Resumo: O presente trabalho tem por objeto investigar a abrangência e os limites do poder normativo e regulador das agências reguladoras federais brasileiras. Essas entidades, inspiradas nos órgãos reguladores norte-americanos, também chamados de agências, surgiram no direito brasileiro a partir da década de 90 no âmbito do programa nacional de desestatização, também conhecido como privatização. A elas foi conferido o poder de editar normas reguladoras das atividades postas sob sua área de abrangência. No entanto, tendo em vista que nosso sistema jurídico é diferente do sistema norte-americano, tais poderes não têm a mesma dimensão daqueles concedidos às agências norte-americanas. Algumas teorias surgiram, então, para justificar o fundamento do poder normativo das agências reguladoras brasileiras. A teoria da deslegalização, que prega a delegação limitada de poderes legislativos às agências deve ser afastado porque no sistema constitucional brasileiro não há essa espécie de delegação. Igualmente, fica afastada a tese que iguala o poder normativo das agências reguladoras ao poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo, isso porque a Constituição Federal atribuiu apenas a este, com exclusividade, o poder de baixar regulamentos para a fiel execução das leis. A teoria que mais se adéqua ao nosso ordenamento é aquela que defende que o poder normativo e regulador das agências limita-se a questões técnicas e específicas relativas às atividades postas sob seu âmbito de atuação, e mesmo assim, nos exatos limites da lei. Trata-se muito mais de um “poder regulador”, visto sob o aspecto econômico, que “regulamentar”, do ponto de vista político-jurídico. Qualquer produção normativa além desses parâmetros será fulminada de inconstitucionalidade. Com relação ao método de abordagem, será utilizado o método indutivo para que, a partir da análise das posições doutrinárias, jurisprudenciais e diplomas legais seja possível formar posição, principalmente do prisma constitucional, sobre o tema proposto.
Palavras-chaves: agências reguladoras; regulamento; poder legislativo; poder executivo; ato normativo; norte-americanas; desestatização; fundamento.
Abstract: This study aims to investigate the scope and limits of legislative powers and regulator of federal regulatory agencies in Brazil. These entities, inspired by U.S. regulators, also called agents, have emerged in Brazilian law from the 90’s under the National Privatization Program, also known as privatization. To them was given power to dictate standards of regulatory activities put in their service area. However, given that our legal system is different from the American system, such powers are the same size as those granted to U.S. agency. Some theories have arisen, then, to justify the foundation of the normative power of the Brazilian regulatory agencies. Deslegalização theory, which advocates limited delegation of legislative powers to agencies should be removed because the brazilian constitutional system there is this kind of delegation. Also, the thesis that is removed equals the regulatory powers of regulatory agencies to the regulatory power of the Chief Executive, that because the Constitution only to the assigned, exclusively, the power to lower regulations for the faithful execution of laws. The theory that best fits our land is one that argues that the legislative powers and regulatory agencies is limited to specific and technical issues relating to the activities brought under its scope of action, and even then, the exact limits of the law. It is much more of a “regulatory power”, because under the economic aspect, which “regulate”, from the standpoint of political and legal. Any production rules beyond these parameters will be struck down as unconstitutional. With regard to the method of approach, the inductive method will be used to that from the analysis of the doctrinal positions, statutes and case law can be formed position, especially the constitutional perspective on the theme.
Keywords: regulatory agencies, regulation, legislative, executive, legislative act, U.S.; privatization; foundation.
Sumário: Introdução; 1. As agências reguladoras no direito norte-americano: matriz do modelo brasileiro; 1.1. O surgimento e evolução das agências reguladoras norte-americanas; 1.2. Os poderes conferidos às agências norte-americanas: as agências reguladoras e agências não reguladoras; 1.3 As formas de controle exercidas sobre as agências reguladoras norte-americanas; 2. O desenvolvimento das agências reguladoras federais brasileiras; 2.1 O surgimento das agências reguladoras; 2.2 A Natureza Jurídica das Agências Reguladoras; 2.3 O controle externo das atividades das agências reguladoras; 3. O poder normativo e regulador das agências reguladoras federais brasileiras: abrangência e limites; 3.1 As atribuições das Agências Reguladoras Federais Brasileiras; 3.2 Fundamento do poder normativo das agências reguladoras; 3.2.1 A tese da deslegalização; 3.2.2 Poder regulamentar das agências face à exclusividade conferida ao chefe do Poder Executivo pelo art. 84, IV da Constituição Federal; 3.2.3 O poder normativo das agências reguladoras como poder para expedição de atos regulatórios técnicos. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da economia e a mudança de paradigma da atuação estatal frente ao mercado impuseram uma revolução na forma do Estado lidar com a economia. Crises econômicas recorrentes e a incapacidade do Estado figurar como principal ator no cenário econômico fizeram com que novos modelos de desenvolvimento e de intervenção do Estado na economia fossem repensados. A figura do Estado-empresário foi relegada a segundo plano e aos particulares foi atribuída a função de atuar no mercado, ficando reservada ao Estado a posição tão somente de agente normativo e regulador da atividade econômica. Nesse embalo, serviços públicos essenciais também foram transferidos à iniciativa privada, dada a reconhecida ineficiência do Estado na prestação dos mesmos. Por meio do Programa Nacional de Desestatização, inaugurado pela lei 8.031/90, setores estratégicos foram transferidos aos particulares por meio das concessões. Serviços como de telefonia, eletricidade, exploração do petróleo, dentre outros, agora não constituem mais monopólio estatal.
A concorrência, própria da iniciativa privada, que deve conduzir à busca permanente pela melhoria dos serviços prestados, foi determinante para a mudança de postura e estratégias do Estado em relação aos serviços públicos até então conservados sob sua exclusiva atuação. Contudo, o Estado não abriu mão do seu poder fiscalizador e regulamentar. Previu-se, por isso, a criação das Agências Reguladoras, inspiradas no direito norte-americano, cuja função precípua é editar atos de caráter geral, abstratos e impessoais em relação aos setores da economia postos sob seu controle. O Estado, por meio das agências reguladoras, passou a ter a faculdade de influenciar diretamente, e sem a necessidade de lei em sentido estrito, na liberdade econômica, na esfera de atuação dos particulares, na imposição de normas de conduta e sanções pelo descumprimento de tais normas.
Tal atuação instrumentaliza-se pelos decretos regulamentares editados pelas agências reguladoras; daí a necessidade de delimitação do alcance, abrangência e a própria constitucionalidade e legalidade de tais decretos, visto que em nosso sistema, atos legislativos secundários não podem inovar no ordenamento jurídico. E como toda regulamentação implica, necessariamente, intervenção na esfera de direitos do particular, torna-se ainda mais patente a necessidade de se classificar, adequadamente, em nosso ordenamento jurídico, a configuração e natureza de tais atos. Longe de serem atos estritamente administrativos, os regulamentos impostos por tais agências, não raro, trazem em si forte carga de normatividade, cuja observância é obrigatória ao concessionário do serviço público, sob pena de responsabilização, cujas sanções também são previstas pelas próprias agências reguladoras.
Para alguns haveria, no caso, uma crise de legalidade, tendo em vista que somente a lei poderia impor sanções ou ditar normas de conduta aos particulares; para outros, adeptos da chamada teoria da delegiferação ou deslegalização, nada obsta que a lei atribua a esses entes determinadas funções para edital atos normativos, mesmo que o exercício dessa função implique inovação no ordenamento jurídico, nesse caso estariam amparadas pela lei que lhe traçou tal âmbito de atuação, seria, mutatis mutandis, uma espécie de delegação do próprio Poder Legislativo, razão pela qual não há que se falar em ilegalidade ou inconstitucionalidade. Há, ainda, aqueles que fazem a distinção entre função regulamentar e função regulatória, esta conferida, por lei, às agências reguladoras, aquela, ao chefe do Poder Executivo pela própria Constituição Federal.
A questão nodal que se coloca, portanto, frente a esse panorama é a delimitação da função normativa ou regulatória das agências reguladoras em face dos postulados constitucionais da tripartição de poderes e do princípio da legalidade, que no nosso sistema têm como parâmetros fundamentais os arts. 5º, inc. II, e 84, inc. IV, da Constituição Federal, segundo os quais, respectivamente, somente a lei pode obrigar condutas e impor sanções e que é do Presidente da República a competência para expedir regulamentos, com a estrita finalidade de permitir “o fiel cumprimento da lei”.
O presente trabalho, então, busca estudar o fenômeno da criação das agências reguladoras e a atribuição regulatória que lhes foi dada, razão da própria existência das mesmas. A carga de normatividade, o alcance, autonomia, o poder de sanção das agências reguladoras, bem como, a legalidade e constitucionalidade de tais regulamentos. A atuação regulatória das agências, face às liberdades e direitos fundamentais dos usuários e das empresas, as restrições regulatórias, serão investigadas e confrontadas com as várias teorias e posições doutrinárias e jurisprudenciais. Ao final, procurar-se-á firmar posição conclusiva acerca do poder normativo e regulador das agências reguladoras federais.
