Direito Administrativo

O Sistema de Registro de Preços e a Legalidade do “Carona”

ROBSON RAMOS DE ANDRADE: Servidor Público Federal; Especialista em D. Constitucional e D. Administrativo pela Univ. Cândido Mendes; Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: robsonrdeandrade@gmail.com.

 

Resumo: Análise jurídica sobre o “Carona” no Sistema de Registro de Preços. Primeiramente, abordam-se as normas básicas aplicáveis à licitação. Após, apresenta-se instituto do Sistema de Registro de Preços – SRP, tratando, inclusive, das vantagens por ele trazidas para a Administração Pública. Passa-se, então, ao desenvolvimento do tema específico do trabalho. Faz-se explanação sobre os participantes do SRP, partindo-se, em seguida, para uma análise específica da legislação federal acerca do “Carona”, abordando-o sob aspecto da legalidade e constitucionalidade, seja sobre sua própria existência, seja sobre o modo como regulamentado no País. Por fim, com base na jurisprudência do TCU e na doutrina especializada, conclui-se pela possibilidade legal do “Carona”, sobretudo após a regulamentação atual, que trouxe necessários limites a sua implementação fática.

Palavras-chave: Licitação. Registro. Preços. Adesão. Carona.

 

RESUMEN: Análisis jurídico sobre el “Carona” en el Sistema de Registro de Precios. En primer lugar, se abordan las normas básicas aplicables a la licitación. Después, se presenta instituto del Sistema de Registro de Precios – SRP, tratando, inclusive, de las ventajas que trae a la Administración Pública. Se pasa, entonces, al desarrollo del tema específico del trabajo. Se hace una explicación sobre los participantes del SRP, partiendo, a continuación, para un análisis específico de la legislación federal sobre el “Carona”, abordándolo bajo aspecto de la legalidad y constitucionalidad, sea sobre su propia existencia, sea sobre el modo como regulado en el país. Finalmente, sobre la base de la jurisprudencia del TCU y de la doctrina especializada, se concluye por la posibilidad legal del “Carona”, sobre todo después de la reglamentación actual, que traía necesarios límites a su aplicación fáctica.

Palabras-clave: Licitación. Grabar. Precios. Adhesión. Carona.

 

Sumário: Introdução. 1. Das normas básicas aplicáveis à licitação. 2. O Registro de Preços. 3. Análise jurídica do “Carona”. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil, art. 37, inciso XXI,

“ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

Vê-se que a Constituição Federal é assertiva quanto à necessidade de licitar, excepcionado apenas os casos previstos em lei. Nesse passo, uma das atividades mais relevantes desempenhadas pelo Estado, conforme assevera José dos Santos Carvalho Filho, “é a de recrutar empresas do setor privado para realizar a construção de obras públicas, a prestação de serviços e o fornecimento de bens necessários à consecução de seus fins”[1]. Ou seja, ao contrário dos particulares, que dispõem de ampla liberdade para adquirir, alienar e contratar a execução de obras e serviços, o Poder Público “necessita adotar um procedimento preliminar rigorosamente determinado e preestabelecido na conformidade da lei” [2], denominado licitação.

De outra banda, no intuito de dar efetividade ao princípio constitucional da eficiência, a Lei nº 8.666/93, que regulamenta o supratranscrito art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências, contempla algumas formas de procedimento que atenuam o rigor dos procedimentos para contratação pela Administração Pública, tornando-o mais ágil, mas sem perder de vista o necessário cuidado para que o preceito constitucional seja respeitado.

A Lei nº 8.666/93, ao regulamentar o art. 37, inciso XXI, da Constituição de República Federativa do Brasil, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública, previu a existência do denominado Sistema de Registro de Preços. Trata-se de um procedimento que se assenta num certame licitatório, mas, em vez de dirigir-se à imediata contratação, busca munir o administrador da possibilidade de contratação assim que a necessidade da administração venha a surgir, sem a necessidade de um procedimento às pressas com vistas a atender uma demanda que já resta urgente. Isso porque, com o registro de preços, já se sabe com quem e a que preço a Administração contratará.

Como majoritariamente defendido, por doutrina e jurisprudência, o registro de preços, por observar o princípio da isonomia, já que decorre de licitação, não avilta a Constituição.

