Resumo: Na análise da situação do Estado Brasileiro contemporâneo é possível verificar que na tentativa de atribuir ao Estado social uma concepção antidemocrática, elege-se o Estado subsidiário como a manifestação do verdadeiro Estado Democrático de Direito. Contudo, o verdadeiro intento desse discurso que privilegia as forças do mercado e da livre iniciativa está em minar a força do Estado social com o fim de aumentar a exclusão social. No entanto, em nosso país, persiste a necessidade da intervenção estatal para amenizar os problemas das classes menos favorecidas. E, apesar da reforma dos anos 90 tornar contemporânea a forma de Estado social com certas diretrizes do Estado subsidiário ou neoliberal, tal evento não transformou o Brasil neste último, coexistindo nos dias de hoje, a mescla do Estado garantidor dos direitos sociais com o Estado fomentador e regulador.
Palavras-chave: Estado moderno. Estado social. Neoliberalismo.
Abstract: From the analysis of the current Brazilian’s State situation it is possible to verify that in attempting to apply to the social state an anti-democratic conception, the subsidiary State is elected as the voice of true democratic state of law. However, the true intent of this speech that privileges market dynamics and enterprising is to undermine the strength of the welfare state in order to increase social exclusion. However, in our country, there is a remaining need for government intervention to relief the issues of the underprivileged classes. And despite the rework of the nineties to make contemporary the welfare state with certain guidelines of the subsidiary or neoliberal State, such event does transform Brazil on the aforementioned neoliberal state, still coexisting nowadays, the mix of a state that secures social rights with regulatory State that stimulates it’s economy.
Keywords: Modern State. Social Sate. Neoliberalism.
Sumário: Introdução. 1. O Estado moderno: evolução. 1.1. Estado absolutista. 1.2. Estado liberal. 1.3. Estado Social. 1.4. Estado subsidiário. 2. As mudanças do papel do Estado e a alternância do poder ao longo da era moderna. 3. O modelo de Estado brasileiro contemporâneo: um enfoque crítico. 4. Considerações finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
Para iniciar o exame do Estado contemporâneo partir-se-á de um corte metodológico bastante importante para melhor compreensão do assunto, qual seja: o paradigma do Estado moderno. Parte-se deste ponto com a finalidade de se conhecer o Estado da era moderna, desde sua origem até os dias atuais, na medida em que toda esta sistematização será fundamental para contextualizá-lo e permitir o exato entendimento dos aspectos sociais, políticos e econômicos que influenciaram nas mudanças dos modelos do ente estatal nos diversos períodos[1], o que facilitará a apresentação de comentários críticos ao papel do Estado, em especial no cenário brasileiro hodierno (conforme será visto no item 3).
Na esteira do que se propõe, em razão do fato de que o Estado é fruto de uma evolução histórica que conjuga diversos fatores, será ele melhor compreendido se o início de sua abordagem revelar o panorama encontrado anteriormente ao nascimento do Estado moderno, que bem reflete a razão de sua instituição, além de revelar, igualmente, o motivo do surgimento do absolutismo monárquico.
1. O Estado moderno: evolução
1.1. Estado absolutista
O panorama anterior ao nascimento do Estado moderno refletia um período permeado por instabilidade política, lutas sociais, conflitos entre o Sacro Império Romano-Germânico e a Igreja Católica, guerras internas e externas (estas ligadas às invasões bárbaras) que geravam dificuldade de desenvolver o comércio, sujeição e submissão da camada mais pobre da população aos senhores feudais, e múltiplos centros de poder (DALLARI, 1998, p. 67). O quadro era de insegurança permanente, que só gerava prejuízo para a vida econômica e social (DALLARI, 1998, p. 70).
Contudo, essa sensação de incerteza constante, permeada por lutas e conflitos, não tardaria a aproximar-se do seu limite, pois os integrantes da sociedade feudal (clero, senhores feudais e servos) estavam cansados de viver neste eterno estado de beligerância. Diante deste cenário, ganhava espaço a ideia de que para pôr fim aos conflitos era necessário concentrar o poder político. Despertava a consciência de que era preciso buscar a unidade, e que, para tanto, dever-se-ia unir forças para combater a poliarquia medieval.
O resultado desse processo de busca da unificação concretizar-se-ia, afinal, “com a afirmação de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma delimitação territorial” (DALLARI, 1998, p. 70), identificado na figura do monarca. Entretanto, para ascender à suprema posição almejada, os reis precisavam impor aos seus adversários a sua autoridade, tanto no plano interno quanto no externo. Era preciso submeter os senhores feudais, a Igreja Católica e, igualmente, o Sacro Império Romano Germânico ao comando real.
Destarte, os monarcas lutaram para impor sua autoridade aos seus oponentes. Na esteira deste processo, após medirem forças com todos os rivais e lograrem-se vitoriosos, os reis conseguem estabelecer uma nova forma de organização substitutiva do regime feudal. Assim, com o esforço dos reis e príncipes na concentração do poder político (LEWANDOWSKI, 2004, p. 201), os vários feudos dos senhores e de seus vassalos, que representavam o poder pulverizado, começam a dar lugar à formação dos Estados nacionais. Erige-se o Estado moderno centrado no absolutismo.[2]
Com efeito, para embasar e justificar o poder real consolida-se a ideia de que a figura do rei é sagrada, com a teoria do direito divino dos reis, defendida avidamente pelos teóricos do absolutismo.[3]
Diante da concepção de que o príncipe representaria o poder de Deus na terra, os súditos não poderiam contestar o comando do soberano, nem sequer questioná-lo, porque em última análise estariam contrariando o sagrado. Logo, a obediência ao rei tornar-se-ia irrestrita.
