Resumo: A liberdade de expressão está entre as nossas mais estimadas garantias constitucionais. Consectário do direito à manifestação do pensamento, a liberdade de expressão é de conteúdo abrangente, instrumento essencial para a democracia, na medida em que permite que a vontade popular seja formada a partir do confronto de opiniões, em que todos os cidadãos, dos mais variados grupos sociais, devem poder participar, falando, ouvindo, escrevendo, desenhando, encenando, enfim, colaborando da melhor forma que entenderem.
Sumário: 1. Introdução; 2. Liberdade de Expressão; 2.1. Abuso da Liberdade de Expressão; 3. O Efeito Silenciador do Discurso Hegemônico no Brasil; 4. O mito da não-violência no Brasil; 5. Considerações Finais: O Estado mediador do debate; Referências
1. Introdução
A Ciência Jurídica, em sua essência, não tem como objetivo ater-se apenas às situações em que é posta em prática a função de organização social. O escopo principal do Direito é atuar como instrumento para a reelaboração da própria ordem jurídica, bem como para a construção de parâmetros de interpretação das normas de que cuida, com vistas a induzir a sua aplicação consoante os valores mais comezinhos da sociedade, insculpidos na Constituição.
Nesse contexto, o direito positivo não pode ser indiferente ao conteúdo ético das normas, tampouco à sua capacidade de adequação às necessidades e problemas sociais. O jurista não se deve limitar à análise formal das normas, visto que a função do intérprete da norma jurídica é proporcionar uma compreensão de fundo da realidade social a que o direito vai se aplicar. Deve deter-se, outrossim, à análise das vias de comunicação que se estabelecem entre a norma e a realidade social através dessa aplicação.
O modo do exercício das liberdades civis, sob este prisma, tem muito a ser enriquecido, à medida que se expande a compreensão – antes limitada à esfera eminentemente normativa – e passa a tratar da proteção e garantia de direitos com uma preocupação finalística (esboçada obrigatoriamente como regra de interpretação – art. 5.º LINDB) que deve cuidar evidentemente dos direitos humanos, de sua validade fundada tanto na lei, quanto na Constituição, e de sua real eficácia em favor da dignidade humana.
Nessa perspectiva, os sujeitos sociais são capazes ou preordenados a interpretar e a determinar os objetos sociais de modo a conhecê-los em suas necessidades e a dirigi-los em busca de uma instrumentalização para a satisfação de necessidades (obtenção de prazer e bem estar), o que se expressa também no exercício da garantia da liberdade de expressão.
O Estado de bem-estar social, todavia, não respalda o caráter individualista da satisfação de necessidades. A esta evidência, a única via para se tentar superar esta possível situação de desconforto ético é reconhecer o perfil histórico da modernidade e, em determinadas situações, questionar o próprio exercício da regulação estatal no tocante à construção do discurso em favor do interesse público.
As distorções ocorridas no processo de formação da razão pública precisam ser reconsideradas a fim de se promover, como fundamento das decisões políticas, os interesses e a necessidade dos grupos vulneráveis existentes na sociedade brasileira, costumeiramente violentados na luta pelo reconhecimento de seus direitos.
2. Liberdade de Expressão
A liberdade de expressão está entre as nossas mais estimadas garantias constitucionais. Consectário do direito à manifestação do pensamento, a liberdade de expressão é de conteúdo abrangente, instrumento essencial para a democracia, na medida em que permite que a vontade popular seja formada a partir do confronto de opiniões, em que todos os cidadãos, dos mais variados grupos sociais, devem poder participar, falando, ouvindo, escrevendo, desenhando, encenando, enfim, colaborando da melhor forma que entenderem.
2.1. Abuso da Liberdade de Expressão
O mundo moderno sujeita os cidadãos inseridos em seu contexto a se depararem com situações muito curiosas na caminhada pessoal. A ‘ficha catalográfica’ dos abusos impingidos na memória de quem busca o Poder Público para a defesa de algum direito violado é extensa.
