Resumo: Dentre os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal destacam-se os sociais que, em virtude do seu cunho prestacional, buscam garantir um mínimo existencial básico ao indivíduo para uma vida com dignidade. Outrossim, para viver o ser humano precisa ocupar espaço, motivo pelo qual sua dignidade e cidadania não estarão asseguradas enquanto este não possuir uma moradia digna para habitar, dotada dos recursos mínimos de infraestrutura e saneamento básico. É também direito do cidadão morar em uma cidade que respeite a sua função socioambiental, onde lhe seja possível gozar de uma vida urbana digna, exercitando plenamente sua cidadania. A atuação do Estado deve ser ordenada no sentido de concretizar as políticas públicas e adotar as medidas legislativas cabíveis, assegurando o pleno exercício dos direitos prestacionais pelos cidadãos. Tampouco, alegações relativas à insuficiência orçamentária podem ser apresentadas como forma do Poder Público eximir-se de suas obrigações. A teoria da reserva do possível deve ser recebida com ressalvas e analisada através do critério da ponderação, uma vez que se encontrará vedada a sua aplicação quando em causa a necessidade de preservar a dignidade da pessoa humana, encontrando-se vedado ao Estado o direito de retroceder nas conquistas sociais já alcançadas pela sociedade.
Palavras-Chave: Pessoa humana. Dignidade. Moradia. Democracia. Estado.
Sommario: Fra i diritti e le garanzie fondamentali previsti nella Costituzione Federale sono distaccati i diritti sociale che, in virtù del suo cònio prestazionale, cercano garantire un minimo esistenziale all’individuo per una vita con dignità. Inoltre, per vivere è necessario l’uomo occupare spazio, razione per cui la sua dignità e cittadinanza non saranno assicurate mentre questo non possedere un posto degno per abitare, dotato dei ricorsi minime dell’infrastruttura e del risanamento di base. É anche diritto del cittadino vivere in una città la quale rispetta la sua funzione socioambientale ed in quale è possibile godere di una vita urbana degna, esercitando completamente la cittadinanza. L’attuazione dell’stato deve essere ordenata nel senso di concretizzare le politiche pubbliche i adottare le misure legislative compatibile, per assicurare l’esercizio e il godimento dei diritti sociale per i cittadini. Neppure allegazioni relative all’insufficienza di bilàncio preventivo possono essere presentati come forma dell’amministrazione pubblica esentarsi dei suoi obblighi. La teoria della riserva dello possibile deve essere ricevuta come una eccezioni e analizzata secondo determina il critério dell’equilibrio, una volta che ci sarà proibita la sua allegazione ed applicazione quando in causa la necessità di conservare la dignità della persona, mentre allo Stato è vietato il diritto di retrocedere nelle conquiste sociali già raggiunti per la società.
Parole-Chiave: Persona Umana. Dignità. Abitazione. Democrazia. Stato.
Sumário: Introdução. 1. Os direitos fundamentais como emanação do princípio da dignidade da pessoa humana. 1.1. Direito fundamental à moradia digna e a garantia do mínimo existencial. 1.2. Função sócio-ambiental da propriedade como estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 1.3. Função social da cidade e os princípios da proporcionalidade e da proibição do retrocesso. 1.4. Gestão democrática como mecanismo de perfectibilização da cidadania. 2. Que grau de exclusão social ainda pode ser admitido por um sistema democrático? Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Enquanto uns gozam de grande conforto e segurança, outros sequer têm um espaço para habitar com um mínimo de dignidade. Foi a reflexão acerca desta realidade – no mínimo inquietante –, a qual assola a nossa nação, que serviu como embrião para conceber o presente trabalho.
Quando a Constituição Federal de 1988 indica que o Brasil se constitui numa República Federativa cujo regime político é a democracia, está revelando a opção do constituinte originário no sentido de construir um país a ser governado de e para o seu povo, cujos Estados-membros atuem conjuntamente objetivando concretizar os preceitos fundamentais determinados na Magna Carta. Conquanto, mesmo sendo dotados de autonomia política e administrativa, os Estados-membros devem adotar uma atuação conjunta entre si, bem como com a União Federal, de sorte a garantir a soberania Nacional e o gozo da plena cidadania pelos indivíduos.
Outrossim, além de buscar assegurar a soberania e a cidadania, também se constitui como objetivo fundamental do nosso Estado Social Democrático de Direito a garantia de uma existência digna a seus cidadãos, pretensão esta que encontra aliado direto nos direitos e garantias fundamentais preconizados no Título II da Carta Política.
Dentre tais direitos, destacam-se os direitos sociais os quais, por suas características, gozam de todas as garantias asseguradas aos direitos fundamentais, mormente a vinculada a sua imutabilidade, por constituir-se cláusula pétrea.
Nesta perspectiva, infere-se que a nossa Constituição Federal buscou assegurar aos seus cidadãos uma gama significativa de direitos e garantias, competindo ao Estado a implementação dos mesmos. Todavia, por questões de ordem político-administrativa, não raro verificamos a inefetividade alcançada por tais preceitos fundamentais, circunstância esta que acaba instaurando a situação caótica na qual nosso país está inserido.
A população, desprovida dos direitos básicos consubstanciadores do mínimo existencial, encontra-se sem voz e sem autonomia. Os seus representantes, democraticamente eleitos, não têm logrado êxito em ordenar este caos.
De tal sorte, soe buscarmos alternativas viáveis para uma reorganização das bases estruturantes de nossa nação, porquanto, esta somente alcançará os objetivos, aos quais se propôs, no momento em que assegurar melhores condições de vida para a sua população. Neste particular, imperioso observar a relevância do direito fundamental social à moradia, uma vez que sem ele é inviável, a qualquer ser humano, desenvolver os seus demais direitos.
Porquanto, o direito fundamental social à moradia está diretamente atrelado à concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, haja vista que a pessoa humana só encontra-se dotada de dignidade no momento em possui um local digno para habitar – este compreendido como um ambiente apto a oferecer os serviços urbanos essenciais, especialmente, os de saneamento básico, energia elétrica e coleta de lixo. Trata-se, em realidade, de garantir um mínimo existencial para subsistência, ou seja, um mínimo necessário de acesso aos meios de inclusão social.
Outrossim, para que o princípio da dignidade da pessoa humana tenha existência material verifica-se indispensável que o direito à moradia também seja materializado, haja vista que a existência meramente formal deste acarretará na violação daquele. Ademais, a concretização dos princípios fundamentais não se faz apenas através de sua inserção no texto constitucional, sendo imprescindível a atuação do Poder Público e da própria população para a sua realização.
Neste diapasão, verifica-se que as políticas públicas implementadas são insuficientes para gerenciar o espaço urbano, e, comumente, inexistem ou são desenvolvidas de forma precária, ocasionando o favelamento, as submoradias, a falta de moradias, a permanência de cidadãos nas ruas sob viadutos e em situações que laceram a sua dignidade. O efeito prático desta situação é um significativo e crescente aumento da população de excluídos e marginalizados o que afronta, diretamente, os objetivos fundamentais da nossa República Federativa.
Partindo de tais premissas, buscou-se analisar diversos aspectos atrelados ao direito à habitação, objetivando delimitar o papel do Estado e de seus cidadãos na construção de um efetivo Estado Democrático de Direito o qual atenda aos princípios fundamentais que lhe sustentam.
Acossando tal intuito, examinaremos, no curso do primeiro capítulo, o ser humano e sua cidade, para, no segundo, observarmos as obrigações do Estado frente a tais direitos. Cumpre destacar que utilizaremos o método de abordagem indutivo, tendo sido realizada uma pesquisa teórico-documental, mediante significativa investigação bibliográfica no campo jurídico e fora dele, com análise de aspectos históricos para fundamentação e contextualização das reflexões.
Com efeito, ao pensarmos no ser humano inserido no seu contexto social, diversas foram as facetas que clamaram por apreciação. Objetivando ordenar o presente estudo, elegemos, primeiramente, uma abordagem acerca da importância do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana para a realização da nossa ordem democrática. Porquanto, trata-se de um metavalor, de um supradireito, o qual possui força irradiante sobre toda a Constituição Federal de 1988, dando-lhe sentido e unidade.
Em seguida – e como decorrência imediata dos direitos fundamentais emanados do princípio da dignidade da pessoa humana – revelou-se coerente pontuarmos a conexão direta do direito fundamental a uma moradia digna como forma de garantir o mínimo existencial ao cidadão.
Destacar-se-á, neste aspecto, que o cumprimento dos postulados assegurados pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana exige que os cidadãos tenham, no mínimo, um ambiente para habitar, haja vista que viver resulta em ocupar um espaço e, assim, a dignidade encontrar-se-á violada diante das situações de segregação social do ser humano. Nesta linha de princípio, asseverou-se imprescindível destacarmos a nova padronagem do direito de propriedade diante dos – até então incipientes – princípios sócio-ambientais postulados a partir da Constituição Federal de 1988.
A releitura do estado liberal clássico acarretou significativa mudança na percepção das garantias do direito à propriedade em face do direito à habitação. Trata-se de verdadeira mudança de paradigmas, posto que a propriedade, não mais considerada direito individual, agora passa a ter como fim assegurar, a todos, uma existência digna, em consonância com os ditames da justiça social. Porquanto, as normas de direito privado sobre a propriedade devem ser compreendidas em conformidade dos preceitos vinculados na Constituição Federal acerca da função socioambiental da propriedade.
Destarte, após analisarmos o cidadão e sua moradia, partiremos para a análise da cidade e seu contexto. Neste diapasão, destacaremos a modificação da percepção das cidades em vista das de outrora, sobretudo em decorrência da atual necessidade de observância de sua função socioambiental, bem como da proibição de retrocesso social no que tange aos direitos já garantidos aos cidadãos. Por fim, concluindo o estudo do ser humano e sua cidade, destacaremos a relevância da manifestação popular na gerência do Estado para a concretização da democracia. Conquanto um Estado democrático de Direito é feito de e para o cidadão, o qual só exercerá esta sua condição – manifestação da cidadania – enquanto participar diretamente na gestão de seus direitos.
No segundo capítulo, por seu turno, objetivar-se-á perscrutar o aspecto dos limites da responsabilidade do Estado na concretização dos direitos prestacionais, dando especial ênfase à questão da reserva do possível e sua abrangência e forma de ponderação.
Neste particular analisar-se-á até que ponto é possível admitirmos a questão da insuficiência de recursos orçamentários como justificativa para a inefetividade do Estado na garantia dos direitos prestacionais básicos para a realização do mínimo existencial.
Porquanto tratar-se de proposição ampla e apta a fundamentar diversos debates, buscar-se-á, aqui, abordar as premissas básicas para o desenvolvimento do assunto em foco sem, contudo, pretender exaurir o tema em questão.
1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A concretização de uma consciência de zelo pelos direitos e garantias fundamentais demandou da humanidade a caminhada por um longo trajeto. Analisando a questão sob o prisma histórico, identificamos inúmeros conflitos sociais os quais buscaram adequar a relação entre o Estado e seu cidadão, principalmente no que tange aos direitos e deveres reciprocamente considerados.
Na esteira do pensamento liberal-burguês do século XVII, surgiram os chamados direitos fundamentais de primeira geração[1], os quais se consubstanciaram em direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face do seu poder. Neste diapasão, figuram como direitos representativos desta época social, verbi gratia, o direito à vida, à liberdade e à igualdade perante a lei.
Todavia, em decorrência das inúmeras crises econômico-sociais oriundas do impacto da industrialização e dos graves problemas que a acompanharam, percebeu-se que a omissão completa do Estado não era a forma ideal de participação deste na economia.
Assim, no decorrer do século XIX, embasado nas doutrinas socialistas e na constatação de que a consagração formal da liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo, surge o modelo de Estado Social o qual, ostentando uma dimensão positiva, objetiva propiciar o bem-estar social aos seus cidadãos. São exemplos dos direitos preconizados neste momento histórico os direitos a prestações sociais e estatais (assistência social, saúde, educação, trabalho), as liberdades sociais (liberdade de sindicalização e o direito de greve), e os direitos fundamentais dos trabalhadores (direito a férias, repouso semanal remunerado, garantia do salário-mínimo, limitação de jornada de trabalho).
Com o passar dos anos e em decorrência das inúmeras modificações sociais ocorridas, mormente as advindas do processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas consequências, bem como pelo impacto tecnológico e pelo estado crônico de beligerância, iniciou-se um processo mundial de reorganização, tornando-se, então, necessária a intervenção do Estado no sentido de assegurar, dentre outros, a paz[2], a autodeterminação dos povos, o desenvolvimento social, a preservação do meio ambiente, a qualidade de vida e a garantia dos interesses difusos e coletivos da sociedade. Surgem, assim, os direitos fundamentais de terceira geração, também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, os quais trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade difusa ou coletiva, muitas vezes, inclusive, indefinida e indeterminável.
Sob outro enfoque, os direitos da terceira geração têm por destinatário precípuo o “gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.” (BONAVIDES, Apud SARLET, 2009. p. 48).
Hodiernamente, em que pese o fato dos direitos e garantias fundamentais estarem previstos em inúmeros tratados e convenções internacionais, assim como se encontrarem presentes nas Constituições Federais da grande maioria dos países, é imprescindível a constante vigilância de sua aplicabilidade pelos organismos internacionais e internos, sob pena de violação de seus preceitos.[3]
Outrossim, outra não é a preocupação mais latente em um Estado Democrático senão garantir o respeito e a concretização dos direitos e liberdades do homem e do cidadão. A pessoa humana é hoje considerada como o mais eminente de todos os valores, uma vez que constitui a fonte principal de enriquecimento e de força da sociedade, revelando-se, assim, critério essencial de legitimidade da ordem jurídica.
Neste diapasão, Ingo Wolfgang Sarlet destaca que “o homem, em virtude tão somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado.”[4]
Contudo, respeitar os direitos do homem implica, necessariamente, em reconhecer e garantir a sua dignidade pessoal[5], a qual, por ser uma qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, devendo ser “reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que reconhecida e atribuída a cada ser humano como algo que lhe é inerente” (SARLET, 2010, p. 49-50).
Dessa forma, infere-se que a dignidade da pessoa humana[6], por ser uma qualidade intrínseca do ser humano, não é algo que lhe é facultado. Trata-se de atributo inerente a toda e qualquer pessoa humana, independente das suas circunstâncias concretas[7] ou de sua situação social, inadmitindo-se discriminação, quer em razão do nascimento, da raça, inteligência, saúde mental, ou crença religiosa.[8]
Neste diapasão, pontua Antonio Scalisi (1990. p. 58), citando o Sumo Pontífice, falecido, João Paulo II, in verbis: “L’insieme dei diritti dell’uomo corrisponde allá sostanza della dignità dell’essere umano, inteso integralmente e non ridotto a uma sola dimensione; essi si riferiscono alla soddisfazione dei bisogni essenziali dell’uomo, all’esercizio delle sue liberta, alle sue relazioni com altre persone; ma essi si riferiscono sempre e dovunque all’uomo, allá sua piena dimensione umana.”[9]
Corroborando com tal afirmação, Jorge Miranda (2000. p. 184) destaca que a dignidade da pessoa humana é da “pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstrato. É o homem ou a mulher, tal como existe, que na ordem jurídica considera irredutível, insubstituível e irrepetível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege.”
Alude, ainda, o mestre lusitano, citando Castanheira Neves (Apud MIRANDA, 2000, p. 172-173), que respeitar a dignidade humana implica em respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, “se o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o que ele é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social.”
Por conseguinte, aferir-se-á desprovido de validade eventual ato que implique em renúncia, bem como qualquer outro tipo de sacrifício, desse seu valor e dignidade pessoal a benefício da comunidade ou do grupo a que pertença.
Neste particular, assume especial relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana[10] é, simultaneamente, limite e tarefa dos poderes estatais. Cuida-se de princípio da ordem jurídica, política, social, econômica e cultural, razão pela qual, tanto no ordenamento jurídico brasileiro, como no de diversos outros países, é declarado como princípio de valor supremo, encontrando-se no epicentro de inúmeros sistemas jurídicos.
Em realidade, tal princípio[11] serve de “parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico” (SARLET, 2010, p. 91), conferindo, concomitantemente, unidade de sentido e legitimidade à ordem constitucional.
Outrossim, analisando a Magna Carta de 1988, resta latente a sua preocupação de assegurar os valores da dignidade da pessoa humana, erigindo-a como “núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional” (PIOVESAN, 2007. p. 27). A unidade de sentido da Constituição Federal de 1988 passa, obrigatoriamente, pelo valor essencial da dignidade humana, “sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada” (PIOVESAN, 2007. p. 30).
Corroborando com tal entendimento, Luiz Edson Fachin (FACHIN, 2006. p. 179) refere, in verbis: “A dignidade da pessoa é princípio fundamental da República federativa do Brasil. É o que chama de princípio estruturante, constitutivo e indicativo das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a idéia de predomínio do individualismo atomista no Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata.”
De fato, é possível afirmar que o desiderato do legislador originário no sentido de constituir um documento amplo, objetivo e sistemático, no que tange à seara dos direitos fundamentais, foi alcançado, haja vista ser possível depreender do seu texto uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática, encontrando-se no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana – vinculado no inciso III do artigo 1° da Constituição Federal de 1988, um dos principais fundamentos da República Federativa do Brasil, conquanto este eleva a pessoa humana à condição de fundamento e fim da sociedade e do Estado.
A dignidade da pessoa humana se projeta no indivíduo, na sua condição de ser autônomo, bem como na sua qualidade de membro da sociedade, ou seja, abarcam os direitos do indivíduo, do cidadão, do trabalhador e do administrado. Parafraseando José Carlos Vieira de Andrade, o princípio da dignidade da pessoa humana é a origem de todos os direitos constitucionalmente consagrados, sejam eles os direitos e liberdades tradicionais, sejam os de participação política, dos trabalhadores, ou, ainda, os direitos a prestações sociais (ANDRADE, 1976, p. 98).
