INTRODUÇÃO[1]
Não parece haver dúvida de que se vive na sociedade do marketing e do consumo de massas, (dinamizado especialmente através do crédito) e sérias são as pesquisas que defendem não poder o ato de consumo ser considerado como puramente racional[2]. De fato, pessoas são hoje em dia estimuladas ou até compelidas, pela massiva publicidade nos “espaços públicos” ou meios de comunicação de massa, a adquirir bens e serviços.
A técnica normalmente funciona relacionando o consumo desta mercadoria ou marca a um prazer ou modo de ascensão social. Evidentemente que será pouco provável que a publicidade remeta o consumidor para uma efetiva racionalidade de escolha, baseada em informações precisas e corretas sobre a essência do produto ou serviço. Como se defendem então os consumidores de uma situação que lhes cause excessivas dívidas e comprometimentos futuros?
Além disso, vive-se hoje numa sociedade de serviços, especialmente se se considera a composição preponderente do setor terciário (serviços) no produto nacional bruto (PNB) nas maiores economias mundiais (por exemplo os Estados Unidos, a Inglaterra e mesmo o Brasil)[3]. Por serviços, os economistas designam “o componente do Produto Nacional Bruto que mede a produção de artigos imateriais, como telecomunicações, transporte, conserto de equipamentos”[4]. Os outros componentes do PNB são o setor primário (produção agropecuária) e secundário (produção industrial). Os economistas e estatísticos normalmente incluem as operações de crédito nas atividades ditas terciárias ou setor de serviços[5], como não poderia deixar de ser – dados os conceitos retro citados –, pois elas não caracterizam nem uma atividade ligada ao setor agropecuário, nem industrial (somente a casa da moeda produz efetivamente moeda).
Nesse contexto econômico todo, o papel que jogam as instituições financeiras e de crédito é significante enquanto fornecedores de crédito no mercado, considerando-se sobretudo que nem as pessoas, nem as empresas e nem mesmo os governos têm suficientes rendimentos (ganhos e poupança) para consumir e investir o quanto necessitam para saciar as suas necessidades (até porque, como se sabe também da ciência econômica, as necessidades humanas são ilimitadas e os recursos limitados).
Alguns dados econômicos acerca da realidade do grau de endividamento social – causado por todo esse contexto supra descrito – geram espanto: por exemplo, em 20 anos (1977-1997) houve um crescimento de 700% no débito nos EUA[6]! Exames de situações particulares de crédito no Brasil são ainda mais dramáticos. A inadimplência, reflexo de uma expansão desmesurada e inadequada do crédito, de até três prestações de amortização do saldo devedor relativamente a financiamento habitacional com recursos do Sistema Financeiro de Habitação (que conta com juros menores!) chegou a 40% em janeiro de 1997[7]. No setor privado como um todo, a inadimplência no Brasil subiu de 2,6% em 1988 para 18,8% em 1997[8]. Evidentemente que a situação de endividamento é agravada no Brasil por todas as variáveis macroeconômicas que historicamente acompanham o país: instabilidade econômica, juros altíssimos, desigualdade social (ver no anexo tabelas com esses números).
Exsurge daí a importância de se trazer para o campo jurídico a questão econômica e sociológica do superendividamento dos consumidores, para se tentar corrigir essas eventuais e até prováveis situações de dificuldades econômicas e financeiras dos destinatários do marketing pró-consumo e endividamento: os consumidores. O conceito de superendividamento envolve a idéia de falência da pessoa natural; ou seja, uma incapacidade sua de pagar dívidas contraídas a partir de suas receitas[9].
Isso, no entanto, não implica execrar em absoluto o crédito ao consumo. São evidentes os aspectos positivos do crédito: facilita o consumo e portanto o bem-estar dos consumidores; pode facilitar mobilidade social e de status (educação, bens de consumo); fonte de auto-desenvolvimento.[10] Apesar disso, o crédito tem também um lado obscuro e perigoso e traz problemas de diversas ordens: a) sociais: aumento da vulnerabilidade daqueles mais pobres (menos renda e poupança e empregos menos estáveis); b) econômicos: aumento da inadimplência, taxa de juros; c) jurídicos: enfraquecimento na relação contratual entre consumidor e fornecedor do crédito[11]
Dizem os estudos que as causas maiores do superendividamento são mudanças bruscas de rendimento como perda ou mudança de emprego, que reduzem a capacidade de pagamento das dívidas e não raramente vem acompanhada de pobreza (os pobres pagam mais caro pelo dinheiro!) [12]. No Brasil, aquelas variáveis macroenômicas parecem ser até mais importantes no fenômeno causal do superendividamento.