Muitos embates na vida privada que se espraiam até a esfera pública surgem de modo recorrente em razão da carga extremada que se quer dar às liberdades de que os sujeitos de direito se julgam detentores: o direito de fumar em espaços públicos; o direito de xingar o governo, o diretor da faculdade, o padre, o arcebispo, o dono dos jornais; o direito de adentrar à sala de aula após regra de limitação de horário imposta pelo professor (que é a autoridade sobre os alunos neste espaço); o direito de atender ao celular dentro dos templos de culto religioso, dos consultórios médicos, da reunião de condomínio etc. etc. etc.
No entanto, de tudo o que mais tem surpreendido a comunidade jurídica no tocante à violação a direitos fundamentais é o abuso no exercício da liberdade de expressão cometido por “autoridades eclesiásticas” no pátio das casas legislativas pelo Brasil – e nas madrugadas da TV brasileira -, em defesa do não reconhecimento de direitos civis de uma clássica minoria no Brasil, que é a dos homossexuais.
Padres e pastores, principalmente, esquecem de suas divergências históricas em nome do que intitularam “luta em defesa da família”, para, utilizando-se sutilmente do discurso de incitação ao ódio, intimidar os representantes do povo e dos Estados a votarem contra a aprovação de projeto(s) de lei que criminaliza(m) condutas semelhantes às patrocinadas nesses ‘encontrões-a-céu-aberto-de-líderes-religiosos-e-seus-rebanhos’.
O impressionante é que na hora de alguém convidar o próximo a visitar sua igreja, a proposta é normalmente proselitista e carregada de pretensões de conversão à fé do outro. E aí o que se vê, de um lado, é “crente” desrespeitar símbolos do catolicismo, como o crucifixo, é tratar a personagem bíblica da mais alta envergadura para a fé cristã, Maria de Nazaré, com um desdém típico dos ignorantes acerca de sua vida, testemunho e poder dado pelo Espírito Santo; e de outro, é católico amaldiçoar “crente” a tempos dobrados no purgatório por não haver quem ore pelas almas ali esgotadas de pecado, além de outros acintes patrocinados pelo agora “unido-grupo-cristão-em-defesa-da-família”.
À parte o mérito religioso da questão, fato é que empunhar a Constituição da República para garantir a manifestação da liberdade de expressão não é suficiente para encontrar o respaldo jurídico que se pretende, pois os direitos fundamentais (como é o caso da liberdade de expressão) não são absolutos ou ilimitáveis; ao contrário, são relativos e passíveis de restrição.
Nesse sentido, um direito fundamental pode ser limitado internamente por seu próprio alcance material, ou por uma norma restritiva infraconstitucional, no afã justamente de evitar a colisão entre esses direitos nas específicas situações da vida em que as liberdades se encontrem na próxima esquina, em rota de choque.
O ordenamento jurídico de países como a Alemanha, por exemplo, trazem em seu bojo a previsão expressa do princípio da proibição ao abuso de direito fundamental como balizador do exercício das garantias ali previstas constitucionalmente. Aliás, a república européia que se recusa a envelhecer larga na frente e mergulha fundo em se tratando de matérias ligadas a direitos fundamentais.
No Brasil, entretanto, verifica-se uma latência deste princípio no Ordenamento, sem embargo de, ocasionalmente, orientar cortes pelo país a decidirem em homenagem à fulgurante consistência do referido princípio para balizar os “abalroamentos fundamentais” na vida cotidiana.
É o caso, por exemplo, do tribunal gaúcho que considerou afronta à dignidade da pessoa humana o uso de ornamentos que fazem apologia ao nazismo, como a suástica. Entenderam os desembargadores daquela Corte que “se de um lado a constituição exaltou a liberdade de expressão do pensamento como um dos direitos fundamentais, ficou preservada também a dignidade humana, com repúdio à discriminação ou preconceito (sic.) […]” (RIO GRANDE DO SUL, 2007).
