Resumo: Fundamental para a compreensão da diversidade, a Antropologia cada vez mais tem assumido destacado espaço no mundo jurídico. Sendo assim, buscar-se-á demonstrar, neste trabalho, como a Antropologia Jurídica é uma categoria elementar para o saber/pensar o Direito. Trabalhar-se-á de forma sumária algumas questões que envolvem e perfazem o delicado elo de ligação entre o Direito e a Antropologia. Com isso, tentar-se-á instigar a descoberta e compreensão desse ramo jurídico fundamental. Sobretudo hoje, pois a Antropologia não se ocupa mais exclusivamente do “exótico”, “estranho” e “diferente”.
Palavras-chave: Antropologia; Antropologia Jurídica; Formação do Estado moderno; Pluralismo Jurídico.
Abstract: Fundamental as it is for an understanding of diversity, Anthropology has steadily assumed a more marked presence in the legal world. This being so, we seek to demonstrate in the current work how Legal Anthropology is a fundamental category for understanding and thinking about the Law. The paper makes a brief examination of a series of questions which both surround and make up the delicate link between the Law and Anthropology. In this way we attempt to instigate both the discovery and understanding of this fundamental branch of the law. This is especially relevant today because Anthropology is no longer exclusively occupied with the “exotic”, the “strange” and the “different”.
Keywords: Antnropology. Legal Antnropology. Formation of the Modern State; Legal Pluralism.
Sumário: 1. Introdução – 2. Antropologia: breve histórico – 3. A Antropologia Jurídica – 3.1. A união homoafetiva – 3.2. Antropologia, Direito e os Povos ameríndios – 4. A influência jurídico-antropológica nas Constituições da América Latina – 5. O território – 6. O Pluralismo Jurídico – 7. Conclusão – 8. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O despertar para a diversidade e a alteridade e o reconhecimento jurídico do pensamento antropológico proporcionam ao Direito a percepção da imensa amplitude e riqueza que o torna tão especial.
Nesse pensamento, enfim, procurar-se-á demonstrar a importância da reflexão jurídico-antropológica. Abordar-se-á, de modo sumário, a Antropologia para, então, iniciar-se na compreensão dessas reflexões por sobre o jurídico.
As questões sobre gênero, índio, quilombolas, comunidades tradicionais e território, servirão de base para fundamentar a importância de um diálogo idiossincrático, o respeito e reconhecimento da diferença.
Sendo assim, buscar-se-á demonstrar como o Estado brasileiro, em sua formação, propiciou uma cultura jurídica monolítica e excludente pouco comprometida com a diversidade cultural e jurídica de nosso país. Todavia, será posta em evidência uma série de transformações jurídicas, de maneira exemplificativa, como forma de demonstrar a importância da reflexão antropológica e as suas possíveis consequências na vida cotidiana, sobretudo, em se tratando da aplicabilidade e eficácia do Direito.
Este trabalho tem, sobretudo, o intento de ser um instrumento no auxílio da compreensão básica da Antropologia Jurídica, demonstrando como o Direito acaba, inevitavelmente, por transbordar para além do jurídico estatal, a despeito de sua pretensa primazia.
Com isso, será parte desse trabalho mostrar que o Pluralismo Jurídico merece destaque na compreensão (contemporânea) desse ramo do Direito, principalmente em se tratando de Brasil e América Latina e, por isso, pela sua extensão territorial, por suas raízes históricas, sua diversidade e riqueza cultural e por suas manifestações cotidianas em busca da concretização e defesa de “velhos” e “novos” direitos.
1 . ANTROPOLOGIA: BREVE HISTÓRICO
Antes de qualquer abordagem acerca do tema da Antropologia Jurídica, por óbvio, faz-se mister a compreensão, por mais limitada que seja, do que vem a ser a Antropologia.
Sendo assim, inicialmente, torna-se importante compreender a etimologia desta palavra. O termo Antropologia tem origem na fusão dos vocábulos gregos anthropos [homem] e logía [estudo], significando, assim, o estudo do homem.
No que tange à origem dessa ciência cumpre destacar seu surgimento na Modernidade.[1] Com isso, Thais Colaço, a partir das lições de J. Copans, destaca que a Antropologia origina-se na etnografia e na etnologia.[2] Ainda, observa a jurista catarinense:
“Entre os séculos XVII e XVIII têm início os primeiros contornos empíricos de uma análise sistemática das sociedades não-européias mediante relatos dos viajantes e dos missionários”.[3]
Contudo, somente no século XIX a etnografia e a etnologia “se enquadram como complementares”.[4]
Nesse processo de compreensão da Antropologia um outro elemento tem grande importância: a cultura. Esse termo tem suas origens no século XIX com Edward Tylor a partir da síntese de dois conceitos, um de origem francesa (Civilization) e outro de origem germânica (Kultur), o que resultou no vocábulo inglês Culture.[5]
Grosso modo, pode-se definir Antropologia como “o estudo do homem como ser biológico, social e cultural.”[6] Ainda, como “la ciencia de la alteridad sociocultural”[7]. Vale destacar que, segundo Esteban Krotz, “la alteridad es su categoría fundamental”.[8]
Entretanto, apesar da diversidade de conceituações do que vem a ser Antropologia, é possível entendê-la como “a resposta para conhecermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo ‘outro’.”[9]
Interessante observar que o processo histórico que produz e elabora aquilo que mais tarde viria ser a Antropologia como ciência tem suas origens com as grandes navegações. É a partir da descoberta do novo mundo e da exploração das grandes rotas de navegação (o prenúncio da Globalização) que se dá a descoberta e o estudo do “outro”, do “diferente”, do nativo, do não-europeu.