Esse trabalho não pretende uma aprofundada discussão das causas sociológicas e econômicas acerca do problema do superendividamento, que como problema social já restou evidentemente comprovado aqui, a fim de sugerir um tratamento dogmático-jurídico para pelo menos diminuir o problema, já que sua dissolução ficaria a cargo de efetivas políticas públicas (sociais, econômicas) que enfrentariam a raiz do problema: a macroeconomia em relevo.
Neste plano dogmático-jurídico, o mais grave parece ser que o Brasil não tem legislação própria para o crédito ao consumo, nem para situação de falência individual. Resta como alternativa imediata a aplicação do CDC aos contratos de crédito para evitar situações de superendividamento e, de lege ferenda, a publicação de uma lei especial que contenha soluções mais amplas como o modelo francês, que será tratado na parte final deste trabalho.
Esse estudo centra-se, portanto, na busca da aplicação do CDC aos contratos de crédito ao consumo em geral (I) e a derivação de algumas implicações daí decorrentes (II), até porque antes da publicação de qualquer outra legislação (III), deve-se explorar ao máximo a linguagem propositalmente vaga e geral do CDC.
I – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E CONCESSÃO DE CRÉDITO
Há, como se disse acima, uma séria discussão se os meios para se enfrentar o superendividamento são de natureza estritamente de direito do consumidor ou de política do consumidor[13]. Em vista de ser um problema macro, sua solução depende naturalmente de soluções de política do consumidor, a serem formuladas evidentemente pelo órgão do poder público responsável pela formulação das políticas públicas nesta área: o Ministério da Justiça, através do Departamento Nacional de Proteção ao Crédito (DNPC) e PROCONS, em menor escala. Enquanto isso não acontece, o caminho viável (e que pode inclusive correr paralelamente àquele primeiro) é aplicação da legislação existente, o CDC, no caso a caso dos tribunais. Isso poderá pelo menos mitigar, em termos de justiça distributiva, situações de superendividamento através, sobretudo, da proteção da vontade racional do consumidor e de sua confiança, como se verá abaixo.
Que não passe desapercebida a limitação desta solução no que tange a pouca efetividade das soluções apresentadas pelo CDC: muitas vezes os tribunais funcionam como empresas de cobrança de crédito para os fornecedores; os advogados dos consumidores normalmente não são do mesmo nível ou pelo menos não têm a mesma estrutura do que os dos fornecedores de crédito, que se servem das maiores law firms nacionais e até internacionais. É verdade que esse problema de acesso à justiça é mitigado no Brasil pela atuação do Ministério Público, órgão público com competência para atuação na proteção de interesses coletivos e difusos[14]. Também é digno de relevo a criação do Juizado Especial Cível – através da Lei 9099/95 – que tem funcionado bem em alguns estados da federação, como o Rio Grande do Sul, por exemplo, como forma de equacionar o problema em relevo. Claro que isso não exclui a criação de procedimentos administrativos ou arbitrais especiais para casos de superendividamento das pessoas naturais.
Os maiores problemas de dogmática jurídica a serem enfrentados, então, relativamente ao tema do superendividamento, são os de equilíbrio na relação contratual, direito à informação e esclarecimento e proteção contra o marketing. Nesse aspecto, muitas as possíveis contribuições do CDC na mitigação daqueles problemas.
A) APLICA-SE O CDC AOS CONTRATOS DE CRÉDITO AO CONSUMO?