1 AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO DIREITO NORTE-AMERICANO: MATRIZ DO MODELO BRASILEIRO
1.1 O surgimento e evolução das agências reguladoras norte-americanas
As agências reguladoras norte-americanas, seu modelo e organização, serviram de parâmetro aos nossos legisladores para a criação das agências brasileiras. Não é exagero, e a doutrina nacional tem ensinado dessa forma, que houve uma verdadeira importação do arcabouço das agências americanas para o nosso ordenamento jurídico. Pode-se, assim, dizer que a matriz do nosso modelo de agência foi trazida do sistema da common Law. [1]
As agências reguladoras no direito norte-americano existem desde a origem daquele Estado. Se no Brasil esses órgãos apareceram a partir do início da década de 90, com o movimento denominado programa nacional de desestatização, nos Estados Unidos da América, falar de agências reguladoras é falar da própria evolução do direito administrativo; existe muito pouco desse ramo do direito fora das leis organizadoras das agências. A cultura administrativista americana desenvolveu-se ao redor dos órgãos reguladores, principalmente devido à grande dificuldade herdada do sistema anglo-saxão de reconhecimento de autonomia do direito administrativo.[2] A organização administrativa era estudada no âmbito da ciência política, sendo considerada estranha ao direito (RIVERO, 1995, p.39). Por outro lado, o Estado norte-americano pouco tem de empresário, a exploração de atividades econômicas diretamente pelo Estado não faz parte da história marcante americana; nem sequer os serviços públicos, tal qual conhecemos em nosso ordenamento, tinham sua titularidade atribuída ao Estado, ao contrário, desde o início encontravam-se nas mãos dos particulares, assim, pela própria lógica do sistema, não há o instituto da concessão desses serviços. Nesse quadro, as agências reguladoras surgiram, naturalmente, a partir da necessidade de regulação de atividades indispensáveis à coletividade e que se encontravam sendo exploradas por particulares. Ao comparar o fenômeno do surgimento das agências norte-americanas e brasileiras Conrado Hubner Mendes explica que
“Nos Estados Unidos, ao contrário, as atividades econômicas sempre permaneceram em mãos de particulares. O que ocorreu, gradativamente, foi a necessidade de regulação de atividades que se mostraram de especial interesse da coletividade, os chamados business affected with a public interest (negócio afetado pelo interesse público). Aos poucos, então, cada atividade foi adquirindo um regime próprio de regulação. Como o Direito Americano é casuístico, e não codificado, agências foram sendo criadas segundo as contingências econômicas e sociais.” (MENDES, 2000, p. 119-120)
A evolução das agências reguladoras modernas nos Estados Unidos, segundo a doutrina, passou por vários estágios até alcançar o modelo atual de organização (MENDES, 2000, p.125). Destacam-se quatro momentos distintos. Em um primeiro momento, avulta-se a fase inicial da organização do próprio Estado norte-americano. Em 1887, pouco mais de uma década após a declaração de independência, fortes disputas formaram-se, patrocinadas pelas empresas de transporte ferroviário, que se valendo das elevadas tarifas, fixadas livremente, almejavam maximizar seus lucros. A elas se opunham os fazendeiros, principalmente do lado oeste, que pressionavam para que não só as tarefas ferroviárias, como também o preço da armazenagem dos cereais, fossem regulados pelo legislativo através das assembléias estaduais. Nesse ano foi criada a ICC – Interstate Commerce Comission, com a finalidade de ditar regulação a tais disputas econômicas. Tendo em vista o sucesso da experiência, pouco tempo depois criou-se uma nova agência, a FTC – Federal Trade Comission. Igualmente à sua antecessora, também tinha o objetivo de cuidar da regulação de atividades de empresas e corporações que ameaçavam a competitividade e favoreciam a formação de monopólios. Para possibilitar o desempenho de suas atividades, foram-lhe atribuídos por lei, poderes que a doutrina convencionou chamar de “quase legislativos”, “quase judiciais” e atribuições normalmente afetas ao poder executivo. Dessa forma, houve uma fusão das competências dos três poderes do Estado em um único órgão, fazendo nascer uma entidade sui generis. Porém, Alexandre Santos de Aragão ensina que essas funções nada mais representam que a função administrativa propriamente dita
“A concepção originária dos E.U.A. e o sistema do Common Law praticamente desconheciam a função administrativa, daí a já mencionada utilização da nomenclatura de função “quase-judicial” e “quase-legislativa” das agências reguladoras, para que, em realidade não eram nada mais do que, respectivamente, a função processual e regulamentar da Administração Pública. Com a atual posição da Suprema Corte, que impede uma série de ingerências do Poder Legislativo sobre as agências que exercem funções administrativas, ficou claro que as outrora chamadas funções “quase-judiciais” e “quase-legislativas” das agências reguladoras são espécies da função administrativa lato sensu” […] (ARAGÃO, 2005, p.232)
Entre os anos de 1930 e 1945, período em que o mundo sofria com a segunda guerra mundial, os Estados Unidos, internamente, viviam a experiência do New Deal, plano econômico lançado pelo presidente Roosevelt, cuja característica marcante foi uma exarcebada intervenção na economia, até então sem precedentes, dado o perfil do Estado, marcado pelo liberalismo econômico. A conseqüência foi a irradiação e multiplicação das agências, que rapidamente ganhavam maior autonomia. Tratou-se de período histórico que representou um divisor de águas em relação à criação de elevado número de agências reguladoras.
O crescente poder atribuído às agências provocou uma série de debates, principalmente de natureza constitucional, acerca da legitimidade das decisões por elas proferidas.[3] Foi, então, editada a principal lei relativa a procedimentos administrativos, cujo objetivo principal foi dar maior uniformidade e transparência ao processo regulatório. A APA (Administrative Procedural Act) fundava-se em princípios básicos e padrões mínimos para a produção e execução de normas; houve, inclusive, a conceituação legal do que poderia ser considerada agência reguladora. O § 557 (1) estabeleceu que
“(1) Agency means each authority of the Government of the United States, whether or not it is within or subject to review by another agency, but does not include
(A) the Congress;
(B) the courts of the United States;
(C) the government of the territories or possessions of the United States;
(D) the government of District of Columbia; or except as to the requeriments of section 552 of this title;
(E) agencies composed of representatives of the parties or of the representatives of organizations of the parties to the disputes determined by them;
(F) courts martial and military commissions;
(G) military authority exercised in the field in time of war or is occupied territory; or
(H) functions conferred by sections 1738, 1739, 1743 and 1744 of title 12; chapter 2 of the title 41; or sections 1622, 1884, 1891-1902, and former section 1641 (b) (2) of the title 50, appendix”
A conceituação legal não foi muito feliz, há uma definição, apenas por exclusão, ao afirmar que agência é cada autoridade dos Estados Unidos, com exceção das enumeradas nas letras “A” a “H” do citado § 557 da Administrative Procedural Act, ou seja, não se classificam como agências reguladoras o Congresso, Tribunais, Governo de territórios ou possessões norte-americanas, Governo do Distrito de Columbia, agências compostas de representantes das partes ou de representantes de organizações das partes, tribunais marciais e comissões militares, autoridade militar exercida no campo em tempo de guerra ou de território ocupado, e outras funções especificadas no apêndice da lei procedimental. Como visto, trata-se de conceito impreciso, presta-se tão somente a afastar, taxativamente, alguns órgãos do conceito de agência; assim, a definição exata do que seja ou não uma agência reguladora dependerá da lei criadora da mesma, que também estabelecerá a extensão dos poderes regulatórios a ela conferidos.
Entre os anos de 1965-1985, terceiro grande momento do desenvolvimento das agências reguladoras, desenvolveu-se nos Estado Unidos a denominada teoria da captura, que procura explicar o fenômeno do desvirtuamento das finalidades das agências reguladoras. Os agentes econômicos que deveriam ser regulados passaram a influenciar as atividades das agências de forma a predeterminar o conteúdo da atividade regulatória a eles direcionada, fato que fez enfraquecer, e por vezes, até tornar sem sentido a existência de determinadas agências. Aliás, essa é, ainda hoje, uma das preocupações da doutrina em relação ao poder regulatório das agências. José dos Santos Carvalho Filho é um dos teóricos brasileiros que explica o seguinte
“a relação jurídica entre a agência reguladora e as entidades privadas sob seu controle tem gerado estudos e decisões quanto à necessidade de afastar indevidas influências destas últimas sobre a atuação da primeira, de modo a beneficiar-se as empresas em desfavor dos usuários do serviço. É o que a moderna doutrina denomina de teoria da captura (“capture theory”, na doutrina americana), pela qual se busca impedir uma vinculação promíscua entre a agência, de um lado, e o governo instituidor ou os entes regulados, de outro, com flagrante comprometimento da independência da pessoa controladora” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 467)
A partir da década de 80, última etapa na evolução das agências, e que se intensifica até os dias atuais, a atividade das agências reguladoras passou a ser marcada por um maior controle externo, no entanto, sem perder a autonomia que lhes é característica, justamente como uma reação do Estado à captura de suas atribuições que marcou a fase anterior. Ao mesmo tempo em que se aperfeiçoou um complexo sistema de controle das atividades das agências, exercido por parte dos três Poderes, elas se consolidaram cada vez mais como importante instrumento de regulação da atividade econômica.
1.2 Os poderes conferidos às agências norte-americanas: as agências reguladoras e agências não reguladoras
Com base nos poderes concedidos às agências a doutrina as classifica em regulatórias (regulatory agencies) e não regulatórias (non regulatory agencies). As primeiras são caracterizadas exatamente pelo poder que lhes é dado de intervir nas atividades econômicas, restringir direitos dos indivíduos ou ditar como esses direitos serão exercidos.[4] Basicamente, caracterizam-se pelos já citados poderes “quase-legislativos” (podem emitir regras e regulamentos que têm força de lei) e “quase-judiciais” (decisões acerca de conflitos individuais afetos à sua área de regulação). É de se ressaltar, no entanto, que a outros órgãos, com vinculação direta ao Poder Executivo, também são atribuídos poderes de regulação relativos a determinadas atividades, como ocorre com o United States Departamento of Agriculture que detém atribuições regulatórias quanto ao fornecimento de alimentos, atividades rurais e agrícolas, recursos naturais e meio ambiente. A esses órgãos, em que pese a semelhança de seus poderes com aqueles conferidos às agências reguladoras, não são assim considerados.
