I – O PROCESSO: A SUA ETIMOLOGIA, A DISTINÇÃO COM O PROCEDIMENTO, A RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL, SEU CONCEITO E A SINGULAR PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL.
O termo processo, conforme ensina De Plácido e Silva, deriva do latim processus, de procedere, sendo que, embora tenha derivação equivalente a procedimento, pois, como este, também exprime ação de proceder, de prosseguir, com ele não se confunde[1].
Com efeito, é que, enquanto o processo implica objetivo, vale dizer, um fim a ser alcançado, tendo, por isso, caráter teleológico; o procedimento constitui-se no instrumento para se chegar a tal finalidade[2].
Assim, como conclusão, o processo tem uma finalidade, que é a solução do conflito de interesses mediante a aplicação do direito e não da mera legalidade, “na medida em que, para o alcance da justiça pela sentença […], a legalidade penal não é suficiente à concepção do justo, em Direito”[3]; enquanto que o procedimento é o meio pelo qual esta é alcançada, ou seja, a forma pela qual os atos se vão sucedendo até atingi-la, possuindo, como elementos fundamentais para sua caracterização: “a idéia de que todos os atos contribuem para o efeito substancial derivado do ato final, e a coordenação e vinculação entre os atos que o compõem”[4].
Leciona Fernando Capez que o processo pode ser visto sob duas formas diversas: uma objetiva e outra subjetiva. A primeira seria o procedimento, enquanto que a última a relação jurídica processual[5].
Já vimos o procedimento, por isso é necessário discorrer acerca da denominada relação jurídica processual, a qual, enquanto teoria, foi desenvolvida por Oscar Von Bülow, numa obra acerca das exceções e pressupostos processuais, publicada na Alemanha em 1868.
A teoria de Bülow é a que melhor explica o fenômeno processual, pois é dele a revelação de que, entre as partes e o juiz, havia uma relação jurídica, de direito público, diversa da relação jurídica de direito material discutida, de tal modo que o juiz tem a obrigação de decidir o direito deduzido em juízo, enquanto que as partes devem colaborar e submeter-se aos resultados dessa atividade comum[6].
Sobre o tema, Julio Fabbrini Mirabete corrobora a lição acima, dizendo que “[…] o processo é uma relação jurídica autônoma, diversa do direito material discutido, de caráter público, entre o Estado-Juiz e as partes”[7], sendo, na lição de José Frederico Marques, “uma das formas de se resolverem conflitos de interesses”[8].
Passando para a conceituação de processo, Francesco Carnelutti asseverou o seguinte:
Denominamos processo […] a um conjunto de atos destinados à formação ou atuação de imperativos jurídicos, cuja característica consiste na colaboração, para este fim, das pessoas interessadas […] com uma ou mais pessoas desinteressadas[9].
Os sujeitos tidos como interessados seriam aqueles que se encontram em conflito e a pessoa desinteressada seria o órgão estatal encarregado de aplicar a ordem jurídica, ou seja, o órgão judiciário a que o Estado investe do poder jurisdicional[10].
Aliás, sobre o assunto, merece ser apontado o posicionamento do Ministério Público no processo penal, que tem contornos peculiares, magistralmente captados por Piero Calamandrei, cuja transcrição segue abaixo:
Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o do Ministério Público. Este, como sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, deveria ser tão imparcial como o juiz. Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento, a perder, por amor da sinceridade, a generosa combatividade do defensor ou, por amor da polêmica, a objetividade sem paixão do magistrado[11].
O Ministério Público figura, no processo penal, paradoxalmente, como sujeito interessado e desinteressado concomitantemente. É interessado, de um lado, porque dá início, em regra, à persecutio criminis em juízo, fazendo-o pela opinitio delicti e, por isso, não se pode deixar de reconhecer que está em conflito com o acusado, já que tem a pretensão de que este se submeta ao comando legal e pague por algo de errado que supostamente tenha realizado, vale dizer, prática de um delito, pois, como disse Sergio Demoro Hamilton: “o processo penal, como, de resto, qualquer processo, não se revela instrumento para debates acadêmicos[…]. Ninguém vai a juízo por nada[…]”[12]
Mas, por outro lado, por ser, também, encarregado de zelar pelo cumprimento da ordem jurídica deve ter postura desinteressada, de tal modo que não queira a qualquer custo a condenação do acusado.