Outro exemplo típico de aplicação do princípio da proibição ao abuso de direitos fundamentais é a decisão do STJ que confirmou a proibição imposta em inferior instância ao apresentador Ratinho de exibir cenas que atentassem contra a dignidade humana. Na sessão de julgamento, restrições à exibição de confrontos físicos e de deficiências como atrações de seu programa foram impostas como providência destinada a harmonizar o exercício de direitos coletivos, devendo prevalecer o valor ‘dignidade humana’ (BRASIL, 2007).
3. O Efeito Silenciador do Discurso Hegemônico no Brasil
O contexto atual revela um aumento das tensões e dos conflitos sociais que tendem a legitimar o maior poder punitivo do Estado em face de questões afetas às minorias e seus direitos. E aí surge como inevitável uma ampla discussão sobre o abuso de direitos fundamentais, com enfoque na liberdade de expressão.
A luta pelo equilíbrio de forças na hora de exercitar a garantia da liberdade de expressão passa por uma reflexão profunda do Estado e da sociedade sobre o alcance do discurso, que se pretende público, dos objetivos reais, sem perder de vista que o Brasil é marcado pela diversidade de culturas e, portanto, deve democraticamente possibilitar aos segmentos sociais defender seus direitos, garantidos pela constituição.
O fenômeno da liberdade de expressão nas sociedades liberais provoca um efeito silenciador do discurso. No Brasil, por exemplo, o acesso diferenciado aos meios de comunicação de massa alcançado por determinados grupos hegemônicos, a pressão ou influência exercidas pelo governo sobre as empresas de comunicação, e, especialmente, preconceitos difundidos na sociedade contra determinadas categorias de pessoas, ordinariamente minorias, geram um desequilíbrio de forças, a ponto de silenciar a antítese e legitimar o discurso de incitação ao ódio contra tais sujeitos.
É curial perceber esse efeito silenciador do discurso no caso da interferência das agremiações religiosas. A partir do momento em que se puseram à frente do centro do poder na capital federal, com as ameaças de toda sorte ali desferidas, a classe minoritária detentora dos direitos civis a favor dos quais pretendia lutar calou-se. O projeto de lei objeto da discussão saiu de pauta, as medidas sócio-educativas tencionadas pelo Ministério da Educação foram sobrestadas e, como não poderia deixar de ser, pairou, no seio da população brasileira, a sensação de que o midiatismo da luta teve um claro objetivo de desviar a atenção para questões menos relevantes no interesse da maioria.
Ora, se a liberdade de expressão é compreendida somente como uma proteção à autonomia discursiva dos indivíduos, ao Estado restará adotar tão-somente uma postura abstencionista ante a esfera individual. Eis que a chancela do Poder Público se concretiza, à medida que sequer a função de curador do discurso que se pretende público o Estado cumpre.
A essa evidência, a liberdade de expressão deve ser compreendida como um instrumento para a promoção da diversidade na esfera pública, agora exigindo uma atuação positiva do Estado na abertura e ampliação do espaço conferido a diversos grupos no debate democrático (FISS, 2005, p. 22).
Somente atuando na qualidade de promotor dessa diversidade é que o poder público tornará possíveis os ajustes que identificarão a ocorrência do discurso do ódio e da violência simbólica no Brasil.
4. O mito da não-violência no Brasil
Os espaços de incivilidade na sociedade brasileira, em que a violência parece ser legitimada e ganha cada vez mais espaço, tanto na vida cotidiana, quanto na cobertura da mídia encontram respaldo, incrivelmente, no pretenso exercício saudável da liberdade de expressão.
Desconsidera-se, com essas práticas, ser o pluralismo, também, fundamento para a adoção das medidas especiais contra essa realidade, pois detém peso decisivo na conformação e assimilação de uma sociedade diversificada que necessita de condições paritárias para a construção do desenvolvimento do Estado e de cada um dos cidadãos.
