O novo artigo 84 do Código de Processo Penal e o art. 97 da Constituição Federal

Sumário: 1. Introdução: o controle de constitucionalidade;
2. O novo artigo 84 do Código de Processo Penal; 3. O controle de
constitucionalidade em face do artigo 84 do Código de Processo Penal; 4.
Conclusão.

1.
Introdução: o controle de constitucionalidade

A origem da técnica de revisão
judicial no exercício do controle de constitucionalidade não é de data recente.

 Conforme ensina Pinto Ferreira: “Já o jurista inglês Coke admitia em 1628,
que tanto os atos do Parlamento como os do rei deveriam estar de acordo com a Common Law. De outro lado, durante cerca
de um século, de 1680 a
1775, o Conselho Privado do rei da Inglaterra anulou atos das colônias que eram
contrários às respectivas cartas das ditas colônias. Depois da independência
norte-americana, vários tribunais dos States
também declararam a inconstitucionalidade das leis diante das Constituições
Estaduais”.[1]

Entretanto, arremata do mesmo
jurista, “a doutrina da revisão judicial surge com Marshall, o grande
presidente da Suprema Corte norte-americana, no caso Marbury v. Madison, em 1803”.

Decorre da supremacia da
Constituição a necessidade de se estabelecer mecanismos de controle de
constitucionalidade, visando não permitir a existência ou eficácia de normas
que colidam com o texto e com princípios da Constituição Federal.

Tal idéia destaca a necessidade de
se visualizar um escalonamento normativo, do qual decorrem princípios como os
da verticalidade e hierarquia das normas.

A Constituição Federal de 1988
estabelece um “sistema” de controle de constitucionalidade, prevendo a
possibilidade de controle preventivo,
pelo qual se visa impedir que alguma norma inconstitucional ingresse no
ordenamento jurídico, e o controle
repressivo
, pelo qual se busca retirar do ordenamento a norma editada em
desrespeito à Constituição.

É cediço que o controle preventivo deve ser exercitado pelos Poderes Legislativo e
Executivo, por intermédio das Comissões de constituição e justiça e pelo veto,
respectivamente, enquanto que o controle
repressivo
cabe ao Poder Judiciário, que o exercita pela via difusa (aberta; genérica; do caso
concreto; de exceção ou defesa) ou concentrada
(via de ação direta; de lei em tese).

Controlar a constitucionalidade,
conforme Alexandre de Moraes,
“significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato
normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais”.[2]

2.
O novo artigo 84 do Código de Processo Penal

Conforme ensina J.J. Gomes Canotilho, a constituição é
a lex superior, “quer porque ela é
fonte da produção normativa (norma
normarum
) quer porque lhe é reconhecido um valor normativo hierarquicamente
superior (superlegalidade material)
que faz dela um parâmetro obrigatório de todos os actos estaduais”.[3]

Não obstante o acima afirmado, tem
se tornado cada vez mais freqüente a edição de normas inconstitucionais no
Brasil; ora como evidente (sub)produto da voracidade legislativa, ora como
manifestação inequívoca do autoritarismo e dos desmandos políticos a que
vivemos submetidos; dos conchavos trançados ao arrepio da lei, de princípios
éticos e de Justiça, e do desejo da sociedade brasileira.

Não foi diferente com a edição da
Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002, cuja tramitação acelerou-se no Congresso
Nacional durante os jogos finais da copa do mundo de futebol de 2002, visando
evitar maior discussão e pressão social sobre os termos do então Projeto
6.295/02, de autoria do Governo Federal e que só interessava aos políticos que
estão sendo processados ou que ainda o serão, pela prática de crimes e de atos de improbidade
administrativa
, nas esferas penal e civil, respectivamente.

Convertido o Projeto em Lei, que
recebeu o n.º 10.628/02, deu-se a partir de então nova redação ao artigo 84 do
Código de Processo Penal, que passou a contar com dois parágrafos.

Diz o § 1º: “A competência especial
por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente,
prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a
cessação do exercício da função pública”.

Conforme o § 2º: “A ação de
improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de
1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar
criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro
em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o.”

Tais disposições são absolutamente
inconstitucionais, conforme já salientamos em outro artigo[4],
e a comunidade jurídica vem estabelecendo aguda discussão sobre a competência
para a declaração de inconstitucionalidade dos referidos §§ acrescentados ao
artigo 84 do Código de Processo Penal com a famigerada Lei 10.628/02, isso em
decorrência do disposto no art. 97 da Constituição Federal.