Todavia, a “Antropologia se constitui como disciplina científica nos quadros do pensamento social europeu do século XIX, em torno, dentre outras, das problemáticas obrigatórias do ‘progresso’ e da ‘evolução social’.”[10] Esse processo se dá, pois, sob forte influência da matriz epistemológica positivista e das teorias evolucionistas. Além disso, vale notar que, inicialmente, a coleta de dados e o contato com o “primitivo”/“exótico” ocorre não por via do pesquisador, mas – como já salientado – através dos relatos realizados por “missionários, militares, viajantes, administradores coloniais, etc.”[11]
Sendo assim, podemos afirmar que “nas raízes do saber antropológico, está a dominação política dessas sociedades, que é preciso melhor conhecer para melhor controlar.”[12]
Com isso, no desenvolvimento histórico da Antropologia, confere-se grande destaque ao norte-americano Henry Lewis Morgan. Este fora o “primeiro antropólogo a elaborar um modelo de desenvolvimento da humanidade”.[13] Mas era um trabalho estéril, sem o contato direto com as sociedades estudadas, impregnado por uma visão evolutiva linear.
Somente no século seguinte, porém, haveria uma junção dos trabalhos de campo com a interpretação de seus resultados. Assim explica Thais Colaço, conforme as lições de Robert Shirley:
“A partir dessa nova postura dos antropólogos, a Antropologia, como ciência moderna, disciplina universitária e profissão, surgiu no começo do século XX, sendo seus precursores o judeu-alemão naturalizado norte-americano Franz Boas, com formação em Física, e o polonês expatriado, acolhido na Inglaterra, Bronislaw Malinowski com formação em Matemática”.[14]
O grande mérito de Franz Boas foi contestar o evolucionismo e fundar a escola difusionista, muitos o consideram o fundador da Antropologia contemporânea. Já Malinowski corrobora essa contestação combatendo o evolucionismo, de uma vez por todas, através da corrente funcionalista sistemática. Além disso, foi o primeiro a realizar o trabalho de campo através da observação participante, ou seja, tendo contato direto com o seu “objeto” de estudo.[15] “A partir dele a Antropologia se torna a ciência da alteridade, dedicando-se ao estudo das lógicas próprias de cada cultura.”[16]
Cabe salientar, ainda, que a Antropologia contemporânea tem sofrido um alargamento de seu objeto. Para além do estudo do exótico, “o objeto da pesquisa da Antropologia não está mais nas sociedades distantes, intocáveis, ‘primitivas’ e sim dentro das nossas sociedades”.[17]
Essa transformação, pois, torna possível a transposição de elementos como primitivo, exótico, distante, diferente, aborígine e permite a análise de temas muito mais familiarizados ao modo ocidental como o mundo urbano, os conflitos sociais, a cultura do consumo, a alienação, o subúrbio/periferia, as favelas etc.
Carlos Vladimir Zambrano, assim, explica:
“La antropología consolidó paulatinamente desde sus orígines una preocupación por lo distinto, que la condujo a demonstrar y a poner en evidencia que la realidad es diversa. Luego, a partir de su constatación, se empeñó en promover y construir una concepción de mundo pluralista. Tal obsesión la paseó por caminos tan distintos como el evolucionismo, funcionalismo, relativismo cultural, particularismo histórico y el neoevolucionismo.”[18]
Cabe destacar, assim, sobretudo atualmente, a emergência de estudos e pesquisas em países ditos “periféricos”. Contudo, não há como negar a predominância, por um longo período, das teorias europeias. Daí a interessante observação feita por Roberto Kant de Lima, para quem “a Antropologia evidentemente não conseguiu produzir nenhum estudo etnográfico de peso sobre a própria Europa ou os Estados Unidos.”[19]
Nesse processo também se instala a Antropologia Jurídica, esta se ocupa, primeiramente, em compreender o Direito “primitivo”, as instituições jurídicas das sociedades ágrafas. E posteriormente, o Direito comparado, os sistemas de Justiça contemporâneos.
Na verdade, a Antropologia – em suas origens –, segundo Esteban Krotz, tem fortes laços com o Direito. Isso se deu em razão dos médicos e dos juristas comporem os grupos profissionais mais numerosos, assim, é justamente destes setores que se originam os primeiros especialistas em Antropologia. Destaca-se, por exemplo, o inglês Henry James Sumner Maine. Mas também vale citar outros jurista que se converteram em antropólogos: John Ferguson McLennan, Lewis Henry Morgan (já citado anteriormente) e Johann Jakob Bachofen.[20]
Todavia, a aproximação entre essas duas ciências (o Direito e a Antropologia) se dissipa quando essa última se transforma em disciplina científica autônoma com categorias, subdivisões, características e princípios próprios.[21]
Passemos, agora, a uma rápida análise do que seja Antropologia Jurídica e, assim, à compreensão de sua incomensurável importância para o Direito, sobretudo, aos estudantes e aos seus operadores, no que tange aos desafios de nossa realidade cotidiana. Especialmente se levarmos em consideração a emergência dos diversos discursos insurgentes de uma grande gama de autores de países periféricos e que, por isso, trazem um outro significado para o “outro”.