Ocorre que, como objeto do presente estudo, tratar-se-á especificamente da utilização do Sistema de Registro de Preços como modo de “saltar” a etapa inicial (licitação com o fim de registrar os preços a ser posteriormente contratados pela Administração). É que, embora não previsto na Lei nº 8.666/93, a regulamentação do tema, por meio de decreto presidencial, permitiu o que aqui chamaremos de “Carona”. Referido instituto, que consiste na utilização dos preços registrados por outros órgãos (que realizaram licitação) com o fim de contratar particulares sem proceder a licitação própria, em determinadas situações, parece ferir o estatuto licitatório e os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, mormente os relevantes princípios da moralidade e impessoalidade.

A aparente ofensa ao princípio da licitação parece agravar-se ainda mais mediante a utilização indiscriminada e ilimitada do instituto do “Carona”. Além de gerar a possibilidade de tratamento privilegiado a alguns particulares, o procedimento também enseja o risco de afastar a Administração da contratação mais vantajosa.

Logo, o presente estudo problematiza a legalidade ou ilegalidade da utilização do “Carona”.

 

  1. Das normas básicas aplicáveis à licitação

Da análise do conteúdo insculpido no inciso XXI do art. 37 da CF/88, constata-se a preocupação do constituinte com o respeito ao princípio da igualdade nos procedimentos licitatórios. Celso Antônio Bandeira de Melo, acerca da aplicação do princípio da igualdade na licitação, assenta[3]:

“O princípio da igualdade implica o dever não apenas de tratar isonomicamente todos os que afluírem ao certame, mas também o de ensejar oportunidade de disputá-lo a quaisquer interessados que, desejando dele participar, podem oferecer as indispensáveis condições de garantia.”

Com igual importância, o princípio da impessoalidade é fundamento próprio da licitação, porquanto, como leciona Marçal Justen Filho[4]:

“Exclui o subjetivismo do agente administrativo. A decisão será impessoal quando derivar racionalmente de fatores alheios à vontade psicológica do julgador. A impessoalidade conduz a que a decisão independa da identidade do julgador.”

Ademais, elevando o princípio da moralidade como fundamento para a imperatividade do processo licitatório, o grande administrativista José dos Santos Carvalho Filho[5], em comum acerto, assevera:

“Erigida atualmente à categoria de princípio constitucional pelo art. 37, caput, da CF, a moralidade administrativa deve guiar toda a conduta dos administradores. A estes incumbe agir com lealdade e boa-fé no trato com os particulares, procedendo com sinceridade e descartando qualquer conduta astuciosa ou eivada de malícia.”

Com efeito, a imposição constitucional de licitar equivale à concretização do respeito ao princípio da moralidade administrativa na seleção de fornecedores de bens e serviços à Administração Pública. O renomado jurista[6], nesse sentido, arremata:

“A licitação veio prevenir eventuais condutas de improbidade por parte do administrador, algumas vezes curvados a acenos ilegítimos por parte de particulares, outras levados por sua própria deslealdade para com a Administração e a coletividade que representa.”

Na esteira do exposto, o art. 3º da Lei 8.666/93, ao estabelecer o escopo da licitação, sintetiza nos seguintes termos:

“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.”

De mais a mais, quanto à abrangência do princípio constitucional da eficiência, outra importante norma cogente para a Administração, José dos Santos Carvalho Filho esclarece:

“Vale a pena observar, entretanto, que o princípio da eficiência não alcança apenas os serviços públicos prestados diretamente à coletividade. Ao contrário, deve ser observado também em relação aos serviços administrativos internos das pessoas federativas e das pessoas a ela vinculadas. Significa que a Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje adotados para obter a qualidade total da execução das atividades a seu cargo, criando, inclusive, novo organograma em que se destaquem as funções gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las.”

 

  1. O Registro de Preços

O fundamento legal do registro de preços encontra-se no art. 15, inciso II, da lei 8.666/93:

“Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:

I – atender ao princípio da padronização, que imponha compatibilidade de especificações técnicas e de desempenho, observadas, quando for o caso, as condições de manutenção, assistência técnica e garantia oferecidas;

II – ser processado através do sistema de registro de preços; (…).”