Pois bem, dada a importância do monarca e de sua simbologia para o Estado moderno, o que se evidencia é que a conjuntura dos aspectos sociais, políticos e econômicos, fez com que a nobreza, a burguesia, a Igreja, e também os súditos, reconhecessem no rei o representante supremo do Estado nacional que se formava. Aos interesses do monarca uniram-se os interesses dos nobres, dos burgueses, do clero, e da população desejosa de viver em maior segurança. Mesmo que o poder régio tenha sido imposto a estas classes, lhes foi conveniente aceitá-lo. Assim, o governante único, sobremaneira prestigiado, concentrou em suas mãos o controle total do Estado.
Nesses termos, aceita a autoridade do soberano – pela junção dos interesses supracitados, e pela sua legitimação forjada na doutrina do direito divino dos reis[4] –, o Estado “passa a ser considerado patrimônio do príncipe: ‘Tudo o que se encontra em nossos Estados nos pertence’, diz Luís XIV”. Proclama com absoluta convicção: “o Estado sou eu”. (REALE, 1983, p. 211).
Com efeito, a ideia das monarquias absolutistas começa a ser contestada. Em oposição à sociedade de ordens e de privilégios do ancien regime, a burguesia, detentora do poder econômico, revolta-se, na medida em que se encontra cansada de viver à margem do poder político. A par disto, alia-se ao restante da população de súditos que pertenciam às camadas inferiores da sociedade e que estavam insatisfeitos com sua condição de miseráveis (LEWANDOWSKI, 2004, p. 222). Forma-se aí a aliança adversária do absolutismo.
Assim, ao final do século XVIII o absolutismo entra em crise. A tolerância mútua compactuada pelas diferentes classes sociais (nobreza, clero, burguesia e camadas inferiores), momentaneamente equilibrada em virtude dos interesses em comum que gravitavam em torno da figura do monarca, rompe-se na medida em que o pacto da classe burguesa com os estratos inferiores se fortalece. A burguesia passa “a buscar um espaço político compatível com sua importância econômica”. Além disto, referida classe almejava superar o mercantilismo – pensamento econômico desenvolvido no absolutismo –, com a ampliação dos mercados e a obtenção de novas fontes de matérias primas. Ademais, “Tal empreitada foi facilitada pela contestação generalizada ao poder monárquico desenvolvida pelas diversas seitas protestantes em sua luta em prol da liberdade de culto”. (LEWANDOWSKI, 2004, pp. 222-223).[5] [6]
Por conseguinte, o absolutismo estava definitivamente ameaçado. O empenho da burguesia para alcançar o poder político bem como o seu esforço para promover a economia de mercado na área econômica, somados às questões conflituosas ligadas à religião, abrem campo para uma nova ordem: a chamada ordem liberal.
1.2. Estado liberal
Como forma de pensamento, o liberalismo foi idealizado na segunda metade do século XVIII e dominou a política da Europa e dos Estados Unidos da América do Norte no século XIX.
Fundamentado em novas concepções filosóficas e literárias, por meio do ideário racionalista e empirista do iluminismo, o liberalismo consagrou o triunfo da classe burguesa e das aspirações do povo evidenciadas pela Revolução Francesa. Por meio do famoso trinômio da “liberdade, igualdade e fraternidade”, a Revolução buscou a ascensão do homem-súdito ao status de homem-cidadão (BONAVIDES, 2001, p. 30). Fez romper definitivamente com o ancien regime, “com a velha aristocracia ociosa e protegida, que vivia à sombra dos tronos, desdenhando a burguesia e sendo por esta desdenhada” (BONAVIDES, 2001, p. 68). Possibilitou o surgimento do Estado de Direito, guardião das liberdades individuais, e permitiu a consolidação da “separação de poderes” idealizada por Montesquieu em sua obra O Espírito das Leis. Defendeu-se que a pluralidade de “poderes” salvaguardaria a liberdade e protegeria os direitos do indivíduo perante o poder estatal.[7]
Com isso, ao adotar a doutrina do Estado limitado no que diz respeito aos seus “poderes”, e a experiência do império das leis – elaboradas segundo o processo ordinário, em contraposição à influência do poder arbitrário –, o liberalismo abrigou os ideais do Estado de Direito (NOVAIS, 1987, p. 48), e deixou para trás o Estado de Polícia do absolutismo que acolhia o poder despótico e ilimitado do soberano (NOVAIS, 1987, p. 26).
Cabe dizer que “No plano institucional, o liberalismo significou a construção de um Estado em que o poder se fazia função do consenso, e em que a divisão de poderes se tornava princípio obrigatório; o direito prevalecia em seu sentido formal e a ética social repudiava as intervenções governamentais” (SALDANHA, 1976, pp. 51-53). Nesse passo, o Estado liberal assumiu “essencialmente características de abstenção: não atuar na ordem econômica nem afrontar os direitos e as liberdades individuais” (NOVAIS, 1987, p. 73).
Por conseguinte, da separação entre Estado e economia, coube ao Estado mínimo a missão de não intervir, a fim de possibilitar a concretização dos anseios liberais. Os dogmas do livre mercado e da livre iniciativa proporcionariam o desenvolvimento automático das potencialidades humanas em prol da sociedade, por meio de uma mão invisível.
