Resumo: O presente artigo científico aborda a aparente colisão de dois direitos elencados na Constituição Federal, a liberdade religiosa, inserida no art.5º, inciso VI, e o direito ao meio ambiente presente no art. 225, inciso VII, onde se incluem os animais. Tem por finalidade demonstrar que a liberdade religiosa está inserida na primeira dimensão dos direitos fundamentais, sendo um direito secular, reconhecido e escrito. Além disso, observa-se que o Estado por ser laico, fica impedido de se pronunciar a respeito de qualquer religião, o que dificulta qualquer regulamentação do candomblé. Ainda, procura ressaltar a importância e o significado que o sacrifício animal tem nas cerimonias Candomblecistas e, ainda, a visão do Sacrifício para um Babalorixá. Por outro lado, mesmo os animais sendo minimamente amparados pelo Estado, ao proibir práticas cruéis, a posição legal é cheia de lacunas, o que resulta na insegurança quanto à limitação das práticas humanas na utilização de animais. A metodologia empregada para a presente pesquisa é o método hipotético-dedutivo. Na problematização é utilizada a pesquisa qualitativa. Como resultado, obteve-se no caso de sacrifício animal a prevalência do direito à liberdade religiosa frente ao direito ambiental.
Palavras-chave: Liberdade religiosa. Animais. Sacrifício.Candomblé.Constitucional.
Abstract: The present paper discusses the apparent collision of two rights listed in the Constitution, religious freedom, inserted in article 5, item VI, and the right to the environment present in the article 225, paragraph VII, which includes animals. Aims to demonstrate that freedom of religion is embedded in the first dimension of fundamental rights, being a secular law, recognized and written. In addition, it is noted that the State for being secular, blocked to comment about any religion, which makes any regulation of candomblé. Still, seeks to highlight the importance and the meaning that the animal sacrifice has in Candomblecistas ceremonies and, yet, the vision of sacrifice for a babalorixá. On the other hand, even the animals being minimally supported by the State, by prohibiting cruel practices, the legal position is full of gaps, resulting in uncertainty as to the limitation of human practices in the use of animals. The methodology used for this survey is the hypothetical-deductive method. In questioning is used to qualitative research. As a result, in the case of animal sacrifice the prevalence of the right to religious freedom in the face of the environmental law.
Keywords: Religious freedom. Animals. Sacrifice. Candomblé. Constitutional.
Sumário: 1 A Liberdade Religiosa inserida na primeira Dimensão dos Direitos Fundamentais. 1.1 A Liberdade Religiosa no Brasil. 1.2 O conceito de Liberdade Religiosa. 2 O Candomblé e a prática ritual de sacrifício de animais: o Zandró (tradição jeje). 2.1 O ponto de vista de um Babalorixá sobre o sacrifício animal. 3 O direito ambiental: uma preocupação recente; e a proibição constitucional e legal à prática de maus-tratos aos animais. 4 A (in) constitucionalidade do sacrifício de animais nos rituais do candomblé. 5 O princípio da Ponderação.
Introdução
O presente trabalho abordará a importância e a aparente colisão de duas normas constitucionais, o direito à liberdade religiosa, art. 5º, VI, da Constituição Federal e o direito ambiental, art. 225, VII, também presente na Constituição de 1988, no que se refere ao sacrifício de animais.
Tem-se como problematização o fato de o animal não ser considerado sujeito de direito, sendo, portanto, destituído de quaisquer direitos. O amparo dado por alguns dispositivos legais lhes garantem um mínimo existencial, pois ao ser humano é dado um dever moral indireto, que é a garantia do equilíbrio da fauna.
Por outro lado, a liberdade religiosa mostra-se como um direito fundamental historicamente reconhecido, tendo como uma de suas expressões basilares, no caso da religião do Candomblé, o sacrifício animal.
O que se indaga é: Os religiosos teriam o direito de sacrificar a vida de animais de forma ritual, como manifestação exterior de suas crenças? A liberdade de culto, no que concerne ao sacrifício de animais, pode ser restringida pelo direito ambiental, em nome da proteção dos animais?
Assim, evidencia-se uma verdadeira colisão entre a liberdade religiosa e a proteção dos animais contra a crueldade, sendo importante recorrer ao Princípio da Ponderação para se obter uma satisfatória decisão.
O tipo de pesquisa utilizada é a explicativa, porque tem como objetivo primordial identificar quais fatores contribuem para a aparente desarmonia entre estes dois direitos.