Para se chegar a uma aplicação do CDC aos contratos de crédito ao consumo, deve-se caracterizar o fornecimento de crédito como uma relação de consumo, ou seja, de que se encontre nos polos passivo e ativo, um consumidor e um fornecedor, respectivamente. Portanto, não será todo e qualquer empréstimo de recursos financeiros que incidirá nos suportes fáticos do CDC. Efetivamente, a concessão do crédito se dá, via de regra, através de um contrato. Por crédito pode ser entendido aqui “o ato pelo qual uma pessoa agindo a título oneroso coloca à disposição de outra pessoa fundos”[15] Portanto, contratos de crédito são aqueles negócios jurídicos pelos quais recursos financeiros são disponibilizados a outrem, que poderão ter uma destinação específica (afetado) ou não[16].
Além disso, sabe-se que o crédito costuma ser negociado através de quatro formas principais: cheque especial, cartão de crédito, crédito rotativo (cheques especiais) e financiamento próprio dos lojistas[17] Mas há também outras formas indiretas de concessão de crédito como a alienação fiduciária, compra e venda com reserva de domínio ou hipotecária, leasing[18].
Pois bem, esses negócios jurídicos de crédito têm duas características principais: configuram uma relação de média e longa duração (contratos cativos ou relacionais[19]), que normalmente é triangular (consumidor-financeira-comerciante; mutuário-agente financeiro-construtora/incorporadora); a segunda, é de assumir o credor uma obrigação principal de dar[20] ou também chamada de fornecimento de um produto: dinheiro. Esses são os elementos fundamentais para se trabalhar dentro da dogmática do CDC. Daí exsurge a preocupação fundamental de se oferecer uma proteção à confiança do consumidor, especialmente no momento da formação do vínculo e uma garantia de informação e esclarecimento ao contraente do financiamento.
Sabe-se que o CDC, por sua vez, tem como objetivo a proteção da parte vulnerável (ou se se preferir mais fraca ou hipossuficiente) em qualquer relação de consumo[21]. Essa relação especial é normalmente estabelecida por um contrato entre o consumidor e o fornecedor, embora outras pessoas fora deste negócio jurídico podem também ser protegidos pelas normas do CDC, caso sofram um dano em razão de alguma prática comercial daquele fornecedor no mercado[22].
O contrato de crédito negociado entre credor e devedor seria, por conseguinte, uma relação de consumo desde que, primeiramente, ele concretizasse os suportes fáticos do artigos 2º e 3ºdo CDC que definem fornecedor e consumidor.Isso porque a noção de relação de consumo é achada quando se liga a definição legal dos polos subjetivos desse liame jurídico (consumidor e fornecedor) – conceito relacional[23].
O fornecedor de um produto é a pessoa natural ou jurídica que oferta um bem material (mercadoria) no mercado na acepção econômica da palavra. Assim é que a concessão de crédito subsume-se perfeitamente a este conceito legal de fornecimento do produto dinheiro[24]. Todavia, a aplicação do CDC à espécie ainda depende de ser achado um consumidor nesta relação.
O CDC define consumidor em seu artigo 2º: “Consumidor é qualquer pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto ou serviço como destinatário final”. A doutrina, de outra parte, interpretando esse artigo de Lei[25], afirma que “consumidor é o destinatário fático ou econômico do serviço … é o que usa o serviço com vistas a satisfazer uma necessidade pessoal ou um desejo … não existe objetivo de lucrar mas, ao contrário, despender (em seu sentido econômico de oposição a poupar)“.
Portanto, tomadores de crédito que usam o dinheiro para satisfazer necessidades pessoais e não para lucrar são consumidores e essa relação sofre a incidência do CDC. Por outro lado, a implicação disso é que as outras pessoas que tomam dinheiro no mercado para instrumentalização de sua atividade econômica na busca do lucro não podem ser considerados consumidores (p. ex. a área de corporate finance dos bancos). Seria possível de defender uma exceção a esta regra somente se uma significativa vulnerabilidade pode ser encontrada entre o tomador e aquele que cede o crédito, como no caso das micro-empresas – que movimentam um volume de recursos muito baixos – tendo em vista a preocupação com a parte hipossuficiente nas relações econômicas. Essa tese, no entanto, embora sustentável é perigosa por não precisar limites claros à exceção a regra, correndo-se o risco de transformar o que deve ser um microsistema legislativo no macrosistema que a tudo regula[26].
