tempo, uma desigualdade social gritante deixada pelo absolutismo, não foi difícil o desenvolvimento das ideias eugenistas que pregavam a superioridade racial e ligavam a criminalidade à aparência. Quanto menos “desenvolvido” é o ser maior é sua capacidade de delinquir, visto que o crime, acreditava-se, seria uma espécie de patologia intrínseca ao indivíduo.

Por muito tempo a academia centrou suas atenções somente na pessoa do criminoso e no simples fato “típico, ilícito e culpável”, fortalecendo a ideia de que houve uma “falha” na interação do delinquente com a vida social. Um marco na mudança do pensamento criminológico é o labelling approach, ou criminological turn, movimento que passou a perceber o crime não mais como algo que faz sentido em si mesmo, mas sim como uma construção.

Primeiramente apontaram-se as lentes para “cima”, onde poucos buscavam questionar, como nos casos de crimes empresariais, os “crimes de colarinho branco”, tratados por Sutherland (1949), sendo um grande passo para os estudos criminológicos, começando a encarar o crime de maneira menos preconceituosa e mais aliado ao sentido mais “real” do conteito: assim como todas as condutas o crime é algo aprendido. Becker enriquece ainda mais a compreensão quando constata que diferentes grupos consideram diferentes condutas como desviantes, ou seja, é tudo fruto da cultura.

Ao encaramos o crime como um produto cultural novas possibilidades se abrem. Sendo cultural e variando dependendo do contexto, o crime da forma como conhecemos (a tipificação legal) é uma imposição daqueles que detém mais poder para dizer a lei, até porque nem todos concordam sobre determinado ato ser, ou não, desviante. A lei é poder. Ainda, sendo também cultural o crime envolve símbolos, representações e interações que só fazem significado dentro dos grupos sociais com os quais se convive.

Desta maneira, ao nos depararmos com pensamentos criminológicos mais abrangentes e complexos também expandem-se nossas possibilidades. Desde a crítica àqueles que detém o poder, passando pelas criminologias feministas, queer e a cultural, todas essas maneiras contemporâneas de enxergar o crime são possibilidades que, de alguma forma, perspassaram o labelling approach.

1. Modelo Consensual x Modelo do Conflito

O crime e o criminoso foram os primeiros objetos de pesquisa das ciências criminais, sendo que se apontava a causa da criminalidade como um problema patológico, algo que nasce com indivíduo. Com o nascimento do estudo criminológico temos a obra de Cesare Lombroso, L’Uomo delinquente (1876), onde foi desenvolvida a teoria do delinquente nato. Em tal obra o médico italiano trata o criminoso como

Uma espécie de ser atávico, degenerado, marcado por uma série de estigmas corporais perfeitamente identificáveis anatomicamente, como anomalias de crânio (“enorme fossa occipital e uma hipertrofia no lóbulo, análoga à encontrada nos vertebrados inferiores), fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliais, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occipital, orelhas em forma de asa, maçãs do rosto proeminentes, braçada superior à estatura, etc. ( CONDE e HASSEMER, 2008, p.24-25)

A partir daí o pensamento racionalista-liberal, com base no cientificismo, vai formar a Escola Positiva e povoar o pensamento sobre o delito, estudando os problemas a partir dos atos de uma pessoa criminosa, um ser mutável e exposto às variáveis sociais, através de uma ciência que se pretendia neutra e pura. Objetivava, como bem queria toda a escola de pensamento positivista, a verdade como fim principal e primordial, acreditando que o pesquisador realmente conseguiria fugir de quaisquer influências externas que povoassem sua pesquisa. Neste prisma nascem e tomam vida as teorias etiológicas, que colocam as lentes de sua pesquisa diretamente no autor do crime.  

Por mais que Lombroso seja a figura mais mirada em diversas críticas que advém deste pensamento (e isto se justifica de certa forma, visto que o pensamento do “homem delinquente” segue vivo em diversas frentes), outras escolas seguiram desenvolvendo teorias que olhavam o criminoso com um “mal” que atrapalhava o bom andamento da sociedade (Escola de Chicago, Teoria da Associação Diferencial e Teoria da Anomia, por exemplo).

A questão aqui é, de certa forma, funcionalista, visto que a sociedade era vista como uma engrenagem que deveria funcionar de forma perfeita e consensual, enquanto todo conflito que feria as regras morais que regem a sociedade deveriam ser excluídos. O crime é visto como uma ameaça ao equilíbrio social.