Quanto aos meios de pesquisa foi a bibliográfica. Os dados para elaboração desse artigo foram coletados com base em pesquisas, livros de diversos autores, materiais obtidos em revistas, jornais e internet.
1. A liberdade religiosa inserida na primeira dimensão dos Direitos Fundamentais
No que tange ao aspecto mundial, por volta do século XVIII, conforme assevera Fernandez Segado (2003. p.73), com o pensamento individualista e jusnaturalista-iluminista, os direitos de liberdade dos indivíduos passaram a ter prioridade, sendo tomados como ponto de referência para direitos delimitadores das funções do estado.
O pensador francês Voltaire, um dos principais ícones do iluminismo, trouxe a máxima que identifica a liberdade de expressão como principal característica deste período: “posso não concordar com nenhuma das palavras que dizeis, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-las”.
Foi neste ânimo que o Estado liberal deu início à chamada “Primeira Dimensão” dos Direitos Fundamentais, implantado pelos comerciantes burgueses, que se encontravam em ascensão.
A tríade famosa: liberdade, igualdade e fraternidade, foi um dos principais traços deste movimento, sendo que, liberdade significava a não interferência da autoridade na esfera dos interesses privados, incluindo a liberdade de crença e de culto (liberdade de religião); a igualdade condizia com a supressão das desigualdades entre indivíduos e grupos sociais; e fraternidade seria o resultado necessário da abolição de todos os privilégios.
1.1 A liberdade religiosa no Brasil
Durante o período de descobrimento até o império (1824), o Brasil estava sob a normatização das denominadas ordenações do reino.
Em 1824, o imperador Dom Pedro I ao elaborar a primeira Constituição, optou por manter a ligação entre Estado e religião, sendo a religião católica a oficial.
Por volta de 1888 a liberdade de religião deu-se com a permissão de culto de religião contrária da eleita pelo Estado, desde que realizada em casa, pois ainda havia traços muito fortes que fazia do Brasil um país nitidamente católico.
Conforme o autor Clever Vasconcelos (2013, p.85), a liberdade religiosa ganhou campo por meio do decreto 119-a, de 7/1/1890. Assim, foi na Constituição de 1891 que houve a independência total entre o estado e a igreja, originando, assim, o estado laico.
A vigente Constituição de 1988, sendo conhecida como a Constituição cidadã, optou claramente pelo Estado Laico, conforme se assevera no art.19 da CF, inciso I. Tendo como panorama constitucional internacional o fortalecimento dos direitos fundamentais, tanto no aspecto individual como coletivo.
1.2 O conceito de liberdade religiosa
A liberdade religiosa engloba a liberdade de crença e a liberdade de culto.
A liberdade de crença, conforme Vasconcelos (2013, p.93) revela o direito à livre escolha de certa religião, ou, ainda, a liberdade de mudar de religião ou de não aderir a nenhuma, como também a liberdade de descrença, o ateísmo.
Cozzolino afirma que:
“No que concerne à liberdade de culto (liberdade de atividade cultural), condutas individuais ou grupais, tais como orações, certas formas de meditação, jejum, leitura, e estudo de livros sagrados, serviços religiosos nos templos, famílias, pregações, procissões, sacrifícios rituais de animais. Pode-se tomar liturgia, como culto público e oficial instituído por uma igreja, ritual institucionalizado, o que torna a inclusão do termo quase redundante. Para muitos autores, trata-se o culto de elemento primordial da liberdade religiosa, inclusive porque seu caráter de externalização tende a facilitar a identificação do fenômeno religioso.” (COZZOLINO, 2010, p.81).
Da liberdade de culto desdobra-se a inviolabilidade dos templos, lugares de culto, de reuniões e procissões religiosas.
2. O Candomblé e a prática ritual de sacrifício de animais: o Zandró (tradição jeje)
O Candomblé, no que tange à sua formação, traz características culturais das mais diversas regiões da África, e quando trazidos ao Brasil foram distribuídos, em vários estados, sem nenhum critério familiar ou de raízes concernentes às regiões em que foram encontrados no seu país de origem.
A religião nasceu como uma instituição religiosa “periférica” e socialmente marginal, como resposta da escravidão a diversos fatores, dentre eles, a divergência de interesses entre os senhores e os negros.