Percebe-se, portanto, que desde sua origem, as agências reguladoras detêm amplos poderes para, efetivamente, ditar normas a serem observadas pelos particulares no exercício de atividades econômicas. É de se observar que não se trata de uma simples normatização técnica, é muito mais que isso, vão desde a autorização para o exercício da atividade pretendida, a criação de taxas e fiscalização de proibição de práticas desleais, prejudiciais à concorrência e ao consumidor ou tendentes a propiciar a formação de monopólios. Evidentemente, tais poderes são concedidos pela lei instituidora da agência.
Cristina Barcelos explica, com didática peculiar, a extensão dos poderes normalmente conferidos às agências reguladoras americanas:
“Dispõem as agências administrativas ditas regulatórias de poderes compreendidos, genericamente, em três categorias: (a) poder de licença, isto é, poder que as agências têm para controlar o ingresso e exercício de certa atividade econômica, como, por exemplo, para operar em rotas aéreas, ou explorar transmissão de rádio e televisão etc.; (b) poder de fixar taxas e impostos (denominado rate-making) devidos pelas pessoas – físicas e jurídicas – sujeitas à jurisdição das agências responsáveis, notadamente, pelo controle de serviços e transportadoras (como fazem, exemplificativamente, a Federal Commerce Comission e a Civil Aeronautic Board; e (c) poder sobre práticas comerciais, que se traduz na autoridade para aprovar ou proibir práticas empregadas em determinados negócios, como ocorre em relação a práticas de comércio ou de trabalho desleais, e a determinadas indústrias”. (BARCELOS, 2008, p. 45)
Em relação às agências não regulatórias cabe a execução de atividades diretamente relacionadas com o bem-estar econômico e social dos cidadãos, normalmente, aquelas não entregues à iniciativa privada, como por exemplo, a concessão e manutenção de aposentadorias, pensões, algumas espécies de seguros concedidos pelo governo, proteção à saúde, assistência financeira e serviços para as famílias de baixa renda, prevenção de doenças, etc. São exemplos de agências administrativas não regulatórias, dentre outras, o United Stated Departamento of Helath & Human Service (serviços de proteção à saúde), a Farm Credit Administration – FCA (provê créditos para fazendeiros, rancheiros e cooperativas de serviços agrícolas e rurais), a Railroad Retirement Board – RRB (aposentadorias e auxílio à saúde a trabalhadores das ferrovias americanas).
1.3 As formas de controle exercidas sobre as agências reguladoras norte-americanas
A autonomia das agências regulatórias, em que pese ser muito ampla, sofre diversas espécies de controle por parte dos três Poderes do Estado norte-americano; na verdade, trata-se muito mais de uma supervisão quanto à adequação da atuação das agências aos rumos da política estatal definida pelo governo do que um controle propriamente dito, até porque, caso contrário, não se poderia falar em agências autônomas.
Pode-se dizer que a autonomia das agências tem seus limites traçados, inicialmente, pelo Congresso, que aprova a lei de sua criação, e assim, traça os rumos de sua atuação, assim, o grau de autonomia pode variar caso a caso de acordo com os poderes mais ou menos amplos quando de sua criação. Ademais, no exercício próprio de suas competências, o Congresso, através de diversos de seus comitês e subcomitês fiscalizam permanentemente o exercício das atividades das agências, principalmente, para se estimar as verbas orçamentárias que lhes serão destinadas no futuro. Em determinados casos, a influência do Congresso sobre as agências regulatórias pode ser muito mais incisivo, podendo chegar até à avaliação das próprias decisões de mérito desses órgãos. Conforme ensina Marçal Justen Filho
“A eventual insatisfação do Congresso com o mérito das decisões adotadas pelas agências pode gerar a edição de leis destinadas a disciplinar o mesmo tema. Ou seja, não se pode extrair da criação da agência configuração de uma reserva de competência intangível em face do próprio legislativo. Aliás, a insatisfação do Congresso pode desaguar inclusive na extinção da agência (mediante lei, é evidente).” (JUSTEN FILHO, 2009, p. 80)
Quanto ao Poder Judiciário, a regra geral é que as decisões das agências sempre podem ser questionadas em juízo. Destaca-se, no entanto, a exigência que vem se materializando na jurisprudência das Côrtes americanas da necessidade das decisões das agências reguladoras, principalmente quando editam normas de conduta, que essa atividade seja amplamente embasada na participação dos interessados; quanto maior a participação, maior a legitimidade da decisão, razão pela qual, quando da tomada de decisões, tem sido cada vez maior a realização de amplos debates e audiências públicas prévias. Outra posição que vem se firmando na jurisprudência é quanto à avaliação do mérito das decisões das agências. O Judiciário tem procurado abster-se de rever atos fundados em critérios técnicos ou científicos.
Já em relação ao Poder Executivo, a principal forma de exercer controle sobre as agências ocorre na elaboração do orçamento. É que elas estão vinculadas ao Office of Management and Budget (OMB), órgão ligado diretamente à Presidência e que, segundo ensina Marçal Justen Filho “dispõe de poderes para reduzir, aumentar e aprovar o orçamento da agência, assim como para manifestar-se acerca de modificação das competências atribuídas a ela.” (JUSTEN FILHO, 2009, p.81) Ademais, o OMB também tem atribuição de ditar regras procedimentais a serem observadas pelas agências durante o processo de produção de normas.
2 O DESENVOLVIMENTO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS FEDERAIS BRASILEIRAS
2.1 O surgimento das agências reguladoras
No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos da América, o surgimento das agências reguladoras não ocorreu de forma lenta e contínua, mas sim a partir de uma decisão política determinada. Na década de 90 o Brasil passou por uma revisão quanto ao seu papel social e econômico. A falência do Estado enquanto agente econômico forçou a redução desse papel que optou por atuar, precipuamente, como agente normativo e regulador da atividade econômica, conforme consta expressamente no art. 174, caput, da Constituição Federal. Essa mudança de paradigma culminou com a institucionalização do Programa Nacional de Desestatização[5], formalizado pela lei 8.031/90, posteriormente revogada pela lei 9.491/97, e que teve como objetivos reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida; permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada; contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do país, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito; permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais e contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa. Ressalte-se, outrossim, que não apenas as atividades essencialmente econômicas foram transferidas à iniciativa privada, mas também, serviços de natureza eminentemente administrativas, como é o caso daqueles que são objeto de concessões e permissões públicas.
A atividade econômica, então, a partir da efetivação do programa de desestatização, passou a se concentrar, principalmente, nas mãos da iniciativa privada. Evidentemente, era necessário que o Estado, ao mesmo tempo em que preferiu afastar-se da exploração de atividades econômicas, não poderia, por outro lado, postar-se totalmente alheio à atividade desses novos agentes econômicos. Era necessário que o Estado permanecesse vigilante em relação a aspectos, como por exemplo, quanto aos direitos do consumidor, risco de formação de monopólios, qualidade da os serviços prestados, dentre outros.
Diante desse quadro, vieram à lume as agências reguladoras, inspiradas em suas congêneres norte-americanas, e conforme explica José dos Santos Carvalho Filho, com a função principal de controlar, em toda a sua extensão, a prestação dos serviços públicos e o exercício de atividades econômicas, bem como a própria atuação das pessoas privadas que passaram a executá-los, inclusive, impondo sua adequação aos fins colimados pelo Governo e às estratégias econômicas e administrativas que inspiraram o processo de desestatização. (CARVALHO FILHO, 2009, p. 433-434) Aliás, a própria Constituição Federal já previu no art. 21, XI a criação de um órgão regulador dos serviços de telecomunicações e no art. 177, § 2º, III um órgão regulador do setor petrolífero, o que veio a ser posteriormente, a ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações e a ANP, Agência Nacional do Petróleo. Todas as demais agências reguladoras não estão previstas na Constituição; dando azo, assim, a questionamentos acerca da constitucionalidade das mesmas, contudo, a discussão perdeu sentido a partir do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI-MC nº 1949/RS, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. Nessa decisão afirmou-se
“(…) de limitar-se a Constituição a prever a criação de órgão regulador para setores de telecomunicações e de exploração pretrolífera, não se segue a lei ordinária, federal ou estadual, não possa igualmente criá-los para a regulação e fiscalização de outros tipos de serviços públicos delegados. Mas aí, com mais razão, sem fugir à alternativa, derivada da Constituição, entre a Administração direta e a autarquia.”
2.2 A Natureza Jurídica das Agências Reguladoras
O legislador brasileiro optou por constituir as agências reguladoras sob a forma de autarquias, pessoas jurídicas de direito público já existentes em nosso ordenamento, contudo atribuiu a elas a qualidade de autarquias de regime especial para diferenciá-las das autarquias até então existentes e que não detém poderes de regulação. Veja-se o art. 8º da lei 9.472/1997 que dispôs sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº 8, de 1995:
“Fica criada a Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações, com sede no Distrito Federal, podendo estabelecer unidades regionais.” (grifo)
No mesmo sentido foram as disposições do art. 7º da Lei 9.478/97 que dispôs sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, instituiu o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo e deu outras providências
“Art. 7o Fica instituída a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíves – ANP, entidade integrante da Administração Federal Indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis, vinculada ao Ministério de Minas e Energia”. (Redação dada pela Lei nº 11.097, de 2005)
Igual disposição verificou-se nas leis de criação das agências que sucederam a ANATEL e a ANP.[6] É compreensível essa opção legislativa, pois às agências foram atribuídos poderes típicos de Estado, e nesse caso, a personalidade jurídica de direito público é fundamental. Aliás, foi o que decidiu o STF ao julgar pedido de liminar na ADIN 1717-6, sobre a transformação dos Conselhos Profissionais em pessoas jurídicas de direito privado, operada pelo art. 58 da Lei Federal n. 9.649/98, cujas conclusões aplicam-se, integralmente, ao caso das agências reguladoras. Na decisão que considerou a lei inconstitucional o Supremo ressaltou que é defesa a delegação à entidade privada de atividade típica do Estado, como é o caso da função de fiscalização e controle de atividade profissional. Confira-se:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do ‘caput’ e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime.” (STF, ADI 1717, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 28/03/2003).