2. A ANTROPOLOGIA JURÍDICA
Ramo das Ciências Sociais da mais alta relevância para o Direito, a Antropologia ainda configura-se como campo do conhecimento incógnito da grande maioria dos operadores do Direito estatal oficial.[22]
Tal constatação mostra sua importância ainda mais acentuada quando observamos
a realidade latino-americana, sobretudo, em face do nosso processo histórico de colonização e de formação dos Estados-nação.
Inicialmente, pode-se conceituar a Antropologia Jurídica como o “estudo do Direito das sociedades ‘simples’, das instituições do Direito da sociedade contemporânea, do Direito comparado e do pluralismo jurídico.”[23]
A Antropologia Jurídica surge no final do século XIX, especialmente após o início da colonização da África e da Ásia pelos europeus.[24] Assim, à semelhança da Antropologia, tem forte influência evolucionista e reducionista, concebendo as sociedades analisadas a partir do prisma da linearidade temporal[25], do progresso, da evolução, do desenvolvimento.
Importante destacar que Henry James Sumner Maine fora “o primeiro europeu a dedicar-se ao estudo do Direito dos estrangeiros.”[26] Todavia, com “Malinowski a Antropologia Jurídica começa a tomar outros rumos. Em 1926 publicou ‘Crime e Costume na Sociedade Selvagem’.”[27]
Passada essa breve nota introdutória acerca do viés histórico das reflexões antropológicas sobre o Direito, torna-se importante destacar como a Antropologia Jurídica no Brasil tem avançado, quais são as preocupações atuais, quais são os temas mais recorrentes.
A concepção antropológica acerca do Direito, atualmente, tem ultrapassado, como já observado em relação à Antropologia, a mera análise e interpretação do Direito “primitivo” ou das instituições jurídicas das sociedades ‘simples’.
Cada vez mais o espectro de abrangência desse ramo do conhecimento tem se alargado. Uma ampla variedade temática tem constituído essa faceta contemporânea da Antropologia Jurídica.
Cumpre anotar que esse alargamento conceitual e pragmático tem se ocupado sobremaneira dos fenômenos cotidianos da vida urbana e rural, sobretudo, periférica.
A consciência antropológica, no saber/pensar o Direito, implica uma série de problematizações, além do refinamento da abordagem de uma infinidade de questões que concernem à existência humana coletiva, por todo o planeta terra, do nível local ao mais abrangente.
A discussão jurídico-antropológica hoje traz como consequência um cenário acadêmico rico em discussões e debates acerca de temas contemporâneos, em grande parte, produto da evidenciação de processos e manifestações de luta e concretização de direitos “velhos” e “novos” nos vários processos comunitários e tensões sociais no interior das sociedades do capitalismo periférico dependente.
Sem a intenção de catalogar ou mesmo esmiuçar o conteúdo dessa variedade imensa de processos e manifestações, pode-se destacar: o interculturalismo, o transculturalismo, as “novas” formas de manifestação da Cidadania, a diversidade, a alteridade, o multiculturalismo, as manifestações insurgentes de cunho libertário, o pluralismo jurídico de novo tipo, a construção crítica dos Direitos Humanos.
Essa discussão, no Brasil, particularmente, tem implicações práticas e teóricas de modo muito diversificado e, por isso, mais complexo do que na maioria dos países latino-americanos e periféricos.
A extensão territorial de nosso país e o processo de criação e legitimação desse território tem forte e determinante influência na multiplicidade e riqueza de povos e culturas, biodiversidades e climas, mas também nos conflitos e manifestações insurgentes[28].
Quanto à nossa extensão territorial, interessante evidenciar as observações de Darcy Ribeiro, para quem:
“Esse é, sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária importância desse feito.”[29]
Todavia, logo em seguida, conclui, o antropólogo mineiro, explicando que:
“Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista.”[30]
O processo histórico colonial, político, econômico, jurídico, cultural – em razão da forma como se deu a construção do Estado-nação – pode nos auxiliar na compreensão de nossa sociedade, das diferenças regionais[31] (não apenas do ponto de vista econômico e tecnológico[32], mas, mormente, cultural), no baixo grau de participação popular na vida política do Estado (local, regional e nacional) e da comunidade, na análise e crítica das formas de preconceito étnico, religioso, social, de gênero, de condição física.
Sem aprofundar-se muito nesse aspecto, importante salientar que o processo que culminou na consolidação dos Estados-nação latino-americanos fora um processo impositivo de incorporação de formas políticas, jurídicas, sociais e culturais descontextualizadas, a importação de um modo de pensar ocidental, europeu, burguês-liberal.
A própria origem histórica do Estado tem essa característica, tendo em vista a necessidade de centralização política e delimitação territorial. Assim são as observações de Antônio José Guimarães Brito:
“Quando do surgimento do Estado Nacional e, por ocasião da definição dos limites territoriais e políticos de poder, existiam, e continuam existindo, muitos grupos étnicos diferenciados, que acabaram historicamente sendo subjugados e admitidos no contexto em condições marginais.”[33]
Nesse sentido, são de grande valia, também, as lições de Burdeau quando explica que:
“Em todos os países antigos, é a nação que fez o Estado; ele formou-se lentamente nos espíritos e as instituições foram unificadas pelo sentido nacional. No Estado novo, tal como surge no continente africano, é o Estado que deve fazer a nação. Só que, como o Estado só pode nascer de um esforço nacional, o drama político se fecha num círculo vicioso”.[34]
Além disso, a independência política desses países não significou a extinção da dominação intelectual, econômico-financeira, cultural, social e jurídica[35], o que permitiu a emergência dos chamados países do capitalismo periférico dependente[36].