Em relação aos direitos fundamentais (em especial à vida, à liberdade e à propriedade), o Estado liberal os preserva de qualquer intervenção do ente estatal; “a sua realização não pressupõe a existência de prestações estaduais, mas apenas a garantia das condições que permitam o livre encontro das autonomias individuais” (NOVAIS, 1987, p. 73). Referidos direitos ganham o caráter de direitos dos indivíduos contra o Estado, ou seja, são reconduzíveis a “uma esfera livre da intervenção estatal onde se prosseguem fins estrictamente individuais” (NOVAIS, 1987, p. 74).
Daí decorre que, essa liberdade concedida a cada indivíduo era indispensável para que a burguesia mantivesse “o domínio do poder político” que não se estendia às outras classes sociais (BONAVIDES, 2001, p. 44).
Por conseguinte, pode-se afirmar que dita liberdade:
“Permitia, ademais, à burguesia falar ilusoriamente em nome de toda a Sociedade, com os direitos que ela proclamara, os quais, em seu conjunto […] se apresentavam, do ponto de vista teórico, válidos para toda a comunidade humana, embora, na realidade, tivesse bom número deles vigência tão-somente parcial, e em proveito da classe que efetivamente os podia fruir” (BONAVIDES, 2001, p. 44).
Nesse viés, estava o sufrágio restrito, com direito de voto possível de ser exercido apenas por quem era proprietário. Deveras, quem detinha a propriedade, além de usufruir dos exercícios políticos, podia desfrutar igualmente da garantia de liberdade, que era traduzida no poder de escolha (de aquisição de bens), e que, consequentemente, era também garantia de felicidade (NOVAIS, 1987, p. 75).
Por outro lado, aqueles que não detinham o controle dos meios de produção e eram proprietários unicamente da sua força de trabalho, não tinham outra via de sobrevivência a não ser permitir a exploração da sua mão-de-obra pelos burgueses em troca de baixos salários, o que se traduziria na expressão: a exploração do homem pelo homem.
Isso é fácil de compreender ao se deitar o olhar no contexto pouco democrático da época. Conforme acima salientado, na medida em que os “proprietários eram os únicos que tinham direito de voto, era natural que pedissem ao poder público o exercício de apenas uma função primária: a proteção da propriedade” (BOBBIO, 2000, p. 47). Desta forma, obviamente, o Estado não precisava se preocupar em proteger o proletariado, já que mantinha a ordem e a segurança “para a defesa daquele direito natural supremo” (BOBBIO, 2000, p. 47), isto é, o direito de propriedade.[8] De resto, “tudo o mais, saúde, educação, previdência, seguro social”, deveria ser “atingido pela própria atividade civil” (BASTOS, 1995, p 69). Era o Estado absenteísta.
Diante desse cenário, quem não era proprietário, encontrou imensa dificuldade em manter sua sobrevivência, na medida em que, “pelo livre jogo das forças econômicas, não foi possível atingir o bem-estar da classe trabalhadora” (BASTOS, 1995, p 69), que ficou abandonada à sorte do que era estabelecido de forma unilateral pelos detentores dos meios de produção.[9] Neste sentido, o Estado liberal – com sua máxima laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même[10] –, acabou inevitavelmente em crise (BONAVIDES, 2001, p. 188).
Ao defender os interesses da burguesia e do seu status de classe dominante, o liberalismo fez com que as contradições sociais se evidenciassem e agravassem cada vez mais o quadro de diferenças existentes no século XIX.
Para tentar dirimir essa situação, abriu-se caminho para uma progressiva atuação por parte do Estado em vários setores: da economia à educação, dentre outros. Era o despontar do intervencionismo estatal.
1.3. Estado Social
Os dogmas adotados no liberalismo – não intervencionismo e importância dos direitos de primeira dimensão, em especial os direitos de liberdade e propriedade – fizeram evidenciar a real necessidade de um Estado centralizador e interventor para conter a estipulação unilateral, pelos detentores dos meios de produção, das regras referentes à classe trabalhadora, relegada à sua própria sorte. Constatou-se que a liberdade pregada pelo pensamento liberal era incapaz de realizar a felicidade humana.
Sob essa ótica:
“O Estado liberal, no qual não se falava de iniciativa estatal, salvo a relacionada exclusivamente com a manutenção de ordem e segurança, cede lugar ao Estado intervencionista; o movimento liberal, que teve em Adam Smith a sua grande expressão, não resiste às conseqüências da Revolução Industrial; e a experiência da Primeira Grande Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917 determinaram profundas modificações no Estado ocidental que abandona a sua postura de mero guardião da ordem e da segurança e transforma-se em inspirador e realizador do bem-estar social”.(BAZILLI; MONTENEGRO, 2003, p. 12)
Em decorrência da Segunda Grande Guerra cai por terra os ideais liberais culminando na ruína desse modelo de Estado.[11] Desta maneira, o ente estatal adotou de modo mais ativo a forma de atuação que seria a grande marca do Estado social: a intervenção em vários setores. Com o escopo de prover as necessidades básicas da população que estava à margem dos benefícios sociais (tais como saúde, educação, previdência, proteção contra o desemprego, moradia etc.), o enfoque central deixou de ser a liberdade e passou a ser a igualdade, direito fundamental este que pode ser considerado o “centro medular” da ordem jurídica do Estado do bem-estar.[12]
O intento foi o de intervir no âmbito econômico, mas não só. Realizar com amplitude a justiça social era uma aspiração mais do que desejada, era, em verdade, essencial para que a camada populacional, dantes abandonada ao bel-prazer dos donos da mão de obra assalariada, pudesse ter acesso a condições materiais que satisfizessem as suas necessidades vitais básicas, ou seja, a condições mínimas para uma existência humana digna. Neste viés, o Estado social buscou alcançar, mormente, a igualdade substancial, procurando suplantar a igualdade tão-só formal do modelo de Estado que o precedeu.