Dessa forma, o consumidor de crédito é basicamente “a pessoa natural que está agindo fora do âmbito de seus negócios (incluindo aqui o comércio e a atividade profissional)“[27] e negocia com a financeira ou o banco o fornecimento de recursos financeiros para satisfação de uma necessidade pessoal, como é o caso do financiamento habitacional, o crédito educativo (logicamente que não o governamental semi-gratuito). Aqui, pelo menos, não há como se escapar da incidência do CDC.
II. IMPLICAÇÕES E PROTEÇÃO CONTRA SUPERENDIVIDAMENTO
Através da aplicação do CDC aos contratos de crédito com as características retro apontadas, surgem instrumentos para enfrentar os dois maiores perigos desses contratos no que tange aos riscos de superendividamento do consumidor: (A) oferecer uma proteção à vontade livre e racional do consumidor de crédito, especialmente no momento da formação do vínculo e (B) proteger a confiança do consumidor de crédito.
A) A proteção à vontade do consumidor
A proteção à vontade livre do consumidor diz respeito especialmente com o compromisso do microssistema legislativo do CDC com a transparência da relação contratual e, portanto, com a proteção da verdadeira manifestação de vontade da parte mais fraca (vontade racional do consumidor[28]), seja impondo-se deveres de esclarecimento e informação antes da contratação (aspecto positivo da boa fé), seja proibindo cláusulas abusivas (aspecto negativo da boa fé)[29]. A clareza e transparência durante a fase de negociação do crédito podem amenizar os casos de superendividamento por oferecer ao consumidor a oportunidade de reflexão efetiva. A proteção da vontade livre do consumidor, finalmente, dá-se com a proteção de sua “vontade racional”[30] (1), com o cuidado contra cláusulas abusivas (2) e com a teoria da quebra da base do negócio jurídico (3).
(1) proteção da vontade racional do consumidor
Para que a manifestação de vontade do consumidor de crédito seja escorreita e livre de exagerada manipulação publicitária, o CDC exige ao fornecedor dar ao seu conhecimento todos os termos do contrato de forma clara e precisa (art. 46), antes de sua assinatura (sob pena de não vinculação deste último). Esse artigo da Lei deve ser complementado com o disposto no art. 52 do CDC, que impõe a obrigação de divulgar o verdadeiro custo do crédito a ser concedido e todos os seus elementos (taxa de juros compensatórios, juros moratórios, acréscimos, periodicidade, etc)[31]. Tudo isso para como que compensar o desnível de informação e poder entre as partes negociantes do crédito.
Trata-se aqui da imposição legal de um dever de informação, transparência, imposto ao fornecedor de crédito para ensejar ao consumidor uma decisão refletida, efetivamente produto de sua razão. De outra parte, há importante reflexos também na concorrência, pois a informação clara a respeito do produto ofertado permite ao consumidor a comparação das ofertas entre os fornecedores.
O compromisso com a transparência e com a vontade real do consumidor de crédito reflete-se também no artigo 47 do CDC, acerca do método para interpretação de instrumentos contratuais confusos e mau redigidos, através do qual se inverte o risco do negócio de concessão de crédito, que deixa de ser do tomador do dinheiro (caveat emptor), para se tornar do fornecedor (caveat venditor). Esse artigo da Lei deve ser completado com o disposto nos parágrafos 3º e 4º do art. 54. Tudo isso para que o consumidor possa bem compreender a extensão do compromisso financeiro que está assumindo. O objetivo é de evitar contratos de adesão e cláusulas gerais redigidos de forma confusa ou pouco clara, onde se arma uma verdadeira “arapuca” ao consumidor. Há aqui, exemplo do TAC/RS de aplicação desses artigos do CDC[32], no sentido de se considerar não escrita uma cláusula datilografada em contradição com outra impressa mais favorável ao consumidor.