O processo de independência do Brasil, por exemplo, se deu a partir da negociação entre a elite brasileira, a coroa portuguesa e a Inglaterra.[37] Sendo assim, pode-se concluir pela ausência da maior parte das camadas mais populares de nossa sociedade na formação e consolidação do Estado e, com isso, no plano da Cidadania – sendo esta intimamente ligada ao Estado (enquanto lealdade) e a nação (enquanto identidade)[38] – pode-se concluir como principal característica sua negação. O que nos leva a subentender como se deu o processo de criação e aplicação de um ordenamento jurídico completamente desapartado das múltiplas formas de manifestações sociais existentes no interior desse corpo social diversificado.
Com isso, destacam-se algumas questões que têm suscitado importantes discussões no âmbito da Antropologia Jurídica no Brasil. Mais do que a sua enumeração, busca-se evidenciar a importância do pensamento antropológico e sua influência sobre o Direito. Sendo assim, destaca-se de forma sumária, aqui neste trabalho, a questão de gênero que traz à tona a discussão da união de pessoas do mesmo sexo, a legislação indígena, o território (indígena, quilombola e das comunidades tradicionais) e o pluralismo jurídico.
2.1. A UNIÃO HOMOAFETIVA
A discussão política e jurídica atual[39] – o Estatuto das famílias – que trata, dentre muitos temas contemporâneos e importantes para a sociedade brasileira, do reconhecimento jurídico da União Homoafetiva, face às transformações do que se compreende tradicionalmente como família, demonstra bem como a cultura brasileira (e mundial) vem transformando a concepção anacrônica da família nuclear. Ou seja, põe em evidência como as transformações culturais têm fundamental importância para o Direito. Na verdade, não se trata de algo novo, os exemplos na história da humanidade não são pouco. O que se verifica é a insurgência e a defesa jurídicas de condições verificáveis, há muito tempo, no plano da faticidade.
Nesse aspecto, em especial, a Antropologia tem um campo de análise rico, principalmente se observarmos a história do Código Civil brasileiro. Até bem pouco, nossa legislação, em matéria de Direito Civil, era regida pelo Código Civil de 1916, com forte traço patrimonialista, essa lei fora revogada, posteriormente, pelo novo Código de 2002. Essa última lei, por seu turno, trouxe uma série de mudanças já exigidas e desejadas pela sociedade. Como exemplo, podemos citar o reconhecimento de direitos, no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, aos filhos havidos fora do casamento[40], a retirada de termos preconceituosos como pátrio poder e concubina[41] etc. Agora uma nova mudança, em matéria de Direito de Civil, tem grande possibilidade de ocorrer.[42] Esses são apenas alguns exemplos ilustrativos da amplitude da Antropologia Jurídica.
Contudo, não há como não observar que as reflexões antropológicas sobre o Direito, em nosso país, ainda são muito limitadas, além de recentes, face à importância do tema.
2.2. ANTROPOLOGIA, DIREITO E OS POVOS AMERÍNDIOS[43]
Um dos temas mais recorrentes na área da Antropologia Jurídica diz respeito às questões indígenas. Sem a intenção de se aprofundar por demais nesse aspecto, cumpre destacar alguns traços que imprimem grande valor e riqueza à questão do índio.