Renegou a antítese liberdade versus poder estatal, que prevaleceu no liberalismo para instituir “a era do Estado produtor, repartidor, distribuidor e distributivo, que não deixa à sorte dos indivíduos a sua situação social, mas vem auxiliá-los através de medidas positivas e de garantias efetivas” (TORRES, 2001, p. 51).
Deveras, o Estado social agregou e controlou várias atividades: estabeleceu limites à iniciativa privada e impôs diretrizes de caráter primordialmente social. Nesse contexto, passou a ser “mitigador de conflitos sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital” (BONAVIDES, 2001, p. 185). Os menos favorecidos começaram a se sentir amparados diante da nova postura do ente estatal, que passou a ser denominado de Estado prestador de serviços.
Perante tais características não se há de negar que:
“O Estado social, por sua própria natureza, é um Estado […] que requer sempre a presença militante do poder político nas esferas sociais, onde cresceu a dependência do indivíduo, pela impossibilidade em que se acha, perante fatores alheios à sua vontade, de prover certas necessidades existenciais mínimas” (BONAVIDES, 2001, p. 200).
Ao adotar essa linha protetiva, o Estado do bem-estar social – que, inicialmente, centralizou em demasia as atividades da máquina estatal, e, num momento posterior, passou a sentir a necessidade de descentralizá-las, para obter melhores resultados na prestação dos serviços públicos – agigantou-se, e tornou-se improdutivo, ineficiente e burocratizado.
Nesse sentido, o alargamento das atividades estatais trouxe consigo o aumento do déficit público; a grande interferência na sociedade civil e na esfera privada; uma legislação social onerosa, que afugenta o investimento de grandes empresas; o sentimento de dependência da população em relação ao poder público e aos serviços por ele prestados; a sensação de o dinheiro público ser gasto muitas vezes de forma indevida e leviana já que o volume com as despesas públicas é enorme; o destaque da função executiva diante das demais funções do Estado, em face da ingerência estatal em todos os setores da vida econômica e social (FERNANDES, 2004, p. 274).
Diante desse cenário de protecionismo e de magnitude do Estado social começou-se a questionar a sua eficiência e economicidade (FERNANDES, 2004, p. 274). Além disto, a avantajada dimensão intervencionista do ente estatal passou a ser tida como fator de inibição do crescimento da economia e óbice à livre concorrência. Isto fez com que a concepção de uma forma de Estado baseada no princípio da subsidiariedade ganhasse força, e fizesse emergir o Estado subsidiário, na segunda metade do século XX.
1.4. Estado subsidiário
Com efeito, diante do alargamento do Estado social e da sua consequente dificuldade em bem desempenhar todas as atividades a que se propôs, começou a ganhar espaço e projeção o denominado Estado subsidiário (ou neoliberal), considerado garantidor da autonomia e liberdade dos indivíduos e incentivador da sociedade civil e do papel de destaque que esta conquistou neste modelo estatal.
Além de vir com a missão de estabilizar a moeda e reduzir o déficit público, o Estado subsidiário veio também com a incumbência de superar o Estado-providência. Para tanto, tornou-se imprescindível priorizar metas que possibilitassem a reversão da enorme intervenção do Estado social e das amarras que envolviam os cidadãos, impedindo-os de desenvolver suas próprias potencialidades.
A redefinição do papel do ente estatal caracterizar-se-ia, sobretudo:
“[…] pela diminuição de seu tamanho; pela privatização das entidades estatais não comprometidas na realização das atividades típicas do Estado; pelo prestígio da liberdade econômica e da livre concorrência; pela extinção dos monopólios; pela descentralização das atividades do Estado ainda que típicas; pela agilidade e eficiência da máquina estatal, inclusive com novos modelos gerenciais; pela parceria com a sociedade civil; pela participação do cidadão na Administração Pública, em especial no controle da qualidade dos serviços prestados etc”(BAZILLI; MONTENEGRO, 2003, pp. 18-19).
Diante desse quadro, com o escopo de atingir citadas metas, reinventou-se, portanto, a política liberal. A novel tese tornou-se “uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar” (ANDERSON, 1995, p. 09). Assim, a recente ordem abriu espaço para o novo, com o discurso de buscar um Estado forte, moderno e uma economia nacional mais sólida. Todavia, com a diferença de que agora, Estado e sociedade civil não estariam mais em oposição como no liberalismo clássico, mas em situação de colaboração e complementaridade.[13]
Esse novo perfil do ente estatal obteve inspiração, como dantes afirmado, no princípio da subsidiariedade. Referido preceito, originário da doutrina social da Igreja Católica, buscava evidenciar que onde existe carência da atuação da iniciativa privada, o despotismo toma posse do Estado. Tal primado foi concebido para proteger o indivíduo de toda intervenção estatal despropositada.[14]
Deveras:
“Proveniente da expressão latina subsidium, que significa ajuda ou socorro, a subsidiariedade não conduz a um mero limite à ação do poder público, assinando-lhe, ao revés, a função de estímulo, coordenação, integração e, excepcionalmente, suplência” (TORRES, 2001, p. 268). (destaques da autora).