Contudo, embora notório que a dignidade preexista ao direito, é indiscutível que o seu reconhecimento e proteção por parte da ordem jurídica constituem requisitos indispensáveis para que esta possa ser considerada legítima.[12]
Neste particular, Robert Alexy (2008. p. 506) refere que o Tribunal Constitucional Alemão interpretou o catálogo de direitos fundamentais como “expressão de um sistema de valores, em cujo centro se encontra o livre desenvolvimento da personalidade humana e de sua dignidade no seio da comunidade social.”
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base neste devem (os direitos fundamentais) ser interpretados.[13]
Por esta razão, conforme destaca, ainda, Robert Alexy, à luz da teoria dos princípios este aspecto deve ser interpretado de forma a que “o catálogo de direitos fundamentais expresse, dentre outros, princípios que exijam que o indivíduo possa desenvolver livremente sua dignidade na comunidade social, o que pressupõe uma certa medida de liberdade fática.”
Por conseguinte, infere-se que o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre relevante papel na arquitetura constitucional, qual seja, o de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais.[14] Trata-se de valor que confere unidade e coerência ao conjunto de direitos fundamentais.[15]
Destarte, conforme indica Edilsom Pereira de Farias (1996, p. 54-55), o “extenso rol de direitos e garantias fundamentais consagrados pelo título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.”
De tal sorte, os direitos fundamentais consubstanciam-se na primeira e importante concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, quer se tratem dos direitos e deveres individuais e coletivos, arrolados, inicialmente, no artigo 5º; dos direitos sociais, elencados nos artigos 6º a 11; ou dos direitos políticos, estampados nos artigos 14 a 17. [16]
Analisando a relevância da constitucionalização dos direitos fundamentais para o homem, centro de todas as regras de poder, Paulo Bonavides (2005, p. 587) pontua: “Os direitos fundamentais são a sintaxe da liberdade nas Constituições. Com eles, o constitucionalismo do século XX logrou a sua posição mais consistente, mais nítida, mais característica. Em razão disso, faz-se mister introduzir talvez, nesse espaço teórico, o conceito do juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Constituição, e sobretudo da legitimidade do Estado Social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais. Coroam-se, assim, os valores da pessoa humana no seu mais elevado grau de juridicidade e se estabelece o primado do Homem no seio da ordem jurídica, enquanto titular e destinatário, em última instância, do todas as regras do poder.”
De outra banda, questão interessante diz respeito ao grau de vinculação dos direitos fundamentais ao princípio da dignidade da pessoa humana.
José Carlos Vieira de Andrade sustenta que referido princípio encontra-se na base de todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, reconhecendo, contudo, que o grau de vinculação de tais direitos ao princípio poderá ser diferenciado, de sorte que alguns direitos constituem explicitações de primeiro grau da idéia de dignidade – modelando o seu conteúdo, e outros decorrem desse conjunto de direitos “fundamentalíssimos” ou então complementam-nos como explicitações de segundo grau.[17]
Jorge Miranda (2000, p. 180-181), por seu turno, entende que de modo direto e evidente “os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas.” Conquanto, pontua que a maioria dos demais direitos, “ainda quando projectados em instituições, remontam também à ideia de protecção e desenvolvimento das pessoas. A copiosa extensão do elenco não deve fazer perder de vista esse referencial.”
Observando com certa reserva a tese segundo a qual todos os direitos fundamentais encontram sua fonte no princípio da dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet sublinha ser possível, no mínimo, sustentar o ponto de vista de acordo com o qual os direitos fundamentais correspondem a explicitações, em maior ou menor grau, do princípio da dignidade da pessoa humana.[18]
O princípio da dignidade, nessa linha de idéias, pode ser considerado como critério basilar, embora não exclusivo, para a construção de um conceito material de direitos fundamentais (SARLET, 2010, p. 97-98), in verbis: “A dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), muito embora – importa repisar – nem todos os direitos fundamentais (pelo menos não no que diz com os direitos expressamente positivados na Constituição Federal de 1988) tenham um fundamento direto na dignidade da pessoa humana. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade, o que nos remete à controvérsia em torno da afirmação de que ter dignidade equivale apenas a ter direitos (e/ou ser sujeito de direitos), pois mesmo em se admitindo que onde houver direitos fundamentais há dignidade, a relação primária entre dignidade e direitos, pelo menos de acordo com o que sustenta parte da doutrina, consiste no fato de que as pessoas são titulares de direitos humanos em função de sua inerente dignidade.”
Jesús Gonzáles Pérez (1986. p. 97) entende que os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana encontram-se em planos distintos, em que pese aqueles sejam inerentes a este, afirmando que “la dignidad y los derechos fundamentales no se colocan em un mismo plano, sino que afirma como valor absoluto la dignidad de la persona, sin aludir siquiera a su reconocimiento, para luego, em plano distinto, referirse a los derechos que le son inherentes.”[19]
Outrossim, respeitadas as divergências doutrinárias no tocante ao grau de vinculação, fica evidente que existe uma correlação direta entre os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, figurando este como base jurídica daqueles.[20]
Neste diapasão Paulo Bonavides (2010, p. 552) assevera que criar e manter os pressupostos elementares de uma vida baseada na liberdade e na dignidade da pessoa humana são os objetivos primordiais dos direitos fundamentais, acrescentando, alicerçado na teoria de Carl Schmitt, que, com relação aos direitos fundamentais, existem dois critérios formais para a sua caracterização. De acordo com o primeiro, os direitos fundamentais podem ser designados por todos os direitos ou garantias nomeados e especificados na Constituição. Pelo segundo critério, estabelece que direitos fundamentais são aqueles que receberam da Constituição um grau hierarquicamente mais elevado, seja de garantia, seja de segurança.
Porquanto, é possível definir direitos fundamentais como aquelas posições jurídicas vinculadas às pessoas que, sob a ótica do direito constitucional positivo, foram, em virtude do seu conteúdo e importância, incorporados ao texto formal da Constituição e, por conseguinte, retiradas da esfera de disponibilidade do poder constituinte derivado. São considerados, ainda, direitos fundamentais, em decorrência da cláusula de abertura material do catálogo, os direitos que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição materialmente considerada, independente de possuir assento na Constituição formal. (SARLET, 2010, p. 77)
Neste particular, interessante trazer à baila a distinção, referida por Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 77), entre direitos fundamentais em sentido formal e em sentido material, in verbis: “De modo geral, os direitos fundamentais em sentido formal podem, na esteira de Konrad Hesse, ser definidos como aquelas posições jurídicas da pessoa – na sua dimensão individual, coletiva ou social – quem por decisão expressa do Legislador-Constituinte foram consagradas no catálogo dos direitos fundamentais (aqui considerados em sentido amplo). Direitos fundamentais em sentido material são aqueles que, apesar de se encontrarem fora do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância podem ser equiparados aos direitos formalmente (e materialmente) fundamentais.”
Nas palavras de Robert Alexy (Apud SARLET, 2010, p. 77), direitos fundamentais são “aquelas posições jurídicas que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão relevantes que seu reconhecimento ou não-reconhecimento não pode ser deixado à disposição do legislador ordinário.”
Destaca, ainda, o ilustre mestre alemão (ALEXY, 2008, p. 522): “O fato de uma constituição ter elementos procedimentais e materiais combinados entre si (…) significa que, ao lado dos conteúdos que, no sistema jurídico, são simplesmente possíveis em relação à constituição, há também conteúdos que são, também em relação à constituição, necessários ou impossíveis. O fato de as normas de direitos fundamentais estabelecerem os conteúdos constitucionalmente necessários e impossíveis para o sistema jurídico constitui o núcleo da fundamentalidade formal desses direitos.”
Por conseguinte, as normas de direitos fundamentais são fundamentalmente substanciais visto que, com elas, são tomadas decisões sobre a estrutura normativa básica do Estado e da sociedade, independentemente do quanto de conteúdo é a elas conferido. Destarte,
“aquele que confere a eles pouco conteúdo delega muito ao legislador, o que pode ser considerado como uma decisão indireta acerca da estrutura normativa básica do Estado e da sociedade” (ALEXY, 2008, p. 522).
José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 347) destaca que a positivação dos direitos fundamentais implica na incorporação desses direitos à ordem jurídica do país, assinalando que “o ‘lugar cimeiro’ dos direitos fundamentais é a norma constitucional, salientando, ainda, que, sem a positivação constitucional, os direitos fundamentais do homem seriam apenas mera retórica.”
Não obstante, a atribuição dos direitos e dos deveres fundamentais pressupõe também o valor de solidariedade, ou seja, da necessidade de reputar responsabilidade comunitária aos indivíduos. Essa responsabilidade comunitária está alicerçada em uma dimensão participativa com acentuada dimensão social.
José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 146) destaca a ligação da “garantia do gozo dos direitos por todos à necessidade de uma intervenção colectiva reguladora e prestadora que crie as condições gerais de seu exercício efectivo” e, é neste sentido que também se encaixam os deveres fundamentais, como meio para que sejam efetivados os direitos fundamentais constitucionais.
A tese de que os deveres são apenas o reverso dos direitos fundamentais é equivocada, pois seria uma falha afirmar que a determinado titular de um direito fundamental corresponderia um dever por parte de um outro titular, podendo-se dizer que o particular está vinculado aos direitos fundamentais como destinatários de um dever fundamental.
Neste sentido José Joaquim Gomes Canotilho (p. 1998, 479-480) compreende que os deveres fundamentais são unidades autônomas e independentes, constituindo uma categoria própria na proposta e na concreticidade do ordenamento jurídico.”
Sob a perspectiva do Estado, a análise dos direitos fundamentais implica direitos a prestações em favor do cidadão. Na concepção de Robert Alexy, os direitos a prestações estão submetidos ao postulado básico de que é obrigação de todo o poder público proteger a dignidade da pessoa humana e o Estado Social. Os direitos à prestação, de acordo com o entendimento do jurista alemão, são obrigações positivas do Estado, analisadas sob a ótica de direitos subjetivos do cidadão a ações positivas do Estado.
José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 192), ampliando a esfera de abrangência dos direitos a prestações defende que, ao contrário dos direitos de defesa, aqueles direitos impõem ao Estado os direitos a prestações, ao contrário dos direitos de defesa, impõem ao Estado um dever de agir, quer seja para proteção dos bens jurídicos protegidos pelos direitos fundamentais contra a atividade de terceiros, quer seja para promover ou garantir as condições materiais ou jurídicas, tornando possível o uso efetivo desses bens jurídicos fundamentais.
Ancorado nesta linha de raciocínio, Dieter Grimm (2007, p. 157) destaca que os direitos a prestações – por ele denominado de “dever de proteção”, objetivam proteger os indivíduos contra ameaças e riscos provenientes de atores privados, forças sociais ou mesmo desenvolvimentos sociais controláveis pela ação estatal, salientando que hoje, na Alemanha, os deveres de proteção são considerados a contraparte da função negativa dos direitos fundamentais, haja vista que “o dever de proteção é uma função dos direitos fundamentais de primeira geração, das liberdades tradicionais. A preocupação recai nos indivíduos e não no bem-estar social, não na dimensão vertical, mas sim na horizontal.”
Pontua o mencionado autor (GRIMM, 2007, p. 160): “A descoberta do Schutzpflicht (dever de proteção) não alterou o destinatário dos direitos fundamentais. Eles continuam a obrigar o Estado e mais ninguém. Isso significa que o Schutzpflicht não é idêntico à aplicação horizontal dos direitos fundamentais. O que foi alargado foi simplesmente o modo da obrigação. O Estado está obrigado não apenas a se abster de certas ações que violariam os direitos fundamentais. Ele também está obrigado a agir quando os bens protegidos pelos direitos fundamentais estejam ameaçados por agentes privados. […] Assim como o dever de respeitar os direitos fundamentais, o dever de protegê-los vincula todos os ramos do governo. Entretanto, o principal caminho da função protetiva se dá através da legislação. A principal razão para isso é que os perigos e riscos contra os quais o Estado está obrigado a proteger os cidadãos emergem de atores privados que gozam, eles mesmos, da proteção dos direitos fundamentais. Dessa forma, o cumprimento do dever de proteção requer, freqüentemente, uma limitação de certas liberdades no interesse de outras liberdades. (…) Isso significa que a idéia de um dever de proteção a ser cumprido por meio de limitações legislativas a direitos individuais pode produzir um acréscimo de restrições. Ainda assim, o propósito é aumentar a liberdade geral na sociedade e fazê-la real para todos os detentores de direitos fundamentais. Vista a questão por esse ângulo, o que aparente ser uma restrição para um grupo de pessoas pode ser uma libertação para outro grupo.”
Neste aspecto, interessante refletir que o Estado preenche uma missão histórica porquanto cria o direito – o ordenamento jurídico objetivo, para a ele ficar submetido, em direitos e deveres. Citando Hans Kelsen (2009, p. 169), “o Estado, como ente metajurídico, como uma espécie de macroanthropos onipotente, ou organismo social, pressupõe o direito e, ao mesmo tempo, sujeita-se a ele. (…) É a famosa teoria “dos dois rostos e da auto-obrigação do Estado”, que apesar das notórias contradições que lhe são sempre imputadas defende com exemplar tenacidade contra todos os protestos.”
Não obstante, os direitos fundamentais não são apenas direitos subjetivos do indivíduo contra o Estado, mas também expressões de valores objetivos. De tal sorte, sempre que a aplicação de uma norma jurídica afete o exercício de um direito fundamental, este direito deve ser levado em consideração na interpretação daquela norma jurídica, fenômeno conhecido como “efeito irradiante” dos preceitos constitucionais.
Interessante inferir, nesta perspectiva, que, em decorrência da cláusula material de abertura inserida no parágrafo segundo do artigo 5° da Constituição Federal de 1988, o rol de direitos fundamentais consignado no mencionado artigo, apesar de analítico, não possui cunho taxativo.[21] Por esta razão, é possível apontar a existência de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional e “até mesmo em tratados internacionais, bem assim para a previsão expressa da possibilidade de se reconhecer direitos fundamentais não-escritos, implícitos nas normas do catálogo, bem como decorrentes do regime e dos princípios da Constituição Federal.” (SARLET, 2010, p. 71)
Repisando o anteriormente exposto, a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais são facilitadas em virtude do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, o qual atua como critério interpretativo de todo o ordenamento constitucional[22], funcionando como ratio iuris determinante daqueles direitos. Prevalece, aqui, o pensamento sistêmico, o qual “ilumina ou reforça o entendimento de direitos em particular bem como favorece a articulação destes com os outros. Em consequência, consolida-se a força normativa dos direitos fundamentais e a sua magna proteção da pessoa humana” (FARIAS, 1996, p. 54-55).
Neste particular relevante destacar a distinção conceitual entre direitos fundamentais e direitos humanos, visto que, enquanto estes designam os direitos fundados necessariamente na dignidade da pessoa, aqueles são assegurados por força de sua previsão no ordenamento constitucional positivo, independentemente de terem, ou não, relação direta com a dignidade da pessoa humana.[23]
Outrossim, conforme assinala Flávia Piovesan, a Constituição Federal de 1988 “acolhe
o princípio da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, pelo qual o valor da liberdade se conjuga com o valor da igualdade, não havendo como divorciar os direitos de liberdade dos direitos de igualdade” (PIOVESAN, 2007, p. 34), motivo pelo qual é possível inferir que não há direitos fundamentais sem que os direitos sociais sejam respeitados.
Na seara dos direitos sociais, capitulados no Capítulo II do Título II da Constituição Federal de 1988, artigos 6° a 11, verificamos o objetivo comum de assegurar ao indivíduo, mediante a prestação de recursos materiais essenciais, uma existência digna, concretizando, assim, o princípio da dignidade humana e o direito à vida, ambos consagrados em nossa Constituição.[24] Ademais, a garantia de condições mínimas para uma existência com dignidade integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e obrigações.
Fica evidente, desta maneira, que a noção de dignidade da pessoa humana está umbilicalmente relacionada com a implementação de uma série de direitos e garantias fundamentais, tais como um salário que atenda às necessidades vitais básicas, a cobertura dos riscos sociais, a saúde, uma educação de qualidade e, naturalmente, um teto adequado sobre o qual fixar moradia.
No que tange, especificamente, ao direito fundamental à moradia, preconizado no caput do artigo 6° da Constituição Federal de 1988, é relevante trazer à baila os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 243), in verbis:“O direito fundamental à moradia é, por força da abertura material consagrada no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1988, cláusula pétrea e sujeito à aplicabilidade direta, mesmo não constando do catálogo do artigo 5º, uma vez que o constituinte optou por inseri-lo no âmbito das disposições constitucionais sobre a ordem social. Assim, trata-se de um direito formal e materialmente fundamental. Formal porque é parte integrante da Constituição escrita, situando-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, e encontra-se submetido aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) de reforma constitucional, além do que é uma norma diretamente aplicável e que vincula de forma imediata as entidades públicas e privadas. Material, porque se trata de um direito fundamental constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. (…) A cláusula de abertura consagrada no art. 5º, parágrafo 2º, não restringe os direitos fundamentais fora do catálogo a direitos expressamente positivados em outras partes do texto constitucional, de forma que todos os direitos fundamentais subordinam-se ao regime instituído pelo artigo 5º, parágrafo 1º, o qual impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais.”
Por conseguinte, é dever do Estado (Direitos a prestações) garantir, mediante a adoção de uma postura ativa na esfera econômica e social, a concretização dos direitos constitucionalmente[25] albergados, ditos de segunda geração, mormente em virtude da sua aplicabilidade imediata, preconizada no parágrafo primeiro do artigo 5° da Constituição Federal de 1988.
1.1. DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA E A GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL
Iniciaremos nossas reflexões citando o ilustre jurista alemão Rudolf Von Ihering (2010, p. 63), em sua obra “A luta pelo Direito”, in verbis: “Observemos, porém, o camponês. Este homem, que defende a ferro e fogo sua propriedade, demonstra insensibilidade total no que se refere à honra. Como se explica isto? Por suas condições peculiares de vida, pois a profissão do camponês não exige bravura, mas trabalho, e é este que ele defende na propriedade. Trabalho e propriedade constituem a honra do camponês. O camponês indolente, que não cuida da propriedade ou que dissipa os bens, é tão desprezado pelos outros camponeses quanto o militar que não defende a honra. (…) Para o camponês, o cultivo da terra e a criação de gado constituem a razão de ser de sua existência e, assim, quando o vizinho passa a arar uma porção de suas terras ou quando o comprador de gado deixa de pagar-lhe o preço do boi vendido, inicia ele, como pode, um processo, conduzido por veemente paixão, lutando analogamente ao oficial ofendido na honra, que, espada em unho, defende seu direito.”