Lamentavelmente o art. 49 do CDC – acerca do chamado prazo para reflexão – apenas confere ao consumidor de crédito um prazo de reflexão caso o contrato tenha sido entabulado fora do estabelecimento comercial do fornecedor[33]. Com isso, limita-se o prazo para que o consumidor tome uma decisão refletida, menos fruto de seu impulso e mais resultado de sua razão. Há necessidade, como se verá abaixo, de se conceder um prazo de reflexão amplo ao consumidor de crédito, mesmo quando o acordo tenha sido acertado dentro do estabelecimento do fornecedor, dadas as perigosas características desse tipo de negócio.
(2) proteção da vontade via limitação de cláusulas abusivas
Outra forma de proteger a transparência da relação contratual de crédito e, por via de consequência, da confiança da parte hipossuficiente (consumidor), é a limitação da vontade da parte mais forte (fornecedor). A limitação de uma das vontades é paradoxalmente um meio eficiente de ensejar que a do mais fraco floresça[34].
O meio mais eficiente de imposição de limites a um abuso da vontade do fornecedor de crédito é a proibição das cláusulas abusivas, prevista no art. 51 do CDC de forma não exaustiva e dotada de uma grande possibilidade de oxigenação através do seu inciso IV e referência à boa fé. Dessa forma, cláusulas como o que deixa ao alvedrio do fornecedor eleger como índice de reajuste monetário do contrato ou o IGP-M, ou o IPC, ou a TR poderá ser tida como nula (art. 51, X). A própria cláusula que determina a TR como índice de correção monetária pode ser também tida também como iníqua, contra o sistema de proteção do consumidor, por enriquecer injustificadamente o fornecedor do crédito, haja vista que a inflação não tem o desempenho de acordo com a TR que acaba embutindo juros e anatocismo por via de consequência.
Na casuística dos tribunais, as chamadas cláusulas-mandato foram tidas como nulas pelo STJ. Através dessa cláusula o consumidor do crédito dá poderes ao fornecedor para emitir títulos de crédito em seu nome, tudo como o claro propósito de ser facilitar a execução da dívida. Também a cláusula de perda das parcelas pagas em contratos de promessa de compra e venda imobiliária já foi tida como abusiva. Efetivamente, o maior problema parece ser com relação as cláusulas que dispõem sobre cláusula penal e juros compensatórios, sobre as quais pairam ainda muitas dúvidas e que são de fato os grandes vilões do superendividamento dos consumidores, haja vista o custo do dinheiro no Brasil (um dos mais altos do mundo)…
O fato é que os juízes contam com um grande poder de corrigir iniquidades no caso a caso, pautados pelo princípio da boa fé objetiva (positivado no art. 4º, III, do CDC), que lhes dá um amplo espectro de controle de cláusulas em contratos de crédito. Com isso, poder-se-á evitar o superendividamento que seria gerado pela imposição de cláusulas abusivas com imposição de excessiva onerosidade ao consumidor.
Tecnicamente, esse princípio da boa fé objetiva impõe uma série de deveres implícitos (deveres anexos ou laterais) que são adicionados aos deveres principais de guarda do dinheiro e pagamentos a ordem do consumidor, dando origem a uma relação obrigacional complexa, de forma que o adimplemento do programa obrigacional dependerá do seu estrito cumprimento.[35]. Vale dizer, qualquer descumprimento de um dever anexo implicará inadimplemento e indenização, caso gerado um prejuízo ao cliente. Não se deve esquecer que as relações de crédito são tipicamente longas e concebidas para protrair no tempo (chamados por alguns de contratos cativos ou relacionais, como se disse supra).
Os deveres anexos que exemplificativamente exsurgem de uma relação obrigacional complexa como a de crédito podem ser sistematizados da seguinte forma[36]:
a) Deveres de cuidado, proteção, segurança e precaução (os quais aplicados ao fornecedor de crédito significam cautela no momento de aconselhamento ao consumidor; cuidado com a sua integridade física, que deverão ser protegidos em assaltos em suas agências; não colocá-los indevidamente em cadastros de devedores inadimplentes como o CADIN, SERASA);
b) Deveres de informação e esclarecimento (no caso deve haver minuciosa explicação das consequências da dívida para o futuro do consumidor de crédito, especialmente nos mútuos habitacionais e outros de significativo vulto);
c) Dever de prestação de contas (e.g. informar a respeito da eventual cobrança de impostos);
d) Deveres de lealdade e cooperação (por exemplo, eximir-se de práticas desleais e abusivas que possam causar onerosidade excessiva ao consumidor);
e) Dever de sigilo (e.g. não fornecer dados sobre seus clientes, salvo contra ordem judicial).