Nesse viés, abriga essencialmente três ideias básicas: a primeira relaciona-se aos direitos individuais, em que se reconhece que a iniciativa privada tem primazia sobre a iniciativa estatal; neste sentido, o Estado deve-se abster de desempenhar atividades que o particular tem condições de exercer por sua própria conta e com seus próprios recursos; sob esta ótica, o princípio acarreta uma limitação ao intervencionismo estatal. A segunda ideia diz respeito ao fato de que o Estado deve ser fomentador, colaborador e fiscalizador da livre iniciativa, a fim de possibilitar aos particulares a consecução de seus propósitos empreendedores, sempre que estiver ao alcance do ente estatal fornecer condições para tanto. E uma terceira ideia ligada ao princípio da subsidiariedade seria a relacionada à parceria entre o público e o privado, no sentido de auxílio do Estado à iniciativa privada quando esta for deficiente (DI PIETRO, 2002, pp. 33-34).
Ainda, pode-se relacioná-lo a uma quarta ideia que está ligada ao fato de que a subsidiariedade representa uma nova e adequada repartição de funções, ou seja, as organizações políticas locais devem resolver as questões que puderem ser por elas solucionadas, sem precisar recorrer às organizações regionais, que por sua vez devem resolver o que for de sua competência e capacidade, sem necessidade de apelar para o governo central. E este, por seu turno, deve atuar de maneira subsidiária, para que não exceda suas possibilidades de solucionar questões de forma eficiente.[15] Agasalha enfim, a ideia de que não se deve transferir a uma sociedade maior o que pode ser feito por uma sociedade menor.
Trata-se, portanto de um princípio que busca estabelecer diretrizes para o novo papel do Estado, que deve tentar conciliar a importância e a capacidade de realização dos particulares e da sociedade civil, com seu lugar de coadjuvante (ou subsidiário) na atuação dos serviços públicos, cuja ingerência deve-se restringir somente à prestação de serviços que a esfera privada não é capaz de realizar por si mesma.
Os particulares recebem, por conseguinte, uma carga maior de responsabilidade, na medida em que se envolvem na tarefa de executar serviços sociais que não são exclusivos do Estado (como a educação e a saúde). Nesta empreitada lhes é permitido agir de acordo com os interesses do mercado, como em qualquer atividade privada rentável, recebendo auxílio material do ente estatal apenas na medida necessária à consecução de seus objetivos. O Estado não substitui, não abarca um incontável número de atividades, mas presta ajuda aos indivíduos quando estes se mostram incapazes de realizarem os fins a que se propõem.
Verifica-se, portanto, que o postulado da subsidiariedade dá uma nova dimensão ao Estado e, igualmente, à sua relação com a sociedade, passando de interventor e ator principal para regulador e colaborador. Por intermédio desta particularidade, a iniciativa privada ganha o papel de grande protagonista do Estado subsidiário, o qual irrompe erguendo a bandeira do controle do dinheiro com os gastos públicos e a redução na intervenção econômica.
Com efeito, pode-se dizer que do ora exposto, do antigo regime de outrora, ao Estado subsidiário contemporâneo, profundas transformações ocorreram no âmbito estatal.
Diante de todas as mudanças verificadas, torna-se relevante fazer uma breve análise sobre as crises que afetaram o Estado moderno, as alterações do seu papel e de quem o comandou ao longo dos séculos, com o fito de facilitar a análise crítica que se fará ao final do presente trabalho.
2. As mudanças do papel do Estado e a alternância do poder ao longo da era moderna
Como se viu, nos tópicos precedentes, o Estado moderno assumiu formas diversas, com o escopo de solucionar os problemas e desafios das conflituosas relações travadas entre os indivíduos e a sociedade, buscando com isto, a sua paz interna e externa.
Nesse viés, mudanças significativas ocorreram em diferentes épocas: o antigo regime cedeu espaço ao Estado liberal, seguido pelo Estado social, até chegar ao denominado Estado subsidiário (ou neoliberal) na atualidade.
Na esteira dessa linha evolutiva do Estado moderno, as alterações que se foram sucedendo evidenciaram que (a) no comando do Estado, ocorreu a alternância do poder, ao longo da era moderna. Do mesmo modo, ao se analisar o processo de transformação progressivo e gradual do ente estatal, pode-se constatar outra inegável realidade, qual seja, (b) a de que os ocupantes do poder não conseguiriam exercer seu domínio sem a colaboração do Estado, mesmo nos modelos de cunho liberal.
Por conseguinte, com base em referidas assertivas, (a) e (b), caberá traçar comentários importantes a respeito do tema, os quais servirão para fundamentar a visão que se pretende estabelecer a respeito do assunto sub examine.
É de ver-se que:
De fato, no absolutismo monárquico, o soberano foi imprescindível para unir os diversos centros de poder que se encontravam fragmentados. O rei tornou-se peça determinante no contexto da época e conferiu força agregadora à anterior poliarquia do medievo; com isto, possibilitou a formação dos Estados nacionais. O monarca virou figura central porque foi conveniente ao jogo de interesses da época. Se de um lado, o governante supremo, ao impor-se perante seus oponentes, propiciou a instituição do Estado, de outro, apoderou-se dele para servir aos seus fins.