A propósito, embora tal dispositivo trate apenas de compras, é pacífico o entendimento de que o registro de preços pode ser utilizado na aquisição de serviços para a Administração Pública.

Ademais:

“§3º O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as peculiaridades regionais, observadas as seguintes condições:

I – seleção feita mediante concorrência;

II – estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados;

III – validade do registro não superior a um ano.”

Atualmente, o Sistema de Registro de Preços, no âmbito da União, encontra-se regulamentado pelo Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, o qual, mantendo o conceito outrora trazido pelo Decreto nº 3.931/01 (antigo regulamento do SRP), reza que o Sistema de Registro de Preços é o “conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras”.

Em âmbito doutrinário, destaca-se o conceito atribuído por Jacoby Fernandes[7], segundo quem o SRP é:

“(…) um procedimento especial de licitação que se efetiva por meio de uma concorrência ou pregão sui generis, selecionando a proposta mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, para eventual e futura contratação pela Administração.”

O Sistema de Registro de Preços é caracterizado por ser uma ferramenta de grande utilidade para Administração Pública, conforme escólio do mestre Marçal Justen Filho[8]:

“O Sistema de Registro de Preços (SRP) é uma das mais úteis e interessantes alternativas de gestão de contratações colocada à disposição da Administração Pública. As vantagens propiciadas pelo SRP até autorizam a interpretação de que sua instituição é obrigatória por todos os entes administrativos, não se tratando de uma mera escolha discricionária.”

Celso Antonio Bandeira de Melo[9], por seu turno, apresenta a seguinte lição quanto ao registro de preços:

“O “registro de preços” é um procedimento que a Administração pode adotar perante compras rotineiras de bens padronizados ou mesmo na obtenção de serviços. Neste caso, como presume que irá adquirir os bens ou recorrer a estes serviços não uma, mas múltiplas vezes, abre um certame licitatório em que o vencedor, isto é, o que ofereceu a cotação mais baixa, terá seus preços “registrados”. Quando a promotora do certame necessitar destes bens ou serviços irá obtê-los, sucessivas vezes se for o caso, pelo preço cotado e registrado.”

Enfim, o Sistema de Registro de Preços se mostra vantajoso porque possibilita à Administração, ao longo de sua validade, contratar o que precisa sem necessidade de várias licitações, porquanto basta um único procedimento (concorrência ou pregão) com subsequente registro dos preços dos produtos ou serviços. Os valores unitários ficarão, então, registrados na Administração, que, na medida de suas necessidades, realizará as contratações.

Além disso, o registro de preços favorece o planejamento na medida em que o procedimento licitatório é realizado antes mesmo de surgir a necessidade efetiva da contratação pela Administração. Quer dizer, a Administração registrará os preços da licitação e exigirá a prestação no momento em que sua necessidade surgir, já que o fornecedor se vincula à prestação licitada.

Note-se, contudo, que o §4º do art. 15 da Lei 8.666/93 determina que a Administração não se vincula ao registro de preços, já que a existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações que dele poderão advir, podendo utilizar-se de outros meios, sendo assegurado ao beneficiário do registro preferência em igualdade de condições.

Desse modo, é possível a realização de nova licitação mesmo com a existência do registro de preços. Assim, sendo a proposta idêntica ou de preço superior à registrada, há preferência do beneficiário do registro de preços.

Nessa perspectiva, observa-se uma otimização considerável do processo de licitação com a utilização frequente do registro de preços. Ocorre que, em busca da eficiência, da desburocratização e de uma maior celeridade na atuação da Administração Pública, não se pode suprimir valores norteadores da licitação. Destarte, é imperioso investigar a legalidade e constitucionalidade do chamado “Carona” no Sistema de Registro de Preços.

 

  1. Análise jurídica do “Carona”

Também se apresenta como vantagem do Sistema de Registro de Preços a reunião de demandas de órgãos administrativos diversos. É que, se há necessidade de contratações de bens ou serviços com características similares, é plenamente possível que entidades ou órgãos distintos realizem um único registro de preços contemplando, previamente, todas as necessidades. Ou seja, realizar-se-á uma única licitação, mas será atendida a demanda de órgãos distintos, reduzindo-se a burocracia e aumentando o ganho em economia de escala para a Administração Pública como um todo.