O regime especial a que estão submetidas as agências reguladoras vem definido nas respectivas leis de criação, mas algumas outras características são comuns a todas elas, é o que ocorre, por exemplo, com a independência em relação do Poder Executivo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que
“costuma-se afirmar que as agências reguladoras gozam de certa margem de independência em relação aos três poderes do Estado: (a) em relação ao Poder Legislativo, porque dispõem de função normativa, que justifica o nome de órgão regulador ou agência reguladora; (b) em relação ao Poder Executivo, porque as normas e decisões não podem ser alteradas ou revistas por autoridades estranhas ao próprio órgão; (c) em relação ao Poder Judiciário, porque dispõem de função quase-jurisdicional no sentido de que resolvem, no âmbito das atividades controladas pela agência, litígios entre os vários delegatários que exercem serviço público mediante concessão, permissão ou autorização e entre estes e os usuários dos respectivos serviços.” (DI PIETRO, 1999, p. 131)
Contudo, é a própria autora quem faz a ressalva de que essa independência deve ser vista em harmonia com o regime constitucional brasileiro. É assim que, em relação ao Poder Judiciário, a independência das agências reguladoras encontra seu limite no art. 5º, XXXV que traz o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário. Em relação ao Poder legislativo, por óbvio, as normas emanadas das agências não podem se sobrepor ou conflitar com as disposições constitucionais ou legais editadas pelo Congresso Nacional. Há ainda, o controle exercido com fundamento nos artigos 49, X e 70 da Constituição Federal. Quanto ao Poder Executivo, o principal marco da independência das agências é a estabilidade dos seus dirigentes. Têm dirigentes com mandatos fixos; são nomeados pelo Presidente da República, após aprovação do Senado Federal. Após nomeados não podem ser exonerados ad nutum. Explica Carlos Ari Sundfeld, preferindo usar o termo autonomia ao invés de independência que:
“na realidade, o fator fundamental para garantir a autonomia da agência parece estar na estabilidade dos dirigentes. Na maior parte das agências atuais o modelo vem sendo o de estabelecer mandatos. O Presidente da República, no caso das agências federais, escolhe os dirigentes e os indica ao Senado Federal, que os sabatina e aprova (o mesmo sistema usado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal); uma vez nomeados, eles exercem mandato, não podendo ser exonerados ‘ad nutum’; isso é o que garante efetivamente a autonomia”. (Sundfeld, 2000, p. 24-25)
O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de enfrentar a questão no julgamento da Medida Cautelar na ADIN 1.949-RS, ajuizada pelo Governador do Rio Grande do Sul contra os artigos 7º e 8º da Lei estadual 10.931/97, que criou a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS. O art. 8º da referida lei estatuía que “o conselheiro só poderá ser destituído, no curso de seu mandato, por decisão da Assembléia Legislativa”. Em resumo, as conclusões a que chegou o STF foram as seguintes:
“I – Agências reguladoras de serviços públicos: natureza autárquica, quando suas funções não sejam confiadas por lei a entidade personalizada e não, à própria administração direta.
II – Separação e independência dos Poderes: submissão à Assembléia Legislativa, por lei estadual, da escolha e da destituição, no curso do mandato, dos membros do Conselho Superior da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS: parâmetros federais impostos ao Estado-membro.
1. Diversamente dos textos constitucionais anteriores, na Constituição de 1988 – à vista da cláusula final de abertura do art. 52, III, são válidas as normas legais, federais ou locais, que subordinam a nomeação dos dirigentes de autarquias ou fundações públicas à prévia aprovação do Senado Federal ou da Assembléia Legislativa: jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal.
2. Carece, pois, de plausibilidade a argüição de inconstitucionalidade, no caso, do condicionamento à aprovação prévia da Assembléia Legislativa da investidura dos conselheiros na agência reguladora questionada.
3. Diversamente, é inquestionável a relevância da alegação de incompatibilidade com o princípio fundamental da separação e independência dos poderes, sob o regime presidencialista, do art. 8º das leis locais, que outorga à Assembléia Legislativa o poder de destituição dos conselheiros da agência reguladora autárquica, antes do final do período da sua nomeação a termo.
4. A investidura a termo – não impugnada e plenamente compatível com a natureza das funções das agências reguladoras – é, porém, incompatível com a demissão ad nutum pelo Poder Executivo: por isso, para conciliá-la com a suspensão cautelar da única forma de demissão prevista na lei – ou seja, a destituição por decisão da Assembléia Legislativa -, impõe-se explicitar que se suspende a eficácia do art. 8º dos diplomas estaduais referidos, sem prejuízo das restrições à demissibilidade dos conselheiros da agência sem justo motivo, pelo Governador do Estado, ou da superveniência de diferente legislação válida.
III – Ação direta de inconstitucionalidade: eficácia da suspensão cautelar da norma argüida de inconstitucional, que alcança, no caso, o dispositivo da lei primitiva, substancialmente idêntico.
IV – Ação direta de inconstitucionalidade e impossibilidade jurídica do pedido: não se declara a inconstitucionalidade parcial quando haja inversão clara do sentido da lei, dado que não é permitido ao Poder Judiciário agir como legislador positivo: hipótese excepcional, contudo, em que se faculta a emenda da inicial para ampliar o objeto do pedido”.
Vê-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade das restrições impostas ao Chefe do Poder Executivo à livre nomeação e exoneração dos diretores das agências reguladoras. De fato, quanto à restrição à livre nomeação, não há que se falar em inconstitucionalidade, já que o art. 52, III, “f” da constituição Federal admite a prévia aprovação do Senado Federal da escolha de “titulares de outros cargos que a lei determinar”. Em relação às limitações à exoneração dos dirigentes, o Supremo entendeu que também não violam as prerrogativas do Presidente da República e poderá ocorrer apenas por justo motivo ou caso ocorra mudança na lei criadora da agência.
Entendemos que decidiu bem o STF, afinal, as agências reguladoras, para bem exercer o seu papel, devem estar imunes a qualquer interferência política; nesse sentido, não há pior forma de interferência do que o poder de substituir aleatoriamente, esse ou aquele diretor cujas decisões não agradem o Chefe do Executivo.
Outra questão que suscita debates na doutrina é quanto ao fato da não coincidência dos mandatos dos dirigentes das agências reguladoras com o mandato do Chefe do Poder Executivo. Celso Antônio Bandeira de Melo é um dos principais críticos a essa sistemática e ressalta que “em última instância configura uma fraude contra o próprio povo, ao impedir que o novo Presidente imprima, com a escolha de novos dirigentes, a orientação política e administrativa que foi sufragada nas urnas.” (MELO, 2008, p. 161) Já Lúcia Valle Figueiredo defende opinião contrária entendendo pela importância da regra “para que não haja troca de favores, mas, sim, total independência.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 143)
Alinhamo-nos a essa última posição, pois além de impedir o tão praticado e maléfico fisiologismo, a não coincidência dos mandatos permite aos dirigentes das agências reguladoras garantias de que poderão desenvolver seu trabalho sem receio de serem substituídos em razão da troca de comando do Executivo.
Outras características comuns às agências reguladoras são citadas pela doutrina, tais como a impossibilidade de recurso administrativo ao Ministério a que estiver vinculada: inexistência de instância revisora hierárquica dos seus atos, ressalvada a revisão judicial; a autonomia de gestão: não-vinculação hierárquica a qualquer instância de governo; estabelecimento de fontes próprias de recursos para o órgão, se possível geradas do próprio exercício da atividade regulatória e a quarentena de seus dirigentes assim que deixam o órgão. São essas características que qualificam essas autarquias como especiais, é o que diz expressamente, o § 2º do art. 8º da lei 9.742/97, em relação à Agência Nacional de Telecomunicações: “a natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.” Em relação ao período em que os dirigentes ficam impedidos de prestar serviços à iniciativa privada cuja atividade esteja sob regulação da agência por ele dirigida, cite-se, por exemplo, a disposição do art. 9º da Lei 9.427/96 que criou a ANEEL, Agência Nacional de Energia Elétrica: “o ex-dirigente da ANEEL continuará vinculado à autarquia nos doze meses seguintes ao exercício do cargo, durante os quais estará impedido de prestar, direta ou indiretamente, independentemente da forma ou natureza do contrato, qualquer tipo de serviço às empresas sob sua regulamentação ou fiscalização, inclusive controladas, coligadas ou subsidiárias.” Sobre o assunto, Floriano Azevedo Antunes Marques Neto explica:
“No nosso entendimento a melhor forma de efetivar tais mecanismos é com o estabelecimento da proibição de que o dirigente ou detentor de cargo relevante no órgão regulador represente qualquer interesse da regulada por um período mínimo de 12 meses após deixar seu cargo. Neste período cumpre ao Estado pagar pelo seu sustento o valor correspondente ao que ganhava no cargo. Em que pese às críticas a tal mecanismo, afirmando que isto caracterizaria pagamento de salário sem contrapartida, delas discordo. A natureza destes pagamentos é indenizatória, voltada a reparar a restrição ao direito do indivíduo de trabalhar. De todo o modo, a pior solução parece aquela oferecida pela Lei federal 9.427, de 1996, que determina que dirigentes da ANEEL, após deixarem o cargo, permanecerão por um ano prestando serviços para aquela Agência e sendo-lhes defeso atuar para os regulados. Nesta regra o dirigente permanece vinculado ao órgão, obtendo informações e participando da atividade regulatória. a quarentena de nada servirá.” (MARQUES NETO, 2000, p. 85-86)
2.3 O controle externo das atividades das agências reguladoras
Em que pese serem independentes ou autônomas, conforme já dito nesse trabalho, as agências reguladoras não ficam alheias a qualquer tipo de controle, ao contrário, submetem-se ao controle por parte dos três Poderes do Estado, como também do Tribunal de Contas da União, órgão integrante do Poder Legislativo Federal.