Estas teorias funcionalistas certamente ainda dominam os discursos sobre direito penal e o fenômeno crime, visto que estão presentes em grande parte da academia (docentes ou discentes), bem como são as teorias adotadas, de forma consciente ou inconsciente, pela grande mídia, agências secundárias, primárias e, por consequência, pela maioria da população.

Como contraponto destas teorias surge o chamado modelo do conflito, com forte cunho social. “Este modelo difere-se de maneira antagônica da perspectiva de consenso. Para a teoria de conflito, as ordens na sociedade são fundamentadas na força e na coerção, no intuito da dominação de alguns sujeitos por outros, tudo em prol da estabilidade na sociedade” (FURQUIM, 2014, p.18-19). Podemos citar como criminologias conflituais: o Labelling Approach ou Teoria da Reação Social, a Teoria Crítica, bem como as vertentes criminológicas pós-críticas, entre elas a criminologia cultural aparece.

Desta forma a visão passa a não ser de valores sociais consensuais que integram a sociedade, mas sim de valores impostos sobre outros grupos, ou seja, as leis não passam de mera imposição exercida através do exercício do poder. Visto que a sociedade capitalista se estabelece sob a égide do capital e que há um grupo de pessoas sendo exploradas, tais teorias agregam bastante a visão marxista da luta de classes, principalmente a teoria crítica.

2. O criminological turn, a obra Outsiders e a teoria interacionista do desvio

Um dos primeiros autores que questionou o discurso dominante sobre o crime e negou que a prática do delito era qualidade intrínseca ao indivíduo foi Howard Becker em sua obra Outsiders: studies in the sociology of deviance (1963), onde sua teoria interacionista do desvio nos fornece base sólida para questionamentos sobre a construção do fenômeno crime, bem como Edwin Sutherland, que tratou sobre The White Collar Crime (1949) e colocou o dedo na ferida de quem, ao mesmo tempo que impunha as leis, descumpria-as e lucrava muito com este desvio. Estas duas obras marcam uma viragem paradigmática (criminological turn), onde o questionamento passa a ser para quem introduz as leis, e não mais para quem as descumpre, bem como nos oferece o questionamento sobre o porquê de certas condutas serem criminalizadas e outras não.

Através de um estudo com usuários de maconha e músicos de Jazz, Becker abandona as teorias causais-deterministas sobre o crime, passando a analisar tal questão a partir da interação social dos grupos, levando em conta suas práticas e todas suas criações simbólicas em torno do desvio, bem como a importância da reação social para sua caracterização.

Inicialmente traça um modelo sequencial considerando as distintas formas que existem no uso de drogas. O autor ainda argumenta que grande parte dos estudos sobre o uso de substâncias entorpecentes se limitavam à questão “por que fazem isso?”, respondendo tal pergunta com premissas que se baseavam em traços que predispunham o usuário à tal situação ou o motivavam a ter este comportamento. Contrariando tais premissas, o autor argumenta que grande parte do uso de maconha é recreativo, bem como há diferentes tipos de usuários que lidam de diferentes maneiras com a droga e aponta formas não compulsivas, que não seguem a lógica da patologização dominante no discurso médico-científico sobre uso de entorpecentes. Becker também sustenta que o uso de certas substâncias é um elemento cultural de determinados grupos.

 “O que os leigos querem saber sobre desviantes é: por que fazem isso? Como podemos explicar sua transgressão das regras? Que há neles que os leva a fazer coisas proibidas? A pesquisa científica tentou encontrar respostas para essas perguntas. Ao fazê-lo, aceitou a premissa de senso comum segundo a qual há algo inerentemente desviante (qualitativamente distinto) em atos que infringem (ou parecem infringir) regras sociais. Aceitou também o pressuposto de senso comum de que o ato desviante ocorre por alguma característica da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o cometa. Em geral, cientistas não questionam o rótulo desviante quando é aplicado a atos ou pessoas particulares, dando-o por certo. Quando o fazem aceitam os valores do grupo que está formando o julgamento” (BECKER, 2008, p.17)

Desta forma, ao se despir dos conceitos morais anteriores à criminalização do ato, Becker consegue se aproximar do grupo desviante, bem como compreender de forma mais ampla todo o sistema de aprendizado que uma pessoa passa até se tornar realmente um usuário, praticando um processo de escuta do subgrupo que sofre a imposição de regras.