Ocorre que, desde a edição do Decreto nº 3.931/01, um instituto que suscitou inúmeros debates foi o que doutrinariamente se apelidou de “Carona”. Naquele diploma regulamentar, o art. 8º dispunha que a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderia ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tivesse participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem. O “Carona” não se confunde com o órgão originariamente participante, que integra o registro de preços, desde o momento inicial, especificando as características e o quantitativo do produto que intenta adquirir. Para Ferreira, na prática, a inovação do decreto com a instituição do “Carona”:

“(…) redundou na possibilidade de um licitante vencedor para o fornecimento de um quantitativo determinado de bens fosse contratado por um universo indefinido de órgãos e entidades públicas, durante a vigência da ata, passando a fornecer uma quantidade muito maior daqueles bens, sem implicar diminuição de preço diante da escala contratada. O negócio foi se tornando tão lucrativo que era possível constatar a existência de um mercado de Atas de Registros de Preços, principalmente nos fins dos exercícios financeiros, onde os órgãos públicos eram compelidos a executar o orçamento sobressalente ou devolver a diferença à União[10].”

A possibilidade de adesão tardia ao registro de preços, por outros órgãos e entidades, motivou dissenso da doutrina acerca do tema. Havia doutrinadores que defendiam o “Carona”, porquanto, para estes, o procedimento de adesão a ata já celebrada por outro órgão ou entidade imprimia maior celeridade e eficiência às contratações públicas, já que evitava a repetição de procedimentos licitatórios para um mesmo objeto. Assim, embora não tivesse expresso dispositivo legal a permitir o “Carona”, este decorreria da própria sistemática legal do Sistema de Registro de Preços.

Sob outra ótica, parte significativa da doutrina enxergava clara violação de princípios da Administração, especialmente no que se refere à obrigatoriedade de licitação, pois, malgrado para objetos idênticos, os contratantes são órgãos distintos e, principalmente, demandam os produtos em momentos distintos, sem o necessário planejamento em busca do ganho de escala.

Em veemente posição contrária ao “Carona”, são as palavras do eminente jurista Marçal Justen Filho:

“O vício mais evidente da figura do carona é a ilegalidade. A Lei 8.666/93 não facultou a instituição dessa sistemática, que foi introduzida por meio de regulamento. (…)”

O eminente mestre ainda sustenta que o “Carona” personifica a ofensa ao princípio da vinculação ao edital, traduz-se em criação por meio infralegal de hipótese de dispensa de licitação, além de, dentre outros, ferir o princípio da isonomia.

Todavia, após calorosos debates, ainda sob a vigência do Decreto nº 3.931/01, foi-se superando a polêmica quanto à possibilidade de um órgão pegar carona em procedimento licitatório alheio, por meio de adesão a atas de registro de preços. O Tribunal de Contas da União, em oportunidades diversas, manifestou-se sobre o “Carona” sem reputá-lo inválido na essência, mas impôs uma série de limitações, as quais, posteriormente, acabaram insertas no regulamento da matéria. É que, mesmo para aqueles que defendiam a legalidade do procedimento de adesão tardia ao registro de preços, o art. 8º do antigo regulamento pecava pela permissão de adesões ilimitadas. Somente com a alteração promovida pelo Decreto nº 4.342/02, com a inclusão do §3º — reproduzido quase literalmente na redação originária do regulamento atual (art. 22, §3º) —, o supracitado art. 8º passou a limitar o quantitativo contratado a partir das adesões. Vejamos:

“§3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços. (Incluído pelo Decreto nº 4.342, de 23.8.2002)”

Ainda assim, não obstante limitado o quantitativo do objeto contrato por cada adesão à ata de registro de preços (por órgão ou entidade, nos termos do Decreto nº 4.342/02), remanesceu a necessidade de também limitar a quantidade de adesões, pois se os caronas fossem vários, cada um deles poderia adquirir até 100%, o que implicava, muitas vezes, multiplicação exagerada da quantidade de bens ou serviços inicialmente planejados. Quer dizer, o licitante vencia para fornecer “x” e findava fornecendo cinquenta “x”, sem que esse acréscimo refletisse no valor da sua proposta.