Thais Colaço, nesse sentido, realiza uma interessante análise histórica acerca das transformações dos direitos indígenas em nosso ordenamento jurídico. Inicialmente, explica que desde o processo de colonização, na América, “não havia nenhuma preocupação em garantir os direitos das populações autóctones, mas sim em normatizar e regularizar as relações de exploração do colonizador em relação aos colonizados.”[44]
Primeiramente, quanto à legislação, destaca-se o Alvará de 14 de abril de 1755, que buscava igualar os direitos dos colonos e dos índios em relação ao trabalho, facilitava o casamento inter-racial e tornava a língua portuguesa a língua oficial da colônia, proibindo, assim, o uso das línguas nativas.[45]
Posteriormente, cumpre observar que a Lei de 27 de outubro de 1831 atribuía a competência aos Juízes de Paz no que concerne à liberdade dos índios e aos Juízes de Órfãos quanto às questões trabalhistas.[46]
Já em 1833, uni-se “as duas tutelas, a individual – ligadas às questões da liberdade e do trabalho – e a coletiva – ligada às questões da terra indígena.”[47]
Aliás, vale observar que “no decurso do século XIX os interesses se voltam para as terras indígenas em vez da exploração de mão-de-obra.”[48]
A legislação sobre o índio era escassa e geralmente preconceituosa, a Carta Régia de 1808 legitimava a violência e a escravidão indígena.[49] Colaço destaca, ainda, que, “em 1845, a única norma indigenista geral do governo imperial era o Regulamento das Missões”.[50] Posteriormente, a Lei de Terras de 1850[51] agravou esse situação expropriando os índios de suas terras, já que não reconhecia a posse.[52] O Código Civil de 1916, os classificava entre os incapazes.[53]
Pode-se lembrar, ainda, a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI-LTN), em 1910:
“Por meio do SPI conteve-se a repressão e o extermínio, alguns territórios foram reservados e muitas populações foram contatadas. No entanto, com o tempo, a instituição foi-se burocratizando, a ponto de não sabermos mais o que fazer com os indígenas contatados e ainda havendo denúncias de seus funcionários estarem envolvidos com a dilapidação do patrimônio e o extermínio indígena.”[54]
Com isso, diante de tais constatações cria-se, em 1967, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), substituindo o antigo SPI.[55]
No que tange às questões constitucionais, Thais Colaço destaca que a Constituição de 1824 “sequer mencionava a existência de índios no Brasil.”[56]
Somente com a Constituição de 1934 os índios alcançam reconhecimento no plano constitucional, “sendo estabelecida a competência da União para legislar sobre a integração do índio à comunidade nacional. Também ficou garantida a posse da terra onde os ‘silvícolas’ se achassem localizados e proibiu-se a sua alienação.”[57]
Ainda, a Constituição de 1937 suprimiu o item relativo à integração indígena. A Constituição de 1946, por sua vez, aborda a questão da posse da terra e atribui à União a competência legislativa sobre a inserção dos índios na comunidade nacional.[58]
A Carta Constitucional de 1967 passa a permitir “o direito ao usufruto dos recursos naturais das terras indígenas e todas as suas utilidades.”[59] E o Ato Institucional n. 1, traz mudanças quanto a matéria em seus artigos: 4º., IV; 8º., XVIII, o; 198, §§ 1º. e 2º. A autora destaca, ainda, o Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/1973).[60]
Contudo, a grande mudança deu-se com a Constituição da República de 1988. “Pela primeira vez uma constituição estabelece novos elementos jurídicos para fundamentar as relações entre os índios e os não-índios e garantir a manutenção de seus direitos diante da sociedade nacional.”[61]
O fato é que o Direito estatal que aqui se estabelece, desde suas origens, renega ao esquecimento e à ausência, uma série de práticas jurídicas e um amplo espectro de normatividades próprias dos povos indígenas e africanos. Esses últimos, como é sabido e como o próprio nome diz, fora um povo aqui implantado e que, também, é rico em expressões culturais – inclusive jurídicas – próprias e plurais. Tanto que influência a cultura nacional desde sua chegada com suas línguas, costumes, culinária etc.[62]
3. A influência jurídico-antropológica nas Constituições da América Latina
Nos últimos anos, em alguns países latino-americanos, esse quadro jurídico-histórico acima descrito, tem sofrido significativas transformações. De modo explicativo e didático, procura-se, nesse momento, demonstrar como essas mudanças têm operado no Direito estatal, enquanto ordenamento jurídico.
Sendo assim, neste comenos, utilizam-se as constituições do Brasil, México, Bolívia, Equador, Colômbia e Paraguai, de forma simples, para a demonstração desse reconhecimento da diversidade, diferença e pluralismo, no plano constitucional, em países latino-americanos.
Com isso, sob o aspecto histórico, não há como não observar que esses países vieram de períodos recentes de ditadura, assim como também trazem em suas raízes um longo período de dominação, sobretudo, econômica e cultural, por parte dos países centrais.
O Brasil é um exemplo histórico disso. Pode-se citar a influência da Inglaterra nos interesses internos, desde o período colonial, interferindo diretamente no processo de declaração da independência, no fim da escravidão ou, ainda, a influência estadunidense desde o século passado, por exemplo, quando passa a controlar a região tentando afastar a Inglaterra e a França, utilizando o Brasil como “área de experimentação para métodos modernos de desenvolvimento industrial.”[63] Ainda, nesse mesmo contexto, podemos citar o período de ditadura militar brasileira, período influenciado por questões internas, mas também externas. Pois contou “com apoio e envolvimento constante dos Estados Unidos.”[64]
Por essa razão, são constituições recentes, produto de tensões sociais, luta e afirmação de direitos resultantes na ruptura política e jurídica com a ordem imediatamente anterior. Mas que, também, e não menos importante, influenciada por tratados e convenções internacionais.
Sendo assim, inicialmente, cita-se a nossa Carta Fundamental, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que em seus artigos 215 e 216 trata especificamente da questão da Cultura, esse tópico será melhor abordado logo abaixo.
O México, em sua Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos (1917), reconhece que a nação mexicana tem uma composição pluricultural:
“Artículo 2. La Nación Mexicana es única e indivisible.
La Nación tiene una composición pluricultural sustentada originalmente en sus pueblos indígenas que son aquellos que descienden de poblaciones que habitaban en el territorio actual del país al iniciarse la colonización y que conservan sus propias instituciones sociales, económicas, culturales y políticas, o parte de ellas.
La conciencia de su identidad indígena deberá ser criterio fundamental para determinar a quiénes se aplican las disposiciones sobre pueblos indígenas. […].”[65]
Por sua vez, a Bolívia em sua Nueva Constitución Política del Estado (2008), em posição de vanguarda, reconhece como forma de Estado o Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, como se depreende de seu artigo primeiro:
“Artículo 1. Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país.”[66]
O Equador em seu estatuto fundamental, a Constitución de la República del Ecuador (2008), cinge-se também de normas constitucionais muito avançadas e adota a forma de Estado constitucional intercultural e plurinacional, além de um governo descentralizado.