No presente artigo será feita referência específica à tradição jeje em detrimento das nagôs e congo-angolas que também se faziam presentes no Brasil, no início do século XVIII, mas que não serão citadas devido às peculiaridades que cada uma possui não cabendo ao artigo estender este tema.
O denominado Zandró é o ritual que chama os voduns, realizado com rezas, cantos e toques percussivos, cujo objetivo é anunciar aos voduns que as oferendas animais serão realizadas no dia seguinte.
O ritual requer que sejam cumpridas algumas obrigações, sendo elas: o jogo do obi, a comida dos atabaques e os cantos e danças de Zandró, conforme Parés relata:
“Ao som do ritmo avania, as vodúnsis entram na sala em fila, trazendo vários objetos. A primeira mulher leva numa mão um prato com uma noz-de-cola (obi ou orobô), pimenta malagueta (atakun), algumas moedas (akwe) e uma vela, e na outra uma quartinha com água lustral (essin ou abô); as outras trazem quatro pequenas garrafas com azeite de dendê (omi ou epô), mel (oi), vinho e cachaça (ahém), um prato fundo (aban) com farinha branca misturada com água e seis pratos com feijão preto, feijão fradinho ou mulatinho (aikum), farofa, milho torrado ou pipoca (dobu ou doburu), farinha branca (de nyame ou milho) (ifun) e milho branco cozido (ebô). Depois de depositar todos os alimentos no chão, as vodúnsis permanecem ajoelhadas em linha diante dos atabaques.” (PARÉS,2007, p. 341)
Feito isto, alguém da casa anuncia em português o motivo do Zandró, assim o ogã impe ou oficiante do ritual acende uma vela antes de iniciar o jogo do obi
O jogo do obi consiste em uma consulta oracular onde os voduns da casa e suas saudações rituais são enumerados, quando então as duas metades do fruto caem voltadas pra cima, indica uma resposta positiva da divindade dando-se então, prosseguimento à cerimônia.
Após isto, é dada a comida aos atabaques, que nada mais é que a obrigação de dar comida aos instrumentos musicais, já que para o Candomblé os instrumentos musicais são dotados de personalidade e precisam de comida periodicamente para renovar a sua força.
Por último, segue uma dança de roda coletiva, logo após deverá iniciar-se uma série de danças individuais, onde cada vodúnsi toma um pouco de rum, como bem narra Parés:
“Esses cantos de zandró são iniciados com uma série dedicada a Tobosi e outras, entre elas, especialmente, cantos para a família de Hevioso, como Sogbo, Badé, Akolombé, Kpo e Averekete. Essa parte do zandró é concluída com uma dança de roda e o canto ‘ago, ago, agonilé o’, pedindo licença ao dono da nação Hevioso para entrar na parte de nagô-vodum.” (PARÉS, 2007, p. 342)
No que se refere ao sacríficio animal e sua essencialidade para que o ritual seja completo, destaca Parés:
“O sacrifício animal, na sua dimensão simbólica de transferência e regeneração do axé das divindades (e por extensão da congregação religiosa), é o ato mais importante do “complexo assento-ebó” e, provavelmente, da religião como um todo. A obrigação da “matança” que sucede o ritual zandró é privada e restrita aos membros iniciados no grupo.”(PARÉS, 2007, p. 343)
Dependendo da nação é oferecido o sacrifício a todas as divindades, cada uma recebendo um sacrifício. No rito jeje somente as divindades centrais é que a recebem, dentre eles, Azonsu, Sogbo e Bessen, estes recebem oferendas de animais de quatro patas, comumente bodes e cabras, sendo o carneiro um animal proibido na nação jeje.
2.1. O ponto de vista de um Babalorixá sobre o sacrifício animal
Em entrevista realizada por Robert, o Babalorixá Fernandes Portual afirma qual é o significado do sacrifício de animais para o Candomblé:
“Veja bem, quando falamos em sacrifício algumas pessoas consideram que só existe como remédio nos cultos afro brasileiros o sacrifício animal, mas temos vários tipos, que, por ordem de Orumila, por ordem de Ifá, são realizados ocasionalmente para resolução de problemas. Hoje só se faz sacrifício de animais ditos “domésticos”, faço essa ressalva porque antigamente se fazia sacrifício de animais dito silvestres. Por exemplo, o Veado, o “Adjapa” (tartaruga), o tatu já foram utilizados, como o lagarto e outros animais. Sacrificamos o cabrito, a cabra, a codorna, a galinha da angola, o galo, a galinha, a franga, o pato, a pata, paturi, enfim, esses são os principais. São os Orixás que definem quais animais vão ser sacrificados. Existe um sistema, uma lógica, não é aleatório.