O trabalho e a propriedade, valores que constituíam a honra do camponês de outrora, ainda hoje são considerados indispensáveis para a perfectibilização de uma vida minimamente digna. Neste diapasão, repisamos que o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é considerado o vetor estruturante de toda a ordem jurídica, social, política, econômica e cultural que delimitam o conteúdo do mínimo existencial.[26]
Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os presos, os incapazes e os indigentes podem ser privados.
Assegurar a liberdade do indivíduo, mediante a garantia de um conjunto mínimo de circunstâncias mínimas a que todo homem tem direito, é a única forma de concretizar a sua existência com dignidade, porquanto, conforme pontua Norberto Bobbio (2004, p. 49) “a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser.”
Outrossim, além dos valores da igualdade e da liberdade, conjugados na forma de igual direito à liberdade, os direitos sociais encontram fundamento ético na exigência de justiça, na medida em que são essenciais para a promoção da dignidade da pessoa humana e indispensáveis para a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Por conseguinte, muito embora não se possa olvidar que os direitos fundamentais sociais não se limitam ao mínimo existencial e que este mínimo existencial não se confunde com o mínimo vital[27], tem-se por certo que a garantia efetiva de uma existência com dignidade abrange necessariamente o gozo de direitos sociais específicos, como a assistência e a previdência social, a saúde, o salário mínimo dos trabalhadores e a moradia.
Neste particular, Ana Paula de Barcellos destaca que “o elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental.” [28]
Importante destacar que o mínimo existencial não tem dicção constitucional própria, ou seja, o seu conceito e alcance são constituídos a partir da idéia de liberdade, dos princípios constitucionais de igualdade, da justiça social, da livre iniciativa e da dignidade do homem, da Declaração dos Direitos Humanos e das imunidades e privilégios do cidadão, abrangendo qualquer direito de caráter fundamental – considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não é mensurável, por envolver mais os aspectos de qualidade que de quantidade, o que torna difícil estremá-lo, em sua região periférica, do máximo de utilidade, que é princípio ligado à idéia de justiça e de redistribuição da riqueza social.
Quando se fala no mínimo existencial, ambiciona-se, antes de qualquer coisa, estabelecer que o indivíduo, enquanto partícipe de um contexto social, ou seja, inserido na conjuntura da sociedade à que pertence, é sujeito de direitos que lhe garantam um mínimo necessário de acesso aos meios de inclusão social, reconhecendo dessa forma que todos são iguais.
A teoria do mínimo existencial surge da manifesta preocupação que se tem em controlar os riscos resultantes do problema da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais, as quais não podem ser atribuídos aos próprios indivíduos, mas disponibilizados pelos Estado, a fim de restituir um status mínimo de satisfação das necessidades pessoais.
A dignidade humana e os Direitos Humanos de liberdade e igualdade exigem uma ação do Estado no sentido de garantir esses valores.[29] Todavia, não se fala aqui de uma garantia meramente formal (vinculada à legalidade), mas sim da criação de oportunidades reais na sociedade, as quais garantam a existência física das pessoas através do mínimo social.
Neste sentido manifesta-se José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 378) “Os preceitos relativos aos direitos sociais a prestações não são meramente proclamatórios, constituem normas jurídicas preceptivas, que, enquanto tais, concedem aos indivíduos posições jurídicas subjectivas (a que chamamos pretensões) e estabelecem garantias institucionais, impondo ao legislador a obrigação de agir para lhes dar cumprimento efectivo. (…) Em consequência, os preceitos constitucionais relativos aos direitos sociais gozam da força jurídica comum a todas as normas constitucionais imperativas.”
Destarte, o fundamento do direito ao mínimo existencial está intimamente ligado às condições para o exercício da dignidade, objetivo fundamental constitucionalmente previsto no artigo 1°, inciso III da nossa carta maior, que fundamenta por sua vez, a luta por condições mínimas de inclusão social.
A dignidade, por seu turno, tem uma característica que a diferencia dos outros valores, qual seja, a de ser, simultaneamente, um valor e um dado existencial. Dessa forma, o mínimo existencial deixa-se tocar pelo princípio da dignidade, pois o homem não pode ser privado, em qualquer situação, do mínimo necessário à conservação de sua vida e de sua dignidade.
Não obstante, a simples abstenção por parte do Estado é insuficiente nesta seara. Faz-se necessária a sua efetiva atuação na promoção dos direitos sociais, porquanto não promovê-los implica em negar o mínimo a quem nada tem, negando-se-lhe, por conseguinte, a igualdade e a liberdade.
Outrossim, a garantia de um mínimo existencial pretende atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público de fornecimento e garantia de um conjunto de prestações de serviços sociais básicos que assegurem uma existência digna a todos os cidadãos. Estas posições subjetivas constituem o núcleo de cada preceito e do conjunto de preceitos conexos em matéria de direitos fundamentais. Conquanto, é com base nessas posições, à volta delas e a partir delas que se organiza todo o sistema constitucional de respeito, proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.
Ademais, num Estado Democrático – e Social – de Direito os valores da liberdade, igualdade, propriedade, segurança jurídica e representação política devem, além de serem assegurados, receber conteúdo material que os tornem mais efetivos.
Esta também é a orientação preconizada pelo Tribunal Federal Constitucional Alemão[30] ao consagrar o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna, in verbis: “Certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social. (…) Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos concidadãos, que, em virtude de sua precária condição física e mental, se encontram limitados nas suas atividades sociais, não apresentando condições de prover a sua própria subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições mínimas para uma existência digna e envidar os esforços necessários para integrar estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais.”
Desta maneira, os direitos fundamentais sociais, à luz da teoria do mínimo existencial, tratam de garantir ao cidadão a realização livre e sem amarras de determinados fins sociais, os quais viabilizem a convivência harmônica dos indivíduos em sociedade. Neste sentido, destaca Jorge Miranda (2000, p. 189) “Cada pessoa tem de ser compreendida e relação com as demais. Por isso, a Constituição completa a referência à dignidade da pessoa humana com a referência à mesma dignidade social que possuem todos os cidadãos e todos os trabalhadores (arts. 13.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea b), decorrente da inserção numa comunidade determinada, fora da qual, como diz o art. 29.º, n.º 1, da Declaração Universal, não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. E aqui se fundam os deveres fundamentais (arts. 36.º, n.º 5, 49.º, n.º 2, 66.º, n.º 1, etc.).”
Neste passo, é plenamente aceitável a afirmação de que para a satisfação da dignidade da pessoa humana depende-se de uma série de outros direitos, sejam civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais – pontuando-se, aqui, especial ênfase ao direito à moradia, os quais, conjuntamente, possibilitam uma existência digna.
Outrossim, manifestando-se acerca da relevância do direito à moradia, José Afonso da Silva (2001, p. 318) refere que “não há marginalização maior do que não se ter um teto para si e para a família.”
O indivíduo desprovido de teto para morar não pode ser considerado um cidadão e, sob essa ótica, a sua dignidade humana está ferida. “Esse ser humano é quimérico, utópico, pois, não esqueçamos a utopia: o não-lugar, o lugar daquilo que não acontece e não tem lugar, o lugar do alhures. Esse ser humano está em um não lugar, é um não cidadão ou é cidadão em negativo e, por não dispor de um teto para morar, está em estado de necessidade” (CANUTO, 2010. p. 271).
Percebe-se, assim, que o direito à moradia é um direito essencial do ser humano, enquanto elemento primacial do reconhecimento de sua dignidade humana. Nessa esteira de pensamento, Sérgio Iglesias Nunes de Souza (2008, p. 131) aponta a íntima vinculação do direito à moradia com outros direitos, a saber: “Pelo fato de morar sob um teto, em um local determinado, tem-se também direito a outros direitos, como o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, ao sigilo de correspondência de sua residência, ao segredo doméstico, ao sossego, à educação, à saúde, pois não há como admitir o exercício de um direito sem o outro, porquanto são tão essenciais que se unem em um só indivíduo, de forma que não se pode separá-los integralmente ou definitivamente. Não há como obter vida digna dentro de situações subumanas, como aquelas em que falta, por exemplo, saneamento básico.”
A ausência de um local adequado para a proteção do ser humano e de sua família das intempéries, bem como a falta de um espaço íntimo para viver com saúde e bem estar, impedem uma vida com dignidade, além de, dependendo das circunstâncias, colocarem em risco a própria existência física do ser humano.
Não é sem motivos que a doutrina e a jurisprudência alemãs desenvolveram um direito fundamental não escrito à garantia das condições materiais mínimas para uma existência digna a partir de uma hermenêutica criativa fulcrada na interligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à vida e o princípio do Estado Social. É de se enfatizar, portanto, a direta vinculação do direito à moradia com a assim designada garantia-direito a um mínimo existencial.
Neste sentido manifesta-se Nelson Saule Júnior (2004, p. 145-146), in verbis: “A cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º (incisos II e III), são mandamentos constitucionais para a proteção e satisfação do direito à moradia. Assegurar a cidadania das pessoas não se restringe ao exercício dos direitos civis e políticos; abrange também o exercício dos direitos econômicos, culturais e sociais, como é o direito à moradia. (…) Assegurar a cidadania é o comando para que as ações e políticas públicas desempenhadas pelos órgãos e instituições do Estado brasileiro priorizem a satisfação das necessidades básicas das pessoas que vivem em desigualdade econômica e social. O comando deste fundamento constitucional é trazer as pessoas que estão vivendo esta desigualdade para um patamar mínimo de condições de vida digna, no qual se inclui o acesso a uma moradia adequada.”
Por conseguinte, infere-se que o direito à moradia é, indubitavelmente, um direito fundamental do ser humano, em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana[31], uma vez que este reclama a satisfação das necessidades existenciais básicas (mínimo existencial) de uma vida com dignidade.
Contudo, “se é certo que o direito à habitação encontra-se conectado com a dignidade da pessoa, também é evidente que não se cuida de qualquer habitação, mas sim, da moradia que atenda aos parâmetros da dignidade da pessoa” (SARLET, 2010, p. 34).
Neste particular, o que primeiro deve ser considerado para identificar alguma forma de violação ao direito à moradia é se o direito à vida está sendo devidamente respeitado. Não se pode conceber o direito à moradia como o direito a um abrigo representado apenas pela edificação. Uma moradia habitável tem que atender aos padrões construtivos e oferecer os serviços urbanos essenciais, especialmente, os de saneamento básico, energia elétrica e coleta de lixo.
Destarte, ao se verificar se o direito à moradia está sendo efetivamente implementado devem ser considerados como indicadores o “respeito ao direito à saúde, que implica, por sua vez, a sua relação com o direito à alimentação, ao saneamento básico e a um meio ambiente saudável” (SAULE JR, 2004, p. 167-168).
Considerando que “é sempre preciso morar, pois não é possível viver sem ocupar espaço” (RODRIGUES, 2003. p. 11), figura interessante repisar que o conteúdo do direito à moradia abrange um local para a habitação, com dimensões adequadas, condições de higiene e conforto para os seus habitantes.
Outrossim, impossível não referir que a precariedade nas condições habitacionais incide, com maior destaque, “nas faixas mais baixas de renda da população, em que se observam falta de moradia e, não raramente, precariedade quanto ao padrão de construção, situação fundiária e acesso aos serviços urbanos básicos” (CANUTO, 2010, p. 269).
Tal circunstância é uma lástima, haja vista que, conforme já destacado, a moradia está vinculada às necessidades vitais da pessoa humana e “a falta de uma moradia decente evidentemente acaba, em muitos casos, comprometendo gravemente – senão definitivamente – os pressupostos básicos para uma vida com dignidade.” (SARLET, 2010, p. 102-103)
Importa destacar que, quando a Constituição Federal de 1988 reconhece ao indivíduo o direito fundamental à moradia, não está se referindo, necessariamente, à moradia própria, ou seja, ao direito de propriedade, mas sim ao direito de habitação.
Analisando tal aspecto, manifesta-se com proficiência Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 329-330): “No concernente ao seu conteúdo, impõe-se o registro de que o direito à moradia não se confunde com o direito de propriedade (e do direito à propriedade). Muito embora a evidência de que a propriedade também possa servir de moradia ao titular e que, para além disso, a moradia (na condição de manifestação da posse) acaba, por expressa previsão constitucional e em determinadas circunstâncias, assumindo a condição de pressuposto para a aquisição da propriedade (como ocorre no usucapião constitucional), atuando, ainda, como elemento indicativo do cumprimento da função social da propriedade e da posse, o direito à moradia, convém frisá-lo, é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprio.”
Neste sentido também se orienta o Tribunal Italiano, conforme refere Stefano Maria Cicconetti (2009, p. 100), in verbis: “Ainda que não seja expressamente previsto na Constituição Italiana, parece que deva ser compreendido entre os direitos sociais também o direito à habitação, o qual constitui, devido a sua fundamental importância na vida do indivíduo, um bem primário (que) deve ser adequadamente e concretamente tutelado pela lei. (…) O direito à habitação não foi entendido, na jurisprudência constitucional, como direito a receber uma propriedade, um imóvel em locação ou um alojamento de qualquer sorte, nem como direito subjetivo do locatário à estabilidade de gozo do próprio imóvel alugado. O direito à habitação tem sido entendido em uma outra acepção, definida “frágil”, como pretensão que tem por objeto a conquista da disponibilidade de um local para morar, a qual os entes públicos são chamados a realizar (Sentenças nºs 49 de 1987, 399 e 599 de 1989, 142 e 491 de 1991, 169 de 1994).”
Não obstante, o direito fundamental à moradia, tomado aqui como necessidade humana vital – biológica na sua essência, conforme já referido, é indispensável para uma vida digna, motivo pelo qual deve ser priorizado pelo Estado, mediante a elaboração e execução administrativa de políticas públicas tendentes a sua realização.
Os direitos fundamentais sociais, consoante já mencionado, são direitos com dupla feição – defensiva e prestacional ou negativa e positiva, ambas de observância obrigatória pelo Estado.
Assim, expressando seu caráter defensivo (negativo), “a moradia encontra-se protegida contra a violação por parte do Estado e dos particulares, no sentido de um direito da pessoa a não ser privada de uma moradia digna, inclusive para efeitos de uma proibição de retrocesso” (SARLET, 2010, p. 330).
Já na sua condição como direito prestacional (positivo), vislumbrará a melhoria das condições de vida dos chamados entes sociais menos favorecidos, com o intuito de garantir-lhes condições mínimas de inclusão social e de exercício de suas liberdades. Neste sentido, múltiplas serão as possibilidades, já que “o direito a efetivação do direito à moradia depende tanto de medidas de ordem normativa (…) como de prestações materiais.”[32]
Por conseguinte, a atuação do Poder Público deve garantir a efetividade dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, com mecanismos coercitivos, já que a Constituição Federal não se satisfaz abstratamente com o simples reconhecimento de um direito. Em que pese o direito à moradia possuir aplicação imediata, indispensável a atuação estatal no sentido de proteger e facilitar o seu pleno exercício, mediante a vigência conjunta de normas constitucionais e infraconstitucionais que protejam, beneficiem e facilitem o exercício desse direito.
O Estado Democrático – e Social – de Direito, para existir, tem que realizar os princípios fundamentais constitucionais a fim de assegurar a ordem e o bem-estar dos cidadãos. O Estado ideal, previsto na norma, não será alcançado sem um conjunto de ações do Poder público e dos cidadãos, o qual se constitui no meio de realizar o que é melhor para o homem, já que é para ele, em análise primária e final, que o Estado e o ordenamento jurídico existem.
Ademais, conforme infere Sérgio Iglesias Nunes de Souza (2008, p. 117-118), em decorrência da fundamentalidade do direito à moradia, a sua violação implica em ilicitude. Destaca o citado autor: “Há a violação do direito à moradia sempre que for implantado um sistema infraconstitucional ou qualquer ato advindo de autoridade pública que importe em lesão a esse direito, em redução, desproteção ou atos que inviabilizem o seu exercício, porque o direito à moradia goza de proteção fundamental, tratando-se de um dever inerente ao Estado (por intermédio dos três poderes) de respeitar, proteger, ampliar e facilitar esse direito fundamental. Dessa forma, toda e qualquer legislação infraconstitucional que suprima, dificulte ou impossibilite o exercício do direito à moradia por um indivíduo – tem-se a sua violação, ainda que por norma validamente constituída e promulgada – é tida como violadora do direito à moradia.”
De tal sorte, compete ao Estado, mormente mediante a adoção de políticas públicas e a concretização de normas infraconstitucionais, a garantia do mínimo existencial aos seus cidadãos de sorte a viabilizar a vida humana com dignidade. Endossando tal afirmativa, pontua Stefano MariaCicconetti (2008, p. 101), in verbis: “O Estado não pode em nenhum caso abdicar à tarefa de agir no sentido de garantir ao maior número de cidadãos um fundamental direito social como propriamente o direito à habitação, contribuindo para que a vida de cada pessoa reflita todos os dias e sob qualquer circunstância a imagem universal da dignidade humana.”
Destarte, como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas ações no sentido de garantir a inserção dos indivíduos na conjuntura da sociedade – na qual este se apresenta como sujeito de direitos, mediante a disponibilização do mínimo necessário para o acesso aos meios de inclusão social, precipuamente no tocante ao direito à moradia.