Não se pode compreender uma sociedade tão diversa como a brasileira, com particularidades culturais e regionais, ser necessariamente obrigada a manter o mesmo padrão de atividades para o desenvolvimento de cada segmento social, mormente quando a discussão sobre direitos civis está afeta a um segmento específico contra quem a prática da violência simbólica enseja a incitação ao ódio.
Aceitar a diversidade corresponde a promover, a cada um dos elementos socioculturais, a dignidade de enquadrá-los como fundamento a favor de seus partícipes, dando-lhes a oportunidade de lutar pelos seus direitos, sem o temor reverente da contrapartida de um discurso odioso contra si perpetrado.
Segundo Chauí (2007, p. 354), a sociedade brasileira é estruturada segundo o modelo do núcleo familiar. Nesse modelo, ocorre a recusa tácita (e às vezes expressa) de fazer valer o princípio da igualdade formal, tornando grande o desafio de lutar pela efetivação da igualdade real, em que as diferenças são postas como desigualdades, e estas, como inferioridade natural (no caso de mulheres, trabalhadores, negros, índios, idosos), ou como monstruosidade (no caso dos homossexuais).
“[De outro lado,] Há no Brasil um mito poderoso, o da não-violência brasileira, isto é, a imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidário, que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por suas escolhas sexuais etc”. (CHAUI, 2007, p. 345)
O mais grave de tudo é que, a despeito das conquistas na seara dos direitos fundamentais, positivadas pelo ordenamento, determinado contingente da população se vê acuado no processo de busca pela consolidação de seus direitos sob o argumento da maioria que, a todo custo, abusa no exercício desse direito fundamental, convertendo-o supedâneo à prática da violência.
Nem as instituições públicas teriam incorporado as regras do jogo democrático, nem a sociedade civil estaria pronta para aceitar o primado da universalidade da lei e dos direitos humanos, o que expressa, na prática social, o exercício da violência simbólica.
Esse tipo de violência ocorre em todos os lugares e se reveste de seu caráter não-físico, mas não menos danoso, pois através do simbolismo dessa violência (expresso na mídia, educação, moda, costumes, tradições, direito, religião, cultura) as pessoas tendem a aceitar condições injustas ou inadequadas e a naturalizar relações desiguais.
Na maioria das vezes, esse tipo de violência torna o inaceitável em aceitável, em convencional. É o caso, por exemplo, da desigualdade de gênero no mercado de trabalho, ou da discriminação racial que impede determinados grupos de pessoas a ter acesso aos direitos, pelo simples fato de serem diferentes em relação a uma norma tácita.
5. Considerações Finais: O Estado mediador do debate
A proposta pautada nos termos constitucionais de proteção à dignidade da pessoa humana com base no primado da ponderação de valores (ALEXY, 2002) deve ser baseada na interpretação (fundada na seara da utilização dos princípios hermenêuticos clássicos e modernos, tanto da teoria geral do direito quanto do constitucionalismo) de modo a tornar equilibrada a regulação estatal de determinadas manifestações discursivas e a proscrição de outras, como forma de equilibrar o acesso de todos os cidadãos ao debate público e à formação da vontade política que conduz os processos sociais no Estado brasileiro.
A esta evidência, para fins do estudo que se pretende desenvolver, o papel do Estado seria comparável ao de um mediador dos debates, responsável por coordenar as discussões de modo a assegurar a participação de todos em igualdade de condições na abertura do processo aos inúmeros grupos mais vulneráveis socialmente, o que, inevitavelmente, proporcionaria a emancipação e o fortalecimento da cidadania social.
Ademais, no exercício dessa regulação estatal, seria possível a tipificação de condutas que eventualmente se tornassem compatíveis com o discurso de incitação ao ódio, eivado de sutilezas típicas da violência simbólica, modalidade comum no seio da sociedade brasileira.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2004) e especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdades de Ensino Superior da Paraiba (2009) . Atualmente é Consultor Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil – PB e Professor Ensino Superior da Faculdade Tecnológica da Paraíba (FATEC).
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