“Art. 1. El Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna de manera descentralizada.”[67]
A Colômbia, em sua Constitución Política de Colombia (1991), proclama o Estado Social de Direito, descentralizado e plural. Ainda, em seus artigos sétimo e oitavo, estabelece norma protetiva da diversidade étnica, cultural e natural, sendo dever não somente do Estado, mas também de toda a sociedade tal proteção.
“Articulo 1. Colombia es un Estado social de derecho, organizado en forma de República unitaria, descentralizada, con autonomía de sus entidades territoriales, democrática, participativa y pluralista, fundada en el respeto de la dignidad humana, en el trabajo y la solidaridad de las personas que la integran y en la prevalencia del interés general.
Articulo 7. El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la Nación colombiana.
Articulo 8. Es obligación del Estado y de las personas proteger las riquezas culturales y naturales de la Nación.”[68]
Ainda, o Paraguai, em sua Constitución de la República de Paraguay (1992), também afirma o Estado descentralizado e pluralista. Como se observa em seu artigo primeiro.
“Artículo 1 – De la forma del Estado y de gobierno
La República del Paraguay es para siempre libre e independiente. Se constituye em Estado social de derecho, unitario, indivisible, y descentralizado en la forma que se establecen esta Constitución y las leyes.
La República del Paraguay adopta para su gobierno la democracia representativa, participativa y pluralista, fundada en el reconocimiento de la dignidad humana.”[69]
4. O TERRITÓRIO
Outro tema de fundamental importância, no que concerne ao Direito e à Antropologia, é a questão territorial. Como se pôde observar, na breve explanação acerca da história da legislação indígena no Brasil, a questão territorial sempre fora objeto de interesse das classes dominantes nacionais.
Atualmente, a questão voltou a ganhar notoriedade, no plano nacional, com a discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima.
O território possui uma multiplicidade de significações e a relação que os povos nativos do Brasil[70], os quilombolas e as comunidades tradicionais têm com a terra e o meio ambiente detém uma riqueza incomensurável. Aliás, importante notar que, no plano jurídico, a “Constituição adotou uma concepção unitária de meio ambiente que compreende tanto os bens naturais quanto os bens culturais.”[71] Interessante, por isso, observar que para José Afonso da Siva: “O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.”[72]
Nesse sentido, pode-se afirmar que a Constituição da República de 1988:
“claramente segue o paradigma do multiculturalismo, ao reconhecer direitos territoriais e culturais aos povos indígenas, quilombolas e a outras populações tradicionais e ao romper com o modelo assimilacionista e homogeneizador. Ganharam força as noções constitucionais de titularidade coletiva de direitos, de uso e posse compartilhados de recursos naturais e territórios e de respeito às diferenças culturais”.[73]
Para os índios, por exemplo, a relação com a terra é determinante para os hábitos alimentares, litúrgicos, as plantas, as trilhas, a roça, a caça e a pesca.[74]
Sendo assim, cumpre observar que:
“Para as sociedades indígenas a terra é muito mais do que simples meio de subsistência. Ela representa o suporte da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimento. Não é apenas um recurso natural mas – e tão importante quanto este – um recurso sociocultural.”[75]
Nesse sentido, as terras indígenas têm característica essencialmente comunal, coletiva. A propriedade privada, individual não faz parte da realidade dos povos nativos do Brasil. Inclusive os limites territoriais não são muito bem definidos. “Considerações de limites territoriais não são estranhas às tradições das sociedades indígenas. O que é estranho é o sentido de exclusividade e de policiamento de um dado território.”[76] De acordo com Alcida Rita Ramos, tal sentido vem sendo imposto em razão da espoliação dessas terras em razão de interesses nacionais e alienígenas.[77]
Essa ausência de rigidez nos limites territoriais possibilita que diversas comunidades indígenas convivam no mesmo espaço territorial, numa espécie de “consenso partilhado”.[78] Adiante, a autora, com base em Darcy Ribeiro, explica, por exemplo, que para os Urubu-Kaapór (grupo Tupí do Maranhão) essa “divisão natural do território tribal foi possibilitada pela sua extensão”.[79]
A própria relação espacial entre os índios e o terra possui proporções e significados distintos das populações urbanas brasileiras, pois
“[…] uma comunidade indígena necessita de uma área utilizável bem maior do que a que circunda a aldeia e as roças. Para uma população relativamente pequena como é, por exemplo, a Yanomami (aliás uma das maiores populações indígenas que ainda vivem suas tradições praticamente inalteradas pelo contato), com cerca de vinte mil pessoas vivendo no Brasil e na Venezuela, a quantidade de terra necessária foi cuidadosamente calculada em, aproximadamente, 750 hectares por habitante, o que é bem mais do que os 100 hectares por família distribuídos pelo Incra a colonos na Amazônia.”[80]
Como se pôde observar no início desta seção, outro elemento importante, no que diz respeito à questão do território, concerne aos direitos territoriais dos povos quilombolas.
Cabe salientar, preliminarmente, que – juntamente com os povos indígenas – os quilombolas possuem um status jurídico especial em matéria de direitos territoriais, se comparados às populações tradicionais.[81]
A história dos negros, no Brasil, tem importante significado para as concepções jurídicas em nosso ordenamento jurídico, acerca dos direitos[82], sobretudo territoriais, destes povos oriundos da África[83].