Ainda na mesma perspectiva, ao fazer a pesquisa com músicos de Jazz de casas noturnas o autor assevera que apesar de a conduta dos músicos não ser criminalizada “(…) sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-convencionais para que eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade” (BECKER, 2008, p.89). À estas culturas que operam dentro da sociedade mais ampla o autor deu o nome de subculturas. Na sua análise da subcultura dos músicos de jazz, Becker passou a documentar e levar em conta a forma como eles se portavam diante do próprio grupo, o pensamento que eles tinham sobre quem não era músico, a opção de determinados músicos de ser um “músico comercial” (que tinha como consequência abandonar, de certa forma, o respeito dentro daquela cultura), entre outras questões que formavam uma identidade de grupo.

Assim, há, no transcorrer do livro, uma mudança nas lentes da pesquisa tradicional, visto que aquele que sempre foi silenciado e criminalizado de alguma forma passa a ter voz, sendo o seu discurso colocado como ponto fundamental para uma análise mais complexa, entendendo como complexidade “quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes”(MORIN, 2009, p.14). O outro grupo, que é quem criminaliza e/ou impõe seus valores, passa a ser questionado. Muda-se à pergunta de “por que os desviantes praticam tais atos?” para uma pergunta bem mais ampla, que vai buscar resposta para algo como “por que tais atos são taxados como desviantes e outros não?”, ou “o que leva certos atos a serem classificados como desvio?”, questionando, inclusive, o porquê de muitas pessoas não se deixarem levar pelos impulsos desviantes.

Ao tentar responder tal questão Becker afirma que a imposição de regras, sejam elas morais ou jurídicas, são uma questão de poder, trazendo à tona a figura do “empreendedor moral” na criação das regras e sua imposição:

Desvio – no sentido em que venho usando o termo, de erro publicamente rotulado – é sempre o resultado de empreendimento. Antes que qualquer ato possa ser visto como desviante, e antes que os membros de qualquer classe de pessoas possam ser rotulados e tratados como outsiders por cometer o ato, alguém precisa ter feito a regra que defina o ato como desviante. Regras não são feitas automaticamente. Ainda que uma prática possa ser prejudicial num sentido objetivo para o grupo em que ocorre, o dano precisa ser descoberto e mostrado. Cabe que as pessoas sejam levadas a sentir que algo deve ser feito acerca dela. Para que uma regra seja criada, alguém deve chamar a atenção do público para esse assunto, dar o impulso necessário para que as coisas sejam criadas e dirigir as energias suscitadas na direção certa. O desvio é produto de empreendimento no sentido mais amplo; sem o empreendimento necessário para que as regras sejam feitas, o desvio que consiste na infração da regra não poderia existir (BECKER, p.167).

O empreendedor moral, em última análise, é aquele que impõe uma regra, e junto com ela toda sua moralidade, sobre determinado grupo, “são aquelas pessoas que, em dado contexto, ocupam posições a partir das quais podem definir aquelas condutas que são ou não são aceitas em uma sociedade”, utilizando dos meios que dispõe para difundir suas ideias.

Hoje em dia, é bastante comum ver crentes religiosos fervorosos impondo suas vontades, políticos organizando cultos nas casas legislativas, bem como estes mesmos fiéis apresentando programas religiosos na televisão. Os empreendedores usam de todas suas armas para impor o que eles creem ser a verdade.

Em resumo, a teoria interacionista do desvio crê que os empreendedores morais impõem seus valores e verdades insofismáveis, determinando quais condutas serão tidas como certas ou erradas, o que deverá ser considerado crime, quais crimes deverão ser punidos de forma mais severa ou não, o que é “belo” ou “feio”, “bom” ou “mau”,etc. Assim, a definição do significado de cada conduta se dá no campo do poder político de decisão.

Ainda é importante frisar que a reação social para determinado ato é o que irá determinar se uma conduta é desviante ou não. Por exemplo, “encaramos a pessoa que comete uma transgressão no trânsito ou bebe um pouco demais numa festa como se, afinal, não fosse muito diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância. Vemos o ladrão como menos semelhante a nós e o punimos severamente” (BECKER, p.16). Fumar maconha em uma roda de usuários certamente não será visto como desviante pelo grupo que pratica o ato, mas, aos olhos da lei, quem é apanhado com pequena quantidade de maconha incorre no artigo 28 da Lei 11.343/06, a Lei de Drogas.