No liberalismo os burgueses revolucionários de outrora, uma vez no poder, tornar-se-iam os “novos aristocratas”, buscando utilizar o Estado como aparato ideológico a serviço dos seus interesses de classe dominante. Assim, “É, com efeito, a necessidade de defesa da propriedade burguesa que justifica os entorses aos direitos fundamentais” (NOVAIS, 1987, p. 75). O Estado serve para defender e proteger os anseios burgueses (GRAU, 2006, pp. 31-32).[16] Logo, verificar-se-ia que os ideais da Revolução Francesa teriam apenas caráter formal, “uma vez que no plano de aplicação política” preservar-se-iam apenas “como princípios constitutivos de uma ideologia de classe” (BONAVIDES, 2001, p. 42).
No Estado do bem estar social, o intervencionismo estatal, em diversos setores, foi fundamental não só para a sobrevivência da maior parte da população – que se encontrava carente de saúde, educação, previdência, dentre outras necessidades básicas –, como igualmente para a sobrevivência dos detentores do capital e daqueles que estavam no comando do Estado. Na medida em que o Estado fornecia aos indivíduos o que precisavam – pois não tinham outros meios para sua obtenção –, o ente estatal promovia o desenvolvimento da economia e riqueza social, o que acabava sendo, por via de consequência, uma medida de contenção de conflitos e de proteção ao patrimônio da classe dominante. O ente estatal oferecia o que “os grupos privados não podiam ou não queriam oferecer” (DALLARI, 2001, p. 59).
Aqui, neste ponto, abre-se um parêntese para fazer a seguinte ressalva: a ampla participação do Estado no contexto social, decorrente do intervencionismo – embora tenha gerado comodismo à população e proporcionado proteção ao patrimônio dos mais abastados como medida de contenção de conflitos, como se ressaltou –, tem mérito muito maior do que demérito, especialmente no cenário brasileiro, o que possibilita constatar-se que o ente estatal tem uma importância tamanha na vida atual devido à sua onipresença, que sua abstenção como agente interventor acabaria por comprometer o funcionamento de importantes setores da sociedade.
Após essa estreita digressão no que diz respeito ao Estado social, encerrar-se-á esta análise comparativa, com a abordagem do papel do Estado subsidiário, e da manipulação ideológica que o acompanha, destacando que um maior enfoque crítico ao papel do Estado social e do Estado subsidiário será dado no item seguinte.
Pois bem, em relação ao Estado subsidiário (ou neoliberal), ao contrário do que se afigura, ocorre que, sob o disfarce e a pretexto de alcançar o “fortalecimento” da sociedade civil e dos agentes privados para que possam substituir o Estado na prestação dos serviços públicos, tais como saúde, educação, assistência social, entre outros, as classes privilegiadas buscam, na verdade, aumentar a miséria, a ignorância e dificultar o acesso aos direitos essenciais do cidadão.
Ao se conceder primazia à livre iniciativa com incentivo aos indivíduos e aos grupos intermédios, como as associações e fundações, o que se pretende é privilegiar os interesses de grandes corporações privadas (representadas por um grupo seleto de grandes empresas transnacionais e instituições econômicas mundiais), que são as reais investidoras na nossa sociedade capitalista, e que, em contrapartida, ao “colaborarem” com o Estado, participam e influenciam nas decisões políticas de forma inegável. O que ocorre é que os interesses dos particulares, nesse sentido, acabam confundindo-se com os interesses do Estado, facilitando a imposição das diretrizes neoliberais. Neste viés, “a apologia ideológica do mercado é produzida em função exclusivamente do interesse do investidor, que é o de baixar os custos que oneram a empresa (os salários, os tributos e as cargas sociais)” (GRAU, 2006, pp. 48-49).
Com efeito, embora, como visto, o poder ora esteja nas mãos de uma classe, ora nas mãos de outra, quem o detém passa a ser o comandante da vez, e os ocupantes do poder exercem seu domínio sempre com a cooperação do Estado, seja ele absolutista, (neo) liberal ou social. Entretanto, nos modelos ditos liberais, esta colaboração do ente estatal ocorre por omissão (que acarreta em contrapartida o ônus econômico) e não por ação, o que sem dúvida traz consequências muito mais graves e perniciosas para a população do que quando o Estado atua e interfere na órbita privada.
E é com essa visão, transposta do cenário geral para o cenário pátrio, que se fará a análise da situação do Estado brasileiro contemporâneo. Para tanto, ver-se-á, de forma mais explícita e contundente, o contraponto e o exame crítico do Estado social e do Estado subsidiário.
3. O modelo de Estado brasileiro contemporâneo: um enfoque crítico
O Estado brasileiro possui, desde as primeiras décadas do século passado, um manifesto perfil intervencionista, com ênfase nas áreas econômica e social (SILVA, 1997, p. 41). Ressalta-se que, mesmo com todas as mudanças introduzidas na esfera pública, o ente estatal, no Brasil, não deixou de lado a intervenção na esfera privada. A nossa realidade evidencia e reafirma fortemente a necessidade do Estado social, que apenas diminuiu de tamanho (em decorrência das inúmeras privatizações), permanecendo, todavia, no comando e direcionamento das esferas políticas, econômicas e sociais do país.