1.2. FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA PROPRIEDADE COMO ESTATUTO JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO
Visando adequar-se aos novos direitos tutelados pelo ordenamento jurídico, o direito de propriedade vem sofrendo profundas alterações. Com o advento da Constituição Federal de 1988, novos contornos à forma de entender a propriedade privada foram traçados[33], de sorte que, se antes o proprietário era o dominus soli, o qual possuía a faculdade de usar ou não a sua propriedade ao seu bel prazer, hodiernamente essa noção deve ser relativizada, uma vez que a propriedade possui um caráter difuso, devendo atender aos interesses da coletividade como um todo.[34]Abordando esta dicotomia, Ricardo Aronne (1999, p. 182-183) destaca:“A propriedade contemporânea se encontra arrimada em dois princípios que conduzem à sua compreensão como faculdade do sujeito ativo de exigir a abstenção dos sujeitos passivos na ingerência da coisa, para possibilitar suas faculdades reais na mesma, bem como do dever desse sujeito, agora na condição passiva do adimplemento, volver o domínio em prol do coletivo, funcionalizando-o, de modo que o bem atenda o fim social que lhe é destinado. A abertura do conceito perseguido advém pelo preenchimento axiológico pelos dois princípios que concorrem na sua construção, a infomá-lo diretamente. O princípio da garantia da propriedade, como acesso e defesa da propriedade individual privada e seu livre exercício, trazendo em seu bojo valores individualistas, aceiros pelo princípio da liberdade em seus limites e o princípio da função social da propriedade, exacerbador do pluralismo, informado pelo princípio da igualdade, que fazendo contraponto ao anterior, relativiza o individualismo pelo interesse público e social.”
Assim, a propriedade privada, que até então era considerada absoluta e ilimitada, tornou-se incompatível com a nova configuração dos direitos de ordem pública, os quais passaram a limitá-la no interesse da coletividade, incorporando valores sociais e ambientais ao seu uso.
O direito de propriedade passou a apresentar uma face como a de Janus[35], deixando de ser medido exclusivamente a partir do ponto de vista do proprietário e passando a ser delineado conforme os interesses da coletividade. Conseqüentemente, a justa aplicação do direito de propriedade depende do ponto de equilíbrio entre interesse coletivo e individual. Neste sentido, é interessante a reflexão trazida por Liana Mattos (2000, p. 57), in verbis: “O instituto da propriedade sofreu profundas alterações ao longo dos diferentes paradigmas de sociedade e, num segundo momento, de Estado, pelos quais passou a humanidade. A linha de evolução da propriedade privada tem início numa forma coletiva de uso para, depois, reverter essa tendência primeva no sentido de uma individualização levada a níveis extremos em determinados momentos. Hodiernamente, a propriedade privada vem recebendo ingerências de ordem pública cada vez mais freqüentes, o que já se traduz numa tendência da propriedade para adquirir, de modo crescente, contornos cada vez mais coletivos.”
De tal sorte, a propriedade privada, tanto a urbana quanto a rural, é garantida desde que atenda a sua função social, devendo estar vinculada às suas finalidades, “o que significa que deve assegurar a todos existência digna, conforme os ditames de uma justiça social efetivamente isonômica” (LEAL, 1998. p. 120).
Ou seja, a função social da propriedade constitui um direito coletivo a que corresponde um dever individual do proprietário de dar ao bem um destino útil para a sociedade. Ela coexiste com o direito individual de propriedade, a que corresponde o dever coletivo de respeitar o uso do bem pelo seu titular. Assim, somente será legítima a propriedade que atender aos fins coletivos; a propriedade individual, voltada exclusivamente para os interesses individuais do proprietário, não é mais concebida diante da ordem jurídica vigente.
Por conseguinte, a noção de propriedade privada e de direito fundamental à propriedade está condicionada ao pleno exercício da função social da propriedade. Cumpre destacar que tal princípio, ao se relacionar diretamente com o direito fundamental à propriedade por impor determinados comportamentos aos detentores desta, possui, assim como este, status de direito fundamental. Ademais, passa a ser princípio que rege a ordem econômica e, ao lado da função social da cidade, é a base normativa onde deve repousar toda a política urbana.
Do exposto, figura inequívoco que o direito de propriedade urbana já nasce limitado[36] por uma função social que visa a “desenvolver as funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, segundo um planejamento urbano que defina os índices urbanísticos aplicáveis a cada terreno” (PINTO, 2005, p. 215), razão pela qual, é possível afirmar que o princípio da função social da propriedade é o princípio vetor do direito urbanístico brasileiro, o qual justifica as limitações à propriedade imobiliária urbana.
Nesta esteira Ricardo Aronne (1999, p. 185)ensina que: “Não merece, pois tutela, a propriedade não funcionalizada, eis que inoponível por sucumbir o interesse individual em face do interesse público, se verificado em contrário ao proprietário no caso concreto. Como já dito, à espécie é cabível a intervenção estatal em prol da funcionalização, tendo em vista que, ante todo o exposto, pode-se dizer, sem medo de errar, que a propriedade constitui um direito e um encargo, a propriedade obriga.”
Outrossim, aliado ao princípio da função social da propriedade, o constituinte de 88 trouxe como inovação o princípio da função ambiental da propriedade, segundo o qual o direito de propriedade deve ser exercido atendendo aos requisitos de proteção ao meio ambiente, motivo pelo qual a atividade do proprietário imobiliário configura-se como direito-dever em favor da sociedade, titular do direito difuso ao meio ambiente.
Neste sentido, preleciona Carlos Molinaro (2007, p. 104): “Num Estado Socioambiental e Democrático de Direito, o princípio nuclear tem sede no direito fundamental à vida e a manutenção das bases que a sustentam, o que só se pode dar num ambiente equilibrado e saudável, onde vai concretizar-se, em sua plenitude, a dignidade humana; ademais, um tipo de Estado com esta característica está comprometido com o privilegiar a existência de um “mínimo ecológico”, pois tem a obrigação de proteção à posteridade.”
Na atual ordem jurídica, a função socioambiental da propriedade, além de permitir ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo que não prejudique a coletividade e o meio ambiente, também impõe comportamentos positivos para que a propriedade se adapte à preservação do meio ambiente, mediante o seu racional e adequado aproveitamento, o que inclui a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação da biota.
Desta forma, a propriedade apenas cumprirá sua função socioambiental quando também estiver em consonância com o disposto no artigo 225 da Constituição. Daí porque o direito de propriedade deve ser exercitado em conformidade com as suas finalidades econômicas e sociais, e de modo que sejam preservados, nos termos do estabelecido em lei, a flora, fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e a proteção ao patrimônio histórico e artístico, evitando-se, sempre, a poluição do ar e da água, o que se aplica plenamente às propriedades situadas nas zonas urbanas.[37]
Não obstante, tal qual o direito à moradia, o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado possui um duplo caráter, quais sejam de defesa e prestacional ou negativo e positivo, conforme infere Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros (2004, p. 32-33): “O direito e o dever fundamental do meio ambiente consubstancia-se em um caráter de função mista em relação à teoria dos direitos fundamentais, em virtude da diversidade de normas existentes no artigo 225 da Constituição Federal. O direito fundamental de proteção ambiental, assim como o dever, possui um caráter em sentido prestacional, quando cumpre ao Estado, por exemplo, prestar a proteção aos recursos naturais – representados pelo ecossistema ecologicamente equilibrado – ou a promoção de alguma atividade para a efetiva proteção do meio ambiente, contra intervenções de terceiros e do próprio Poder Público. Assume, ainda, seu caráter em sentido de defesa quando proíbem seus destinatários de destruir, de afetar negativamente o objeto tutelado.”
Da análise do até agora exposto, percebe-se, como muito bem destaca Moreira Neto (19991, p. 332), que “a liberdade, no caso do proprietário de um imóvel urbano, não esta mais em parcelá-lo ou construí-lo a seu alvedrio, mas em ser ou não proprietário.” A função social da propriedade é um elemento estrutural e necessário para que o próprio direito de propriedade seja garantido ao seu titular, ou seja, se o titular da propriedade não der destinação social à mesma, o seu direito não deverá ser protegido.
Conquanto, considerando as previsões constantes no Plano Diretor de cada município, a propriedade privada deve se sujeitar à política urbana estabelecida na localidade, de sorte que o imóvel, principalmente o urbano, deixa de ser uma mercadoria, passível de ser estocada para fins de especulação, passando a ser um bem individual de expressão social, cujos contornos econômicos estão vinculados às definições restritivas de interesse público específico local.
Assim, conforme previsão expressa constante no artigo 182, § 4º da Constituição Federal, o município está autorizado a atuar, tendo como base as indicações constantes no Plano Diretor das áreas do perímetro urbano onde poderão ser utilizadas as medidas de exigência do parcelamento[38], da edificação e da utilização compulsórios, mediante prévia notificação, imposição de alíquotas progressivas de Imposto Predial e Territorial Urbano e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, quando verificada a não edificação, a subutilização e a não utilização de imóveis urbanos, buscando a otimizar o uso da infraestrutura urbana e evitar a especulação imobiliária nos centros urbanos.
Tal possibilidade foi propiciada ao município pelo constituinte considerando a nova diretriz traçada pelo plano constitucional no sentido de que a propriedade urbana deve cumprir a sua função socioambeital e por isso os imóveis devem ser adequadamente aproveitados.[39] O cumprimento da função socioambiental da propriedade, observadas as disposições constantes no Plano Diretor, é uma das formas que visa a ordenar o pleno desenvolvimento da função social da cidade, para garantir o bem-estar de seus habitantes.
Verifica-se, por via de consequência, que tais limitações configuram-se em medidas estatais interventivas de promoção do interesse público, por meio da regulamentação do exercício do direito de propriedade, em conformidade com o princípio da função social da propriedade. Analisando tal circunstância, Nelson Saule Jr. (2004, p. 271-272) refere: “Estes instrumentos devem ser considerados como instrumentos de indução dos terrenos vazios ou subutilizados, localizados em áreas dotadas de infra-estrutura e equipamentos, para a urbanização e ocupação prioritária destas áreas, evitando a pressão de expansão da área urbana e o impacto negativo ao meio ambiente. Os instrumentos adotados pelo texto constitucional têm por característica obrigar o proprietário a um comportamento positivo de promover uma destinação concreta para a sua propriedade. São mecanismos destinados a impedir e inibir o processo de especulação imobiliária nas cidades, conferindo aos imóveis urbanos ociosos uma destinação voltada a beneficiar a coletividade. Na falta dessa destinação, o Poder Público municipal está constitucionalmente capacitado para atuar com o objetivo de tornar social a função da propriedade urbana.”
Corroborando com esta diretriz de induzir o proprietário a utilizar adequadamente o seu imóvel, a Constituição traz, em seu artigo 184, previsão similar para os imóveis rurais, estabelecendo que o descumprimento da função socioambiental da propriedade rural poderá ensejar a desapropriação por interesse social para reforma agrária pela União Federal.
Além das disposições constantes na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, diversas outras leis infraconstitucionais possuem como objeto a garantia da preservação da ordem urbano-ambiental, sobretudo na esfera municipal, tais como os planos diretores, as leis de zoneamento, as leis de uso e ocupação do solo, as leis de parcelamento, as leis de regularização fundiária, as leis de proteção do patrimônio histórico-cultural e as leis de proteção do patrimônio ambiental.
Na seara do Estatuto da Cidade verificamos a existência dos mecanismos de planejamento municipal já referidos, a saber, plano diretor, zoneamento ambiental, institutos jurídicos (v.g., tombamento de imóveis e unidades de conservação), dentre outros, os quais buscam garantir a organização da cidade, observando a ordenação e o controle do uso do solo, para evitar a poluição e a degradação ambiental, de sorte a garantir a proteção, a preservação e a recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.
Verificamos, ainda, disposição referente à obrigatoriedade de audiência do Poder Público municipal e da população nos procedimentos sobre obras ou atividades que possam causar impactos ao meio ambiente natural ou construído, ao bem-estar ou à segurança das pessoas.
Ademais, estabelece o referido diploma legislativo a exigência de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana, que guardem compatibilidade com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica, tanto do Município quanto do território por aquele influenciado.
Contudo, soe destacar que referidas limitações ao direito de propriedade devem respeitar, sobretudo, o princípio da proporcionalidade, de sorte que, nos termos do proferido por Gilmar Mendes (2009, p. 482), tais restrições legais figurem adequadas, necessárias e proporcionais, in verbis: “Nesse passo, deve-se reconhecer que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária. As disposições legais relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo. Isso não significa, porém que o legislador possa afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A definição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o direito de propriedade enquanto garantia institucional. Ademais, as limitações impostas ou as novas conformações emprestadas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais.”
Infere (MENDES, 2009, p. 483), complementarmente, que: “O legislador dispõe de uma relativa liberdade na definição do conteúdo da propriedade e na imposição de restrições. Ele deve preservar, porém, o núcleo essencial do direito de propriedade, constituído pela utilidade privada, e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade.”
Refletindo acerca do aspecto do constituinte ter deferido ao legislador ordinário o poder não só de restringir o exercício do direito de propriedade, como também de definir o próprio conteúdo desse direito, é possível identificar o caráter institucional da garantia constitucional da propriedade, bem como a normatividade do seu âmbito de proteção.
Conquanto, verifica-se latente o desiderato do legislador pátrio no sentido de estabelecer mecanismos assecuratórios do direito dos cidadãos a habitar em um ambiente com excelência, concretizando o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Salienta Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 102-103): “Não obstante as diversas interpretações que possam ser outorgadas à assertiva, parece-nos que é neste sentido – da vinculação do direito de e à propriedade com a dignidade da pessoa humana – que devemos (ou, pelo menos, podemos) compreender a conhecida frase de Hegel, ao sustentar – numa tradução livre – que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa (Sphäre ihrer Freiheit), o que, à evidência, não exclui o já referido conteúdo social da propriedade, mas, pelo contrário, outorga-lhe ainda maior sentido. Aliás, é a partir de uma benfazeja releitura do direito de propriedade à luz da dignidade da pessoa humana que autores do porte de um Luís Edson Fachin sustentam a noção de um estatuto jurídico-constitucional do patrimônio mínimo, que, em certo sentido, não deixa de guardar conexão com a idéia de um mínimo existencial para uma vida com dignidade.”
Neste diapasão é relevante indicar a distinção semântica, apontada pela doutrina, entre os conceitos de propriedade e patrimônio, a medida que “a noção do patrimônio personalíssimo, assumidamente paradoxal, está agregada à verificação concreta de uma real esfera patrimonial mínima, mensurada pela dignidade humana à luz do atendimento de necessidades básicas ou essenciais.” (FACHIN, 2000. p. 23).
Em realidade, a noção de patrimônio não é unívoca, haja vista tratar-se de “um conceito complexo e com diversos sentidos legítimos, ligados ou não à percepção econômica. No âmbito desta tarefa, sem prejuízo desses elementos culturais, o patrimônio informa uma base de bens materiais, suscetíveis de valoração, inclusive (e especialmente) pecuniária” (FACHIN, 2006, p. 271).
Não obstante, impõe-se uma dimensão própria de patrimônio, bem como uma determinação específica do que se compreende por personalíssimo, abrangendo modos de satisfação integral dos anseios primordiais do ser humano.
Outrossim, considerando que a titularidade das coisas não pode ser um fim em si mesmo, Luiz Edson Fachim defende a tese do patrimônio mínimo, segundo a qual a ordem econômica está condicionada ao asseguramento a todos de uma existência digna, em consonância com os ditames constitucionais.
Destaca o referido autor (FACHIN, 2006, p. 285-286): “Não se trata apenas de voltar a reconhecer que o trabalho justifica o patrimônio. Trata-se, isso sim, de ressaltar que a titularidade das coisas não pode ser um fim em si mesmo. Conferir guarida a patrimônio que, minimamente, garanta a sobrevivência de alguém não é proceder que deva relegar a preocupação com aqueles que, no Brasil, nada ou pouquíssimo tem. Tal estatuto de proteção porta a mesma base de ideias dessa tormentosa questão, ainda que não confunda com os mecanismos de acesso aos bens.”
Convém destacar que o patrimônio, na tese em questão, não está adstrito ao campo ou à cidade, aplicando-se indistintamente a todas as concentrações populacionais, haja vista seu intuito de garantir uma subsistência digna aos cidadãos. Da mesma sorte, crucial referir que quanto indica “patrimônio mínimo”, tal adjetivo não é referido por quantidade, mas sim por valor, ou seja, para o “justo do caso concreto”.[40] Portanto, infere-se que a tese em comento encontra-se diretamente vinculada ao princípio da dignidade da pessoa humana, imperativo ético-jurídico que se projeta no direito para a defesa dos direitos mínimos do cidadão (mínimo existencial).[41]
Destarte, a reflexão acerca do patrimônio “pode (e deve) estender-se em dois horizontes complementares: o primeiro, aquele que supere o limite individual da guarida e abrace a coletividade; o segundo, aquele que voe do presente para alcançar o futuro, mesmo que em incerta e improvável utopia” (FACHIN, 2006, p. 287-189). Nesta concepção, a propriedade, destituída de seu absolutismo e individualismo, passa a ser um instrumento de realização de interesses para os não-proprietários, a partir do momento em que a função da propriedade é aplicada como um meio de redução das desigualdades entre os proprietários e os não-proprietários.
Pontua o ilustre autor (FACHIN, 2006, p. 1): “A pessoa natural, ao lado de atributos inerentes à condição humana, inalienáveis e insuscetíveis de apropriação, pode ser também, à luz do Direito Civil brasileiro contemporâneo, dotada de uma garantia patrimonial que integra sua esfera jurídica. Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado consoante parâmetros elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada. Por força desse princípio, independente de previsão legislativa específica instituidora dessa figura jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade como abonação, ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se existir essa imunidade juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores.”
Impõe referir que tal diretriz não atesta que a melhor decisão seja operar em desfavor do proprietário, uma vez que a propriedade, a qual encontra-se no sistema da livre iniciativa e do capitalismo, também vai ao encontro dos fins constitucionais. Todavia, tal direito deve ser exercido com observância ao atendimento da função socioambiental da propriedade.
Conquanto, se a propriedade é funcionalizada há de se garantir o exercício do direito de propriedade para o seu proprietário. Contudo, no entrechoque do direito fundamental e individual de propriedade com o direito social à moradia, deve prevalecer a garantia do direito social à moradia, quando o proprietário não desempenha uma função social sobre a sua propriedade. Neste último caso, deverá ser protegido o direito do possuidor que desempenha, sobre o imóvel alheio, função social em decorrência da sua moradia.
Assim, aquele que utiliza imóvel alheio para moradia deve ter o seu direito à moradia preservado, desde que esteja em questão o mínimo existencial do possuidor e, de outro lado, que o proprietário não esteja funcionalizando o imóvel.[42]
Por conseguinte, defende-se que, sempre que não estejam em jogo as circunstâncias impedientes outrora referidas, o direito à habitação digna deve se concretizar em toda a sua plenitude, como, verbi gratia, nos casos que, postos perante o Estado-juiz para decisão, estejam em litígio a prevalência do direito de habitação sobre uma propriedade não utilizada ou pouco utilizada – a qual não observa a sua função social, ou da sua prevalência em face de uma propriedade a serviço da especulação imobiliária.