Na verdade usamos o fluido, o eterico do sangue, que é o maior selo que temos, e a maior virtude que possa existir em um animal novo para se fazer uma transposição alquímica. Como isso ocorre: se formos realizar um ebó, em geral passamos a ave pelo corpo da pessoa, e “as penas vão absorver a própria pessoa”, o DNA daquela pessoa, pois quando se esfrega vigorosamente aquelas penas no corpo da pessoa, nos estamos levando fragmentos de pelos do corpo, humores (substancias excretados pelo corpo), tecido epitelial, suor, etc. Esse conjunto de situações que foi colhido no corpo da pessoa é uma espécie de testemunho, e esse testemunho é que nos vamos precisar para mostrar um caminho, para modificar uma situação. Então, quando fazemos esse sacrifício animal e olhamos o tempo todo para aquele sangue correndo em cima da pedra, ou de outra substância, estamos substituindo aquela vitima, em relação aquilo que precise. O animal absorve aquela energia. [é como se saísse da pessoa e passasse pelo animal]. Esse é o aspecto principal, na verdade você esta também com isso estimulando, ativando forcas atemporais. O Orixá não é só força da natureza, é força da humanidade como um todo, planetária, forca das próprias pessoas, uma vez que a pessoa tem elementos do próprio Orixá.
Na verdade você faz uma troca, uma transfusão, de energias para aquela situação, por isso que e feito o sacrifício animal, que deve ser feito com a total ética, não se deve fazer qualquer tipo de sacrifício animal de qualquer jeito, a qualquer momento, por exemplo, eu não realizo qualquer sacrifício quando a pessoa não é afeta aquela situação, seria uma forma de agredir a pessoa, não fazemos sacrifício quando a pessoa não gosta.” (ROBERT, 2008, p. 8).
3. O Direito Ambiental: uma preocupação recente; e a proibição constitucional e legal à prática de maus-tratos aos animais.
Afirma-se que o direito ambiental é um direito atual, que teve de passar por diversas fases as quais hoje alcança seu auge ao estar disposto na constituição federal da república, uma vez que antigamente só havia disposições esparsas.
Pedro Lenza (2002, p.114) menciona quatro fases, sendo a primeira fase entre o período do descobrimento do Brasil até a segunda metade do século XX. Neste período, o direito ambiental era visto como um instrumento de subserviência do ser humano, onde não tinha importância alguma, senão meramente econômica.
A segunda fase é marcada pela preocupação com a saúde e bem-estar humanos, o antropocentrismo vigia esta fase, não havendo ainda consciência de que a natureza merecia atenção.
A terceira fase inicia-se em torno de 1980, marcando uma virada no Direito Ambiental, em que agora a preocupação central é com o meio ambiente. A Lei 6.938 (Política Nacional do Meio Ambiente) é o primeiro documento legal que trata o Direito Ambiental como um direito autônomo, único, indivisível e imaterial, havendo nítida intenção de proteger todas as formas de vida. Foram adotadas também princípios, diretrizes, conceitos gerais, de forma a dar maior efetividade e reconhecimento ao Direito Ambiental.
Por último, a quarta fase, onde o Direito ao meio ambiente tem positivação na Constituição da República do Brasil de 1988. Com isso faço referência ao artigo 225, que adveio desta última fase e assim dispõe:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações
VII–proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
O dispositivo constitucional afirma ser o meio ambiente ecologicamente equilibrado bem de uso comum do povo, isto é, a fauna é considerada bem de uso de toda sociedade, tratando-se de direito difuso, inerente a todo ser humano.
No que se refere ao não tratamento cruel com os animais, é explicita uma preocupação legal com o bem-estar animal e uma negativa de que seriam meramente objetos, pois lhes são assegurados garantias, de modo a superar o pensamento antropocêntrico kantiano.
Conforme Sarlet (2007, p.84) “o termo bem-estar animal não se refere a tratar os animais como se humanos fosse, mas sim, pelo respeito à sua condição animal e identidade natural”.
Assim, se a Constituição não reconhece direitos aos animais, ao menos impõe ao Estado e à população o dever de não praticar atos cruéis que atentem contra a vida animal. Além disso, o fato de proteger a função ecológica da fauna e da flora e as espécies em extinção está legitimando a dignidade da vida como um valor supremo.