Não pode passar despercebida, ainda com relação ao tema da vontade real do consumidor, a possibilidade que tem ele de liquidar antecipadamente o débito, com o devido desconto de juros e correção monetária, de acordo com o parágrafo 2º do art. 52. É uma forma de se evitar o superendividamento, pois enseja ao consumidor de livrar seu futuro de com prestação de dívidas, ou pelo menos, liberá-lo para outros contratos de crédito, evitando-se acumulação e confusão de dívidas.
Acerca da limitação da vontade do fornecedor, resta lembrar que o art. 4º determina ser o CDC norma de ordem pública, de sorte que suas normas favoráveis e protetivas do consumidor do crédito não podem ser afastadas. Trata-se, portanto, de outro instrumento para proteção contra superendividamentos de consumidores.
(3) A teoria da quebra da base do negócio jurídico
A proteção da vontade do consumidor se dá também indubitavelmente com a manutenção do equilíbrio da equação econômico-financeira do contrato de crédito, via teoria da base do negócio jurídico (art. 6º, V, do CDC)[37]. Isso porque a manifestação de vontade do consumidor ao assumir uma dívida financeira tem em conta a situação objetiva econômica do momento da contratação. A alteração dessa relação econômica das prestações do contrato sinalagmático é talvez a grande causa do superendivamento.
A teoria da base do negócio desenvolvida por Larenz[38], diz respeito sobretudo a uma equânime distribuição dos riscos no contrato, que não poderão ser concentrados apenas na figura do devedor. A teoria da base tem a ver com a impossibilidade econômica no cumprimento da prestação e se vincula com a finalidade real do contrato e procura responder à questão de saber se a intenção geral dos contratantes pode ainda efetivar-se, em face de modificações econômicas sobrevindas (independentemente da capacidade de previsão das partes). Através dela, não se permite que se ultrapasse os limites do que razoavelmente se poderia esperar de uma das partes no contrato, um certo limite no sacríficio em prol do pacta sunt servanda; há por assim dizer uma objetivação do negócio jurídico, que deve se ater não somente à vontade, mas ao contexto econômico[39]. Veja-se o exemplo dos mútuos habitacionais citados na introdução desse trabalho, em que ocorre do consumidor pagar muitas vezes o valor de mercado do imóvel adquirido à título de juros e correção monetária.
A imposição de índices de correção monetária das prestações, muitas vezes acima da inflação (como ocorre com a TR) e juros que ultrapassam 12% ao ano geram, não raramente, uma situação de insustentabilidade da dívida, que passa a comprometer os rendimentos do consumidor em proporções muito superiores às iniciais. Daí o surgimento de um superendividamento, que é posterior à contratação e que tem como causa não uma atitude imprudente do consumidor, nem a falta de informação dos termos do contrato de crédito, mas um desequilíbrio na equação econômico-fianceira do acordo, que fere a teoria da base objetiva do negócio jurídico, e, por via de consequência, os arts. 6º, V e o 51, IV do CDC.
(B) A proteção da confiança gerada ao consumidor de crédito
A idéia subjacente aqui é a de os atores sociais devem poder acreditar que no que o comerciante oferta, promete e no que aparenta ser[40]. Tudo isso para que se gere uma estabilidade nas relações sociais. Dessa forma, uma vez despertada a confiança do consumidor de crédito por um ato legítimo do fornecedor, deve ela ser respeitada, seja (1) no momento da formação do contrato, ou de sua execução (2). A manutenção da expectativa legítima gerada ao consumidor é igualmente uma forma de se evitar o superendividamento, uma vez que as decisões formuladas pelo consumidor a respeito do comprometimento de sua renda atual para o futuro não sofrerão qualquer viés em virtude de indevidas alterações dos termos negociais.