Mais recentemente, por exemplo, dispensou-se atenção à questão territorial que envolve a Ministérios da Defesa, e também da Ciência e Tecnologia e a Agência Espacial Brasileira (AEB) de um lado, e as comunidades quilombolas da Ilha de Alcântara (Maranhão) de outro, acerca do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).
Mas pode-se citar, ainda, pela importância: Marambaia (Rio de Janeiro), Matacavalos (Mato Grosso) e Invernada dos Negros (Santa Catarina).
Quanto ao território podemos destacar, como reflexo da importância das discussões antropológicas no Direito sobre esse tema, o art. 68 do ADCT, o Decreto n. 4.887/2003[84] e a Instrução normativa n. 20, de 19 de setembro de 2005, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)[85], que em seu artigo 1º. tem como objetivo estabelecer procedimentos do processo administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dos quilombos.
No que toca às populações tradicionais, deve-se notar que seu conceito, conforme Juliana Santilli, “desenvolvido pelas ciências sociais e incorporado ao ordenamento jurídico, só pode ser compreendido com base na interface entre biodiversidade e sociodiversidade.”[86] Assevera, todavia, que “o Direito ainda dá os primeiros passos na formulação de uma definição – jurídica – de ‘populações tradicionais’”.[87]
Para além da pretensão de conceituar tais populações, importa notar que no plano da Antropologia Jurídica as manifestações práticas e o reconhecimento das ações desse segmento da sociedade têm grande importância para o Direito. Exemplificativamente, pode-se citar algumas populações tradicionais não-indígenas, tais como:
“açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos amazônicos, caiçaras, caipiras/sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, quilombolas, sertanejos/vaqueiros e varjeiros (ribeirinhos não-amazônicos).”[88]
Como exemplo da influência que uma cultura particular pode exercer sobre o nosso ordenamento jurídico, faz-se referência aos seringueiros. Segundo Santilli:
“A proposta das reservas extrativistas surgiu no contexto da luta pela reforma agrária e a partir de mobilizações sociais e políticas realizadas inicialmente pelos seringueiros do vale do rio Acre, especialmente do município de Xapuri, no Acre, sob a liderança de Chico Mendes.”[89]
Interessante notar que essa miríade de comunidades tradicionais também guarda um sentido peculiar para o território. Podemos citar os caboclos/ribeirinhos amazônicos. Vários fatores são determinantes para a compreensão de seu mundo vivido. Nesse sentido, podemos destacar a concepção de tempo ecológico (essencialmente cíclica), determinado pelo movimento das águas.[90] Além disso, a ideia de distância e a religiosidade também são elementos da dinâmica espacial. Os fenômenos naturais também imprimem certa fluidez à comunidade uma vez que – em decorrência ao que se chama de terras “caídas” –, por exemplo, “a comunidade de várzea não está implantada naquele lugar de modo imutável.”[91]
5. O PLURALISMO JURÍDICO
Outro elemento de fundamental importância para a Antropologia Jurídica é o Pluralismo Jurídico. Fundamentado substancialmente na constatação de que subsiste uma multiplicidade de manifestações práticas de caráter jurídico em um mesmo contexto social e que não se limita ao oficial institucionalizado no Estado. Justamente por isso, concebe amplo espectro ao Direito reconhecendo uma gama imensa de normatividades que se evidenciam nas interações da coletividade, por vezes consensuais, mas em alguns casos conflituosas e que encontram a sua essência na busca e realização das necessidades fundamentais (existencial, material e cultural).[92]
As discussões acerca desse pluralismo se instalam a partir da contestação de que o Direito não se esgota no Estado. Compreende o reconhecimento de que o Direito estatal canonizado nos códigos e leis, na forma de rituais solenes, é apenas mais uma das várias formas de produção e aplicação daquilo que costumamos chamar de Direito.
O monismo jurídico é fator que suscita, hoje, grandes debates. A reflexão antropológica possibilitou a percepção de que o Direito Oficial do Estado não é a única forma de manifestação jurídica em nossas sociedades. Vale notar, inclusive, que a monocultura do saber jurídico jamais conseguiu impedir o surgimento de outras formas de normatividade nas práticas sociais cotidianas. Nesse sentido são as lições do jurista gaúcho Antonio Carlos Wolkmer:
“Por mais ampla, forte e totalizadora que possa ser esta “regulamentação jurídica” da sociedade moderna por parte da ação monopolizadora do Estado, este não consegue erradicar e inviabilizar todo fenômeno de regulação informal proveniente de outros grupos sociais não-estatais”.[93]
Wolkmer, assim, propõe um Pluralismo Jurídico de novo tipo, designado de comunitário-participativo[94], calcado numa racionalidade libertária e emancipatória.[95]
Vale destacar, contudo, no que tange ao Pluralismo Jurídico, as lições de Agustí Nicolau Coll e Robert Vachon. Segundo esses autores, a partir de um enfoque sobre a etnicidade e Direito, acerca do Pluralismo Jurídico e do Direito Comparado:
“Para comprender las otras culturas jurídicas no occidentales y no modernas, no basta tomar conciencia de la originalidad de sus procesos y lógicas sociojurídicas (sistemas y estructuras propias), sino también de sus visiones y horizontes, es decir de los mitos de sus topoi propios (interpretación diatópicas).”[96]
Sendo assim, esses autores concluem que o Pluralismo aqui em análise, não se trata de Direito Comparado, pois não há como comparar culturas jurídicas “cuando precisamente no hay ni puede haber un modelo o paradigma al cual compararlas”.[97]
Com isso, Vachon e Coll observam que “sólo podremos comprender una cultura jurídica en la medida que la comprendemos tal y como ésta es para aquellos que viven en ella.”[98]
Por fim, esses mesmos autores trazem exemplos bem significativos para a compreensão da complexidade que se instala por sobre a reflexão jurídico-antropológica.