Nessa linha de raciocínio, é forçoso concluir que a possibilidade de adesão ilimitada criava condições para que uma licitação culminasse em inúmeros contratos, contrariando princípios constitucionais norteadores da atividade administrativa, mormente os da isonomia, busca pela proposta mais vantajosa à Administração, infringindo ainda os princípios da moralidade e impessoalidade.

Com efeito, além de indiscutível ofensa aos princípios supramencionados, era flagrante a perda na economia de escala, já que, por evidente, se o certame fosse projetado para atender a necessidade de todos os órgãos aderentes, com significativa elevação do quantitativo planejado para o órgão inicial, certamente os licitantes teriam condições de oferecer maiores vantagens de preços.

Ademais, como ressaltado por Luiz Bernardo Dias Costa, a possibilidade de inúmeras adesões:

“(…) Fere não somente o princípio da legalidade, mas também os princípios da impessoalidade e da moralidade, na medida em que permite todo o tipo de lobby, tráfico de influência e favorecimento pessoal. Ora! No momento que determinada empresa percebe que ao participar de uma licitação que busca a instituição de Ata de Registro de Preços para a possível aquisição, nos próximos 365 (trezentos e sesse e cinco) dias de, por exemplo, 1000 (mil) computadores, em tendo o seu preço registrado, poderá, de posse da Ata de Registro de Preços, buscar em todos os rincões do País o fornecimento de outros tantos milhares de computadores, sem a necessidade de submeter-se a novo procedimento concorrencial. Portanto, de posse da Ata, de cópia do Decreto nº 3.931/01 e, quiçá, de algum tipo de benefício adicional, o fornecedor possui todos os elementos de sedução que presumam permitir a sua contratação direta por parte de um ente público menos atilado.”

Destarte, ante as divergências doutrinárias e de reiteradas recomendações do TCU, o Poder Executivo federal editou novo regulamento, detalhando e trazendo limites importantes a fim de “salvar” o “Carona” de sua extinção do ordenamento.

Como no Decreto 3.931/01, o art. 22 do Decreto nº 7.892/13 hoje prevê a possibilidade de adesão a ata de registro de preços por órgão ou entidades não participantes do certame, disciplinando, outrossim, a figura do “Carona”. Mas o que se percebe, contudo, é que o novo diploma foi mais cauteloso quanto ao tema, definindo limites para as adesões. Nesse sentido, merece destaque a regra insculpida originariamente no §4º do atual regulamento, segundo o qual:

“§ 4º O instrumento convocatório deverá prever que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independente do número de órgãos não participantes que aderirem.” [grifo nosso]

Já em 2018, os limites foram reduzidos ainda mais. Com novas redações dadas pelo Decreto nº 9.488, de 2018, os §§ 3º e 4º do art. 22 hoje determinam:

“Art. 22 […]

  • 3º As aquisições ou as contratações adicionais de que trata este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cinquenta por cento dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório e registrados na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes. [grifo nosso]
  • 4º O instrumento convocatório preverá que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao dobro do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes, independentemente do número de órgãos não participantes que aderirem.” [grifo nosso]”

Todavia, abordando especificamente a hipótese de compra nacional — modelo de compra ou contratação de bens e serviços em que o órgão gerenciador conduz os procedimentos para registro de preços destinado à execução descentralizada de programa ou projeto federal, mediante prévia indicação da demanda pelos entes federados beneficiados —, o Decreto de 2018 manteve os limites anteriores, nos seguintes termos:

“§ 4º-A Na hipótese de compra nacional: (Incluído pelo Decreto nº 9.488, de 2018)

I – as aquisições ou as contratações adicionais não excederão, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório e registrados na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes; e (Incluído pelo Decreto nº 9.488, de 2018)

II – o instrumento convocatório da compra nacional preverá que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não excederá, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes, independentemente do número de órgãos não participantes que aderirem. (Incluído pelo Decreto nº 9.488, de 2018)

 

Conclusão

Analisou-se no presente estudo o “carona” sob dois aspectos: 1. Legalidade do próprio instituto; e 2. Possível violação de princípios constitucionais pela possibilidade de várias adesões a uma mesma ata.