Desta forma, o desvio passa ser visto como uma ação coletiva, fruto do interacionismo, e não mais como uma ação isolada de um sujeito “mau” que comete um ato desviante, sendo as lentes apontadas para quem os julga e tornando possível questionar todas as certezas destes impositores chamados empreendedores morais. Este questionamento feito ao etiquetamento de determinado ato como crime (labelling approach) resultou em uma espécie de viragem paradigmática (criminological turn), visto que o que é colocado em xeque agora são os processos de criminalização.

3. Das possibilidades abertas pelo labelling approach

O labelling approach assumiu fundamental importância para a criminologia, pois atuou no sentido de desvelar as relações de poder existentes nos processos primários e secundários de criminalização[1]. Dentre o que se depreende de tais estudos, está o fato de que é inerente o processo de estigmatização dentro do processo de criminalização, principalmente na atuação das agências secundárias. Diz-se isso porque às agências primárias de criminalização cabe a seleção legal de quem deve ser punido, havendo aí um certo nível de abstratividade. Compete às agências secundárias cumprir a agenda estabelecida pelas agências secundárias, e nesta atuação fica claro onde agem os empreendedores morais

De qualquer maneira, as agências policiais não selecionam segundo seu critério exclusivo, mas sua atividade neste sentido também é condicionada pelo poder de outras agências: as de comunicação social, as agências políticas etc. A seleção secundária provém de circunstâncias conjunturais variáveis. A empresa criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que participam das duas etapas de criminalização.

A teoria do labelling contribuiu de modo a demonstrar como a reação social, o interacionismo, os símbolos, a percepção de cada grupo sobre determinado ato e a luta por poder e controle da realidade têm ligação direta com a construção do fenômeno crime. A criminalidade passa a não ser mais a qualidade de uma conduta, mas sim o resultado de um processo de estigmatização. Em outras palavras, a criminalidade não passa de uma etiqueta que é criada e inserida pelos detentores do poder.

Sem sombra de dúvidas pode-se afirmar que o as teorias do labelling approach significaram uma mudança de paradigma na Criminologia Tradicional, cambiando todos os elementos de pesquisa anteriormente usados. As instâncias de controle social passam a ser o principal alvo de análise, enquanto o desviante não é mais o “monstro” forjado pela dogmática, mas sim um infortúnio etiquetado que não exerce poder suficiente para ter seus costumes aceitos.

A partir destas premissas pode-se notar o surgimento de outras teorias. Daremos destaque no presente trabalho à criminologia crítica e, principalmente, à criminologia cultural. Tais correntes criminológicas conseguem, em diversos pontos, ir ao encontro uma da outra, possibilitando uma análise mais ampla.

4. Criminologia Crítica

Por mais que o labelling approach já tivesse mostrado que as criminalizações primária e secundária são frutos do emaranhado de poder existente na sociedade, pode-se dizer que permaneceu em contextos mais subjetivos e históricos. A criminologia crítica vai trazer estas premissas para os contextos da sociedade capitalista e todas suas contradições, mostrando como a construção do fenômeno crime e suas desigualdades são, objetivamente, frutos da lógica das relações sociais de produção.

“Segundo a criminologia crítica, a seletividade e desigualdade do direito, bem como a criminalidade, só podem ser devidamente entendidas em um enfoque macrossociológico, inseridas no contexto social capitalista, imposto pela desigualdade e marcado pela luta de classes. De acordo com Marx, o crime e o direito fazem parte da superestrutura da sociedade, que varia conforme se altera o sistema de produção, ou seja, sua infraestrutura ou base econômica. Em outras palavras, o crime seria decorrência natural de certas estruturas econômicas específicas e modificáveis” (CYMROT, 2011, p.155).

 Esta corrente, originada da teoria do etiquetamento, tratou de mostrar como o direito faz parte de toda superestrutura de dominação do Estado e como o sistema penal só reflete tal relação, sendo responsável, ainda, por manter este status quo. Adverte também que há uma maior perseguição aos crimes cometidos pelas camadas inferiores da população, enquanto diversos crimes cometidos pelos detentores do poder não chegam nem a ser investigados. Observa-se, como exemplo disto, os crimes de colarinho branco que dificilmente são alvos das agências secundárias de criminalização, e quando o são aparecem em diversos jornais e noticiários, causando a falsa ilusão de que o direito penal é para todos. Na maioria das vezes as agências secundárias investigam somente as ditas obras toscas da criminalidade, bem como pessoas que tem menos capacidade de acesso ao poder político, econômico ou à comunicação em massa (ZAFFARONI, BATISTA, ALEJANDRO e SLOKAR, 2003, p.46).