“Tengamos en cuenta que la palabra ‘Derecho’ no existe como tal en las culturas autóctonas tradicionales (Inuit, Ameríndias, Hindú, Jain, Budista,…); más aún, en su concepción del mundo, estas culturas no se plantean ni tan sólo la posibilidad que el ser humano pueda tener derechos, puesto que lo que prima es un sentimiento y una responsabilidad de agradecimiento y de solidaridad cósmica.”[99]
Com isso, de forma ilustrativa, Vachon e Coll citam o modo jurídico de pensar de duas culturas distintas. Primeiramente, citam a cultura hindu, para quem “el equivalente de derecho sería el Swadharma”.[100] Logo em seguida, falam da cultura autóctone norte-americana dos Hau-de-no-sau-nee, para estes “el equivalente de la ley se denomina en sus lenguas paz cósmica.”[101]
Assim, ao passo que na cultura ocidental a noção de Direito fundamenta-se na idéia de que o ser humano é distinto e apartado de tudo o que é a biosfera[102], para muitas culturas jurídicas indígenas e tradicionais a ideia de Direito encontra-se relacionada “a lo sagrado, al cosmos y a la vida globalmente.”[103]
CONCLUSÃO
A Antropologia Jurídica deve auxiliar, pois, na construção de um saber científico que respeite e dialogue com as diferenças culturais. O reconhecimento da necessidade de descobrir o outro também pelo olhar desse outro. O jurídico deve ser pensado partindo da significação que o outro possui sobre seu próprio modo de ser e sobre aquilo ao qual o ocidente chama de Direito. Para além da simples comparação, há uma infinidade de fatores que interferem na prática cotidiana.
O universo cultural implica diversidade (alteridade), assim a forma de pensar o outro deve partir de seu modo peculiar e específico. Somente se pode pensar a eficácia e aplicabilidade do Direito, enquanto ordenamento jurídico, se sua compreensão genuína é o fundamento da aplicação da lei.
Como pode o Estado dos países do capitalismo periférico dependente pretender reafirmar o seu império, sobretudo pelas leis, se a maior parte da população as desconhece[104], se as formas do jurídico (as várias normatividades) dessas populações em regra não são reconhecidas[105], se não há diálogo no processo legislativo oficial estatal, se não há igualdade de acesso aos bens materiais, existenciais e culturais, se na maioria das vezes essa lei é produto de uma minoria mesquinha que, em regra, pensa e aplica a coerção ao invés da conciliação, reparação e diálogo?
A crise é, pois, epistemológica. Sendo assim, pensar a Antropologia Jurídica implica compreender que há e sempre houve uma pluralidade de manifestações de formas e modos de viver. E é essa pluralidade o objeto desse ramo jurídico.
Com isso, neste trabalho, buscou-se demonstrar de modo simples a complexidade que se instala a partir do reconhecimento das diversas formas de organização social e territorial, além disso, mostrou-se como hoje a Antropologia Jurídica está também ocupada em analisar e compreender questões que nos são familiares. Assim, não basta tentar compreender o outro. A própria cultura jurídica estatal aqui estabelecida tem sido objeto de estudo desse ramo.
Todavia, não há como omitir-se de que se trata de empreendimento novo que, por isso, passa por um constante processo de aprimoramento. Basta citar, nesse sentido, a escassez de estudos que tratam da visão jurídico-antropológica acerca das crianças e dos adolescentes.
Ainda, como se pode depreender neste trabalho, outra observação tem grande importância. Apesar da Antropologia Jurídica ser considerada uma parte nova do Direito, não se pode ignorar que as diversas questões que podem fazer parte de suas reflexões não são questões novas. Na verdade, a novidade reside na forma da abordagem desses temas. O reconhecimento da diversidade, das diferenças culturais e a sua recente apropriação também pela ciência do Direito. Fato deveras importante frente às transformações de nosso tempo, do mundo globalizado e da emergência de discursos periféricos insurgentes.
Por fim, espera-se que a análise empreendida neste trabalho tenha sido capaz de instigar a curiosidade, sobretudo, daqueles que se propõem a estudar e aplicar o Direito. As questões levantadas neste trabalho, a despeito da incompletude e impossibilidade de aprofundamento – tendo em vista as limitações do objetivo e do próprio trabalho – servem como demonstração da riqueza e multiplicidade das formas de manifestação do viver coletivo e, por isso, também, como alerta ao saber/pensar o Direito. Se , ao menos, despertou o leitor para essa reflexão, muito já se alcançou.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Especialista em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e Mestrando em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica (GPAJU/UFSC). Bolsista CAPES-Brasil
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