I – Criminalização e suas conseqüências
Atualmente é comum o contribuinte buscar mecanismos para tentar diminuir a sanha arrecadadora do Estado. Como bem afirma Albert Hensel: “É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os atos e fatos necessários à obtenção daquele resultado econômico, são parcelas que integrarão a despesa(1) “. Ocorre que determinados atos dos contribuintes perante o Fisco, tendentes a excluir ou a diminuir encargos tributários, podem ser entendidos como crimes fiscais. E com a divulgação através da mídia, surge uma a discussão a respeito desta nova prática criminosa, que se concentra basicamente na identificação e punibilidade destes delitos.
Isto se da principalmente pelas rápidas mudanças da sociedade, em especial no campo das atividades tecnológicas, causando com isso grande impacto sobre as relações humanas e sociais, sobretudo nas jurídicas. Junto com todas essas transformações, também surgiram novas condutas criminais, com efeitos ainda mais danosos para sociedade. Tanto porque, “o dano causado nos crimes a ordem tributária não é imediato e individual, mas difuso e não há, aparentemente, nexo de causalidade dos fatos praticados com o resultado constatado posteriormente”(2). O que torna a fiscalização e punição desta conduta ainda mais difícil.
Essa tentativa de disciplinar tais condutas sociais, que se encontram em franco conflito com o sistema do Direito Penal Clássico, surgindo a partir daí muitas críticas por parte dos penalistas, que baseados no principio da ultima ratio, defendiam que estas condutas (supraindividuais), deveriam ser disciplinadas por outras ciências e não pelo direito penal. Entretanto, houve uma forte gama de doutrinadores, que resistindo as críticas, defendiam que o direito penal é o instrumento ideal e necessário para regular e punir esses novos delitos, assim, “o direito penal tem a teórica missão de reforçar sua tutela, sancionando como infração penal os ataques mais intoleráveis para os bens jurídicos socioeconômicos implicados”(3). Tal posição justifica-se pelo fato de outras disciplinas não possuírem um poder eficiente para punir essa nova figura delituosa, já que se tratam de infrações altamente organizadas, planejadas e de conseqüências monstruosas.
Depois de perceber a necessidade da tutela penal para disciplinar e punir essa nova modalidade criminosa surge mais um problema, em saber se o direito penal conseguiria mudar sua estrutura para abarcar e tipificar tais condutas. Certamente o “Direito Penal Clássico não se encontra à altura das exigências de um pensamento jurídico que corresponda aos novos paradigmas que superem o modo de Direito liberal-individualistas”(4). O fator determinante desta discussão consiste em que o direito por estar sempre regulando de forma concreta e direta os fatos, no caso do âmbito econômico, porém, mais que antecedido, o direito está sendo literalmente ”atropelado” por uma realidade que esta em expansão, e que incide não sobre um determinado objeto, mas em vários ao mesmo tempo, sendo fenômeno físico estranho e desconhecido, que comporta inúmeras interpretações.
Devido a essa nevoa no sistema jurídico penal-tributário, existem aspectos que se colocam em pauta. O Código Penal Brasileiro acolheu o estado de necessidade, em que exclui a antijuridicidade, nos casos de sacrifício de bens de valor inferior, para salvar bens jurídicos de maior valor. Rodrigo Fernando de Freitas Lopes traz em discussão, dentre as causas que levam ao contribuinte sonegar tributos, a proliferação das empresas transnacionais (multinacionais). No qual, essas empresas transnacionais, chegam ao Brasil, recebendo diversos incentivos financeiros e tributários, prejudicando a livre concorrência no comércio interno. O empresário brasileiro, encarando essa situação “somente há três alternativas quando uma concorrência desleal em função da menor carga tributária é praticada pelas transnacionais, quais sejam: 1) a falência ou a venda da empresa nacional para a transnacional; 2) a transnacionalização; 3) a sonegação fiscal”(5). Entende-se que as empresas nacionais pretendem protegerem suas atividades, em face das transnacionais. Podendo, na opinião do autor acima citado, a conduta do agente do crimes de sonegação fiscal ser enquadrado na figura de estado de necessidade (excludente de ilicitude).