Manter-se, portanto, eqüidistante entre o acusado e o ordenamento jurídico a que tem a missão de zelar, inclusive reconhecendo que aquele é presumivelmente inocente (art. 5º, inciso LVII, da CF[13]), é o grande dilema do Promotor de Justiça e a cada dia de sua jornada de trabalho deve ter isso presente.
É evidente que o agente ministerial, exemplificativamente, não deve se sentir acanhado em batalhar – e o termo é bem este mesmo – para retirar o jus libertatis do acusado, antes de sua condenação definitiva, em nome do interesse público, pois, como afirmou Cesare Beccaria “homem algum entregou gratuitamente parte da própria liberdade, visando ao bem público, quimera esta que só existe nos romances. Se isso fosse possível, cada um de nós desejaria que os pactos que ligam os outros não nos ligassem”[14].
Contudo, a atuação do Parquet em tal direção, ou seja, de se buscar a privação de liberdade do indivíduo acusado de um delito antes que possua uma condenação transitada em julgado, deve ocorrer apenas e tão-somente quando isso seja absolutamente necessário, sob pena de confundir sua elevada missão na seara penal com a de um mero inquisidor.
De outro vértice, não se pode olvidar que a postura ministerial pode ser absolutamente diversa, ou seja, lutar em prol do acusado, tudo fazendo para defendê-lo. Nesse sentido, vale a pena a lição de Rogério Lauria Tucci, que ensina, com razão, que é imposto ao Ministério Público “[…] sem nenhum constrangimento, e em conformidade com a situação processual, a atuação em favor do acusado, quer pleiteando a sua absolvição, quer recorrendo de sentença ou acórdão condenatório”[15].
II – O PROCESSO PENAL: SUA RAZÃO DE EXISTIR E A RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS.
A existência do processo penal representa, antes de tudo, a garantia do indivíduo contra eventual arbítrio ou desmando do Estado, pois este enquanto detentor do jus puniendi e considerado lato sensu (órgãos judiciários que exercem a função jurisdicional do Estado, bem como seus auxiliares e, ainda, o Ministério Público), não o pode fazê-lo por si próprio, vale dizer, auto-executá-lo, sem a participação de outros atores, como as testemunhas, cuja colaboração com a justiça nem sempre é lembrada e, em especial, contando com a atuação dos advogados, já que estes são indispensáveis à administração da justiça (art. 133, da CF[16]).
Ademais disso, o Estado não pode concretizar a punição mediante o uso direto da força, pois deve submeter-se ao império da lei, de modo que todas as pessoas que participam das investigações e dos atos processuais estejam “devidamente legitimadas para realizar as atividades que se concretizem no procedimento, e devem ter reguladas as relações que entre si mantêm, com a determinação dos direitos, deveres, ônus e obrigações que daí derivam”[17].
Desta forma, o conflito de interesses que ocorre com a prática de um fato, tido como delituoso, gera a lide penal e esta não pode ser resolvida com a prevalência imediata dos interesses estatais e conseqüente submissão do indigitado autor do delito às sanções previstas na lei penal[18], já que existem direitos e garantias constitucionais que não podem ser olvidados.
Discorrendo acerca do tema, Fernando da Costa Tourinho Filho corrobora o entendimento esposado dizendo que:
Reconheceu, pois, o Estado que o processo, mesmo para as relações jurídico-penais, é fator indispensável, porquanto visa a proteger os cidadãos contra os abusos do Poder Público, “porque insensiblemente el uso ilimitado del poder se presta a abusos”. E é porque todo o manejo do poder envolver a possibilidade de abusos que o próprio Estado reconheceu a necessidade de que a pena se aplique mediante um processo[19].
De igual teor é o ponto de vista de Rômulo de Andrade Moreira, para quem:
O Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado[20].
Mas não se pode aceitar que, por exemplo, no contraditório e ampla defesa, princípios constitucionais basilares que devem ser reconhecidos ao acusado, se perca tempo em demasia, com violação ao princípio da celeridade processual e razoável duração do processo insculpido no art. 5º, inciso LXXVIII, da CF[21], pois tal preceito é de via de mão dupla, ou seja, vale tanto para o Estado como à pessoa a quem se imputa algum delito, embora só o seja defendido em relação a este último, como se o interesse público não fosse relevante ou pudesse ser sacrificado.
