Primeiramente, é importante abordar a formação histórica da instituição familiar com o intuito de uma melhor compreensão concernente à violência doméstica, tão vivenciada nos dias atuais.
Engels (2000,p.49) afirma que “a evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira.”
Neste sentido Engels classificou a formação da família em três fases: a família consangüínea; a família punaluana ;e, família sindiásmica. A primeira fase classifica os grupos conjugais por gerações, em que os ascendentes e os descendentes eram os únicos excluídos das relações entre si, uma vez que todos os demais membros eram maridos e mulheres e mantinham relações sexuais. A família punaluana era caracterizada pela exclusão dos irmãos nas relações carnais em razão dos mesmos pertencerem a gerações próximas. Na terceira fase, percebe-se que o homem passa a ter uma mulher oficial, dentre as demais. A infidelidade era presente nesta fase.
O início da família monogâmica, na qual a mulher era submissa ao homem, surgiu da necessidade da filiação paterna com a finalidade de regrar as sucessões patrimoniais.
Wald (2000,p.10) observa no período da Antiguidade, a existência do patriarcalismo em que o homem era o detentor do poder familiar, bem como de todos os bens.
Apenas na segunda metade do século XIX é que a mulher conquista alguns direitos, o que fez com que as diferenças entre os gêneros diminuísse. Porém, assim mesmo a mulher era considerada incapaz e limitada quanto a prática de certos atos, devendo obter autorização do marido para praticá-los.[1]
No entanto, a luta das mulheres em buscar posições mais favoráveis no seio da sociedade fez com que surgissem vários movimentos de defesa da mulher, com a mesma sendo cada vez mais valorizada e notada em todos os setores sociais.[2]
Atualmente existem várias normas de proteção à mulher, sendo que a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz alguns princípios jurídicos que visam a igualdade de condições entre homens e mulheres.
Dallari(1985,p.78) afirma que “ a Constituição surgiu com o objetivo de afirmar e garantir os Direitos Fundamentais dos indivíduos e de estabelecer limitações jurídicas para o exercício do poder político.”
Quanto a importância da inserção dos Direitos Fundamentais no texto constitucional, Bastos (2002,p.277) assim se manifesta:
Uma categoria de Direitos que deve ser tratada autonomamente eis que ela oferece características e particularidades que a diferenciam dos demais Direitos, pois prescindem de qualquer fato aquisitivo. É dizer, pelo simples fato de existir o homem já se torna titular desses Direitos. Eles também funcionam como fundamento de todo o ordenamento político.
Deste modo, observa-se que os Direitos Fundamentais são fundadores de toda a sociedade, uma vez que protegem os indivíduos sem distinção. Um dos Direitos Fundamentais inseridos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é o direito de igualdade.
Canotilho (1999,p.399) reza que :“ Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação de leis igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos”. Neste sentido, entende-se que a lei deve ser aplicada sem analisar qualidades pessoais dos cidadãos.
Ocorre que devido as suas particularidades, homens e mulheres não devem ser tratados como absolutamente iguais, sendo que suas diferenças devem ser respeitadas.
O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas reza que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros com espírito de fraternidade.”
A própria Carta Magna traz no artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Neste viés, homens e mulheres possuem igualdade em direitos e deveres, devendo ambos contribuir para o sustento e a mantença familiar. Diante deste novo contexto social, as mulheres passaram a disputar o mercado de trabalho, vagas nas universidades e destaques em diversos setores.[3]
A nova família do século XXI visa a igualdade entre seus membros com o intuito de gerir o lar. O Código Civil de 2002 traz inúmeras normas que igualam homens e mulheres, visando o mútuo auxílio dos cônjuges no sentido de preservar a sociedade conjugal e a família.
Deste modo, a mulher assume novas diretrizes, assumindo algumas responsabilidades, atuando nas decisões familiares e contribuindo financeiramente com o varão.[4]
Observa-se que apesar destas inúmeras conquistas em prol da igualdade de direitos entre homens e mulheres, alguns problemas ainda persistem nos lares brasileiros provenientes de uma cultura patriarcalista.
Aborda-se mais especificamente a constante da violência doméstica que assombra milhares de famílias. A violência doméstica é definida pelas Nações Unidas[5] como:
Qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero, que resulte em sofrimentos e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção e privação da liberdade seja na vida pública ou privada.