II – Legislação Penal-Tributária
Com essa necessidade emergencial de se criar leis que funcionassem como limite para as práticas de crimes sonegatórios, houve a formulação da lei 8137/90 que definia os crimes contra a ordem econômica, tributária e outras relações de consumo. Porém esse estudo vai se ater aos crimes tributários, assim definidos crimes de sonegação fiscal.
A lei mencionada acima vem definir as condutas que serão punidas a títulos de sonegação fiscal. O que chama atenção, é o fato dos agentes desse crime serem em sua maioria negociantes, empresários, políticos, isto é, pessoas bem instruídas que possuem um status social elevado e que aplicam técnicas altamente qualificadas para obter melhores resultados. Com isso o papel do Estado torna-se muito mais delicado, já que estes criminosos estarão muito mais preparados pra enfrentar o poder fiscalizatório. Além da falta de preparo, o Estado enfrentará também barreiras culturais, sendo que até de uma forma irônica, o professor Emerson de Lima Pinto, afirma que o Estado “não pode agir de forma a punir seus cidadãos honoríficos (…), seria ultrajante para um benemérito cidadão passar por este tipo de humilhação”(6). Então se descobre que o Estado possui duas barreiras para aplicar de modo correto a legislação penal-tributária, são elas: cultural e jurídica. Mostrando que a causa mais exposta da proliferação desta pratica delituosa consiste na própria cultura humana, em deixarmos “que o sistema capitalista se desenvolvesse sem o devido acompanhamento da tutela penal, que poderia reprimir adequadamente condutas ilícitas, bem como não preparamos a sociedade (jurídica e culturalmente) para esta natureza delituosa”(7)
III – Extinçao da punibilidade
Como extinção da punibilidade se pode compreender como “atos ou fatos que impedem a aplicação da sanção penal”(8). Além dos casos elencados no artigo 107 do Código Penal Brasileiro, existem alguns casos que possuem particularidades dos crimes contra ordem tributária.
O aspecto peculiar de extinção de punibilidade em crimes contra ordem tributária é através do pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia. O artigo 34 da Lei 9.249/95 assim estabelece:
“Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”.
Tal definição deixa claro que a promoção da ação penal é afastada, no caso do artigo 34 da Lei 9.249/95, pelo pagamento, o qual, por sua vez, repercute como forma de extinguir a punibilidade.
Mais adiante, a Lei 10.584/2003, conhecido como Refis II, vem a definir no seu art. 9º, par. 3º, uma hipótese de extinção de punibilidade nesse tipo de crime:
”Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
(…)
§ 3º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”
Em principio, essa lei teria aplicação somente nas hipóteses de ingresso de contribuintes no programa de recuperação fiscal. Porém o Supremo Tribunal Federal interpretou que o par. terceiro teria aplicação mesmo nos casos que o contribuinte não aderisse ao Refis[1]. Nesse sentido defende Kiyoshi Harada:
“Embora criticável o § 3º do ponto de vista da técnica legislativa, seu conteúdo representa uma norma autônoma, instituindo uma causa extintiva da punibilidade com pagamento, a qualquer tempo, do tributo reclamado pela Administração, operando-se a. incidência do princípio constitucional da retroatividade da lei penal benigna”(9)
Mas se indaga, se o contribuinte realizar o pagamento, não em sua integralidade, afastaria a punibilidade assim mesmo? O entendimento do Superior Tribunal de Justiça inclina-se no sentido que “o pagamento, ainda que parcelado, põe termo à justa causa para propor a ação penal”(10). Esse entendimento é fortalecido com seguinte jurisprudência da mesma Corte jurisdicional:
“RECURSO ESPECIAL – PENAL E PROCESSUAL PENAL – APROPRIAÇÃO INDÉBITA – NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS – PARCELAMENTO DO DÉBITO ANTES DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA – EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE – Não obstante a respeitável orientação adotada pelo Col. Supremo Tribunal Federal no julgamento do Inquérito nº 1028-6/RS (Rel. Min. Moreira Alves), esta Corte tem proclamado reiteradamente que o parcelamento da dívida tributária antes do recebimento da denúncia equivale a pagamento, acarretando a extinção da punibilidade do sujeito ativo da infração, nos termos do art. 34, da Lei 9.429/95. Recurso conhecido apenas pela letra “c”, mas desprovido”(11)
Porém com a edição da Lei 9964/2000, foi criado pelo Governo Federal, o Programa de Recuperação Fiscal (Refis), para aliviar a situação das empresas que possuíam grande quantidade de dívidas para com o Fisco. Em que pese o Art. 15 da Lei do Refis:
“Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no artigo 95 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no REFIS, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal.