Compete ao Estado, utilizando-se dos mecanismos postos a sua disposição em todas as suas funções, efetivar a aplicabilidade imediata do direito fundamental à moradia adequada ao seu cidadão, concretizando o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e a garantia de seu mínimo existencial, atendendo aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade – dentro dos ditames da justiça social, de sorte a concretizar o pacto federativo.
1.3. FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO
No curso da história as cidades foram sendo criadas para atender às necessidades do homem. Conforme alude Thomas Hobbes (2001, p.15), em sua obra Leviatã, as cidades (ou Estado) nada mais são “senão um homem artificial, de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi criado.”[43]
Por conseguinte, a concepção de cidade está ligada ao cidadão na medida que suas características – para um setor industrial, comercial ou turístico – estarão diretamente vinculadas à população que habita em seu território. Consoante alude o escritor cubano-italiano Ítalo Calvino (1972, p.122) “la città per chi passa senza entrarci è una, e un’altra per chi ne è preso e non ne esce; una è la città in cui s’arriva la prima volta, un’altra quella che si lascia per non tornare.”[44]
Ademais, será justamente a vocação apresentada por cada cidade que definirá a sua função social, de sorte que, conforme o desenvolvimento da cidade, será implementado o desenvolvimento urbano e as “chamadas funções elementares, que se efetivam no condicionamento adequado do direito à moradia, ao trabalho, à recreação do corpo e do espírito, à circulação” (SILVA, 2007, p. 737).
Neste particular, a partir de uma interpretação sistemática[45] das normas contidas em nosso texto constitucional, é possível deduzir que o constituinte originário, além das novas diretrizes estabelecidas referente à função socioambiental da propriedade, buscou garantir aos cidadãos o direito fundamental à cidade[46]. Tal interpretação é deduzida da simbiose das diretrizes vinculadas à política urbana e ao meio ambiente, ventiladas, respectivamente, nos artigos 182, 183 e 225 da Constituição Federal, aliado ao direito social à moradia, preconizado no artigo 6º da Constituição Federal, e à gestão democrática decorrente do Estado Democrático de Direito, expressamente previsto no artigo 1º da Constituição Federal.
Assim, a cidade, a partir da nova ordem constitucional estabelecida pela Magna Carta de 1988, passou a ter uma dimensão constitucional, e o direito à cidade, considerada a ordem urbanística, visualiza toda a pluralidade que carrega em seu bojo.
Em linhas gerais, o direito à cidade preconiza a proteção dos direitos inerentes às pessoas que habitam nas cidades de gozarem de uma vida urbana digna, exercitando plenamente a cidadania – mediante a participação na gestão da cidade; os direitos humanos – aí abrangidos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; bem como o direito a viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.
Outrossim, partindo das diretrizes fixadas nos artigos 182 e 183 da CF, adveio a Lei Federal 10.257/01, também conhecida como Estatuto da Cidade, a qual objetiva estabelecer os pilares sobre os quais deve se estruturar a Política Urbana, conciliando regras de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana para garantir o bem coletivo, a segurança, o bem-estar das pessoas e o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Desta sorte, estabelece o Estatuto da Cidade que configuram diretrizes da política urbana, entre outras, (a) a garantia do direito a cidades sustentáveis, o que inclui o direito ao saneamento ambiental; (b) o planejamento das cidades de modo a evitar e corrigir distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; (c) a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e degradação ambiental; (d) a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; e, finalmente, como forma de participação da sociedade, (e) a audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população.
Constata-se, portanto, que o Estatuto da Cidade possui uma incessante preocupação com a preservação do meio ambiente, uma vez que diversos instrumentos de proteção são postos pelo citado plexo normativo e devem ser aplicados pelo Administrador Público, sob pena de cometimento de ilegalidades, que podem ensejar em responsabilização civil, penal e administrativa pelo descumprimento.
Por conseguinte, a mencionada lei redefine, em seus artigos, a função socioambiental da propriedade, outorgando-lhe contornos firmes, e cria instrumentos que possibilitam uma intervenção mais concreta e efetiva do Poder Público no desenvolvimento urbano. Percebe-se, assim, que o Estatuto da Cidade tem contribuído para a caracterização e efetivação da função social e ambiental da propriedade urbana, uma vez que regula o uso da propriedade em prol do equilíbrio ambiental e da garantia às cidades sustentáveis ao estabelecer ações e medidas vinculando o desenvolvimento urbano ao direito ao meio ambiente, à terra urbana, à moradia, à infraestrutura urbana[47], ao transporte e serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, a fim de reduzir as desigualdades sociais.
Outrossim, consoante destaca Elida Séguin (2002, p. 143), a função social da cidade compreende: “O direito da população a uma moradia digna, transporte coletivo em número suficiente e com periodicidade compatível com a demanda, saneamento básico, água potável, serviço de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento de alimentos e bens, iluminação pública, saúde pública, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural, com especial enfoque para o entorno.”
Em realidade o princípio da função socioambiental da cidade, norteador da política urbana, permite direcionar ou redirecionar recursos e riquezas de forma mais justa para combater as desigualdades econômicas e sociais vivenciadas pelos cidadãos. O seu efetivo cumprimento ocorre no momento em que é coibida a especulação imobiliária e são minoradas as diferenças socioeconômicas intraurbanas através da democratização do planejamento e da gestão urbanos. Tais medidas só reúnem condições de serem alcançadas se o plano diretor de cada cidade for desenvolvido e cumprido para o destinatário da cidade, o seu habitante. Isso significa dizer que “o plano diretor deve se pautar pelo equilíbrio entre as formas de desenvolvimento econômico e de desenvolvimento social e urbano da cidade” (CANUTO, 2010, p. 139-140).
Neste diapasão, estabelece o artigo 2º, I do Estatuto da Cidade a garantia do direito a cidades sustentáveis[48] como uma das diretrizes gerais da política urbana, compreendendo-se no conceito de cidades sustentáveis como sendo aquelas que garantem direitos mínimos aos seus cidadãos. Analisando tal conceito, Nelson Saule Junior (2004, p. 246) refere: “A cidade atende sua função social quando suas atividades e funções geram como resultado a redução das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza, a promoção da justiça social e a melhoria da qualidade de vida urbana, de modo que todos tenham condições e oportunidades de acesso à moradia, aos equipamentos e serviços urbanos, ao transporte público, ao saneamento ambiental, à saúde, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, que são os componentes inerentes ao direito a cidades sustentáveis.”
De tal sorte, no Estado Socioambiental Democrático de Direito, cidade sustentável é uma cidade democrática, na qual se garanta o direito para as futuras gerações, mediante “a adoção dos princípios da precaução e da prevenção como elementos informadores das políticas públicas, em especial da urbano-ambiental” (PRESTES, 2009, p. 88).
A falta de sustentabilidade da cidade é verificada, conforme pontua Henri Acselrad (1999, p. 79-90), no momento em que ocorre um descompasso entre o desenvolvimento urbano e as condições de vida do cidadão que habita o território, in verbis: “Quando o crescimento urbano não é acompanhado por aumento e distribuição equitativa dos investimentos em infra-estrutura e democratização do acesso aos serviços urbanos as desigualdades socioespaciais são geradas ou acentuadas. Na nova elaboração de políticas publicas destinadas a reorientar o desenvolvimento sustentável da cidade não se pode ignorar que existe uma forma social durável de apropriação e uso do meio ambiente daquela própria natureza das formações biofísicas”, isto é, que existe uma “diversidade de formas sociais de duração dos elementos da base material de desenvolvimento.”
Não obstante, figura relevante a análise da questão atinente à abrangência do conceito de cidade, tendo em vista a necessidade de limitarmos territorialmente a amplitude que as diretrizes de planejamento, exigidas do legislador infraconstitucional, devem ganhar.
Em que pese a orientação de alguns doutrinadores no sentido de fragmentar o estudo do direito urbanístico, excluindo de sua regulamentação as matérias vinculadas às áreas rurais[49], prepondera o entendimento de que o direito urbanístico não pode estar alheio ao aspecto rural dos territórios, devendo prevalecer uma visão integrada da cidade[50], conforme preconizado no artigo 40, § 2º do Estatuto da Cidade[51].
O Estatuto da Cidade define a abrangência territorial do Plano Diretor de forma a contemplar as zonas rurais com respaldo no texto constitucional. A política urbana, de acordo com a diretriz prevista no inciso VII do artigo 2º do Estatuto da Cidade deve promover a integração e a complementaridade entre atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência.
A Constituição, ao prescrever que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, não diferenciou os habitantes situados na zona rural dos que estão situados na zona urbana. A realidade das cidades demonstra, cada vez mais, a ligação entre as atividades promovidas na zona rural e as atividades realizadas na zona urbana.
De tal sorte, hodiernamente a dicotomia “Cidade X Campo” ou “Urbano X Rural” está superada principalmente em virtude da complexidade do modo de viver atual, motivo pelo qual o Município, para promover a política de desenvolvimento urbano, deve possuir um Plano Diretor com normas voltadas a abranger a totalidade de sua população e, por conseguinte, de seu território, compreendendo tanto a área urbana, quanto a rural, sob pena do Plano Diretor que se restringir apenas à zona urbana e de expansão urbana padecer, segundo o entendimento de Nelson Saule Junior (2004, p. 256-257), de vício constitucional.
Outrossim, a medida que se garante o desenvolvimento sustentável dos territórios, com observância a sua função socioambiental, maior é o respeito que se confere aos seus cidadãos, concretizando-se, assim, os preceitos vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O indivíduo que habita em um espaço que contenha as condições mínimas para uma sobrevivência digna poderá desenvolver-se com maior tranqüilidade e qualidade, situação que acarretará benefícios para toda a sociedade. Neste diapasão importa referir a necessidade de proteção contra um retrocesso social, ou seja, contra medidas de cunho retrocessivo que importem em redução ou, até mesmo, destruição dos direitos já adquiridos pelos cidadãos.
Refletindo acerca de tal necessidade, José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 338-339) infere: “A idéia aqui expressa também tem sido designada como proibição de “contra-revolução social” ou da “evolução reaccionária”. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais económicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A “proibição do retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises económicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direiots adquiridos (ex: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultura, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.”
Em realidade, trata-se de critério hermenêutico, uma vez que o intérprete, ao analisar o princípio da proibição do retrocesso social – ou proibição de regresso – no aspecto da igualdade de tratamento dos direitos sociais, deve “manter um trajeto gradualista, sempre ascendente em busca de maior igualdade, de forma a evitar recuos históricos na proteção destes direitos” (SLAIBI FILHO, 2006. p. 106).
Neste diapasão Juarez Freitas (2004, p. 206) destaca que as limitações aos direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, mormente em virtude do regime unitário das suas várias gerações, “donde segue que, no âmago, todos os direitos têm eficácia direta e imediata, reclamando crescente acatamento, notadamente tendo em vista os direitos sociais, encontrando-se peremptoriamente vedados os retrocessos.”
Com efeito, resta evidente que a dignidade da pessoa humana é suporte basilar para a proibição do retrocesso social, haja vista que as medidas supressivas ou restritivas dos direitos fundamentais, em especial os sociais, afetam diretamente a dignidade humana, revelando-se, assim, inadmissíveis. Porquanto, traduz-se num dever do Estado a preservação das prestações mínimas (mínimo existencial) para uma vida condigna e, quanto a elas, a reserva do possível constitui-se numa falácia.
Destarte, pontuando a conexão entre a atuação Estatal e a vedação do retrocesso social, como forma de concretizar o princípio do Estado de Direito, já se manifestou o Tribunal Constitucional Federal Alemão, consoante desta Leonardo Martins (2005, p. 723): “Se o legislador federal estatuiu (…) uma proibição repressiva com a reserva de isenção (Befreiungsvorbehalt), então ele leva em conta a circunstância segundo a qual normalmente também uma proibição justificada racionalmente pode entrar, no caso concreto, em conflito com os princípios da proporcionalidade e da proibição de excesso, que, como uma decisiva regra central para todas as atuações estatais, derivam necessariamente do princípio do Estado de direito. (BVerfGE 23, 127 [133] com outras referências; BVerfGE 35, 382 [400 s.]).”
De tal sorte, é possível inferir uma vinculação direta dos órgãos estatais ao núcleo essencial já concretizado na seara dos direitos sociais, motivo pelo qual o Estado, personificado através de seus Poderes – ou Funções –, está obrigado a cumprir os mandamentos constitucionais e a respeitar as garantias já obtidas pela sociedade, sob pena de chancelarmos uma violação à Constituição Federal.
Com efeito, ao Estado – na figura do Poder Legislativo – é vedado, em que pese o seu espaço de prognose e decisão, eliminar as normas jurídicas concretizadoras dos direitos fundamentais[52], em particular dos sociais, uma vez que tal postura ocasionaria a subtração da eficácia jurídica das normas constitucionais. Neste particular, destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 434) que a eliminação de direitos fundamentais, sobretudo dos sociais, acarreta uma violação direta ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, in verbis: “Mediante a supressão pura e simples do próprio núcleo essencial legislativamente concretizado de determinado direito social (especialmente dos direitos sociais vinculados ao mínimo existencial) estará sendo afetada, em muitos casos, a própria dignidade da pessoa, o que desde logo se revela inadmissível, ainda mais em se considerando que na seara das prestações mínimas (que constituem o núcleo essencial mínimo judicialmente exigível dos direitos a prestações) para uma vida condigna não poderá prevalecer até mesmo a objeção da reserva do possível e a alegação de uma eventual ofensa ao princípio democrático e da separação dos poderes.”
Diante disso, é possível inferir que a promulgação de normas infraconstitucionais que dificultem ou inviabilizem o exercício do direito à moradia, nas suas mais variadas formas, afronta não só o dever do Estado em garantir e efetivar o direito à moradia, mas também poderá ser tida como inconstitucional, em virtude da disparidade em relação ao artigo 6° da Constituição Federal de 1988.
Nesta linha de princípio soe destacar que, consoante orientação da doutrina constitucional mais moderna, em se tratando de limitação a direitos fundamentais, em especial aos direitos sociais, deve-se perquirir não apenas acerca da admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também da sua compatibilidade com o princípio da proporcionalidade. Neste sentido, pontua Gilmar Mendes (2009, p. 487): “Essa nova orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt dês verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a consecução dos objetivos pretendidos (Geergnetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit).”
Assim, a definição do conteúdo e a imposição de limitações ao direito de propriedade deverão observar o princípio da proporcionalidade de sorte que o legislador é compelido a concretizar um modelo social fundado, de um lado, no reconhecimento da propriedade privada, e, de outro, no princípio da função socioambiental da propriedade, consoante já referido no capítulo anterior.
Não obstante, competirá ao princípio da proporcionalidade, igualmente, ponderar a validade de toda e qualquer restrição vinculada ao direito do indivíduo a habitar em uma cidade que respeite a sua função socioambiental. Assim, ao vislumbrar eventual norma que apresente um retrocesso social na seara dos direitos fundamentais sociais, competirá ao julgador, amparado no princípio da proporcionalidade, auferir a sua efetiva validade no sistema jurídico-normativo vigente.
Com efeito, toda e qualquer intervenção que acarrete restrições aos direitos sociais exige uma efetiva ponderação entre a agressão provocada pela lei restritiva à confiança individual e a relevância do objetivo almejado pelo legislador para o bem da coletividade, haja vista que toda medida de cunho retrocessivo, para que não seja tida como inconstitucional, deve possuir uma justiticativa de porte constitucional, bem como resguardar o núcleo essencial dos direitos sociais, sobretudo no que diz respeito às prestações materiais indispensáveis para uma vida digna (mínimo existencial). (2008, p. 17)
Tal reflexão leva-nos à constatação de que o princípio da proibição do retrocesso atua, em realidade, como um fator assecuratório de um padrão mínimo de continuidade do ordenamento jurídico, conferindo-lhe segurança jurídica[53]. Neste diapasão destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 433): “A doutrina constitucional contemporânea tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a segurança jurídica passou a ter o status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito.”
Assim, infere-se que a íntima ligação entre o princípio da proibição do retrocesso e o direito à segurança jurídica está diretamente atrelada à necessidade de proteção da confiança do indivíduo na ordem jurídica e, em particular, na estabilidade e continuidade do direito. Outrossim, somente em um Estado onde seja garantida a estabilidade das relações jurídicas poder-se-á garantir a concretização do princípio da dignidade humana, haja vista que em um Estado aonde as pessoas “não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas” (2008, p. 15), será inviável tal intento.
Por conseguinte, é inegável a relevância que assume o princípio da proporcionalidade no tocante à conformação (ou restrição do direito à moradia), bem como da proibição de retrocesso social no âmbito do direito fundamental à cidade. O acesso à moradia, à cultura, ao lazer, à segurança, à educação, à saúde, ao transporte público e ao saneamento básico são, pois, necessidades que deverão ser atendidas para que a cidade cumpra a sua função social.
Não obstante, tais questões não podem ser resolvidas “de maneira técnica ou estética”, uma vez que demandam “transformações macroestruturais da economia e da política” (FREITAG, 2006. p. 148), sem as quais a função social da cidade continuará como princípio constitucional de política urbana, sem alcançar, contudo, a sua efetividade – ainda que parcial.
1.4. GESTÃO DEMOCRÁTICA COMO MECANISMO DE PERFECTIBILIZAÇÃO DA CIDADANIA
A forma de gerência dos Poderes pelo Estado, este considerado como “uma nação politicamente organizada” (LIMA, 1951. p. 5), sempre se constituiu num grande dilema.
Na vigência do Estado Absolutista, o Poder era concentrado nas mãos de uma única pessoa – o Rei – soberana na tomada de decisões. A passagem do Estado absolutista para o Estado liberal, marcada pela Revolução Francesa (1789), caracterizou-se justamente, pela separação dos Poderes com a aplicação da célebre doutrina de Montesquieu (1962, p. 181), segundo a qual o poder deve limitar o poder para evitar abusos. In verbis: “Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.”