Em relação ao controle exercido pelo Poder Legislativo, o fundamento é o artigo 49, X da Constituição Federal que determina que é competência exclusiva do Congresso Nacional fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta. Evidentemente, o controle legislativo trata-se de um instrumento constitucional de preservação da segurança sócio-jurídica da atuação das agências reguladoras federais. Marçal Justen Filho explica que
“O controle parlamentar pode versar, de modo ilimitado, sobre toda a atividade desempenhada pela agência, inclusive no tocante àquela prevista para realizar-se em épocas futuras – ressalvadas a necessidade de sigilo em face das características da matéria regulada. Poderá questionar-se não apenas a gestão interna da agência, mas também se exigir a justificativa para as decisões de cunho regulatório. Caberá fiscalizar inclusive o processo administrativo que antecedeu a decisão regulatória produzida pela agência, com ampla exigência de informações sobre as justificativas técnico-científicas das opções adotadas” (justen filho, 2009, p. 588)
Já o Tribunal de Contas da União, segundo o art. 71 da Constituição Federal, é órgão auxiliar do Congresso Nacional no controle externo da Administração Pública, cabendo-lhe, apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento; julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório; realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II do art. 71; fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo; fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município; prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas; aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário; assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal; e representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.
Em relação ao Poder Judiciário, evidentemente, os atos das agências reguladoras, como também de toda a Administração Pública, não estão isentos de controle, isso em razão do disposto no do artigo 5°, inciso XXXV da Constituição Federal que dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Hely Lopes Meirelles explica que
“Controle judiciário ou judicial é o exercido privativamente pelos órgãos do Poder Judiciário sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário quando realiza atividade administrativa. É um controle a posteirori, unicamente de legalidade, por restrito à verificação da conformidade do ato com a norma legal que o rege. Mas é sobretudo um meio de preservação de direitos individuais, porque visa a impor a observâncias da lei em cada caso concreto, quando reclamada por seus beneficiários. Esses direitos podem ser públicos ou privados – não importa – mas sempre subjetivos e próprios de quem pede a correção judicial do ato administrativo, salvo ação popular, em que o autor defende o patrimônio da comunidade lesado pela administração”. (MEIRELLES, 2005, p. 605)
Contudo, é de se ressaltar que sendo as decisões das agências reguladoras, eminentemente técnicas, o controle judicial será realizado, ordinariamente, tão somente quanto ao aspecto da legalidade, contudo, não são raros os casos em que o judiciário poderá avaliar o mérito desses atos; aplica-se, aqui, de forma geral, a doutrina acerca do controle judicial dos atos administrativos, mesmo discricionários. Segundo explica João Aurino de Melo Filho:
“Quando provocado, o Judiciário poderá analisar não só os requisitos vinculados dos atos de regulação, já que realizará uma análise mais profunda, adentrando no próprio mérito do ato, não para que o juiz imponha suas convicções sobre a conveniência e oportunidade do ato, mas para analisar a subsunção do ato às normas superiores e aos princípios administrativos. O Judiciário, se provocado, poderá fiscalizar, inclusive, o processo que antecede a emanação de um ato de regulação, exigindo informações sobre as opções adotadas e suas correlatas justificativas técnico-científicas. O Judiciário poderá analisar se o órgão regulador adotou todas as providências necessárias para um profícuo e satisfatório desempenho da sua competência discricionária. E um ato de regulação que ignore ou desrespeite as cautelas necessárias, impostas pelo conhecimento técnico ou científico, pode ser analisado e, se for o caso, invalidado pelo Poder Judiciário. É esse controle amplo do Judiciário, pelo menos potencial, que concederá legitimidade à atividade normativa das agências, que não poderão editar atos arbitrários ou desarrazoados, já que estão sujeitas ao controle jurisdicional. Há, então, uma discricionariedade vigiada.” (MELO FILHO, 2009)
Tal como o Legislativo e o Judiciário, o Poder Executivo também não exerce controle direto sobre a atuação das agências reguladoras, até porque, via de regra, sobre as decisões das agências não cabem recursos administrativos impróprios[7], que se caracterizam pela possibilidade de revisão dos atos de uma entidade da administração indireta, que são pessoas jurídicas autônomas, pelo Ministério a qual estão vinculadas. É o que prevê, por exemplo, o § 2º do art. 15 da Lei Federal nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999 que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ao estabelecer que “dos atos praticados pela Agência caberá recurso à Diretoria Colegiada, com efeito suspensivo, como última instância administrativa” Assim, o cabimento ou não de recurso hierárquico impróprio em face das decisões das agências reguladoras, em princípio, dependeria de previsão expressa na lei de criação da mesma. No entanto, manifestando entendimento contrário, a Advocacia-Geral da União exarou o parecer nº AC – 051/2006, aprovado pelo Presidente da República em 13/06/2006, donde se extrai as seguintes conclusões:
“(…) o cabimento do recurso hierárquico impróprio não encontra objeções já que inexiste área administrativa imune à supervisão ministerial, reduzindo-se, contudo, o âmbito de seu cabimento, de modo idêntico, na mesma razão inversa da obediência às políticas de iniciativa do Ministério supervisor.
(…) não há suficiente autonomia para as agências que lhes possa permitir ladear, mesmo dentro da lei, as políticas e orientações da administração superior, visto que a autonomia de que dispõem serve justamente para a precípua atenção aos objetivos públicos. Não é outra, portanto, a conclusão com respeito à supervisão ministerial que se há de exercer sempre pela autoridade ministerial competente, reduzindo-se, no entanto, à medida que, nos limites da lei, se atendam às políticas públicas legitimamente formuladas pelos Ministérios setoriais. (…)
II – Estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio, as decisões das agências reguladoras referentes às suas atividades administrativas (…)
VII – As orientações normativas da AGU vinculam as agências reguladoras.”
Conforme determina o art. 40, § 1º da Lei Complementar 73/93, Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, o parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. Dessa forma, dada a força vinculante do mencionado parecer, no âmbito federal sempre vai haver a possibilidade do recurso hierárquico impróprio das decisões das agências reguladoras ao respectivo Ministro de Estado. Por outro lado, quando a lei expressamente o vedar, como é o caso do § 2º do art. 15 da Lei Federal nº 9.782, entendemos, também, não prevalecer tal disposição frente ao comando do Art. 5º XXXIV da Constituição Federal que determina que é a todos assegurado, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; e nesse caso, o direito de petição deve ser entendido de maneira ampla, de forma a abarcar o recurso hierárquico impróprio, mesmo que se trate de atividade fim da agência reguladora, pois tratando-se de direito fundamental, não pode ser restringido pela lei, já que a própria Constituição não o restringiu. Nesse sentido são os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho
“Outro relevante instrumento de controle administrativo é o direito de petição. Consiste esse direito, de longínqua tradição inglesa, na faculdade que têm os indivíduos de formular aos órgãos públicos qualquer tipo de postulação, tudo como decorrência da própria cidadania. A constituição em vigor contempla o direito de petição entre os direitos e garantias fundamentais, estabelecendo no art. 5º, XXXIV, “a”, ser a todos assegurado “o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa dos direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Avulta observar que esse direito tem grande amplitude. Na verdade, quando admite que seja exercido para a “defesa de direitos” não discrimina que tipo de direitos, o que torna admissível a interpretação de que abrange direitos individuais e coletivos, próprios ou de terceiros, contanto que possa refletir o poder jurídico do indivíduo de dirigir-se aos órgãos públicos e deles obter a devida resposta.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 833-834)
3 O PODER NORMATIVO E REGULADOR DAS AGÊNCIAS REGULADORAS FEDERAIS BRASILEIRAS: ABRANGÊNCIA E LIMITES
3.1 As atribuições das Agências Reguladoras Federais Brasileiras
O Estado brasileiro, a partir da instituição do movimento nacional de desestatização, passou a adotar um modelo gerencial de Administração Pública, passando a adotar papel preponderante na fiscalização e regulação de atividades econômicas, ao invés de explorá-las diretamente.