 A partir destas constatações, fica nítido como são as camadas mais inferiores da sociedade quem realmente sofre com o poder autoritário de imposição do direito penal e de todo o sistema que o mantém.

As pesquisas criminais críticas são direcionadas para críticas aos processos de criminalização (política criminal), à crítica da dogmática penal, bem como uma dogmática penal que se pretendesse crítica, questionando a aplicação judicial e o processo penal.

5. Criminologia cultural

A criminologia cultural surge acompanhando o movimento pós-crítico e trabalha a partir das mudanças sociais ocorridas, em um mundo onde a globalização toma espaço de forma devastadora e age nas zonas de mais difícil percepção da pesquisa, quer seja: a cultura. Passa-se a trabalhar a partir das percepções e análises dos grupos que se contrapõe à cultura dominante (cultura da mídia, da polícia, os agentes políticos etc.), levando em conta toda a teia de significados e representações que envolvem as atividades das subculturas. Em suma, “ela enfatiza a centralidade de significado, representação e poder na contestada construção do crime – tanto o crime construído como um acontecimento diário ou como uma subversão subcultural, quanto como um perigo social ou violência publicamente sancionada” (HAYWARD e FERREL, 2012, p.207). O que se busca é a compreensão do significado de cada conduta.

Desta forma pode-se perceber a semelhança do estudo proposto pela criminologia cultural com o estudo feito por Becker em outsiders, já comentado neste trabalho. Becker, para elaborar sua pesquisa, precisou de anos praticando o processo de escutar aqueles que são considerados desviantes, e então usou de seus relatos para formar uma pesquisa mais complexa, onde a compreensão do crime passou a ter outra ótica, podemos dizer que a lógica da alteridade. Assim, a criminologia cultural tem suas bases enraizadas no labelling approach, mas trouxe suas perspectivas para a análise da sociedade moderna em um capitalismo tardio, onde as noções de pertencimento, cultura e representações simbólicas estão totalmente submersas na complexa rede que envolve o capitalismo, a globalização e suas consequências.

Entre os autores de maior visibilidade que publicam trabalhos neste sentido podemos citar: Jeff Ferrel, Mike Presdee, Keith Hayward e Jock Young. No Brasil esta abordagem é bem mais recente e é trabalhada, entre outros, por: Salo de Carvalho, Marcelo Mayora, Moysés Pinto Neto, José Linck, entre outros.

Keith Hayward define criminologia cultural como:

“Cultural criminology is a theoretical, methodological and interventionist approach to the study of crime that places criminality and its control in the context of culture; that is, it views crime and the agencies and institutions of crime control as cultural products – as creative constructs. As such they must be read in terms of the meanings they carry. Furthermore, cultural criminology seeks to highlight the interaction between two key elements: the relationship between constructions upwards and constructions downwards. Its focus is always upon the continuous generation of meaning around interaction; rules created, rules broken, a constant interplay of moral entrepreneurship, political innovation and transgression. (HAYWARD, 2007)

 Em outras palavras, o desenvolvimento de uma criminologia cultural passou, fundamentalmente, pela mudança de paradigma trazida pelo labelling approach

“O advento do labelling approach redimensionou o campo criminológico, ampliando suas fronteiras e consolidando sua natureza transdisciplinar timidamente sugerida pelo positivismo causalista. A interdisciplinaridade, para o paradigma etiológico, representava a possibilidade de interseccionar saberes com o objetivo de definir nova ciência autônoma (vontade de sistema), isto é, a partir de fragmentos de ciências criar nova e independente área de conhecimento. Com o labelling approach,a pretensão de univocidade é inviabilizada, pois nenhuma ciência passará a deter o objeto do saber criminológico. Pelo contrário, os objetos passam a ser fluidos, sendo multiplas as abordagens, sem que se possa determinar hierarquia entre os saberes e sem que se legitime o olhar ou fala privilegiada em detrimento das demais” (CARVALHO, 2009, p.300)

 Devido a amplitude do campo de pesquisa, a criminologia cultural é essencialmente transdisciplinar, dialogando com a sociologia, antropologia, estudos midiáticos e urbanos, comunicação, filosofia, geografia urbana e cultural, etc. Tal característica, ao mesmo tempo que pode ser considerada uma das maiores problemáticas desta corrente criminológica, é também seu maior trunfo, visto que possibilita ao pesquisador uma compreensão mais abrangente do “todo”.