Durante o Liberalismo vigorou uma concepção individualista de Estado, tendo espaço um modelo administrativo autoritário, centralizado e burocrático, cuja forma de ação típica da administração pública era através de decisões unilaterais, autoritárias e suscetíveis de serem impostas aos particulares, inclusive, pela força (CORREIA, 1997. p. 251).
Tal concepção atendia às exigências da burguesia recém instalada no Poder, motivo pelo qual a Carta Política desse modelo de Estado de Direito direcionava-se no sentido da liberdade burguesa, preconizando, entre outras, a liberdade pessoal, a propriedade privada, a liberdade de contratar e a liberdade de indústria e comércio.
Ocorre que, tal modelo de Estado servia apenas aos interesses de uma classe social, a qual, detendo o poder econômico, num primeiro momento, passou, em seguida, a se assenhorear do poder político, transformando o Estado e o Direito em simples instrumentos de realização e legitimação de sua ideologia liberal. Tal situação acabou ocasionando a sua própria desagregação, porquanto unilateral, acabou esgotando as suas possibilidades.
Assim, na esteira das revoluções marxistas, como as que ocorreram na Rússia (1917) e na China (1949), e, sobretudo, no período posterior à 2ª Grande Guerra[54] Mundial (1939-1945), verificou-se uma mudança de ideologias com a superação do modelo liberal clássico e a adoção, cada vez maior, de um modelo social, o qual objetivava superar o individualismo de caráter liberal pela afirmação dos direitos sociais, realizando-se, desta forma, justiça social.
Acompanhando tal tendência, a Administração Pública passou a perfilhar a expansão do movimento participativo, servindo como mecanismo para a concretização das inúmeras transformações tendentes à prometida democratização econômica e social, proclamadas pelos entusiastas do neocapitalismo.
Todavia, defendem os opositores que este modelo de Estado não logrou êxito em seu intento, motivo pelo qual surgiu a necessidade da formulação de outro modelo de Estado de Direito – o Democrático –, em cujo âmbito fossem incorporadas, dialeticamente, as conquistas da chamada democracia social, com a integração conciliadora dos valores da liberdade e da igualdade, da democracia e do socialismo.
Neste sentido, pontua o mestre espanhol Elias Díaz (1983, p. 131-133): “O Estado democrático de Direito aparece, nessa perspectiva, como superação real do Estado social de Direito. Isso não quer dizer, no entanto, que este conduza naturalmente àquele; ao contrário, geralmente aparece muito mais como obstáculo para essa superação. Do neocapitalismo não se passa naturalmente ao socialismo; do Estado social de Direito não se passa naturalmente ao Estado democrático de Direito. A superficial e aparente socialização que produz o neocapitalismo não coincide com o socialismo, assim como tampouco é democracia, sem mais, a democratização que a técnica produz por si mesma; de um nível a outro (é importante insistir-se nisso) há um salto qualitativo e real de primeira ordem. E, como dissemos, forças importantes desse primeiro nível (neocapitalismo) constituem-se certamente como forças interessadas em frear ou impedir a evolução até o segundo nível (socialismo) em que se produz o Estado democrático de Direito. Junto a essa possível via evolutiva ocidental, assinala-se que também se pode chegar ao Estado democrático de Direito por caminhos que não sejam o do Estado social de Direito: assim, por exemplo, a partir dos sistemas chamados de democracia popular ou democracia socialista. Com efeito – apesar de indubitáveis freios e retrocessos – a evolução que pode chegar a impor-se nesses sistemas conduziria, superados monolitismos e dogmatismos que ainda subsistem, a posições que confirmariam – desde esse ponto de vista – a compatibilidade entre socialismo e Estado de Direito. Dessa forma, e sem querer chegar com isso apressadamente à grande síntese final ou a qualquer outra forma de culminação da História (isto deve ficar bem claro) cabe dizer que o Estado democrático de Direito aparece como a fórmula institucional em que atualmente, e sobretudo para um futuro próximo, pode chegar a se concretizar o processo de convergência em que talvez possam encontrar-se as concepções atuais da democracia e do socialismo. A passagem do neocapitalismo ao socialismo nos países de democracia liberal e, paralelamente, o crescente processo de despersonalização e institucionalização jurídica do poder nos países de democracia popular, constituem em síntese a dupla ação para esse processo de convergência em que apareceria o Estado democrático de Direito. (…) O objetivo do Estado democrático de Direito é justamente o de tornar realidade aquelas exigências não cumpridas: para isso, o que se propõe como base é a liquidação do sistema neocapitalista e a passagem progressiva a um modo de produção socialista (que hoje deve saber harmonizar planificação e autogestão para alcançar um verdadeiro controle coletivo da economia).”
Não obstante, impõe-se salientar que tal evolução não se verificou de forma linear e sincrônica, realizando-se com avanços e retrocessos e em contextos variáveis e distintos. Assim, as conquistas operadas na tipologia do Estado de Direito, nas suas etapas liberal, social e democrática – iniciadas a partir da Revolução Francesa, movimento que define a sua primeira fase, passando pelas modificações surgidas mormente após a Segunda Guerra (a sua fase social), e culminado com a densificação dos direitos fundamentais, outrora somente civis e políticos e, após, também econômicos, sociais e culturais – consubstanciam-se na motivação, no comprometimento e no diferencial do denominado Estado Democrático de Direito.
Corroborando com tal afirmativa, o jurista espanhol Pablo Lucas Verdú (1975, p. 131-132) destaca: “O Estado de Direito, em qualquer das suas espécies: Estado liberal de Direito, Estado social de Direito, Estado democrático de Direito, é uma conquista. Quero dizer que cada um deles se estabeleceu, ou tentou estabelecer-se, lutando contra estruturas de poder contrárias, a saber: Estado liberal de Direito, frente ao Antigo Regime; Estado social de Direito, contra o individualismo e o abstencionismo do Estado liberal; Estado democrático de Direito que luta com as estruturas sócio-políticas do anterior: resquícios individualistas, neocapitalismo opressor, sistema estabelecido privilegiado.”
Neste contexto histórico, a República Federativa do Brasil, após longo período ditatorial, promulga a Constituição Federal de 1988 a qual adota como Regime Político a Democracia, constituindo-se num Estado Democrático de Direito, conforme preconizado no artigo 1º, caput, da Carta Magna.
Impõe-se referir que não por acaso o constituinte originário adotou a expressão “Democrático” para qualificar o nosso Estado Democrático, uma vez que não basta uma legalidade meramente formal em nossa democracia[55], sendo necessária a participação efetiva do povo no governo. Com efeito, a democracia pressupõe a manifestação popular, haja vista constituir-se num regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição eqüitativa do poder.
Desta Jorge Miranda (2000, p. 507): “Num sistema de governo constitucional, o poder último, ou fundamental, não pode ser atribuído ou deixado à Assembléia Legislativa ou mesmo ao Supremo Tribunal de Justiça, que é apenas o intérprete judicial mais elevado da Constituição. O poder último ou fundamental é detido pelos três poderes numa relação devidamente especificada entre eles, sendo cada um responsável perante o povo.”
De tal sorte, a imposição do constituinte originário no sentido de adotar um Estado Democrático de Direito denota o seu intuito de, após extenso período de autoritarismo, construir um país que honre a democracia e o faça com suporte no direito. Destarte, resta incontestável que tal regime político foi adotado como mecanismo limitador do poder arbitrário dos indivíduos, haja vista exigir a garantia dos direitos fundamentais e, por conseguinte, o respeito à democracia com repúdio à mera “aparência de legalidade”, a qual legitima os comandos arbitrários e ilegítimos.
Neste sentido, José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 230), ao comentar o artigo 2º da Constituição Portuguesa de 1976, destaca: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático. Isso significa que o Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de Direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático.” Há, pois uma “democracia de Estado de Direito e um Estado de direito de democracia.”
Em nosso país a situação não difere, uma vez que a legalidade é princípio norteador de toda a sociedade e, inclusive – e sobretudo –, do próprio Estado. Tal circunstância se faz necessária para que os indivíduos possam, utilizando-se como referência os preceitos legais predeterminados, orientar as suas condutas para a realização de seus interesses pessoais, concretizando, assim, o Estado Democrático de Direito.
Outrossim, como reafirmação da escolha de tal regime político verificamos o rol de fundamentos e objetivos fundamentais que norteiam a nossa Federação. Conquanto, num país que tenha como base a soberania, a dignidade da pessoa humana, a cidadania, o pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como objetive, precipuamente, construir uma sociedade livre, justa e solidária, na qual o desenvolvimento nacional seja garantido e a pobreza e a marginalização erradicadas, com respeito à pluralidade de idéias e redução das desigualdades sociais e regionais com a promoção do bem de todos, e na qual todo o poder emane do povo e para ele seja exercido, será, em uma primeira análise, muito mais viável a concretização dos preceitos e valores preconizados pelo Estado Democrático de Direito.
Com efeito, o Estado Democrático de Direito “é autêntico quando resguarda a democracia e garante os direitos do homem, assegurando, assim, a dignidade da pessoa humana.” (CANUTO, 2010, p. 220) Nesse sentido, convém citar os ensinamentos de Enrique Dussel (2001, p. 230) acerca da “lucha por el reconocimiento e institucionalización del nuevo derecho” indicando que a modificação do sistema de direito somente ocorre mediante a conscientização, pelos movimentos sociais, de novos direitos, sendo seguida, em ato contínuo, pela sua institucionalização.
Todavia, consoante destaca Rudolf Von Ihering (2010, p. 84), “quem quer que usufrua as vantagens do direito deverá cooperar para manter a força e o prestígio da lei, ou, em outras palavras, cada um nasce como combatente pelo direito, no interesse da sociedade.”
Assim, impõe seja elevada a participação popular na gerência e administração do Estado. [56] Nesta perspectiva, a obsoleta concepção liberal de que a participação dos cidadãos na condução da máquina pública termina ao final do processo eleitoral deve ser revista de sorte a contemplar uma participação-ação política do povo na realização de conquistas que beneficiem toda a sociedade.
Neste sentido, ressalta o jurista português Fernando Alves Correia (1997, p. 251-252): “Com a participação dos particulares são preenchidos vários objectivos: resolvem-se os problemas da falta de conhecimentos e de experiência da Administração Pública indispensáveis à escolha das soluções mais adequadas, sobretudo no domínio das relações econômicas; contribui-se para o aumento da eficiência da Administração, já que as medidas adoptadas contam com a boa vontade e o espírito de colaboração dos particulares; restabelece-se o contacto directo entre a Administração e os administrados, que funciona como meio de impedir a despersonalização e de evitar os desvios burocráticos da função administrativa; finalmente, aprofunda-se a realização do espírito democrático, que exige não só uma participação episódica na vida política, através da designação dos governantes, mas também uma associação activa dos cidadãos à condução da Administração.”
Porquanto, outra forma de relação do público com o privado deve ser construída, de sorte que os valores basilares da democracia sejam efetivamente cumpridos e ao cidadão, por conseguinte, seja permitido conhecer a realidade na qual está inserido de modo autônomo e soberano dentro da sociedade.
Premente se faz que a sociedade civil abandone o mundo das coisas privadas, no qual está limitada, e reivindique um espaço público para discutir, demandar, propor, reivindicar e, sobretudo, planejar o porvir das presentes e futuras gerações. [57] Nesta perspectiva, compete ao Estado, por seu turno, respeitar e buscar a efetividade das decisões vinculadas pelos cidadãos, de sorte que a sociedade civil recupere seu poder de decisão e o controle da máquina pública.
Em realidade, no momento em que se verifica a manifestação do povo reivindicando as suas necessidades – o seu mínimo existencial – experimenta-se o primeiro passo rumo à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Destarte, “não se prevê a participação pela participação; prevê-se e promove-se como expoente da realização das pessoas” (MIRANDA, 2000, p. 182).
Neste sentido, pontua o jurista português José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 52): “Este processo de democratização (política) não poderia deixar de influenciar decisivamente a matéria dos direitos fundamentais, precisamente na medida em que fez sobressair as garantias de igualdade no contexto das relações indivíduo-Estado. Essa influência manifesta-se, desde logo, no aparecimento de novas figuras, pela promoção a direitos fundamentais das faculdades básicas necessárias ao funcionamento do sistema democrático. Aparece-nos, então, com determinação suficiente, um conjunto de direitos políticos, que enquanto direitos de participação (Mitwirkungsrechte) na vida política, se distinguem bem dos direitos de defesa, característicos das liberdades e garantias tradicionais. Os direitos de intervenção na vida política passam a ser considerados como manifestações indispensáveis da dignidade do cidadão, que tem de ser igualmente reconhecida a todos os indivíduos nacionais com um mínimo de idade e, por isso, devem integrar o estatuto das pessoas na sociedade política.”
Destarte, a Magna Carta de 1988 “abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana” (SILVA, 2001, p. 124).
Não obstante, imperioso salientar que, da mesma forma que a democracia postula pela maioria, também o faz pelo respeito das minorias e, através ou para além dele, pelo respeito aos direitos fundamentais. Conquanto figure como critério de decisão, a regra da maioria não representa mera presunção de que ninguém conta mais do que outrem, constituindo-se em verdadeira afirmação positiva da igual dignidade de todos os cidadãos, de onde se infere que a vontade soberana se concebe a partir do contraditório e da alternância.[58]
Nesta perspectiva visualiza-se a ligação direta existente entre democracia e direitos fundamentais, na medida em que estes se limitam e são exercidos conforme a sua contribuição para a manutenção e fortalecimento do sistema democrático (ANDRADE, 2001, p. 54).
Porquanto, a proteção institucional dos direitos fundamentais objetiva, em última análise, a sua proteção política, haja vista que ao se garantir o direito de petição, o direito ao voto, a liberdade sindical, o direito de greve, a liberdade dos partidos políticos, bem como outros direitos de participação na organização e nos procedimentos de decisão política e administrativa, estão sendo assegurados aos cidadãos mecanismos de proteção e efetivação de seus direitos individuais e coletivos, e, por conseguinte, da sua liberdade.
Neste sentido, observa Norberto Bobbio (2004, p. 43): “É preciso empenhar-se na criação dessas condições, é preciso que se esteja convencido de que a realização dos direitos do homem é uma meta desejável; mas não basta essa convicção para que aquelas condições se efetivem. (…) O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.”
Outrossim, no que tange à vinculação entre o direito e a liberdade, imperativo destacar as reflexões de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (2007, p. 166-167) para quem: “O direito deve acontecer, mas não como liberdade interna e sim como liberdade exterior dos indivíduos, a qual é um subsumir-se dos mesmos sob o conceito que lhes é estranho. O conceito se torna aqui pura e simplesmente objetivo e forma de uma coisa absoluta, da qual ser dependente significa a aniquilação de toda liberdade.”
Com efeito, a liberdade[59], concebida como a faculdade que cada indivíduo dispõe de se decidir ou agir segundo sua própria determinação, constitui-se no valor supremo do indivíduo, haja vista que, uma vez despido da possibilidade de autodeterminação, ser-lhe-á impossível gerir a própria vida, razão pela qual inexistirá dignidade na sua existência.
Por conseguinte, consoante salienta Norberto Bobbio (2004, p. 227), “a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser.” Inobstante, “os direitos de liberdade só podem ser assegurados garantindo-se a cada um o mínimo de bem-estar econômico que permite uma vida digna.”
Por isso que, se analisarmos as Declarações de Direitos que foram instituídas ao longo dos anos, perceberemos que é comum a todas elas a proteção ao direito de liberdade e, por via de consequência, aos direitos fundamentais, mediante a vedação à discriminação da pessoa humana e o resguardo da integridade física e psíquica dos indivíduos.
Conquanto, destaca Jorge Miranda (2000, p. 195-196): “Não basta enumerar, definir, explicitar, assegurar só por si direitos fundamentais; é necessário que a organização do poder político e toda a organização constitucional estejam orientadas para a sua garantia e a sua promoção. Assim como não basta afirmar o princípio democrático e procurar a coincidência entre a vontade política do Estado e a vontade popular em qualquer momento; é necessário estabelecer um quadro institucional em que esta vontade se forme em liberdade e em que cada cidadão tenha a segurança da previsibilidade do futuro.”
Assim, em que pese estarem assegurados em nossa Constituição os direitos e garantias fundamentais do cidadão e lá figurar como princípio fundamental da República a garantia da dignidade da pessoa humana, tais preceitos somente encontrarão concretude no mundo dos fatos no momento em que ocorrer uma efetiva participação do cidadão na condução da coisa pública, de sorte a propiciar aos indivíduos o gozo de melhores condições de vida, mediante a realização de suas maiores necessidades.
Neste sentido depreende-se a importância do Poder Público ouvir os reclames da população, uma vez que a cidadania – fundamento da nossa República – somente se concretiza no momento em que o cidadão consegue expressar os seus desejos e estes são respeitados e atendidos pelo Poder Público. Porquanto, pouca ou nenhuma valia terá para uma comunidade a construção de, v.g., um hospital, quando a sua carência efetiva encontra-se na ausência de escolas – em que pese ser uma obra importante, a construção do hospital não atenderá às necessidades dos cidadãos. [60]
Por conta disto, deduz-se que a função social das cidades e a garantia do bem-estar de seus habitantes – objetivos da Política Urbana – somente serão concretizadas na medida em que ocorrer a participação direta do cidadão na gestão do espaço no qual habita. Quis o legislador, consoante lição de Luís Portella Pereira (2003, p. 51), “que a gestão democrática da cidade ocorresse por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade.”
Assim, deflui-se que a gestão democrática, considerada como a forma mais legítima de manifestação da soberania popular, é uma das diretrizes da política urbana para se alcançar a função social da cidade e da propriedade. Em realidade, a gestão democrática garante a participação direta dos cidadãos na formulação de planos, no acompanhamento de projetos e na execução de programas de desenvolvimento urbano – tanto na elaboração de normas, quanto na execução e fiscalização das atividades do Poder Público e dos Agentes Privados.[61]
Porquanto, tem-se que o administrador político, que é o mesmo administrador público, ao formular e executar qualquer plano, programa, ou projeto relacionado com o desenvolvimento urbano, deverá acionar a gestão democrática da cidade. Em não o fazendo, “suas ações serão consideradas nulas e sujeitas às penalidades previstas no próprio Estatuto da Cidade, como a improbidade administrativa” (PEREIRA, 2003, p. 52).