§ 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva
§ 2º O disposto neste artigo aplica-se, também:
I – a programas de recuperação fiscal instituídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, que adotem, no que couber, normas estabelecidas nesta Lei;”.
Com a entrada em vigor da lei do Refis, foi significativa a mudança de entendimento do Superior Tribunal de Justiça em que confirmou a determinação da Lei, como bem demonstra a jurisprudência descrita abaixo:
“PENAL – REFIS – ADESÃO POSTERIOR AO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA – SUSPENSÃO – Da pretensão punitiva do estado. Incidência do art. 15 da Lei nº 9.964/00. Impossibilidade. Ofensa ao princípio da retroatividade. Inocorrência. O art. 15 da Lei nº 9.964/00 não se aplica às pessoa jurídicas que tenham aderido ao programa de recuperação fiscal (refis) após o recebimento da denúncia. Entendimento pacificado nesta corte. A não aplicação do art. 15 da Lei nº 9.964/00 não configura ofensa ao princípio da retroatividade da Lei Penal mais benéfica, já que o benefício ali estabelecido é condicionado àqueles que tenham ingressado no refis antes do recebimento da denúncia. Recurso provido”(12)
O que se pode tirar como síntese desse polêmico problema, é que o contribuinte ingressando no Refis, será ele regido pela disposição do art. 15 da Lei 9.964/2000, no qual ficara suspensa a punibilidade até a última parcela. Agora se o contribuinte assumir uma forma de parcelamento junto ao Fisco, estranho ao Refis, terá extinção da punibilidade, uma vez que a lei 9.249/95 define que extinguirá a punibilidade pelo pagamento, entretanto não define a forma a ser feito tal procedimento.
Quando parece ter uma segurança a respeito da extinção de punibilidade o Supremo Tribunal Federal, com representação do Ministro Cézar Peluso, e concede Hábeas Corpus, entendendo que: “Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício”(13). Ocorre que a competência para julgar processos dessa natureza é do Superior Tribunal de Justiça, já que trata-se de legislação infra-constitucional.
Dando curso a essas idéias, parece haver restado firme o entendimento de que o crime de sonegação fiscal agride de forma aguda e impiedosa principalmente a população carente, despojada que é de condições mínimas para uma vida digna. Vendo o que determina a lei 9249/95, na extinção da punibilidade com o mero pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, e sentir que o sonegador não vai ter nenhum procedimento processual contra ele. O que mais revolta que tal figura delituosa, causa prejuízos muito mais desastrosos que os outros crimes, entretanto aquele é punido de maneira tão banal, que se pode entender que o Estado é cúmplice de tais crimes.
IV – Independencias das esferas penal e administrativa
Nesse tópico, mais polemica é encontrada nos entendimentos jurisprudenciais.
Uma primeira situação é encontrada no Código Tributário Nacional, mais precisamente no seu art. 138, onde existe a figura da Denúncia Espontânea, que é o caso do contribuinte depois de cometer um ilícito tributário, arrepende-se e faz uma auto-denúncia acompanhada do pagamento do tributo, antes de qualquer procedimento administrativo-fiscal. Descreve o artigo 138 do CTN, que configurada a denúncia espontânea, excluirá a responsabilidade do contribuinte. Ocorre que tal isenção coloca uma grande indagação, se tal beneficio se entenderia, ou não, para a esfera penal. De modo algum, a resposta seria afirmativa, vez que não pode, a administração pública sair da competência da Fazenda Pública, isto é, do âmbito administrativo. “Devido à independência das instancias administrativa e penal, o que decorre, inclusive, da diversidade da finalidade das sanções respectivas, a norma conformadora do conteúdo do instituto possui limitada ao âmbito civil (…)”(14)
Mas a polêmica se concentra na situação do juízo penal receber uma denúncia por crime de ordem tributária, no mesmo momento que tal matéria esteja em discussão na esfera administrativa.