Assim, às agências reguladoras, órgãos criados no âmbito desse novo modelo administrativo, foram atribuídos poderes de regular, controlar e fiscalizar as atividades correlatas à sua área de atuação. Foi nesse sentido que a lei 9472/97 atribuiu à ANATEL a função de órgão regulador das telecomunicações e a lei 9.478/97 dotou a ANP desses mesmos poderes. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) foi instituída com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, a transmissão, a distribuição e a comercialização de energia elétrica em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) detém atribuições institucionais de promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária; a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi dotada de poderes para promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores; a Agência Nacional da Águas (ANA) foi criada como entidade federal de implementação da política nacional de recursos hídricos e de coordenação do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos; a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) foi destinada à regulação do transporte ferroviário de passageiros e carga e exploração da infra-estrutura ferroviária; dos transportes rodoviário interestadual e internacional de passageiros, rodoviário de cargas, multimodal; e do transporte de cargas especiais e perigosas em rodovias e ferrovias; atribuições similares foram conferidas à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) à qual cabe regular os transportes de navegação fluvial, travessia, apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso e regular os portos organizados, os terminais portuários privativos, o transporte aquaviário de cargas especiais e perigosas; a Agência Nacional do Cinema visa ao fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográfica. A Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC) atua como entidade de fiscalização e de supervisão das atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de execução das políticas para o regime de previdência complementar operado pelas entidades fechadas de previdência complementar, observando, inclusive, as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar.
É de se ressaltar, ainda, que existem outros órgãos que, em que pese, não ostentarem a qualificação de agências reguladoras, detém atribuições similares a essas, como é o caso, dentre outros, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Agência Espacial Brasileira (AEB), a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA), a Agência de Desenvolvimento do Nordeste (ADENE), a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).[8]
De um modo geral, então, as atribuições das agências reguladoras são bem parecidas, a maior ou menor extensão dos poderes a elas conferidos vai variar de acordo com a lei de criação de cada uma delas. Percebe-se que esses órgãos têm poderes amplos dentro de sua área de atuação, podendo, inclusive, como é o caso da novata PREVIC “apurar e julgar infrações e aplicar as penalidades cabíveis”, evidentemente, trata-se de julgamento e apenação de âmbito, estritamente, administrativo.
Mas de todas as atribuições, aquela que está presente em todas as agências reguladoras, e que suscita maiores discussões na doutrina, não se tendo chegado, ainda, a um consenso quanto ao seu fundamento, abrangência e limites, é a atribuição regulamentar, através da qual as agências podem baixar atos normativos gerais e abstratos infralegais, tendentes à limitação de direitos e imposição de obrigações a pessoas e instituições abrangidos pela atividade regulada. Aliás, apesar de controversa, sem essa atribuição, essas agências não poderiam ser taxadas de “reguladoras.” Conrado Hübner Mendes explica que
“Possuindo poder normativo, então, consideraremos o ente uma agência reguladora. Esta será, portanto, não o ente que, simplesmente exerça regulação em qualquer das formas, mas, acima de tudo, o que possua competência para produzir normas gerais e abstratas que interferem diretamente na esfera de direito dos particulares.” (MENDES, 2000, p. 129)
De fato, trata-se de um instituto relativamente novo e a dificuldade de sua compreensão está justamente na forma em que foi introduzido em nosso ordenamento jurídico. Conforme já mencionado nesse trabalho, o nosso modelo de agências reguladoras foi largamente influenciado pelo direito norte-americano. Lá as agências reguladoras detêm uma larga autonomia e suas atribuições aproximam-se das atribuições do Congresso, do Poder Judiciário e do Poder Executivo, o que levou parte da doutrina a denominar esses poderes de “quase-legislativos”, “quase-executivos” e “quase-judiciais”. No entanto, quando se importa determinado instituto jurídico de um outro sistema há que se ter o cuidado de fazer as devidas adaptações, afinal há consideráveis diferenças entre o sistema da Commow Law e o nosso sistema, de influência romano germânico. Segundo explica José Cretella Júnior um dos principais aspectos a serem considerados é que
“Adota-se na commow law, o que se denomina de sistema horizontal, em que a administração é submetida, de regra, ao mesmo direito que rege a atividade de todo particular, não havendo, portanto, um regime jurídico que lhe seja peculiar, ao contrário do sistema vertical, predominante nos direitos de base romanística, de prerrogativas e privilégios, com predomínio de derrogação e da exorbitância ao direito comum, que regulam as relações entre a Administração e os administrados, em matéria administrativa”. (CRETELLA JÚNIOR, 1990, p. 30)
Assim, o poder normativo das agências reguladoras brasileiras deve ser estudado e compreendido em uma acepção que possa conformar-se com o nosso sistema jurídico, especialmente, quanto à tripartição de Poderes estabelecida pela Constituição Federal.
3.2 Fundamento do poder normativo das agências reguladoras
3.2.1 A tese da deslegalização
Dentre as várias teses que almejam explicar o fundamento do poder regulador das agências reguladoras brasileiras está a da deslegalização. Segundo a concepção originária dessa tese, as normas produzidas com fundamento nessa teoria têm a mesma densidade legislativa das leis ordinárias, podendo, segundo alguns, até mesmo revogá-las. Contudo, no caso das agências reguladoras, haveria uma espécie de delegação limitada, ou seja, o Poder Legislativo disporia de parcela de suas atribuições em favor das agências reguladoras, abrindo espaço para que, no limite da delegação, possam, livremente, editar normas gerais e abstratas com força de lei. Segundo explica Diogo de Figueiredo Moreira Neto, um dos principais defensores dessa tese, a deslegalização constitui uma forma anômala de delegação legislativa
“A terceira técnica geral de delegação vêm a ser a delegalização, oriunda do conceito do desenvolvido na doutrina francesa da délégation de matières, adotado na jurisprudência do Conselho de Estado em dezembro de 1907 (…) a qual, modificando postura tradicional, no sentido de que o titular de um determinado poder não tem dele disposição, mas, tão somente o exercício, passou a aceitar, como fundamento da delegação, a retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias do domínio da lei (domaine de la loi), passando-se ao domínio do regulamento (domaine de l´ordonnance)”. (MOREIRA NETO, 2003: p. 122)
No mesmo sentido, inclusive, defendendo o acolhimento da tese pelo nosso ordenamento jurídico, Alexandre dos Santos Aragão escreve que
“Por este entendimento, com o qual concordamos, não há qualquer inconstitucionalidade na deslegalização, que não consistiria propriamente em uma transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção, pelo próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra sede legislativa a regulação de determinada matéria. E, com efeito, se este tem poder para revogar uma lei anterior por que não o teria para, simplesmente, rebaixar o seu grau hierárquico? Por que teria que, direta e imediatamente revogá-la, deixando um vazio normativo até que fosse expedido o regulamento, ao invés de, ao degradar a sua hierarquia, deixar a revogação para um momento posterior, ao critério da Administração Pública, que tem maiores condições de acompanhar e avaliar a cambiante e complexa realidade econômica e social?” (ARAGÃO, 2005, p. 422-423)
Segundo os defensores da tese, a própria Constituição Federal teria autorizado expressamente a deslegalização ao estabelecer no art. 48[9] que o Congresso Nacional poderia dispor de todas as matérias ali elencadas; assim, havendo expressa autorização para disposição da matéria, o Congresso poderia, então, legislar, não legislar e até deslagalizar, caso assim entenda (MOREIRA NETO, 2003: p. 122).
Henrique Ribeiro Cardoso nos noticia outros fundamentos constitucionais segundo os quais assentar-se-ia a deslegalização
“Vislumbram os adeptos dessa corrente estabelecer a Constituição Federal, no artigo que sedia a regulação em geral, art. 174 e nos que prevêem a criação das agências reguladoras – arts. 21, XI e 177, § 2º, III – uma atribuição originária de competência normativa, dentro do esquadro de repartição de funções estabelecidas na Carta Política, em moldes semelhantes ao disposto nos arts. 62 e 68 da Constituição de 1988.” (CARDOSO, 2006, p. 199)
Na jurisprudência pode-se colher exemplos de julgados que fazem expressa referência à deslegalização. O Desembargador Tarcisio Martins Costa, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao proferir voto no julgamento do agravo de instrumento nº 1.0145.05.224751-0/006 (1), publicado em 30/03/2009, manifestou-se sob o caso em apreciação naquela oportunidade que
“Cuida-se de um poder regulamentador geral e abstrato, não tendo qualquer incidência em casos concretos, como o dos autos, a justificar sua intervenção no feito, até porque as agências reguladoras exercem uma atividade delegada pelo Poder Executivo e Legislativo. Trata-se do chamado fenômeno da deslegificação ou delegação limitada. Em outras palavras, a retirada pelo próprio legislador, de certas matérias, do domínio da lei, para atribuí-las à disciplina normativa das agências.”