Sob o primeiro aspecto, discorrendo-se acerca dos posicionamentos a respeito da própria criação, via decreto, da possibilidade de adesão a ata de registro de preços celebrada por órgão distinto, de modo que o aderente (“Carona”) poupa-se do trabalho de realizar sua própria licitação, contratando diretamente com o signatário da ata de outro órgão ou entidade, podemos concluir que a parte respeitável da doutrina pugna pela sua legitimidade. Nesse sentido, ao criar o “Carona”, o decreto não transbordou os limites do poder regulamentar.

Nesse sentido, havendo a autorização legal para o registro de preços, prestigia-se o próprio princípio constitucional da eficiência ao evitar a repetição de licitação quando já existe o registro de preços por licitação anterior, ainda que realizada por órgão ou entidade. A adesão não implica, necessariamente, desrespeito aos princípios da isonomia, da competitividade, entre outros, mas apenas mitigação desses em nome da necessidade de se prestigiar a eficiência.

No entanto, o mesmo não se pode dizer em relação às adesões múltiplas a atas de registro de preços. Nesse passo, é pacífico o entendimento de que caberia ao Decreto estabelecer limites às contratações dos “caronas”. Por isso, sem uma limitação adequada, o efeito “carona”, por um tempo, foi uma prática extremamente preocupante.

Deveras, da forma como antes praticadas, as adesões maculavam o princípio da isonomia entre os licitantes e prejudicavam a obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração, com a famigerada perda da economia de escala, além de favorecer a corrupção, especialmente nas licitações que envolviam grande montante econômico.

Conclui-se, assim, com base nos ensinamentos trazidos a lume no presente estudo, pela aceitabilidade da criação do “Carona” por norma infralegal, na esteira do quanto defendido pelo TCU e por parte da doutrina. Entretanto, na forma como disciplinado no regulamento anterior, ausentes os limites para a sua adoção, o efeito “carona” não guardava harmonia com o ordenamento jurídico brasileiro.

Destarte, embora necessite de constante aprimoramento, a limitação na quantidade de adesões a atas de registro trouxe certamente uma sobrevivência para o instituto, que passou a sofrer menos ataques daqueles que, com respeito ao interesse público, procuram contribuir para o aperfeiçoamento constante das contratações públicas.

 

Referências

BITTENCOURT, Sidney. Licitação de registro de preços: comentários ao Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, alterado pelo Decreto nº 8.250, de 23 de maio de 2017 / Sidney Bittencourt; prefácio de Ivan Barbosa Rigolin. – 4. ed. rev. atual. e ampl. – Belo Horizonte: Fórum, 2015.

CORDEIRO, Caio Barros. Surgimento e evolução do Sistema de Registro de Preços no Brasil e as críticas da doutrina e da jurisprudência do Tribunal de Contas da União ao Decreto nº 3.931/2001: a necessidade de nova regulamentação. In: FORTINI, Cristiana (Coord). Registro de Preços: análise da Lei nº 8.666/93, do Decreto Federal 7.892/13 e de outros atos normativos: (atualizado conforme o Decreto Federal nº 8.250/14). 2. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 15-35.

FERREIRA. Sistema de registro de preços: a evolução da figura do “carona” com o advento do Decreto Federal n. 7.892/2013. Conteúdo Jurídico.

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2005.

JACOBY FERNANDES. Compras pelo sistema de registro de preços: métodos para definir qualidade e quantidade de acordo com a Lei nº 8.666/93: manual prático para implantação com todas as etapas detalhadas de acordo com o Decreto nº 2.743/98

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

 

[1] CARVALHO FILHO. Prefácio. In: FORTINI; PEREIRA; CAMARÃO. Licitações e contratos: aspectos relevantes, p. 19.

[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 532.

[3] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 512.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 52.

[5] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2005. p. 200.

[6] Loc. cit.

[7] JACOBY FERNANDES. Compras pelo sistema de registro de preços: métodos para definir qualidade e quantidade de acordo com a Lei nº 8.666/93: manual prático para implantação com todas as etapas detalhadas de acordo com o Decreto nº 2.743/98, p. 23.

[8] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 144.

[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. Malheiros: São Paulo, 2006. p. 547.

[10] FERREIRA. Sistema de registro de preços: a evolução da figura do “carona” com o advento do Decreto Federal n. 7.892/2013. Conteúdo Jurídico.

Âmbito Jurídico

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