Junto com estas críticas, provindas da virada criminológica e do pensamento pós moderno, a criminologia cultural tece críticas à própria criminologia crítica. Uma delas diz respeito à mistificação do desviante, como uma espécie de “Robin Hood”, herói do sistema capitalista, ou uma vítima do mesmo sistema. Ou seja, ainda o ato desviante tenta ser “explicado” ou “justificado”, enquanto quem comete tais atos é silenciado e preterido diante de discursos que encontram maior respaldo acadêmico e social. Nesta perspectiva, pode-se anotar que a criminologia cultural situa-se temporalmente (por mais que ela própria tente fugir deste tipo de limitação) como uma criminologia pós-crítica, visto que utiliza-se dos meios proporcionados pela pesquisa pós-moderna para debater o problema da criminalidade de forma mais complexa e abrangente.

CONCLUSÃO

“A criminologia” não existe em si, o que existe, em verdade, são diversos discursos sobre o crime. O pensamento lombrosiano segue vivo em algum aspecto, pois ainda se sustenta em alguns meios e situações a ideia do “criminoso nato”, que já nasceu com certa “predisposição” ao crime e que, por esta natureza, deve pertencer à algum padrão. Na prática este padrão é achado nas formas de vestir, na cor da pele, na música que escuta e nos demais símbolos culturais do grupo “diferente”.

Por muito tempo a pesquisa criminilológica ficou amarrada à um campo de observação que busca no criminoso alguma “falha”, adentrando em explicações que vão desde um problema patológico até a socialização deficiente. Esquecem-se que o crime não é uma conduta “natural”, mas sim uma criação. Criam-se as tipificações, define-se o que é crime, mas tudo isto é parte de uma vontade. Não existem “leis naturais” no campo do direito.

 Compreender que o crime é uma escolha de determinado grupo nos abre uma série de possibilidades, trabalhando esta criação como algo mais complexo. O crime se compõe de diversos fatores (econômico, ambiental, cultural, geopolítico, etc.) devendo ser rechaçadas as explicações simplistas que encontramos diariamente sobre este fenômeno.

Tendo o labelling approach como principal mudança de paradigma, é possível expandir horizontes e produzir uma criminologia útil e crítica que realmente acrescente algo na compreensão do fenômeno. Basta de pesquisas estatísticas, de teorias mortas que não dialogam com a realidade, de uma academia que se preocupa somente com os números de produção. Para se construir o pensamento é necessário adentrar nas novas possibilidades, dialogar com as mudanças e não cair nos binarismos.

 

Referências
CARVALHO, Salo. Criminologia cultural, complexidade e as fronteiras da pesquisa nas ciências criminais. Revista Brasileira de Ciências criminais: RBCCrim, v.17, n.81, p. 294-338. Nov/Dez, 2009;
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, Zahar, 2008;
CYMROT, Danilo. A criminalização do funk sob a perspectiva da criminologia crítica. Tese de mestrado. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo: 2011;
FURQUIM, Saulo Ramos. A Criminologia cultural e a criminalização das culturas periféricas: Discursos sobre crime, multiculturalismo, cultura e tédio. Dissertação de mestrado. Coimbra/Portugal: 2014;
HAYWARD, Keith; FERREL Jeff. Possibilidades insurgentes: as políticas da criminologia cultural. Sistema Penal e violência, revista eletrônica da Faculdade de Direito PUC-RS. Porto Alegre: volume 4, Número 2, 2012;
HAYWARD, Keith. Cultural Criminology. The Dictionary of Youth Justice. 2007. Disponível em https://blogs.kent.ac.uk/culturalcriminology/files/2011/03/youth-justice-dictionary.pdf;
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
Notas
[1] Sobre tais definições: “Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. (…) Em geral, são as agências políticas (parlamentos, executivos) que exercem a criminalização primária, o passo pelo programa por elas estabelecidos deve ser realizado pelas agências de criminalização secundária (policiais, promotores, advogados, juízes, agentes penitenciários). (…) a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência policial que legitima tais iniciativas e admite um processo”. ZAFFARONI, Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P.43

Informações Sobre os Autores

Rodrigo Deamici da Silveira

Advogado bacharel em direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG

Daniela Benevides Essy

Graduada pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG


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Equipe Âmbito Jurídico

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