Além disso, a Lei nº 9605 de 1998 que define os Crimes Ambientais, juntamente com algumas leis esparsas, demonstra o interesse crescente pelos direitos dos animais, a qual tem como principal dispositivo o art. 32:
“Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”
Este dispositivo é a prova de que não há somente interesse humano na conservação do meio ambiente, pois o que é tutelado é o direito propriamente animal, sendo-lhe conferido reconhecimento de uma dignidade própria.
Conforme Sarlet (2007, p.85), o dispositivo ao mesmo tempo em que criminaliza a conduta humana que atenta contra a vida e o bem-estar animal e caracteriza a reprovação social de tal prática, reconhece, em certa medida, um valor inerente à vida animal, tutelando-a de forma autônoma e independentemente da sua utilidade ao ser humano.
4. A (In) Constitucionalidade do sacrifício de animais nos rituais do Candomblé
Há que se analisar se este ritual encontra-se ou não em conflito com o art. 225, VII, da CF e verificar qual a melhor forma de interpretar este aparente conflito de normas constitucionais de maneira a otimizá-las, evitando-se assim que uma anule a outra.
Rituais como sacrifício e oferendas não são exclusivos de religiões africanas, pelo contrário, historicamente e até os dias atuais existem religiões adeptas do sacrifício de animais. Os muçulmanos, por exemplo, quando findo o período chamado Ramadã, período conhecido pelo jejum, também praticam o sacrifício de animais, neste caso, degolam um cordeiro.
Conforme Leite afirma, o sacrifício é um fenômeno religioso, típico da religiosidade. Contudo, a liberdade religiosa pode abranger diversas visões sobre a vida, sobre o mundo, não cabendo ao Estado dizer se é correto ou não, porém não é justificável agir de modo contrário aos preceitos constitucionais pelo simples fato de se inserir na ampla proteção que é dada à liberdade religiosa.
A constituição ao vedar as práticas que coloquem em extinção as espécies, em nada se relaciona com o sacrifício no candomblé, uma vez que, a grosso modo os animais que são utilizados como oferendas são, galinhas, galos patos, porcos, carneiros, pombas; animais estes que não se encontram em extinção e são até mesmo utilizados para o consumo humano.
Com isso, os costumes e tradições humanas também inferem para, de algum modo, o sacrifício de animal em prol de suas necessidades vitais, mesmo que o fim dado ao animal se justifique de maneira diversa, o que se sabe é que além de ser utilizado como oferenda ao seu respectivo Orixá, ao animal é dada a mesma destinação ao fim da cerimônia, ou os próprios fieis o consomem, ou quando a carne é dita não saudável para que dela consumam, justificativas puramente religiosas, a carne é doada à entidades carentes.
A dignidade animal é objeto de discussão para que se possa chegar a conclusão sensata no que tange a in (constitucionalidade) do sacrifício, sendo feito um comparativo com o ser humano.
Diante de uma criança seus pais têm o dever de prestar assistência moral e intelectual, o ser humano não é apenas objeto de nossa tutela, mas também instância de nossa responsabilidade, conforme preceitua o art. 225 da CF: Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (…).
Porém, aos animais esta assistência é admissível só que não necessariamente trata-se de um dever. O que nos faz acreditar que todos nós temos a responsabilidade de cuidar e tratar bem os animais quando estamos em uma situação em comum com eles, quando, por exemplo, encontramos um cachorro que esta em iminente situação de risco ao estar no meio da rua onde há um fluente trafego de carros, temos o dever de socorrê-lo; contudo, não temos o dever de ir todos os dias alimentar o cachorro abandonado na esquina de casa.
Barroso admite que os animais têm um valor intrínseco, como se observa na seguinte passagem:
“O que poderia ter sido suscitado, isso, sim, seria o reconhecimento de dignidade aos animais. Uma dignidade que, naturalmente, não é humana nem deve ser aferida por seu reflexo sobre as pessoas humanas, mas pelo fato de os animais, como seres vivos, terem uma dignidade intrínseca e própria.”(BARROSO, 2012, p. 118)
Assim, o que se observa é que mesmo não detentores de dignidade e personalidade reconhecidos legalmente, os animais possuem valores morais e éticos que lhes são inerentes e reconhecidos por toda a sociedade.
Há diversos documentos internacionais que dizem respeito a este tema, dentre eles esta a Declaração Universal dos Direitos dos animais da UNESCO, que em seu art 2º assim dispõe:
“Artigo 2º
1.Todo o animal tem o direito a ser respeitado.