De tal sorte, na esteira do defendido por Edésio Fernandes (2000. p. 39-40), emerge como vital a criação de uma esfera pública efetiva no processo político de gestão urbana, na qual sejam garantidos aos cidadãos mecanismos que assegurem formas diferenciadas e concretas de participação direta na gestão urbana. Preleciona o mencionado autor: “Um novo pacto social urbano requer que tais novas formas de participação popular sejam incorporadas no processo legislativo, na administração executiva e na resolução judicial de conflitos, em suma, no processo de governança urbana. […] A participação popular na administração executiva, seja na elaboração e definição de orçamentos ou através do trabalho em comitês, comissões etc., pode contribuir para a criação de melhores condições de acesso à terra e à moradia e para a promoção de políticas sociais e ambientais. […] Por fim, a participação popular na esfera de ação do poder judiciário tem de ser urgentemente ampliada. Uma ampla revisão da estrutura do judiciário tem de se basear na criação de novos canais processuais que garantam acesso individual e coletivo aos tribunais para o reconhecimento efetivo dos novos direitos sociais e coletivos que têm sido cada vez mais reconhecidos por convenções internacionais, constituições nacionais e legislações ordinárias, inclusive o direito de moradia e de segurança da posse.”
Em realidade, somente o exercício efetivo da cidadania pelo povo brasileiro é que viabilizará a concretização das diretrizes traçadas pela Constituição Federal de 1988, a qual traz em seu bojo os fundamentos básicos para a criação de uma esfera pública que não seja reduzida à ação estatal.
A partir do momento em que a população demonstrar as suas necessidades e tiver maior possibilidade de influenciar concretamente nas decisões tomadas pelo poder público, as cidades brasileiras tornar-se-ão efetivamente sustentáveis e serão palco da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
2. QUE GRAU DE EXCLUSÃO SOCIAL AINDA PODE SER ADMITIDO POR UM SISTEMA DEMOCRÁTICO?
“A cidade multiplica-se, a casa cede lugar ao edifício, o edifício vira constelação de escritórios, o menino fica sendo excedente incômodo… Onde está o menino, para onde foi o menino? É assim que morrem as cidades.” (ANDRADE, 1978. p. 90).
O significativo crescimento da população, sobretudo nos grandes centros urbanos, teve como consequência o aumento das desigualdades sociais. As cidades, buscando acomodar os indivíduos, foram crescendo desordenadamente e, por óbvio, sem nenhum tipo de planejamento urbano.[62] Tal circunstância teve como conseqüência a concentração habitacional de significativo número de indivíduos em locais perigosos – sob o ponto de vista estrutural da moradia – e desprovidos das condições mínimas de infraestrutura e saneamento básico.
Neste contexto, as pessoas, sobretudo os menores, acabaram ficando totalmente expostas a todo o tipo de perigo, seja no aspecto da vida e da saúde (v.g., contaminação por doenças, sujeição a chuvas, desabamentos de terras), seja na questão da violência e criminalidade (v.g., tráfico de drogas, estupros, roubos, agressões físicas).
De tal sorte, infelizmente, verifica-se como uma constante em nossas cidades a existência de indivíduos sobrevivendo em condições subumanas, porquanto não dispõe de um local digno para morar, de uma alimentação diária regular, de condições mínimas de higiene e, tampouco, lhes é assegurado usufruir dos serviços públicos de saúde e educação.
Neste particular, já se tornou corrente em nossa imprensa a vinculação de notícias informando a inexistência de leitos em hospitais para atendimento de pacientes vinculados ao Sistema único de Saúde (SUS), bem como a questão da precariedade do ensino público. Sem mencionar, ainda, o aspecto relacionado aos altos índices de criminalidade e à falta de segurança que assola o nosso país.
A tal conjuntura precária, na qual se encontra a esmagadora maioria dos cidadãos brasileiros, é contraposto um universo diametralmente oposto, cujas condições de vida refletem o anseio de toda a população. Trata-se de um verdadeiro precipício que separa, de um lado, os “pobres” e, de outro, os “ricos”.
Com efeito, imaginarmos uma sociedade na qual todos vivam igualitariamente é um projeto de praticamente impossível realização – verdadeira utopia – consoante denota o resultado histórico dos movimentos socialista e comunista.
Porém, aceitarmos passivamente que muito mais da metade da nossa população sobreviva sem as condições mínimas de existência com dignidade também não é possível. Impende necessário encontrarmos um “caminho do meio”, através do qual, utilizando-se das regras da proporcionalidade, seja possível alcançarmos a concretização de um núcleo mínimo[63] dos direitos constitucionalmente assegurados ao cidadão.[64]
Outrossim, impossível olvidar que o constituinte originário, ao estabelecer, no título II da nossa Constituição Federa, o rol dos Direitos e Garantias Fundamentais – nestes somados os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, os Direitos Sociais, os Direitos dos Partidos Políticos e os Direitos Políticos e à Nacionalidade –, buscou determinar os pilares básicos para a concretização de um Estado Democrático de Direito.
Convém repisar que é a primeira vez em nossa história constitucional que os direitos sociais são inseridos dentre o rol de Direitos e Garantias Fundamentais do cidadão, motivo pelo qual aqueles devem ser atendidos e promovidos por todos os poderes estatais, posto que a promoção de tais direitos encontra eco no fundamento mais nobre do nosso Estado Democrático de Direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Conquanto, um país que não proteja e zele pela dignidade de seus cidadãos jamais poderá se constituir num Estado de Direito, tampouco poderá ser considerado Democrático!
Nesta seara, impõe repisar que os direitos já assegurados aos cidadãos não podem ser violados, haja vista os preceitos vinculados ao princípio da vedação do retrocesso social. O ser humano, consoante manifesta Jorge Miranda (2000, p. 192), “não pode ser desinserido das condições de vida que usufrui; e, na nossa época, anseia-se pela sua constante melhoria e, em caso de desníveis e disfunções, pela sua transformação.”
Consoante lição de José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 474), a proibição de retrocesso social é decorrência do princípio da democracia econômica e social. Infere o jurista lusitano que os direitos sociais já alcançados ou conquistados passam a figurar, simultaneamente, como garantia institucional e direito subjetivo, motivo pelo qual justificam a redução da capacidade de disposição legislativa, figurando como limite jurídico ao legislador. Tal circunstância manifesta-se sob dois aspectos, servindo, por um prisma, como impedimento a supressão de direitos já conquistados e, por outro, como obrigação de empenho por uma política afinada com os direitos concretizados.
Imperativo relembrar, neste particular, a fórmula lapidar constante no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, segundo a qual figura essencial a proteção dos direitos do homem através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão.
Tal circunstância faz-se imprescindível, na medida em que o cidadão, no momento em que este começa a sentir-se negligenciado pelo Estado, tende a se insurgir contra o sistema, situação que gera revolta e conturbação social.
Em razão disto, soe conferirmos maior efetividade às disposições constitucionais, ainda mais se considerarmos que a Constituição não deve ser mais lida como um ideário de promessas irrealizáveis, na categoria básica do direito constitucional pretérito, ou, ainda, como um conjunto de normas programáticas sem qualquer efetividade. Hodiernamente, o texto constitucional é visto como norma jurídica plenamente exigível ao Estado e sindicável pelo poder judiciário. Neste sentido, destaca Rui Barbosa (Apud SILVA, 2001, p. 183): “No texto da lei fundamental, (há) as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias: ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito.”
Neste particular impende citarmos a lição de Norberto Bobbio (2004, P. 78-80), para quem o direito só recebe efetividade no momento em que existe uma obrigação em implementá-lo, sob pena de tornar-se uma mera orientação de conduta desprovida de eficácia vinculativa. Destaca que “um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o programa é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de direito?”, de onde infere que “a figura do direito tem como correlato a figura da obrigação.”
Porquanto, a partir do momento em que o indivíduo abriu mão do seu direito de realizar, ele próprio, parcial ou totalmente as suas necessidades existenciais básicas, optando por ser representado pelo Estado – “uma multidão unida numa só pessoa”, consoante define Thomas Hobbes[65] – impôs a este uma responsabilidade direta para com a condução da coisa pública. Como tarefa imposta ao Estado, a concretização dos valores sociais estabelecidos pela comunidade – mormente dos direitos e garantias fundamentais – reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, como de criar condições que possibilitem o seu pleno exercício.
De tal sorte, a atuação do Poder Público deve ser no propósito de garantir a efetividade dos direitos prestacionais constitucionalmente previstos mediante a adoção de mecanismos coercitivos, haja vista que a Constituição Federal não se satisfaz abstratamente com o simples reconhecimento de um direito.
Nesta linha de princípio, pontua José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 379-380): “Os preceitos relativos aos direitos sociais a prestações não são meramente proclamatórios, constituem normas jurídicas preceptivas, que, enquanto tais, concedem aos indivíduos posições jurídicas subjectivas (a que chamamos pretensões) e estabelecem garantias institucionais, impondo ao legislador a obrigação de agir para lhes da cumprimento efectivo – constituem, assim, imposições legiferantes. (…) O efeito típico das normas constitucionais relativas aos direitos sociais decorre do seu carácter de imposições de legislação. Tratando-se, no seu conteúdo principal, de direitos a prestações públicas, o dever que lhes corresponde da parte do Estado é precisamente, em primeira linha, o dever de legislar, já que a feitura de leis é uma tarefa devida (no caso dos direitos a prestações jurídicas) ou uma condição organizatória necessária (no caso dos direitos a prestações materiais) para a sua realização efectiva.”
Conquanto, os preceitos relativos aos direitos fundamentais sociais contêm normas jurídicas vinculantes, as quais impõem positivamente ao legislador a realização dos direitos constitucionalmente consagrados, sob pena deste incorrer em inconstitucionalidade por omissão – no caso de omitir-se no dever de legislar – ou de inconstitucionalidade por omissão parcial ou por ação – no caso de legislar insuficientemente ou em desacordo com os preceitos constitucionais.[66]
Destarte, constata-se que a liberdade de disposição do legislador encontra suas limitações dentro dos padrões mínimos para a garantia das condições de uma existência com dignidade. Assim, em que pese existirem várias maneiras de o Poder Legislativo desincumbir-se de sua obrigação, nunca poderá olvidar-se de sua vinculação a este padrão existencial mínimo.
Neste diapasão soe destacarmos a relevante tarefa assumida pelo Poder Judiciário[67] no tocante ao controle do respeito efetivo a esta garantia mínima, haja vista encontrar-se habilitado a decidir acerca deste padrão mínimo nos casos de omissão ou desvio de finalidade por parte dos órgãos legiferantes.
Com efeito, os direitos sociais são plenamente justiçáveis, especialmente nos casos em que é conferido ao Judiciário o poder de corrigir a atuação deficiente dos demais poderes, de sorte que, nestas circunstâncias, sua atuação não configura invasão de competência. Ademais, o Poder Judiciário encontra-se igualmente vinculado ao dever de proteção e promoção dos direitos sociais.
Nesta perspectiva insere-se decisão proferida pelo Tribunal Regional da 4ª Região[68] autorizando a liberação dos valores depositados na conta vinculada ao FGTS do requerente para a realização de reformas em sua moradia, outrora atingida por enchente. Em que pese as limitações constantes na legislação infraconstitucional, o Tribunal, ponderando valores, sobrelevou a relevância de evitar a deterioração da moradia, garantindo condições de habitação compatíveis com as exigências da dignidade da pessoa humana.[69]
Por conseguinte, detecta-se que os direitos prestacionais, com especial ênfase ao direito à moradia, são violados sempre que for implantado um sistema infraconstitucional ou qualquer ato advindo de autoridade pública que importe em lesão, redução, desproteção ou em ações que inviabilizem o exercício desses direitos, uma vez que estes gozam da proteção confiada aos direitos fundamentais, tratando-se de deveres inerentes ao Estado – mediante a atuação dos seus três poderes – o respeito, a proteção, a ampliação e a facilitação de tais direitos.
Infere-se, assim, que toda e qualquer legislação infraconstitucional que suprima, dificulte ou impossibilite o exercício do direito à moradia por um indivíduo, mesmo que validamente constituída e promulgada, é tida como inconstitucional. Porquanto, em que pese ter o direito à moradia aplicação imediata, constitui-se dever do Estado proteger e facilitar o seu pleno exercício, mormente através da promulgação de normas infraconstitucionais consonantes aos ditames da Magna Carta de 1988.
Com efeito, não há como desconsiderar que o direito à moradia inequivocadamente assume, no que diz com a sua perspectiva prestacional, a condição de norma do tipo programática, impondo ao poder público a tarefa de atuar positivamente na promoção, proteção, enfim, na concretização das metas, no sentido de estabelecer deveres permanentes de tutela e efetivação, a fim de assegurar uma moradia compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana para a população.
Inobstante, em que pese sua dimensão programática, nem por isso perde em fundamentalidade, conquanto, mesmo sendo norma programática, não é destituída de eficácia, sendo diretamente aplicável, motivo pelo qual inúmeros e expressivos efeitos jurídicos dela podem ser extraídos, independentemente da intermediação do legislador.
Destarte, compete ao Poder Público, tendo sempre em vista a sua obrigação constitucional, escolher os meios mais efetivos e viáveis para a concretização de tais direitos prestacionais. Nesta linha de princípio sustenta José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p.32-34) que mesmo tendo o cidadão um direito a prestações existenciais mínimas, decorrentes do direito à vida, isto não implica, necessariamente, que disponha de um direito de ação contra o Estado, uma vez que reconhecer um direito não significa, necessariamente, impor ao Poder Público a forma de concretizar este direito, visto que os órgãos estatais dispõem de um indispensável espaço de discricionariedade, que, no entanto, não é absoluto, já que condicionado pelo que o jurista lusitano intitulou de “determinantes condicionais heterônomas”. Pontua o publicista: “O Estado, os poderes públicos, o legislador, estão vinculados a proteger o direito à vida, no domínio das prestações existenciais mínimas, escolhendo um meio (ou diversos meios) que tornem efectivo este direito, e, no caso de só existir um meio de dar efectividade prática, devem escolher precisamente esse meio.”
Em realidade, premente se faz que haja uma vontade real do Poder Público no sentido de alcançar um determinado nível de respeito ao direito à moradia, estabelecendo “planos econômicos, políticos e sociais que busquem, se não solucionar, ao menos minorar a situação de penúria em que vive a maioria das suas populações sem-teto ou em condições indignas de habitação” (LIMA, 1951, p. 09). De fato, é perfeitamente viável a atuação na dimensão positivo-prestacional, mediante a criação de medidas que objetivem a satisfação do direito à moradia, não implicando, necessariamente, em entregar uma casa para quem comprove não tê-la ou tê-la em condições indignas de sobrevivência. O que importa, efetivamente, é a criação de mecanismos viáveis – tanto legislativos, quanto vinculados à realização de políticas públicas – no sentido de promover, incentivar, viabilizar, disponibilizar, financiar, facilitar e implementar o acesso à moradia.
Nesta linha, desta o jurista italiano Stefano Maria Cicconetti (2008, p. 101): “De qualquer forma, o direito à habitação como qualquer outro direito social é direito que tende a ser realizado nas proporções dos recursos da coletividade; somente o legislador, medindo as efetivas disponibilidades e os interesses com estas gradualmente realizáveis, pode racionalmente encontrar os meios que chegam aos fins, e construir pontuais fatispecies que dêem a justa expressão a tais direitos fundamentais (Sentenças nºs 252 de 1989 e 121 de 1996).”
Não obstante, convém destacar que os direitos fundamentais sociais vinculados ao mínimo existencial constituem-se direitos subjetivos definitivos, o que não implica, todavia, que tais direitos sejam absolutos, haja vista a possibilidade de sofrem restrições, inclusive em virtude dos limites impostos pela reserva do possível. Outrossim, o conceito de mínimo existencial para uma vida digna não pode ser resumido em uma fórmula imutável, uma vez que se encontra na dependência de uma gama de fatores e componentes que podem estar conectados às condições individuais, bem como a circunstâncias sócio-econômicas e culturais. Neste sentido, Daniel Sarmento (2008, p. 579) sustenta que “não existe um direito definitivo à garantia do mínimo existencial, imune a ponderações e à reserva do possível.”[70]
Nesta esteira, Andreas Krell (2002, p. 52) refere-se à reserva do possível como uma teoria que submete a prestação material dos serviços públicos estatais à disponibilidade de recursos, residindo a escolha, acerca de sua aplicação, no âmbito da discricionariedade administrativa e das escolhas legislativas, o que se verifica através dos orçamentos públicos.
Ana Carolina Lopes Olsen (2008, p. 182), por seu turno, destaca que a reserva do possível “costuma estar relacionada com a necessidade de se adequar às pretensões sociais com as reservas orçamentárias, bem como a real disponibilidade de recursos em caixa, para a efetivação das despesas.”
De modo similar posiciona-se Ana Paula de Barcellos (1975, p. 236), para quem “a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas.” De tal sorte, a autora visualiza na reserva do possível “um limite de possibilidades materiais.”
Partindo da análise de tais conceitos, impende realizarmos algumas ponderações acerca da abrangência e aplicabilidade da teoria em questão.
Com efeito, o financiamento dos direitos fundamentais sociais pelo Estado é feito através das verbas provenientes da arrecadação tributária. No entanto, é corrente a situação da verba orçamentária ser insuficiente ou não efetivamente aplicada – como deveria – às finalidades a que se destina. Tal circunstância tem como consequência a não realização dos direitos prestacionais pelo Estado.
É inegável que a concretização dos direitos fundamentais sociais depende de fatores econômicos e da disponibilidade de verbas orçamentárias, motivo pelo qual a escassez de recursos pode figurar como limite concreto à efetivação de tais direitos.
No entanto, ao conceber os direitos sociais como direitos fundamentais, o Estado brasileiro assumiu um compromisso para com a sua efetivação, o que significa que deve pautar sua atividade com vistas à realização de tais direitos.
Outrossim, conquanto a Constituição brasileira não contemple uma previsão expressa de que o orçamento deve espelhar os encargos do Estado, é possível, a partir de uma interpretação sistemática orientada pelos direitos fundamentais, visualizar referido dever.