Ver-se-á que, embora com os defeitos apontados ao final do item 1.3, e mesmo tendo servido como medida protetora em face de possíveis revoltas sociais, com o fim de defender os interesses dos detentores do capital (cf. tópico anterior), ainda assim o Estado do bem-estar é de longe muito menos perverso do que querem fazer crer os defensores do neoliberalismo e da economia de mercado.
Portanto, sob esse prisma, deve ser dado um enfoque crítico ao tema.
O governo idealizou a reforma do Estado, nos idos dos anos 90, com o escopo de achar a saída para a crise estatal brasileira e amenizar a grave situação do país.
Porém, como toda mudança clama por algo inovador – e é exatamente na transformação que está a essência de toda reforma – dever-se-ia introduzir novos termos e conceitos no cenário brasileiro para justificar a pretensão de reformar com o fim de “solucionar” a crise. Pois bem, a novidade ficou a cargo da apresentação da Reforma Gerencial, buscando instituir no país, o Estado subsidiário e suas diretrizes (conforme preconizado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado).[17]
A implantação dessa nova forma de Estado baseou-se, como já visto, no princípio da subsidiariedade. Desta maneira, deu-se primazia ao papel da sociedade civil entregando-lhe a tarefa de realizar atividades de utilidade ou necessidade pública, de sorte que ao Estado, caberia tão-somente incentivar, auxiliar o particular nas atividades que este se inclinasse a desempenhar, só assumindo as tarefas, se acaso as ações da esfera privada não conseguissem alcançar a finalidade pretendida, isto é, sem obter sucesso nesta empreitada à qual se lançaram. Deste modo, de interventor no campo econômico e social e provedor de bens e serviços, o Estado torna-se fomentador e regulador das atividades deixadas à esfera privada.
Há, contudo, uma evidente contradição nessa concepção. O Estado realmente não precisaria se ocupar de atividades que pudessem ser desenvolvidas de modo satisfatório pelo particular; entretanto, pretender que o ente estatal deva dar auxílio ao particular sempre que este não tenha condições de ele próprio, desenvolver a atividade para a qual direcionou seu intento, acarreta, como consequência, a transferência de recursos públicos para a esfera privada e mais ônus ao erário público. Isto é uma distorção.
Esse fato em análise – que enfatiza o novo papel da sociedade civil e das atividades que ela deve assumir, em busca de um pretenso alívio para a sobrecarga do Estado –, traz à tona os interesses da classe econômica dominante na reforma estatal e, igualmente, sua ideologia. Nos bastidores dessa transferência de responsabilidade (que se aproxima do Estado mínimo), encontra-se a luta pela manutenção do poder.
Nesse passo, evidente que o Estado social, constantemente associado ao Estado burocrático (por causa do crescimento do seu aparato) precisava aparentar uma imagem negativa, antidemocrática, para que o objetivo de implantação do Estado subsidiário fosse alcançado.
O que não se observou foi o fato de que:
“Estado democrático e Estado burocrático estão historicamente muito mais ligados um ao outro do que a sua contraposição pode fazer pensar. Todos os Estados que se tornaram mais democráticos tornaram-se ao mesmo tempo mais burocráticos, pois o processo de burocratização foi em boa parte uma conseqüência do processo de democratização. Prova disso é que hoje o desmantelamento do Estado de serviços – Estado este que exigiu um aparato burocrático até agora jamais conhecido – esconde o propósito, não digo de desmantelar, mas de reduzir a limites bem circunscritos o poder democrático”(BOBBIO,2000, p. 47).
Sob esse prisma, na tentativa de atribuir ao Estado social uma concepção antidemocrática – em que o indivíduo perde sua liberdade de escolha diante da dominação da sociedade pelo aparato estatal –, afirmam alguns que o verdadeiro Estado Democrático de Direito se manifesta apenas no modelo de Estado apoiado no neoliberalismo, pois é o modelo que se preocupa em redefinir os limites entre o Estado e a sociedade civil, para que esta resgate qualidades que lhe são próprias “tais como auto interesse, trabalho duro, flexibilidade, autoconfiança, liberdade de eleição, propriedade privada e desconfiança na burocracia estatal” (TORRES, 2001, p. 59).
Deveras, essa visão pretende estabelecer um argumento ideológico estrategicamente elaborado, que procura inverter a verdade dos fatos, qual seja, a de que:
“Há marcante contradição entre o neoliberalismo – que exclui, marginaliza – e a democracia, que supõe o acesso de um número cada vez maior de cidadãos aos bens sociais. Por isso dizemos que a racionalidade econômica do neoliberalismo já elegeu seu principal inimigo: o Estado Democrático de Direito”(GRAU, 2006, p. 57).
Diante dessa afirmação, ao se defender fortemente a prevalência da iniciativa privada e das forças do mercado, busca-se diminuir a força do Estado social e lhe atribuir o título de modelo ultrapassado, aquém do que se espera de um Estado contemporâneo. Isto com o fim de que sua intervenção se enfraqueça precisamente para aumentar a exclusão social. E os excluídos não reivindicam, não exigem a observância dos seus direitos (pois muitos desconhecem os direitos e garantias que lhes são assegurados pelo ordenamento), o que é verdadeiramente interessante para conter os gastos estatais (inimigos da política neoliberal), pois quanto menos se exige do Estado, menores as suas despesas, menor a sua atuação como provedor dos direitos sociais, e, portanto, menor a sua ingerência.