Importante destacar que o ambiente familiar é subentendido como um espaço de amor e afeto, respeito e consideração entre seus membros. No entanto, a violência doméstica não distingue pai, mãe e irmãos, acometendo homens, mulheres e crianças. Pretende-se destacar a esfera da violência doméstica entre homens e mulheres. Neste sentido a violência doméstica se exterioriza por diversas formas: a violência sexual, a violência física, a violência moral e a psicológica. Dentre as formas de violência mais comuns destacam-se a agressão física mais branda, sob a forma de tapas e empurrões, sofrida por 20% das mulheres; a violência psíquica de xingamentos, com ofensa à conduta moral da mulher, vivida por 18%, e a ameaça através de coisas quebradas, roupas rasgadas, objetos atirados e outras formas indiretas de agressão, vivida por 15%.
O Brasil lidera o ranking mundial de violência contra a mulher, de acordo com uma pesquisa feita pela Sociedade de Vitimologia Internacional: chega a 25% o número de mulheres no país que sofrem violência e 70% das mulheres assassinadas foram vítimas dos próprios maridos. Uma pesquisa realizada em 2001 pela Fundação Perseu Abramo estima a ocorrência de mais de dois milhões de casos de violência doméstica e familiar por ano.
A violência doméstica é considerada crime de menor potencial ofensivo sendo julgados nos Juizados Especiais Criminais. Na verdade, esta classificação de menor potencial ofensivo atribuída ao crime de violência doméstica dificulta uma efetividade de repressão contra o agressor, considerando que as penas, na maioria das vezes, era substituída por penas pecuniárias.
No sentido de resguardar e proteger a mulher no âmbito doméstico, a Lei Maria da Penha requer a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, com o intuito de acelerar o andamento dos processos, bem como de enaltecer a importância de investigações mais detalhadas. A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ellen Gracie já se manifestou no sentido de recomendar a criação dos Juizados próprios para dirimir estes conflitos familiares.
A Lei também inova no sentido de aumentar tanto a pena para os agressores quanto as medidas protetivas para as vítimas. Admite-se a prisão em flagrante, assim como a decretação da prisão preventiva contra os agressores, sendo vedada a pena pecuniária neste tipo de crime. No curso da execução da pena, também e permitido que o juiz determine o comparecimento obrigatório do agressor em programas de reabilitação.
Quanto o aumento das medidas de proteção à mulher que está sofrendo ou correndo riscos de ser agredida, algumas das inovações são: a saída do agressor de casa, a proteção dos filhos, o direito da mulher de rever seus bens e cancelar procurações feitas em nome do agressor.
A Lei 11.340 foi sancionada no dia 7 de agosto de 2006, posicionando o Brasil em 18º colocado na América Latina a criar uma lei especial contra a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Não se discute a necessidade da implantação de normas protetivas favoráveis a mulher, porém sabe-se que não são apenas os homens os causadores da violência doméstica. A violência doméstica pode ser praticada por qualquer pessoa, não importando suas qualidades pessoais.
Na práxis, as medidas protecionistas circundam apenas o sexo feminino, desamparando por completo o homem quando vítima de violência no âmbito familiar. A mulher ao agredir o homem possui o privilégio de ser beneficiada com as transações penais, ao contrário do homem agressor, portanto, as sanções penais são agravadas quando o homem ocupa o pólo ativo do conflito.
Verifica-se um contraditório entre o princípio da isonomia incutido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a nova lei contra a violência doméstica. Se tal princípio defende a igualdade sem qualquer tipo de distinção entre os indivíduos, porque há esta diferenciação quando se trata da violência no lar?
Damásio de Jesus[6] afirma que “é inequívoco, que homens sofrem homicídio por emprego de arma de fogo em escala muito maior do que as mulheres, mas isso, em hipótese alguma, justificaria, devido ao princípio da igualdade entre os sexos, a existência de lei estabelecendo pena menor para os casos em que a vítima fosse do sexo feminino.”
Certamente a Lei 11.340 visa evitar a banalização da violência doméstica, no entanto, para sua plena efetivação não deveria distinguir o indivíduo em virtude do gênero. Importa e faz-se necessário que a Lei proteja à todos indistintamente, assim como os Direitos Fundamentais que se estendem à toda a sociedade.
Trata-se de uma Lei necessária? Sim, mas não apenas às mulheres. Aos homens também deve ser assegurado o direito à sua integridade física e mental, principalmente no seio familiar.
Deste modo, conclui-se que uma lei tão inovadora e que objetiva a não violência não deve ser considerada inconstitucional, e, com certeza se levantada a hipótese de inconstitucionalidade esta resistirá à uma análise prática, uma vez que os princípios constitucionais são basilares e não devem ser atacados por normas infra-constitucionais.
Acadêmica de Direito da Univali/Itajaí/SC
Juiz de direito aposentado e professor
Bacharel em Direito pela Univali, Itajaí/SC
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