Em realidade, o reconhecimento dos direitos prestacionais não se deu em razão da disponibilidade de verba orçamentária, de modo que existe uma responsabilidade dos entes estatais no sentido de alocar recursos para a sua efetivação, uma vez que a própria Constituição assim o determina. Deste modo, fica evidente que não se pode pleitear o impossível, mas a reserva do possível é argumento que só poderá ser aceito excepcionalmente, pois não configura uma regra (OLSEN, 2008, p. 212).
Neste diapasão Eros Roberto Grau ( 2005, p. 125) infere que a escassez de recursos não pode ser o único motivo alegado para a não realização dos direitos prestacionais, destacando que “essa ‘reserva’ evidentemente não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um direito social sob ‘reserva dos cofres cheios’ equivaleria, na prática – como diz José Joaquim Gomes Canotilho – ‘a nenhuma vinculação jurídica’.”
De tal sorte, soe ser adotada uma precaução adicional no momento da utilização da teoria da reserva do possível e da alegação de escassez de recursos econômicos como fundamento para a não concretização dos direitos sociais, para que esta não se torne argumentação hábil a inviabilizar a efetivação de tais direitos. Neste sentido, salienta Ana Carolina Lopes Olsen (2008, p. 209), in verbis: “A reserva do possível surge como um excelente escudo contra a efetividade dos direitos fundamentais a prestações positivas, como os direitos sociais, pois nada poderia ser feito, ainda que houvesse ‘vontade política’, face à escassez de recursos. Interessante que estes recursos nunca são escassos para outros fins, de modo que a própria noção de escassez merece ser investigada, e não tomada como um dado de verdade irrefutável.”
Neste sentido, impõe destacar a necessidade de realização de um debate sério acerca da destinação dos recursos públicos, uma vez que se afigura questionável o modo como tais dotações são distribuídas haja vista que, não raro, as verbas constitucionalmente vinculadas aos direitos prestacionais não são utilizadas nas finalidades para as quais foram previstas.
Outrossim, no que tange à forma de gerenciamento da verba pública, impende salientar que, primordialmente, deverão ser atendidos os direitos sociais e todas as dotações orçamentárias previstas no texto constitucional, uma vez que estes são decorrência expressa da vontade do constituinte, para, após, os recursos serem destinados a outros setores. Destarte, não será possível pleitear o impossível, no entanto, a reserva do possível só poderá ser aceita como argumento excepcional, mediante a comprovação pelo Estado de ter aplicado os recursos existentes e disponíveis em consonância com as vinculações constitucionais, sob pena de violação destas normas.
Diante disto, a dimensão fática da reserva do possível, representada pela escassez de recursos, não poderá ser o único fundamento para a não concretização dos direitos prestacionais, posto que em face da constatação da inexistência de recursos suficientes para a satisfação de todos esses direitos, as normas constitucionais que os prevêem restariam despidas de vinculação jurídica.
Não obstante, dentre as soluções apontadas para minimizar os impactos da inexistência
de recursos, o critério da ponderação desponta como a mais satisfatória, consoante leciona Paulo Caliendo (2009, p. 208): “A ponderação deve ser considerada o método primordial para garantir a adequada e justificada alocação de recursos finitos em uma sociedade democrática. Somente assim poderão existir justificativas legítimas que impunham que determinado bem deva ser protegido ou promovido em detrimento de outro. É certo que essas justificativas devam encontrar guarida em fundamentos constitucionais, bem como irão refletir escolhas valorativas da sociedade sobre a ponderação de valores que deverão prevalecer. A escassez de recursos deve ser entendida como um dos elementos na fundamentação, mas não o único, visto que a própria noção de escassez é construída.”
De tal sorte, deduz-se que a reserva do possível não pode, por si só, conduzir ao esvaziamento de um direito sem que passe pela ponderação. Pontua Robert Alexy (2008, p. 515) que “a natureza de um direito prima facie vinculante implica que a cláusula de restrição desse direito – a reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade – não pode levar a um esvaziamento do direito. Essa cláusula expressa simplesmente a necessidade de sopesamento desse direito.”
Porquanto, embora configure um limite à concretização dos direitos prestacionais, a reserva do possível não pressupõe ineficácia ou inaplicabilidade imediata de tais direitos, uma vez que expressa simplesmente a necessidade da ponderação entre princípios (LEIVAS, 2006, p. 98-99). Em realidade, dita teoria não poderia ser interpretada de modo diverso haja vista que a mera supressão do núcleo essencial legislativamente concretizado de determinado direito social – sobretudo dos direitos sociais vinculados ao mínimo existencial – estará afetando, em muitos casos, a própria dignidade da pessoa, o que, desde logo, se revela inadmissível, posto que em tal circunstância não poderá prevalecer, inclusive, a objeção da reserva do possível e a alegação de eventual ofensa ao princípio democrático e da separação dos poderes.
Por conseguinte, em que pese a inexistência de consenso doutrinário no que tange à possibilidade de se restringir o mínimo existencial em face dos limites impostos pela reserva do possível, pode-se defender que esta não poderá ser alegada quando em causa a necessidade de preservar a vida e a dignidade da pessoa humana.[71] Tal proposição apóia-se, igualmente, na dupla dimensão atribuída ao mínimo existencial, qual seja, a necessidade de preservar o conteúdo mínimo em prestações indispensáveis para a garantia de uma vida digna, de um lado, e o dever de fornecer essas prestações, de outro.
Assim, a reserva do possível só poderá atuar como argumento válido quando restar efetivamente demonstrado pelos poderes públicos que eventual restrição a direitos sociais foi resultado de um exercício de ponderação entre princípios conflitantes, atendidos os requisitos da proporcionalidade e preservado o conteúdo mínimo necessário para a garantia de uma vida digna.
Outrossim, premente se faz a revisão das premissas norteadoras da gestão pública através de uma maior participação popular, de sorte que o Estado passe a concretizar os direitos fundamentais sociais de forma mais efetiva, reduzindo a enorme desigualdade social que impera em nosso país e garantindo um mínimo existencial básico aos cidadãos para uma vida condigna. “O direito é um labor contínuo, não apenas dos governantes, mas de todo o povo. (…) O objetivo do direito é a paz. A luta é o meio de consegui-la” (IHERING, 2010, p. 35).
CONCLUSÃO
O ser humano é o princípio e o fim de todas as coisas. Os Estados são constituídos por e para os indivíduos, os quais buscam garantir a sua segurança e estabilidade pessoais através da construção de uma estrutura político-administrativa orientada e organizada.
Todavia, a mera existência institucional desprovida de direitos e garantias aos cidadãos torna-se inefetiva e sem razão de ser. O Estado, para justificar-se, deve atuar proativamente e de modo eficaz, de sorte a concretizar os preceitos estabelecidos na Carta Política da nação, visto que esta se constitui na compilação dos fundamentos de fato e de direito que o compõem.
Neste sentido, verifica-se que o legislador constituinte originário, ao estabelecer as diretrizes norteadoras da nossa nação, pretendeu a realização de um Estado justo e solidário cujos preceitos buscam a valorização, sobretudo, do indivíduo. Não por acaso foi dedicado todo um título do texto da nossa carta fundamental à enumeração – a qual não se pretende taxativa – dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Não esqueçamos, ainda, que no seio dos seus princípios e objetivos fundamentais encontramos uma forte valorização da pessoa humana, em todos os seus prismas.
Com efeito, ao nos constituirmos como uma República Federativa cujo regime político é a Democracia, determinamos a presença de Estados-membros atuantes de forma dirigida e sincronizada no sentido de garantir um governo de e para o povo. Contudo, não basta uma atuação meramente figurativa, sobrelevando a existência de manifestações políticas que concretizem os objetivos e princípios fundamentais preconizados na magna carta.
Soe que os indivíduos existam com dignidade e afastados da miséria e da marginalização. Uma sociedade livre, justa e solidária só se constitui no momento em que seus cidadãos possuem condições de trabalho e liberdade para se manifestar.
De tal sorte, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui-se em um supradireito o qual orienta todo o nosso sistema normativo, servindo de disposição que confere unidade de valor e sentido ao nosso texto constitucional.
Trata-se de princípio fundamental cuja diretriz consiste em resguardar a existência digna do indivíduo em todas as suas dimensões. Por esta razão, dito princípio objetivando a sua concretização, fundamenta-se nos direitos prestacionais, cujo núcleo consiste em assegurar os direitos e garantias essenciais ao indivíduo.
Neste diapasão fica evidente que os direitos fundamentais, mormente os sociais, possuem vinculação direta ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, haja vista que aqueles buscam garantir ao indivíduo as prestações mínimas para uma vida com dignidade.
Com efeito, no momento em que o Estado avoca para si a tarefa de garantir ao cidadão uma existência digna, se compromete, perante o cidadão, no sentido de realizar os preceitos concretizadores dos direitos e garantias fundamentais.
Neste particular identificamos a relevância da atuação do poder público, visto que a este é atribuída a tarefa de organizar os indivíduos que vivem em sociedade. De fato, no instante em que o indivíduo abriu mão de seu poder de auto-administração, delegou ao Estado o poder de fazê-lo por si, razão pela qual compete a este perpetrar ações concretas para a realização dos direitos prestacionais básicos assegurados ao cidadão. Neste sentido identificamos a relevância alcançada pela teoria do mínimo existencial.
Porquanto, embora não se possa olvidar que os direitos fundamentais sociais não se limitam ao mínimo existencial, e que este não se confunde com o mínimo vital, tem-se por certo que a garantia efetiva de uma existência com dignidade abrange necessariamente o gozo de direitos sociais específicos, como a assistência e a previdência social, a saúde, o salário mínimo dos trabalhadores e a moradia. Trata-se, por conseguinte, de conceito cujo alcance é constituído a partir da idéia de liberdade e dos princípios constitucionais da igualdade, da justiça social, da livre iniciativa e da dignidade da pessoa humana, abrangendo todo e qualquer direito fundamental considerado em sua dimensão essencial e inalienável.
Dentre os direitos que constituem o mínimo existencial, identifica-se especial relevância ao direito fundamental social à moradia, porquanto o indivíduo, para existir, precisa ocupar espaço, sob pena de violação de sua cidadania. O ser humano desapossado de moradia está em um não lugar, tornando-se um não cidadão.
Contudo, não basta morar, é preciso morar com dignidade. Neste sentido destaca-se a relevância da existência de condições mínimas de habitabilidade para o cidadão, tais como saneamento básico, higiene, pavimentação, segurança, transporte público e urbanização.
Neste particular identifica-se o dever do Poder Público no sentido de adotar políticas públicas que viabilizem o acesso à moradia adequada e dotada de infra-estrutura, uma vez que a pessoa humana só poderá existir dignamente no momento em que tiver um espaço condigno para habitar, de sorte que a concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana está diretamente atrelada à realização do direito fundamental social à moradia.
Outrossim, é dever do Estado garantir o direito à moradia, em nível de vida adequado com a condição humana, haja vista o seu dever de respeitar os princípios fundamentais da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, intitulados constitucionalmente.
Conquanto, soe destacarmos que o direito à moradia não deve ser confundido com direito de propriedade, de sorte que o Estado está obrigado a garantir a habitação digna aos seus cidadãos, independentemente da propriedade. Outrossim, é dever do Estado facilitar o exercício da moradia, propiciando a utilização de lugares que lhe reservem o seu pleno exercício, sem se questionar a necessidade da efetiva propriedade.
Impõe-se referir, neste particular, que o direito à moradia constitui-se em direito difuso, motivo pelo qual se justifica a relativização do direito à propriedade privada. Com efeito, a partir da adoção do Estado Democrático de Direito, abandonaram-se as teorias liberais clássicas as quais justificavam o direito de propriedade no interesse exclusivamente individual. Com o advento da nova ordem constitucional, estabelecida pela Magna Carta de 1988, ocorreu uma mudança de paradigmas, de sorte que a propriedade e a cidade passaram a ter uma dimensão constitucional, e o direito à cidade visualiza toda a pluralidade que carrega em seu bojo, motivo pelo qual agora deve ser pensada coletivamente.
Em linhas gerais, o direito à cidade preconiza a proteção dos direitos inerentes às pessoas que habitam nas cidades de gozarem de uma vida urbana digna, exercitando plenamente a cidadania – mediante a participação na gestão da cidade; os direitos humanos – aí abrangidos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais; bem como o direito a viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.
Em realidade o princípio da função socioambiental da cidade, norteador da política urbana, permite direcionar ou redirecionar recursos e riquezas de forma mais justa para combater as desigualdades econômicas e sociais vivenciadas pelos cidadãos. O seu efetivo cumprimento ocorre no momento em que é coibida a especulação imobiliária e são minoradas as diferenças socioeconômicas intraurbanas através da democratização do planejamento e da gestão urbanos. Tais medidas só reúnem condições de serem alcançadas se o plano diretor de cada cidade for desenvolvido e cumprido para o destinatário da cidade, o seu habitante.
Tal circunstância justifica a adoção, pelo Poder Público, de mecanismos coercitivos – à exemplo do instituto da desapropriação – no sentido de concretizar o direito à moradia. Porquanto, a propriedade privada deve atender a sua função socioambiental, sob pena do proprietário ser punido, em caso de não observância de tais preceitos, com a perda de sua propriedade.
Dita visão, em que pese causar arrepios aos adeptos das teorias liberais, é a única compatível com a atual realidade socioeconômica do nosso país. Porquanto, ao pensarmos nas grandes desigualdades sociais que imperam em nossa sociedade, soe repensarmos o modo como está distribuída a riqueza econômica e, por conseguinte, a propriedade privada. Em um país aonde inúmeros não habitam ou o fazem em condições de extrema miséria, é inconcebível a existência de propriedades improdutivas.
Compete, assim, ao Poder Público utilizar-se dos mecanismos legais para reordenar a utilização da terra e, se for o caso, promover, v.g, a sua desapropriação em benefício do bem-estar social, realizando, no local, projetos de moradia como forma de concretizar a dignidade humana do cidadão. Outrossim, a medida que se garante o desenvolvimento sustentável dos territórios, com observância a sua função socioambiental, maior é o respeito que se confere aos seus cidadãos, concretizando-se, assim, os preceitos vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, resta evidente que a dignidade da pessoa humana é suporte basilar para a proibição do retrocesso social, haja vista que as medidas supressivas ou restritivas dos direitos fundamentais, em especial os sociais, afetam diretamente a dignidade humana, revelando-se, assim, inadmissíveis. Porquanto, traduz-se num dever do Estado a preservação das prestações mínimas (mínimo existencial) para uma vida condigna e, quanto a elas, a reserva do possível constitui-se numa falácia.
Conquanto, embora inegável que a concretização dos direitos fundamentais sociais dependa de fatores econômicos e da disponibilidade de verbas orçamentárias – motivo pelo qual a escassez de recursos pode figurar como limite concreto à efetivação de tais direitos, deve-se destacar, no entanto, que ao conceber os direitos sociais como direitos fundamentais, o Estado brasileiro assumiu um compromisso para com a sua efetivação, o que significa que deve pautar sua atividade com vistas à realização de tais direitos.
O reconhecimento dos direitos prestacionais não se deu em razão da disponibilidade de verba orçamentária, de modo que existe uma responsabilidade dos entes estatais no sentido de alocar recursos para a sua efetivação, uma vez que a própria Constituição assim o determina. Deste modo, fica evidente que não se pode pleitear o impossível, mas a reserva do possível é argumento que só poderá ser aceito excepcionalmente, pois não configura uma regra. Ademais, a sua aplicação indiscriminada poderá servir, ao arrepio da Constituição Federal, como fundamento para inviabilizar a concretização dos direitos fundamentais sociais.
Destarte, em que pese não tenha sido este o objeto do presente estudo, imperioso destacarmos que inúmeros são os mecanismos jurídicos e as políticas públicas que poderiam ser adotadas para a concretização do direito fundamental social à moradia digna. Tais questões, por merecerem um estudo específico e objetivo, não foram abordadas no presente trabalho. O que se objetivou registrar aqui é que o problema da moradia exige a participação ativa do Poder Público em todas as suas esferas, bem como da população, a qual compete o dever de reivindicar e, através dos mecanismos legais, relembrar, diuturnamente, as suas necessidades, sob pena da Constituição Federal permanecer apenas como um texto meramente formal.
Porquanto, impõe-se seja elevada a participação popular na gerência e administração do Estado. Nesta perspectiva, a obsoleta concepção liberal de que a participação dos cidadãos na condução da máquina pública termina ao final do processo eleitoral deve ser revista de sorte a contemplar uma participação-ação política do povo na realização de conquistas que beneficiem toda a sociedade.
Premente se faz que a sociedade civil abandone o mundo das coisas privadas, no qual está limitada, e reivindique um espaço público para discutir, demandar, propor, reivindicar e, sobretudo, planejar o porvir das presentes e futuras gerações. Nesta perspectiva, compete ao Estado, por seu turno, respeitar e buscar a efetividade das decisões vinculadas pelos cidadãos, de sorte que a sociedade civil recupere seu poder de decisão e o controle da máquina pública.
Com efeito, o direito e a sociedade estão sempre em constantes transformações. Analisando a questão sob o prisma histórico, identificamos que direitos outrora já tidos como absolutos, a exemplo do direito de propriedade à época do século XVIII, hoje são vistos com limitações; ao passo que outros, dantes nem mencionados, gozam hoje de extrema relevância, a exemplo dos direitos sociais.
A realização de mudanças é algo intrínseco ao ser humano, haja vista que este está sempre pensando e repensando os seus valores e objetivos, razão pela qual, consoante já citado por Norberto Bobbio, o que se destaca como fundamental numa determinada época histórica e numa determinada civilização possivelmente não o será em outras épocas e culturas. Por conseguinte, o tempo trará novos direitos e novas concepções, todavia o que nunca poderá ser olvidado é o papel e a importância do indivíduo como mola propulsora de toda a engrenagem do nosso sistema.
Mestranda em Direito de Família e Sucessões pela UFRGS Advogada e Consultora Imobiliária. Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS 2004 pós-graduação em Direito Público pela PUC/RS 2011 e pela Escola Superior Verbo Jurídico 2008
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