A duplicata é um título de crédito causal [1], tendo em vista a obrigatoriedade do seu lastro no contrato de compra e venda ou de prestação de serviços. Cabe advertir que ela tem sua emissão de acordo com a faculdade do credor. Assim, não configura obrigatória a sua extração. Pode-se dizer, de maneira precisa e segura, que, no momento em que o credor não emite a duplicata, mas sim o boleto bancário [2], esse decide de forma bem objetiva que em vez de remeter a duplicata, que é um título de crédito, estará enviando na verdade uma ficha de compensação de crédito bancária – o boleto bancário – ao seu devedor.
Há também situações em que o credor remete à instituição bancária, por meio da internet, on line, ou no final de cada expediente, as informações de suas notas fiscais, para que o banco cuide de providenciar a impressão do boleto bancário e sua remessa aos devedores (em alguns casos o banco também é responsável pela cobrança). Assim sendo, os sacados teriam a facilidade de pagar em qualquer banco no território nacional.
O que se percebe, nesse caso, é a formação do boleto bancário e sua remessa, e não de uma verdadeira duplicata. O credor e a instituição bancária possuem registros informatizados dos boletos bancários enviados, ou seja, o registro de seus futuros créditos ou não, como componente de controle de seus recebimentos. Entretanto, para parte da doutrina [3], essa escrituração cibernética do boleto bancário é o registro informatizado das supostas duplicatas virtuais, o que parece não ter bases firmes [4].
A Lei nº 5.474/68 dispõe sobre a obrigatoriedade do livro de registro das duplicatas [5], quando realmente emitidas, podendo ser de forma escrita e mesmo por arquivos magnéticos. Acontece que há apenas a escrituração do boleto bancário. Como haveria, portanto, possibilidade de registro de uma duplicata, se ela nem sequer foi criada e emitida?
Havendo o pagamento do boleto bancário pelo devedor, finda-se a dívida constituída através do recebimento das mercadorias, ou da prestação de serviço, discriminadas na nota fiscal acusada pelo comprador, no canhoto fiscal ou no conhecimento de transporte.
O não-pagamento da obrigação desencadeia dificuldades jurídicas de recebimento dos créditos, mormente, quando não é emitida a duplicata e ela conseqüentemente não é enviada para aceite ao devedor.
É admitido legalmente que, onde não houver a duplicata em posse do sacador, em virtude de retenção desmotivada por parte do sacado, (apenas o comprovante de entrega das mercadorias, ou comprovação de efetiva prestação de serviço, sem a recusa do aceite nos termos legais e mais o instrumento de protesto), pode-se proceder à execução da Duplicata não-aceita. Isso se faz basicamente pelo seu protesto, através das indicações em face de a duplicata estar retida, situação totalmente respaldada na lei [6].
Circunstância adversa ocorre quando não se verifica a existência cartular da duplicata, em razão da emissão apenas do boleto bancário em detrimento da duplicata [7]. E é por via dessa instrumentalização no processo que o credor pode fazer uso do benefício da ação de execução. A lei processual exige o protesto da duplicata não-aceita para constituição válida do título executivo, além dos comprovantes já citados para satisfazer a correta exigência legal quanto ao modus operandi desse rito executório [8].
A possibilidade da execução nesse caso, ditada pela lei processual, é cabível, porquanto o mau devedor retenha a duplicata ou recuse dar o aceite (salvo nos casos previstos pela lei), para criar certas dificuldades ao credor. Isso basta à efetivação do protesto cambial. Antes do vencimento, justifica-se pela falta de devolução ou aceite. Após o vencimento, o correto seria por indicação, podendo ser feito no próprio cartório pelo possuidor do título de crédito ou por meio magnético, através do próprio credor, ou pelo seu representante [9], desde que comprovada a remessa da duplicata. Isso porque não se pode constituir um crédito apenas por declarações unilaterais do apresentante.
Entretanto, nas práticas empresariais, tem-se notado somente a emissão do boleto bancário, em vez de sua conjunção com a duplicata. Diante de uma inverdade [10], ou seja, alegando que foi remetida a duplicata para aceite e essa não retornou, credores inescrupulosos têm utilizado o instituto do protesto a partir das simples indicações para que assim obtenham a certidão de protesto. O tabelião deveria exigir antes da lavratura [11] o comprovante de remessa da duplicata para aceite, o que na prática costuma não ocorrer, o que acaba por favorecer a ação ilícita.