Sobre o tema, é válida a seguinte advertência:
Conhecidas as provas e calculada a certeza do crime, necessário é conceder ao réu tempo e meios convenientes para justificar-se, mas tempo bastante breve, que não prejudique a rapidez da pena, que […] é um dos principais freios dos delitos” (Grifo nosso)[22].
Portanto, se por um vértice é inegável que existem direitos e garantias fundamentais para o acusado, por outro não se pode transformá-los em barreiras intransponíveis para a imposição de uma sanção em determinados delitos, sobretudo aqueles mais nocivos à sociedade, notadamente aqueles da criminalidade organizada.
Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito[23].
Assim, deve haver, sempre, quando da apreciação do caso in concreto, a proporcionalidade, inclusive, exemplificando, para negar, se necessário for, ante a evidente procrastinação que se antevê ou mesmo a falta de demonstração do que se pretende ou, ainda, a correlação com a situação trazida nos autos e um pedido feito pela defesa, sem se falar em cerceamento de defesa, reconhecendo, isto sim, um abuso com tal conduta, ao invés do prêmio da nulidade e conseqüente impunidade, como muitas vezes se tem adotado em nossos tribunais, com sérias conseqüências para a credibilidade do aparato judicial.
Aliás, diversamente de José Carlos Barbosa Moreira que vislumbra “a exacerbação da tendência a dar ênfase unilateral aos interesses do Estado e a minimizar a posição do réu”[24], nota-se, em verdade, bem o oposto disso, pois os direitos e as garantias constitucionais têm assumido contornos intransponíveis, verdadeiros dogmas, em que qualquer questionamento a eles, tem sido interpretado como uma visão míope, retrógrada e conservadora.
Para se ter uma idéia disso, basta lembrar que considerável parte da doutrina não admite qualquer violação aos direitos individuais, justificando tal entendimento sob o argumento de que, se assim não fosse, só existiriam direitos fundamentais protegidos em delitos de menor gravidade, havendo uma intolerável discricionariedade, dando azo ao arbítrio policial, violando, sobretudo, o princípio da inocência[25].
Inclusive, ainda sobre o assunto, num exemplo de extremismo, há aqueles que vêm na decretação da prisão preventiva juízos próprios de mentalidade doentia e insensível, precipitada e sem razão[26].
Marcellus Polastri Lima salienta, porém, que “segundo a teoria da proporcionalidade, que, em eventual conflito (mesmo aparente) entre garantias individuais, impõe-se a prevalência do interesse maior a ser protegido, no caso concreto”.
E conclui:
Se, de um lado, devem ser preservados direitos e garantias individuais, outras garantias e princípios constitucionais também devem ser protegidos; daí pensarmos que, sem dúvida, deve ser utilizado o princípio da proporcionalidade, não só por reo, mas excepcionalmente, como ocorre em outros países, mormente quando concorrerem garantias e princípios constitucionais, poderá ser utilizado pro societate[27].
Chama a atenção que, na colisão de princípios, embora um deva prevalecer, o outro não desaparecerá, pois, na lição de Walter Claudius Rothenburg, diferentemente das regras, que, normalmente, incidem segundo o ‘tudo ou nada’, os princípios podem ser cumpridos em distintos graus ou aplicados ‘pouco a pouco’[28].
O certo, porém, é que, infelizmente, os direitos e garantias fundamentais, tão solenemente enunciados na maior parte do mundo, não são acessíveis a todos, mas sim a alguns, sendo, com freqüência, desrespeitados. Daí a “contradição entre a literatura que faz a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos ‘sem direitos’”, de que fala Norberto Bobbio[29].
Tal situação justifica, com certeza, a necessidade de que os direitos e garantias fundamentais sejam enaltecidos e defendidos, contudo, não faz com que sejam tidos como absolutos, inclusive Alexandre de Moraes posiciona-se nesse sentido, dizendo que eles não são ilimitados[30].
Desta forma, somente diante do caso concreto, com observância da proporcionalidade, é que, dentro de um processo, se terá a solução mais conveniente, que tanto pode ser pro reo como pro societate, sem prévia prevalência do primeiro sobre o último interesse em disputa.
Promotor de Justiça no Estado do Paraná
Especialista em Direito Administrativo – UNIVEL
Mestrando em Direito Constitucional – ITE – Bauru
Professor da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos
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