Contudo, em que pese autoridade dos ilustres defensores da tese, com ela não podemos concordar; isso, por um motivo relativamente simples: a Constituição Federal já estabeleceu, expressamente, os casos em que se admite a delegação legislativa, e não há espaço para se forçar determinada técnica interpretativa a fim de se encontrar hipóteses de autorização implícita. As únicas hipóteses de delegação legislativa contempladas pela Constituição Federal encontram-se no art. 62, em relação às medidas provisórias e no art. 68 em relação às leis delegadas ao Presidente da República. Recentemente, a emenda constitucional nº 45 introduziu em nosso ordenamento outro caso de produção normativa primária, contudo, trata-se de ato diferente da lei. Ao criar o Conselho Nacional de Justiça, no art. 130-B, a Constituição dotou esse órgão de atribuição para “expedir atos regulamentares no âmbito de sua competência, ou recomendar providências.” Igual atribuição foi conferida ao Conselho Nacional do Ministério Público pelo art. 130-A, §2º, I. Note-se que em que pese a Constituição utilizar o termo “atos regulamentares”, na verdade tratam-se de atos completamente diferentes daqueles atribuídos ao Chefe do Poder Executivo pelo art. 84, IV, posto que são atos primários e situam-se, no plano da hierarquia, no mesmo patamar das leis. Não fosse isso, para acabar de vez com qualquer especulação acerca de outra espécie de delegação o art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT estabeleceu
“Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito esse prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a:
I – ação normativa”;
Aliás, Gustavo Binenbojm, um dos principais opositores da tese, apegando-se ao princípio da legalidade e após sólida argumentação conclui que “de acordo com o raciocínio até aqui desenvolvido, a deslegalização constituiria uma fraude ao processo legislativo contemplado na Constituição, o qual tem por escopo a defesa das garantias fundamentais do cidadão” (BINENBOJM, 2008, p. 283). Igual posicionamento é adotado por Juarez de Freitas ao ensinar que
“(…) os atos regulatórios devem ser infralegais, restando vedado ao administrador inovar como legislador. Assim, por exemplo, a resolução de uma agência reguladora pode inovar apenas como ato administrativo, porém, nos exatos termos da lei. A infralegalidade revindica uma sadia autocontenção. Não há, portanto, falar “deslagalização” no campo regulatório, que pode até valer noutros contextos, mas não tem guarida em nosso complexo normativo”. (FREITAS, 2004, p. 48)
Manoel Gonçalves Ferreira Filho é outro que nega a possibilidade de deslegalização em nosso ordenamento jurídico. Ensina o eminente constitucionalista que não há previsão constitucional para que leis possam delegar competência material para que um regulamento autônomo normatize determinado setor. (FERREIRA FILHO, 2002, p. 142).
Esse mesmo entendimento foi abonado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1.668/DF ao estabelecer que a ANATEL não pode exorbitar as disposições da Lei de Licitações, à qual seus atos encontram-se subordinados. Eis a ementa do acórdão, na parte que tratou especificamente do assunto:
“(…) deferir, em parte, o pedido de medida cautelar para: a) quanto aos incisos IV e X, do art. 19, sem redução de texto, dar-lhes interpretação conforme à Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado (…)” (STF, ADI 1668 MC, Relator Min. Marco Aurélio, Julgado em 20/08/1998)
A tese da deslegalização, portanto, não encontra fundamento em nosso regime jurídico tendo em vista que não é possível ao Poder Legislativo transferir sua função, mesmo que transitoriamente, a órgãos da Administração Pública ou proceder a qualquer espécie de delegação legislativa fora dos casos expressos autorizados pela Constituição Federal. Caso isso aconteça, ter-se-ia o que Celso Antônio Bandeira de Melo chama de delegação disfarçada e imprime veemente condenação
“Considera-se que há delegação disfarçada e inconstitucional, efetuada fora do procedimento regular, toda vez que a lei remete ao Executivo a criação das regras que configuram o direito ou que geram a obrigação, o dever ou a restrição à liberdade. Isto sucede quando fica deferido ao regulamento definir por si mesmo as condições ou requisitos necessários ao nascimento do direito material ou ao nascimento da obrigação, dever ou restrição. Ocorre, mais evidente, quando a lei faculta ao regulamento determinar obrigações, deveres, limitações ou restrições que já não estejam previamente definidos ou estabelecidos na própria lei. Em suma: quando se faculta ao regulamento inovar inicialmente na ordem jurídica. E inovar quer dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente deduzir da lei regulamentada.
Entre nós, este procedimento abusivo, inconstitucional e escandaloso foi praticado inúmeras vezes e de modo mais flagrante possível. Nisto se revela o profundo descaso que, infelizmente, nossos legisladores têm tido na mantença das prerrogativas do Poder em que se encartam, demonstrando, pois, um cabal desapreço pela Constituição e – pior que isto – olímpica indiferença pela salvaguarda dos direitos e garantias dos cidadãos.
Assim, inúmeras são as leis que deferem, sic et simpliciter, a órgãos colegiais do Executivo – como ao Conselho Monetário Nacional, por exemplo – o poder de expedir decisões (“resoluções”) cujo conteúdo só pode ser o de lei. (…)
De todo modo, ostensiva ou disfarçada, genérica ou mais restrita, assentada no todo da lei ou no incidente particular de algum preceptivo dela, a delegação do poder de legislar conferida ao regulamento é sempre nula, pelo quê ao Judiciário assiste – como guardião do Direito – fulminar a norma que delegou e a norma produzida por delegação”. (MELLO, 2008, p. 352-353)
3.2.2 Poder regulamentar das agências face à exclusividade conferida ao chefe do Poder Executivo pelo art. 84, IV da Constituição Federal
Uma vez afastada a tese da deslegalização, outras vozes levantam-se na doutrina defendendo que as normas expedidas pelas agências reguladoras têm natureza infralegal, de densidade normativa igual à dos regulamentos editados pelo chefe do Poder Executivo. Para essa corrente, caberia às agências reguladoras toda a produção normativa infralegal correlata à sua área de regulação. É o que afirma, por exemplo, Gustavo Binenbojm (2008, p. 286) ao ensinar que “como já longamente explicitado no Capítulo IV, supra, a competência normativa das entidades reguladoras exibe natureza regulamentar infralegal, semelhante àquela reconhecida ao chefe do Poder Executivo.” Essa parece, também, ser a posição de Marçal Justen Filho (2009, p. 540) que afirma que “uma agência reguladora na pode fazer algo além ou diverso do que seria reconhecido ao Poder Executivo, em matéria de produção normativa” Contudo, essa corrente também não merece acolhida em nosso ordenamento.
O Poder Regulamentar foi conferido, com exclusividade, ao chefe do Poder Executivo por expressa disposição do art. 84, IV da Constituição Federal. Diz o dispositivo que compete privativamente ao Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução. Pois bem, sob essa ótica, resta evidente que qualquer ato praticado palas agências reguladoras com a finalidade de regulamentar as leis será flagrantemente inconstitucional, pois que estará invadindo âmbito de atribuição privativa do Presidente da República. Assim, o Poder Legislativo jamais poderá dispor dessa atribuição, transferindo-a às agências, pois que se encontra impedido dada a expressa disposição constitucional que reservou esse ato ao chefe do Poder Executivo. Nesse ponto, ficamos com os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro para quem
“Regulamentar significa também ditar regras jurídicas, porém, no direito brasileiro, como competência exclusiva do Poder Executivo. Perante a atual Constituição, o poder regulamentar é exclusivo do Chefe do Poder Executivo (art. 84, IV), não sendo incluído, no parágrafo único do mesmo dispositivo, entre as competências delegáveis.” (DI PIETRO, 2001, p. 140/141)
3.2.3 O poder normativo das agências reguladoras como poder para expedição de atos regulatórios técnicos
Os atos expedidos pelas agências reguladoras, com visto, não se tratam de atos normativos praticados em razão de delegação do Poder Legislativo, posto que todos os casos de produção normativa delgada já se encontram expressamente consignados na Constituição Federal, não podendo o legislador criar novas espécies ou situações de delegação da função normativa ou legislativa.
Da mesma forma, tais atos não podem ser praticados com o condão de regulamentar as leis, haja vista que essa atribuição ou poder foi conferido pela Constituição Federal, com exclusividade ao chefe do Poder Executivo.
Mas é certo que as agências reguladoras produzem atos normativos gerais e abstratos de observância obrigatória para os particulares que exercem atividades inseridas no seu âmbito de regulação. No entanto, conforme ensina a doutrina mais autorizada, não há que se confundir o poder regulatório com o poder regulamentar. Boa parte da discussão acerca da natureza dos atos praticados pelas agências tem sua origem na confusão que se faz sobre tais definições. Conforme visto no início desse trabalho, as agência reguladoras foram idealizadas a partir da implementação do plano nacional de desestatização com a finalidade de servir de órgãos reguladores das atividades cuja exploração foi transferida ou permitida aos particulares. Assim, a noção de regulação está intimamente ligada a finalidade econômica e técnica, cabendo, destarte, a tais órgãos, a expedição, tão somente de atos com conteúdo técnico e/ou econômico necessário ao fiel desempenho de sua função. Evidentemente, de forma esporádica, esses atos podem veicular conteúdo jurídico; apesar de não ser o desejável, nem sempre pode ser evitado, como é o caso, por exemplo, quando a agência atua na defesa da concorrência ou do consumidor. José Maria Pinheiro Madeira (2004, p. 265) explica que “a atividade regulatória não se confunde com a atividade regulamentar, pois enquanto a primeira é conferida no Brasil, por lei, às agências reguladoras, a atividade regulamentar é, por força de imperativo constitucional, privativa do Chefe do Poder Executivo”.
Marcos Juruena Villela Souto é outro estudioso do assunto que concorda com a tese da atribuição das agências reguladoras, exclusivamente, para a normatização técnica da atividade sob se âmbito de influência. Atendo-se mais especificamente aos aspectos econômicos ele ensina que
“Cumpre, pois, não confundir a regulação, que é um conceito econômico, com a regulamentação, que é um conceito jurídico (político). Aquela é sujeita a critérios técnicos, que tanto pode ser definida por agentes estatais (envolvendo a Teoria da Escolha Pública) preferencialmente dotados de independência (para fazer valer o juízo técnico sobre o político), como pelos próprios agentes regulados (auto-regulação)” (SOUTO, 2002, p. 43)
Trata-se, então, de um poder normativo de cunho essencialmente técnico, ou seja, de abrangência limitada; na verdade, tais atos não têm a mesma abstração e generalidade que têm os regulamentos editados pelo chefe do Poder Executivo. Qualquer ato praticado pelas agências que não sejam direcionados apenas à sua área de atuação e que tenha por destinatários quaisquer indivíduos ou atividades será flagrantemente inconstitucional. Afinal, não foi por outro motivo que a própria Constituição Federal ao prever a criação da ANATEL e da ANP já delimitou o âmbito de atuação desses órgãos ao estabelecer no art. 21, XI a criação de um órgão regulador dos serviços de telecomunicações e no art. 177, § 2º, III um órgão regulador do setor petrolífero.