Assim, constata-se a criação de um instrumento de protesto eivado de ilegalidade. Verifica-se que o credor remeteu sim o boleto bancário, contudo, na execução, esse possui a certidão de protesto, ainda que constituída de forma ilícita. Tem-se, dessa maneira, um procedimento de protesto e um processo executório, em que a duplicata não existe. Daí resulta a supressão cartular, ou melhor, a inexistência da duplicata caracteriza-se por ser uma duplicata virtual.
Como já destacado, isso não resulta de licitude, pois a Lei de duplicatas somente privilegia a não-cartularidade [12] nas ocorrências da efetiva remessa do título para aceite. O chamado fenômeno da desmaterialização ou duplicata virtual, na verdade nada mais é do que a opção facultativa do credor de não mais se valer do título de crédito: a duplicata, e sim fazer uso de uma alternativa mais rápida e barata de um papel atípico, o dito boleto bancário.
A partir do momento em que o credor passa a preterir a duplicata e escolhe o boleto bancário em seu lugar, espera-se haver boa-fé por parte do devedor, haja vista que, como já foi exposto, o boleto bancário é apenas uma ficha de compensação de crédito e não um título de crédito típico. Entende-se que seria mais plausível a remessa da duplicata para aceite do devedor, juntamente com o boleto bancário. Desse modo, estaria o empresário vendedor, ou o prestador de serviços, percorrendo o caminho legal para se garantir, numa eventual inadimplência do devedor, que poderia ser combatida pelo rito executório. Ademais, poderia ter a duplicata aceita e devolvida, ou indicá-la para protesto no caso de sua retenção pelo devedor.
O grande entrave do boleto bancário é a perspectiva que o credor há de ter na boa-fé de seu devedor, já que, não ocorrendo o pagamento no vencimento do boleto, referente à nota fiscal de venda ou prestação de serviço, esse deverá percorrer as vias ordinárias, em vez da execução direta, tendo em vista que não foi remetida a duplicata para aceite, ou melhor, não houve nem sequer a sua emissão.
O controle dos créditos a partir dos meros boletos bancários, através dos mecanismos da informática, e a possibilidade de protesto via simples indicação de tais papéis, ou por meios magnéticos, ainda que de forma a agredir a prescrição legal, não se configura numa duplicata virtual, porquanto a lei não abraçou tal hipótese.
Quanto às novas disposições trazidas pelo Código Civil (§ 3º do art. 889), em relação à possibilidade da emissão de títulos de crédito a partir de caracteres criados em computador ou em meio técnico equivalente, são esclarecedoras as ponderações do Professor Wille Duarte Costa [13]:
“[…] o § 3º introduz uma grande bobagem pois, mandando observar os requisitos mínimos previstos no artigo, admite que possa ser o título emitido a partir de caracteres criados por computador. Ora, entre os requisitos mínimos estabelecidos neste artigo está a assinatura do emitente. O que se entende então, é que o teor do título pode ser digitado em um computador ou meio técnico equivalente. Neste caso, pode ser criado em máquina de escrever, em impressora gráfica, computador e até de forma manuscrita.
A emissão é ato de criar o título e entregá-lo a terceiros, já com a assinatura. Então, não podemos admitir que o título de crédito possa ser criado e enviado a terceiro pelo computador. Para tanto, precisaria estar regulamentada a assinatura criptografada, o que não está. Seria preciso também regular a chave privada e a chave pública, coisa que, certamente, quem redigiu o artigo desconhece completamente.”
Parece haver um entendimento majoritário na doutrina de que as disposições do Novo Código Civil não atingem as Leis especiais. Dessa forma, acredita-se que não se justifica a necessidade de maiores delongas quanto ao assunto. Ainda que o legislador se mostrasse inclinado à recepção dos ditos títulos de crédito eletrônicos, no ordenamento civil, perdeu-se a oportunidade de regulamentar pontos importantes para que, no futuro próximo, a atividade empresarial tenha tais títulos como opção.
Professor e Coordenador do curso de Direito do Centro Universitário de Formiga-MG. Mestre em D. Empresarial pela UIT e Doutorando em D. Privado pela PUC-MG. Advogado
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