2.O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais
3.Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.”
O Brasil é signatário do referido tratado, comprometendo-se a agir de maneira a dar maior proteção aos animais quando estes se encontrem em estados de perigo ou necessidade.
A Suíça e a Alemanha são os principais países que trazem inovações interessantes a respeito do animal. A Constituição Suíça, em seu art. 24 reconhece uma “dignidade da criatura”, o responsável por esta inovação Peter Saladin defende um novo modelo a ser adotado para a questão ambiental, segundo ele: a) princípio da solidariedade e justiça intrageracional); b) princípio do respeito humano pelo ambiente não-humano justiça interespécies); c) princípio da responsabilidade para com as futuras gerações (justiça intergeracional).
Na Constituição Alemã houve a inclusão do art. 20ª na reforma constitucional, em 1994, onde houve a alteração da palavra “vida humana” para a expressão “bases naturais da vida”. O debate prosseguiu no cenário jurídico e político alemão, dado o movimento que surgiu em favor dos direitos dos animais, que pressionou a inclusão da proteção dos animais como objetivo do Estado. Assim, em 2002, houve o acréscimo da palavra “e os animais” no art. 20ª da Lei Fundamental.
Outra questão a ser ressaltada é o tratamento dado a estes animais no momento do sacrifício. Conforme Leite, no que se refere a vedação ao tratamento cruel aos animais, (2013, p. 174) “É claro que exclui do conceito de crueldade a morte do animal, mas exclui também, e este é um ponto fundamental na interpretação da liberdade religiosa, qualquer juízo de valor sobre as razões que sustentam os rituais.”
Por isso, constatada que não há uma proteção irrestrita a liberdade religiosa, e também não deve haver uma proibição absoluta com base em uma norma constitucional que se refere apenas à proibição de tratamento cruel, o que se observa é ausência de dispositivo legal que deslegitime de forma específica a prática de sacrifício.
Uma vez que são animais consumíveis, o sacrifício ritualístico para posterior consumação e, até mesmo a morte para consumação direta envolve o mesmo sentimento de dor, salvo se comprovado algum tratamento cruel.
Com base nisso, Lacerda (2010, p.55), afirma que os animais merecem proteção moral, e nós possuímos diante deles deveres indiretos, que são deveres morais.
5. O Princípio da Ponderação
No presente caso, trata-se de caso aparente de colisão de normas, de um lado a liberdade religiosa e noutro o direito ao meio ambiente, no que tange ao tratamento não cruel aos animais.
Nessas situações são apresentadas algumas formas de resolução de tais conflitos, sendo que, quando as normas em conflito são do mesmo nível hierárquico, como ocorre com as normas dispostas na Constituição Federal em seus arts. 5º, VI e 225, VII, recorre-se, pois, ao Princípio da Ponderação.
A ponderação pode ser considerada como um processo constituído por três fases. A primeira analisa as normas relevantes, identificando eventuais conflitos entre elas. Na segunda etapa, é trazido o caso concreto para analise dos preceitos normativos. Na última fase, a ponderação se concretiza por meio de análises de grupos de normas e circunstâncias do caso, agindo como um sistema de freios e contrapesos, devendo ser escolhida qual a intensidade da utilização de determinada norma para chegar a uma solução baseada em critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Nas palavras de Fiorillo, na colisão de dois direitos sugere a aplicação do Princípio do desenvolvimento sustentável, a depender de cada caso específico, sem haver qualquer posicionamento permanente, assim aduz:
“[…] o princípio do desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa disposição”. (FIORILLO, 2006, p.112)
Conclusões
Uma forma de solucionar o embate destes dois direitos seria a própria regulamentação da prática do sacrifício de animal em religiões de matriz africana, onde fossem estipulados parâmetros e regras que impusessem um sacrifício de forma humanitária, sem dor ou estresse.
Neste sentido, temos o Decreto n. 30.691/1952, cuja seção II regulamenta a matança de animais de açougue. Além disso, está em tramitação no Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento um projeto de instrução normativa destinado a aprovar o Regulamento Técnico de Manejo Pré-Abate e Abate Humanitário, para estabelecer métodos a serem observados em todos os estabelecimentos autorizados.
Deste modo, haveria a garantia dos dois direitos tratados sem que nenhum passe despercebido, conforme previsto na Constituição.
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