Outro fato a ser considerado é que mesmo sendo estritamente técnicos, esses atos somente poderão ser praticados com expressa autorização legal. É que o legislador, não possuindo conhecimentos ilimitados e específicos sobre todas as áreas em que há edição legislativa, poderá, e até deverá apenas fixar os parâmetros e linhas gerais da regulamentação de tais assuntos e deixar que os órgãos técnicos e especializados ditem as diretrizes para a concretização da vontade legislativa. A extensão e o limite dos atos normativos técnicos praticados pelas agências reguladores serão fixados pela lei de sua criação ou a lei que remeteu determinado assunto à regulação. Observe, entretanto, que os atos regulamentares (na acepção adotada por esse trabalho, aqueles praticados pelo Chefe do Poder Executivo) são muito mais abrangentes e poderão, eventualmente, veicular conteúdo de regulação de determinado atividade econômica, desde que tal assunto não esteja, por expressa disposição legal, remetido a uma agência reguladora. Essa questão da densidade normativa dos atos das agências reguladoras foi enfrentada por José dos Santos Carvalho Filho em abrangente estudo sobre o assunto, no qual consignou que
“O problema, todavia, derivado de tal carga de amplitude normativa, rende ensejo ao exame, pelos intérpretes e aplicadores da lei, e até mesmo aos destinatários, dos limites em que a regulamentação pode ser processada. Ainda que dotada de grande amplitude, a regulamentação feita pelas agências – como, de resto, ocorre com qualquer ato de regulamentação – terá que adequar-se aos parâmetros da respectiva lei permissiva. Afinal, é de ter-se em conta que a delegação legislativa não é ilimitada, mas, ao contrário, subjacentes a normas e princípios estabelecidos na lei. Trata-se, como bem acentuou LUIZ ROBERTO BARROSO, do que se denomina de “delegação com parâmetros” (“delegation with standards”), através da qual ao Poder Legislativo cabe fixar as linhas dentro das quais o ato regulamentar deve ser produzido.” (CARVALHO FILHO, 2006, p.10)
Evidentemente, tanto José dos Santos Carvalho Filho, quanto Luiz Roberto Barroso, por ele citado, não utilizam a expressão “delegação” no sentido utilizado pela Constituição no art. 62 (leis delegadas), nem tão pouco com a amplitude do art. 68 (medidas provisórias). Como o autor mesmo diz, trata-se de remessa da lei para que a agência disponha sobre determinado assunto, cuja abrangência e amplitude do ato já deve estar estritamente delimitada, caso contrário, o legislador estaria burlando o art. 84, IV da Constituição Federal e atribuindo a outro órgão da estrutura do Poder Executivo a atribuição conferida, com exclusividade, ao Chefe desse Poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As agências reguladoras, atualmente com forte presença na estrutura administrativa do Estado brasileiro teve sua origem e inspiração no Direito norte-americano. Nesse país, as primeiras agências apareceram desde os primeiros momentos da organização do Estado. Com forte viés regulatório, as agências, chamadas de independentes, logo se fortaleceram e se disseminaram, fazendo, inclusive, que o direito administrativo norte-americano, pertencente ao sistema da common Law, nascesse e desenvolvesse em função desses órgãos. Atualmente, as agências reguladoras norte-americanas se consolidaram como um importante instrumento de regulação da atividade econômica naquele país.
As agências reguladoras norte-americanas são dotadas de amplos poderes para ditar regras em relação à atividade econômica posta sob seu âmbito de atuação. Tais poderes, dada a sua amplitude foram nominados pela doutrina de poderes “quase-legislativos” (podem emitir regras e regulamentos que têm força de lei) e “quase-judiciais” (decisões acerca de conflitos individuais afetos à sua área de regulação) além da enorme presença no campo de atuação do poder executivo.
No Brasil, no início da década de 90 o governo deu início a uma modificação radical quanto à participação do Estado na economia e na prestação de serviços públicos. O Programa Nacional de Desestatização transferência à iniciativa privada de várias empresas até então pertencentes ao Estado, como também, abriu ao capital privado de vários outros setores econômicos até então não explorados ou de exploração restrita a poucas empresas. Contudo, era necessário que o Estado não se desvinculasse completamente dessas atividades, sendo necessária a sua presença, em determinados setores, ao menos como órgão regulador dessas atividades para atuar aspectos importantes como defesa da concorrência, defesa e segurança do consumidor, garantia de serviço contínuo e de qualidade, dentre outros. Pensou-se então, na criação de órgãos específicos para cuidar desses aspectos, que, pela carga de tecnicismo que envolviam, não podiam ficar dependentes de uma atuação difusa e genérica da Administração.
A partir dessa necessidade criou-se em nosso sistema as agências reguladoras com nítida e inegável influência do modelo norte-americano. Tendo em vista a necessidade de independência em relação à Administração central, optou-se pelo modelo de autarquia até então existente em nosso sistema, porém atribuindo-lhe poderes idênticos àqueles dos órgãos reguladores norte-americanos.
Ocorre que ao se importar determinados institutos de diferentes sistemas jurídicos como são os da common law e romano germânico, necessárias se fazem também as devidas adaptações.
O legislador brasileiro ao atribuir poder normativo e regulador às nossas agências reguladoras deve estar atento às peculiaridades de nosso sistema, especialmente as regras e princípios constitucionais. Por evidente não é possível, simplesmente, importar, ipses literes a configuração das agências norte-americanas. Essa tentativa do legislador de tornar as agências reguladoras brasileiras o mais idênticas possível das congêneres norte-americanas tem causado forte discussão doutrinária, notadamente, quanto ao poder normativo e regulador, frente ao nosso modelo constitucional de repartição de competências e proteção de direitos e garantias individuais.
A doutrina administrativa brasileira tem se pautado em diferentes teorias para justificar a abrangência e os limites do poder normativo e regulador das agências reguladoras brasileiras. Destacam-se a teoria da deslegalização, teoria que atribui às agências poder de editar regulamentos, idêntico àquele conferido ao Presidente da República e a teoria que admite às agências a prática de atos administrativos essencialmente técnicos e afetos à sua área de atuação para regular aspectos específicos determinados por lei.
A teoria da deslegalização defende que os atos normativos praticados pelas agências reguladoras teriam seu fundamento de validade na delegação do Poder Legislativo de parcela de suas atribuições, podendo, assim, as agências, no limite da delegação, livremente, editar as normas que entendessem necessárias. Tais normas teriam força de lei e poderiam, inclusive, inovar no ordenamento, gerando e restringindo direitos e obrigações. Contudo, em que pese a respeitabilidade de seus defensores, a tese não se sustenta. Isso porque o Poder Legislativo, em razão da conformação constitucional do Estado brasileiro, não pode, livremente, dispor das funções a ele reservadas. A Constituição Federal já estabeleceu, expressamente, os casos em que outro Poder ou órgão, poderiam, excepcionalmente, exercer a função legislativa com capacidade para inovar no ordenamento; no caso, ao Poder Executivo com fundamento no 62 (medidas provisórias) e art. 68 (medidas provisórias); ao Conselho Nacional de Justiça (art. 130-B) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, §2º, I). Dessa forma, qualquer outra espécie de delegação, a qual convencionou-se chamar de delegação anômala, será, por evidente, inconstitucional.
Uma segunda corrente doutrinária defende que o poder normativo das agências reguladoras são idênticos aos poderes conferidos ao Poder Executivo pelo art. 84, IV da Constituição Federal. Assim, poderiam editar normas complementares para a fiel execução e cumprimento das leis afetas à sua área de atuação. Por óbvio, essa tese também não merece acolhida. A constituição em nenhum momento demonstra o desejo de compartilhar a atribuição de editar regulamentos para cumprimento das leis. Ao contrário, esse poder foi conferido com exclusividade apenas ao chefe do Poder Executivo não havendo igual previsão para órgãos da Administração.
A corrente que mais de adéqua ao nosso sistema é a que defende que as agências reguladoras expedem atos normativos técnicos, específicos em relação a determinados aspectos da atividade posta sob sua área de regulação. Os teóricos dessa tese defendem que é necessária a distinção entre poder regulador (de caráter econômico) com poder regulamentar (de cunho político-jurídico). Dada a especificidade de determinadas questões, em vista do conhecimento técnico que exigem para sua regulação, as agências podem ditar atos específicos tendentes a fixar parâmetros para a o exercício daquela parcela da atividade econômica ou serviço explorado. Jamais poderão ser conferidos poderes às agências reguladoras para baixar normas complementares às leis em relação à totalidade de determinado setor. Apenas o chefe do Poder Executivo detém poderes para editar normas gerais e abstratas para regulamentar as leis. Os atos normativos expedidos pelas agências reguladoras, em que pesem, também gerais e abstratos, devem restringir-se a questões pontuais e essencialmente técnicas, e circunscreverem-se aos exatos limites da lei permissiva. Essa é a melhor interpretação a fim de harmonizar os dispositivos dos artigos 21, XI e 177, § 2º, III com o art. 84, IV, todos da Constituição Federal.
Mestranda em Educação pela Universidade de Uberaba – UNIUBE; Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes – UCAM; Pós-Graduanda em Ensino de Filosofia, bem como Coordenação Pedagógica e Planejamento pela Universidade Cândido Mendes – UCAM; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES
Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil(2004), Professor Titular da Universidade Estadual de Montes Claros
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