(1) O momento da formação do contrato
O art. 30 do CDC é o mais importante instrumento para manutenção do consumidor numa sociedade informatizada e de marketing: o efeito vinculante da publicidade. Dessa forma, o fornecedor de crédito fica vinculado juridicamente à oferta publicitária que fizer ao consumidor, não podendo alterar as bases negociais no futuro. Portanto, a decisão do consumidor de comprometimento do seu orçamento para o futuro terá tido bases transparentes e de segurança jurídica. Resta clara a importância desse artigo da Lei para conter situações de futuros superendividamentos, haja vista que o consumidor não terá surpresas com mudanças unilaterais de sua expectativa inicial. Assim, se a oferta publicitária fala em taxa de juros de 10%, não terá validade a cláusula contratual de juros de 12%, por exemplo.
(2) O momento da execução do contrato
O fato de o contrato de crédito ser, via de regra, de longa duração exige um cuidado especial para que o consumidor não se torne superendividado no transcurso da relação obrigacional como sói acontecer. Pode acontecer que o descumprimento ao princípio da boa fé e da confiança durante a execução do contrato, cause um aumento desproporcional da dívida, que será bastante ao superendividamento caso o consumidor não aumente seus rendimentos (o que é bastante improvável nas circunstâncias econômicas atuais).
Assim, “a ação dos profissionais do crédito no mercado, suas práticas comerciais, a execução das cláusulas previstas nas condições gerais do negócio, não devem trazer prejuízos sem causa e inesperados ao consumidor. A confiança na atuação futura, na estabilidade do vínculo, na sua boa conclusão é uma confiança em última análise no direito, na equidade contratual, na força positiva do princípio da boa fé”[41].
De relevo aqui a ligação do direito do consumidor aos direitos da personalidade, com especial relevo à teoria do abuso do direito no que tange à inscrição do consumidor em cadastros de restrição ao crédito (SPC, CADIN, etc). A indevida colocação do consumidor nesses órgãos a serviço do crédito – que têm função social indiscutível – pode causar até o seu superendividamento, pois novos créditos lhe serão negados com base naquele registro desabonador equivocado, de sorte que o giro de seu capital poderá ser rompido e naquele momento as dívidas superarem, num efeito cascata, os créditos. E uma vez desencadeado o círculo vicioso do superendividamento é difícil sair (algo como um efeito “bola de neve”, basta que se pense naquela pessoa constantemente devedora em sua conta de cheque especial).
Mais precisamente, a utilização desses cadastros deve ser conectada à teoria geral do abuso do direito[42], no sentido de que há uma finalidade social para que os fornecedores de crédito façam uso dessas listas. Ela consiste, por um lado, na proteção do crédito e da circulação da moeda como um todo, e, por outro, na proteção do próprio consumidor em dificuldades e o seu fornecedor. Por via de consequência, haverá abuso de direito de inscrição em cadastros de devedores toda a vez que se fugir desse escopo em relevo[43].
O artigo 43 do CDC é uma conquista ao consumidor e um instrumento relativizador do poder dos cedentes do crédito de inscrever consumidores naqueles cadastros. Esse artigo permite a construção de um cadastro dos consumidores de crédito no que tange a sua situação econômica. Paradoxalmente, é também uma forma de combater o superendividamento caso bem utilizado, já que permite que seja negado o crédito a pessoas que não tenham mais condições de arcar com um novo ônus em seu orçamento. A não concessão de um financiamento que seria fatal à solvência do consumidor evitou então uma condição financeira insustentável frente as suas dívidas.
Tendo em vista que o superendividamento envolve também e fundamentalmente problemas de política de crédito e de direito do consumidor, o CDC não oferece instrumentos bastantes a erradicar o problema no país, cuja solução ficará remetida para uma lei específica a ser elaborada pelo Parlamento Nacional que consagre alguns dos instrumentos já consagrados no direito comparado como se verá a seguir e a quimera de políticas públicas mais justas e igualitárias. Dito isso, cabem algumas sugestões do que poderia ser acrescentado à atual legislação.