A principio, devido à autonomia das instâncias, concede liberdade ao juízo penal de receber e sentenciar a denúncia desse crime antes do término da discussão tributária na esfera administrativa.
No sentido ora alvitrado confira-se precioso julgado emanado pelo Superior Tribunal de Justiça, ficando assim demonstrado:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. SONEGAÇÃO FISCAL. ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA. AUTONOMIA. ART. 83 DA LEI Nº 9.430/96.
I – Devido a independência entre as esferas penal e administrativa, consagrada na doutrina e na jurisprudência, a ausência de finalização da apuração administrativa não tem o condão de obstaculizar a instauração de persecutio criminis para apurar a prática, em tese, de crime contra a ordem tributária.
II – Ademais, o art. 83 da Lei nº 9.430/96 não é óbice – quer como condição de procedibilidade, quer como questão prejudicial – para a atuação do Parquet. Precedentes”(15).
Tudo parecia consolidado, quando o Supremo Tribunal Federal vem a divergir novamente do entendimento do Superior Tribunal de justiça:
“HABEAS CORPUS. PENAL. TRIBUTÁRIO. CRIME DE SUPRESSÃO DE TRIBUTO (ART. 1º DA LEI 8.137/1990). NATUREZA JURÍDICA. ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.
1. Na linha do julgamento do HC 81.611 (rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário), os crimes definidos no art. 1º da Lei 8.137/1990 são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo.
2. Se está pendente recurso administrativo que discute o débito tributário perante as autoridades fazendárias, ainda não há crime, porquanto “tributo” é elemento normativo do tipo.
3. Em conseqüência, não há falar-se em início do lapso prescricional, que somente se iniciará com a consumação do delito, nos termos do art. 111, I, do Código Penal”(16)
Isso coloca mais uma vez, incertezas acerca da matéria, vez que os dois Tribunais Superiores do País tornam posições diferentes referente ao mesmo assunto.
No entendimento do STF, só poderá ser considerado crime tributário, nos moldes da Lei 8.137/90, depois do lançamento definitivo, que acontecerá com o exaurimento da discussão na esfera administrativa. Assim entende-se que o tributo é elemento normativo do próprio tipo penal, o que faz com que a ação penal não possa ser instaurada por falta de justa causa. Considerando que em matéria de processo penal, a ação possui certos requisitos para ser instaurada. Trata-se das condições da ação penal, “é por isso que, no processo penal, faz parte do interesse processual a exigência de ter ação penal justa causa, definida como fundamento probatório razoável para sustentar a acusação”(17). Isso se justifica pelo fato de no caso da discussão administrativa chegar a uma decisão em que declara que o tributo sequer existiu, o que involuntariamente surte efeitos na área penal.
Se tal posicionamento for pacificado, trará grandes mudanças no campo do direito constitucional, visto que essa decisão atinge o principio da independência das esferas penal e administrava.
O que parece injusto, sob o prisma dos princípios do contraditório e da ampla defesa, é o fato do contribuinte estar litigando em processo administrativo o débito, podendo ainda assim ser denunciado por crime contra a ordem tributária. Se ocorrer a hipótese do contribuinte ser denunciado e posteriormente condenado na esfera penal, em contrapartida ser considerado, na esfera administrativa-fiscal, que o tributo era inexistente, ficará o ordenamento jurídico com uma função totalmente contraditória.
V – Considerações finais
Dessa forma, chega-se à conclusão que o artigo 34 da Lei 9.249/95, que estabelece a extinção da punibilidade com o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia, tem sofrido diversas formas de interpretação. Pois os Tribunais Superiores estão modificando dia a dia tais definições, que resta ao advogado de defesa, traçar estratégias para defender seu cliente da melhor maneira possível.
Seria incoerente que o mesmo fato seja interpretado de maneira diferente entre duas esferas do Estado. Vez que a Constituição Federal determina que as esferas estatais serão harmônicas entre si, não podendo tomar rumos diferentes.
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