Assim, reduzir o papel do Estado do bem-estar e ampliar a ação do Estado neoliberal era essencial para o sucesso das ideias político-ideológicas das superpotências, melhor infiltradas graças ao processo de globalização, incentivadas, sobretudo pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, para a concessão de créditos aos países em desenvolvimento. O escopo consistia em “apedrejar” o Estado intervencionista[18] e, igualmente, atribuir à Constituição de 1988 o estigma de “grande vilã” da manutenção da burocracia e do agravamento da crise estatal.[19] Portanto, nada era mais consentâneo com esta visão do que propor a “transformação” do Estado interventor para o subsidiário.
Na verdade, esse discurso distorcido preconizado pela reforma, almejava alterar dois fatos incontestes da realidade brasileira: o primeiro, que dificilmente modificar-se-á, é o fato de que só o Estado – e não os particulares – pode resolver as mazelas das desigualdades sociais existentes em nosso país e, assim, ainda que se intente instituir um Estado subsidiário, persiste e persistirá no Brasil a necessidade da intervenção estatal para amenizar os problemas das classes menos favorecidas; o segundo, consiste no fato de que a Constituição de 1988 define “um modelo econômico de bem-estar” e, neste sentido, “os programas de governo deste e daquele Presidentes da República é que devem ser adaptados à Constituição, e não o inverso” (GRAU, 2006, p. 47). Do contrário há que se fulminar qualquer mudança introduzida na Carta Magna, incompatível com o modelo que agasalha, com o vício da inconstitucionalidade (GRAU, 2006, p. 47).
Isso porque “A substituição do modelo de economia de bem-estar, consagrado na Constituição de 1988, por outro, neoliberal, não pode ser efetivada sem a prévia alteração dos preceitos contidos nos seus arts. 1º, 3º e 170” (GRAU, 2006, p. 48). Portanto, há que se observar a ordem constitucional, agrade ou não, o pensamento e o discurso de quem prima pelo afastamento do Estado de cunho social.
4. Considerações finais
Em suma, e caminhando para a conclusão que se pretende aqui estabelecer, está o argumento de que se o Estado só centralizar sua ação na esfera das decisões políticas, tendo em vista sua capacidade de “intermediar interesses, garantir legitimidade perante a sociedade e governar” (BORGES, 1998, p. 27), abstendo-se de interferir, de um lado contenta a livre iniciativa, beneficia o mercado, mas escancara as dessemelhanças sociais.
Não importa que se dê nova roupagem ao Estado. Com efeito, mesmo que venha a se solidificar a gradativa transformação do ente estatal, de interventor para regulador, ainda espera-se – e esperar-se-á quiçá por muito tempo – que o Estado interfira nas diversas esferas, para o atendimento e o fortalecimento do bem-estar dos indivíduos, pois do contrário, os conflitos sociais e os desníveis econômicos e culturais contribuirão para aumentar cada vez mais a injustiça no país.
Assim sendo, embora se afirme, criticamente, por um lado, que a interferência do Estado é excessiva muitas das vezes, por outro não se pode negar que sua presença contribui para a subsistência de milhares de pessoas que contam com a presença e participação estatal em vários setores da sociedade moderna (veja-se, v. g., os programas de governo que passaram a ser implantados com nítido cunho social[20]) a tal ponto de ser inimaginável um retrocesso à política absenteísta.
Com efeito, se à época da reforma dos anos 90 (marco regulatório para a tentativa de consolidação do setor privado no país), o que se quis foi priorizar a economia de mercado, passada mais de uma década do advento da EC nº 19/98, responsável por introduzir na Carta Política brasileira as diretrizes e metas neoliberais idealizadas à imitação de modelos alienígenas, o que hoje se verifica é o desapontamento de quem achou que as alterações transformariam o modelo de Estado brasileiro, uma vez que “Tais mudanças (…) redundaram em muito pouco de substancialmente novo, e em muito trabalho aos juristas para tentar compreender figuras emprestadas sobretudo do Direito Americano, absolutamente diferente do Direito brasileiro” (FIGUEIREDO, 2006, p. 64).
Dentro desse panorama, o que se evidencia é uma verdadeira mistura de modelos, o que torna contemporânea a forma de Estado social com certas diretrizes do Estado subsidiário. Entretanto, referida reforma não transformou o Brasil neste último. O que se pretende ressaltar é o fato de que coexiste nos dias de hoje, a mescla do Estado social – que interfere nas atividades dos indivíduos a fim de realizar o bem comum e o interesse público – com o modelo de Estado que privilegia a livre iniciativa e a livre concorrência.
Todavia, o que parece ser difícil ao Governo é saber dosar a ingerência estatal com a importância atribuída à sociedade civil e ao livre mercado. Achar o equilíbrio, o “caminho do meio”, representa um grande desafio na atual conjuntura do Estado brasileiro que passa por tantas mudanças embaladas pela globalização. É imprescindível que as ideias preconizadas pelos defensores da política de controle, das superpotências em relação aos países em desenvolvimento ou emergentes, num verdadeiro culturalismo econômico, não comprometam a justiça social, devendo ser adotadas e praticadas de forma consciente e dosada.
Contudo, e para encerrar, embora não se saiba qual o modelo de Estado que virá a prevalecer no futuro, não se pode esquecer, insista-se, o fato de que, na atualidade, a necessidade da atuação estatal ainda é fundamental para não gerar o caos no âmbito social.
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre e Doutoranda em Direito do Estado pela PUC/SP. Professora de Direito Administrativo dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Advogada
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