III – DE LEGE FERENDA
Foi conclusão do Painel nº 4 – Novas técnicas afetando o direito do consumidor – do 5º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em 3 de maio de 2000, em Seminário exposto por Geraldo de Faria Martins da Costa:
“1 – É preciso que o Direito Brasileiro, a exemplo do Direito Comparado, adote medidas legislativas que tenham por objetivo específico a diminuição dos perigos que envolvem as operações de crédito ao consumo, indo além daquelas já instituídas pelo CDC;
2 – É preciso adotar medidas legislativas que previnam o superendividamento dos consumidores;
3 – É preciso adotar medidas legislativas que instituam o tratamento dos consumidores em situação de superendividamento.”
Uma das sugestões propostas pelo expositor foi a adoção de um prazo para reflexão especial para os contratos de crédito, que pode ser idêntico ao do art. 49 do CDC, mas admitido mesmo em hipóteses de negociações levadas a efeito dentro do estabelecimento do fornecedor[44]. Isso porque a concessão do crédito traz dois perigos fundamentais ao consumidor: compras desnecessárias e compromisso para o futuro[45]. Nesse sentido, deve-se dar um prazo alongado ao consumidor para que possa refletir em casa, tranquila e racionalmente, consultando os demais membros da família[46]. Essa proteção acaba evitando que o consumidor se endivide por impulso e que possa se defender das técnicas agressivas de venda e marketing. Isso poderia ser feito inclusive inserindo-se um parágrafo ou inciso ao caput do artigo 52 do CDC.
A essa solução recorreu a lei francesa de proteção do consumidor contra o superendividamento (surendettement), a lei de 31 de dezembro de 1989, que deu nova redação aos art. L. 311-15 e 311-16 do Code du Consommateur).
Outro aspecto que poderá proteger o consumidor das estratégias mercadológicas é a exigência na lei de uma oferta por escrito da parte das fornecedoras de crédito. Essa obrigação, cuja fonte é a lei canadense de proteção ao consumidor de crédito, combinada com a anterior, permitirá que o consumidor reflita no seu lar, protegido um pouco do marketing e com a possibilidade de comparação entre as ofertas. Essa prática poderá acarretar, outrossim, efeito na concorrência dos fornecedores, já que os consumidores poderão fazer estudos e comparações na tranquilidade de sua casa, a partir de dados escritos a respeito da futura dívida e seus acessórios (principal, juros, encargos, etc).
Outro item que poderá contribuir a enfrentar o problema do superendividamento é a regulamentação detalhada, por meio da lei (inclusive parágrafos a serem inseridos no art. 43 do CDC), dos cadastros de restrição ao crédito (SPC, CADIN), pois uma lista de devedores inadimplentes poderá auxiliar as instituições de crédito a se absterem de pessoas em situação de desequilíbrio orçamentário. Isso, em contrapartida, ajudará essas próprias pessoas a se reequilibrarem economicamente, pois não ficaram ainda mais endividadas.
É claro que a regulamentação da atividade dos cadastros de inadimplentes é fundamental para se evitarem abusos dos fornecedores, pois esses cadastros não podem ser utilizados indevidamente (como, por exemplo, como instrumento de pressão da dívida, ou enquanto ela está sendo discutida em juízo[47]).
Esta utilização de listas de devedores inadimplentes é também uma das soluções empregadas pela legislação francesa de proteção do consumidor contra o superendividamento (surendettement) já citada.
Ainda, pode-se estabelecer a criação de um procedimento de falência individual para igualmente tratar situações de superendividamento (art. 331-1 e ss, Code consom.). Trata-se de conferir ao devedor um alongamento no prazo para pagamento, diminuição da taxa de juros e encargos e inclusive a concessão de moratória e remissão da dívida.
Por fim, a própria jurisprudência pode limitar ainda mais essa realidade, ao, por exemplo, impor responsabilidades aos fornecedores de crédito, principalmente através do reconhecimento da teoria do aspecto preventivo do dano extrapatrimonial.
Advogado. Doutor em Direito pela UFRGS com os créditos realizados na USP. Master of Laws em Direito Econômico Internacional pela Universidade de Warwick (Inglaterra). Professor da PUC/RS, FEEVALE e ULBRA.
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