3.
O controle de constitucionalidade em face do artigo 84 do Código de Processo
Penal

Ultrapassado o antecedente lógico
que não tem sede de discussão neste momento, e admitida, portanto, a
inconstitucionalidade de um ou de ambos os parágrafos do novo artigo 84 do
Código de Processo Penal, resta saber a quem compete a declaração de
inconstitucionalidade, e tal constitui exatamente o objetivo do presente
estudo.

Conforme dispõe o artigo 97 da
Constituição Federal: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou
dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar
a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Diante de tais norteadoras, tem se
sustentado que não cabe ao juízo monocrático a decisão de reconhecimento de
inconstitucionalidade dos dispositivos legais precitados, nos processos
instaurados antes da edição da Lei e ainda em andamento na Primeira Instância,
tendo em vista que o novo regramento estabelece normas atinentes à competência
originária.

Não nos parece correta, todavia, tal
conclusão, e com ela evidentemente não concordamos, data vênia dos respeitáveis fundamentos que se tem apresentado.

Com efeito, a regra insculpida no
artigo 97 da Carta Política não obsta o exercício do controle difuso de
constitucionalidade, sabidamente exercitável diante do caso concreto, incidenter tantum e com efeitos inter pars. Dirigida que é aos
“Tribunais”, fixa na exata medida de seu texto o que se convencionou denominar
na doutrina como cláusula de reserva de
plenário
[5],
sem afetar a esfera competencial do juízo monocrático, mesmo em se tratando de
matéria referente à competência originária.

Trata-se, é bem verdade, de matéria
de extrema relevância, sendo justificável a polêmica criada na atualidade. É
preciso concluir, todavia, que referida cláusula
não impede, não veda a possibilidade do juízo monocrático exercer o controle difuso
e declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público,
mesmo na hipótese em testilha, pois se é exato que não há colidência entre
normas constitucionais, a interpretação que por aqui se ajusta é no sentido de
que, julgando recurso em que se discuta a inconstitucionalidade, o tribunal
deverá, então, observar o disposto no art. 97 da Constituição Federal.

Caberá ao juízo monocrático,
entretanto, pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade aventada, no momento
oportuno e na forma adequada, primando pelo controle difuso, sem supressão de
instância.

Do mesmo entendimento parece
comungar Manoel Gonçalves Ferreira Filho
ao afirmar, em comento ao artigo 97, que: “se todo juiz pode reconhecer a
inconstitucionalidade, os tribunais só o podem fazer pela maioria absoluta de
seus membros”.[6]

4.
Conclusão

A Lei 10.628, de 24 de dezembro de
2002, foi um péssimo presente de Natal para a sociedade brasileira, entretanto,
encheu de brilho os olhos daqueles que, em flagrante violação aos princípios da
moralidade e impessoalidade, patrocinaram sua edição.

Contrária a Constituição Federal,
não deve alcançar eficácia social, cumprindo seja reconhecida a
inconstitucionalidade de seus dispositivos, e nada impede, ao contrário, tudo
recomenda, que os juízos monocráticos, no exercício do controle difuso de
constitucionalidade assim reconheçam.

A regra do artigo 97 da Constituição
Federal restringe-se os Tribunais[7],
e em nada afeta o controle difuso exercitável diante do caso concreto pelos
juízos de instância menor.


Notas:

[1] Curso
de Direito Constitucional, 8ª ed., São Paulo: Saraiva,  1996, p. 421.

[2] Direito
constitucional, São Paulo: Atlas, 3ª ed., 1998, p. 487.

[3] Direito
constitucional e teoria da constituição, 2º ed., Coimbra: Almedina, 1998, p.
784

[4] MARCÃO,
Renato Flávio, Foro especial por prerrogativa de função: o novo artigo 84 do
Código de Processo Penal, disponível na Internet em: www.direitopenal.adv.br.

[5] Cf.
MORAES, Alexandre de, ob., cit., p. 494; ARAÚJO, Luiz Alberto David, e NUNES
JR., Vidal Serrano, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 32.

[6] Curso
de Direito Constitucional, 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 39.

[7]
Conforme lembram Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior: “O
Supremo Tribunal Federal decidiu que o quorum
qualificado do art. 97 (reserva de plenário) para outros Tribunais fica Supremo
Tribunal Federal já tenha decidido pela inconstitucionalidade, mesmo pela via
de exceção” (Curso de Direito Constitucional, 4º ed., São Paulo, Saraiva, 2001,
p. 32).


Informações Sobre o Autor

Renato Flávio Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).


Equipe Âmbito Jurídico

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