1. RECORDANDO O ROMPIMENTO DO PARADIGMA NEWTONIANO[1]
Para iniciar, num proposital salto histórico, recordemos que para NEWTON o universo era previsível, um autômato, representado pela figura do relógio. Era a idéia do tempo absoluto e universal, independente do objeto e de seu observador eis que considerado igual para todos e em todos os lugares. Existia um tempo cósmico em que Deus era o grande relojoeiro do universo. Tratava-se de uma visão determinista com a noção de um tempo linear, pois, para conhecermos o futuro, bastava dominar o presente.
Com EINSTEIN e a Teoria da Relatividade[2], opera-se uma ruptura completa dessa racionalidade, com o tempo sendo visto como algo relativo, variável conforme a posição e o deslocamento do observador, pois ao lado do tempo objetivo está o tempo subjetivo.
Sepultou-se de vez qualquer resquício dos juízos de certeza ou verdades absolutas, pois tudo é relativo: a mesma paisagem podia ser uma coisa para o pedestre, outra coisa totalmente diversa para o motorista, e ainda outra coisa diferente para o aviador. A percepção do tempo é completamente distinta para cada um de nós. A verdade absoluta[3] somente poderia ser determinada pela soma de todas observações relativas[4]. HAWKING[5], explica que EINSTEIN derrubou os paradigmas da época: o repouso absoluto, conforme as experiências com o éter, e o tempo absoluto ou universal que todos relógios mediriam. Tudo era relativo, não havendo, portanto, um padrão a ser seguido[6].
O tempo é relativo a posição e velocidade do observador, mas também a determinados estados mentais do sujeito, como exterioriza EINSTEIN[7] na clássica explicação que deu sobre Relatividade à sua empregada: quando um homem se senta ao lado de uma moça bonita, durante uma hora, tem a impressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente durante um minuto somente – e esse minuto lhe parecerá mais comprido que uma hora. – Isso é relatividade”.
Até EINSTEIN, consideravam-se apenas as três dimensões espaciais de altura, largura e comprimento, pois o tempo era imóvel. Quando verificou-se que o tempo se move no espaço, surge a quarta dimensão: o espaço-tempo. ELIAS[8] considera como a dimensão social do tempo, em que o relógio é uma construção do homem a partir de uma convenção, de uma medida adotada. Isso está tão arraigado que não imaginamos que o tempo exista independente do homem. Sem embargo, o paradoxo do tempo é o fato de o relógio marcar 2h ontem e hoje novamente, quando na verdade as duas horas de ontem jamais se repetirão ou serão iguais as 2h de hoje.
Na perspectiva da relatividade, podemos falar em tempo objetivo e subjetivo, mas principalmente, de uma percepção do tempo e de sua dinâmica, de forma completamente diversa para cada observador.
Desnecessária maior explanação em torno da regência de nossas vidas pelo tempo[9], principalmente nas sociedades contemporâneas, dominadas pela aceleração e a lógica do tempo curto. Vivemos numa sociedade regida pelo tempo, em que a velocidade é a alavanca[10] do mundo contemporâneo, nos conduzindo a angústia do presenteísmo. Buscamos expandir ao máximo esse fragmento de tempo que chamamos de presente, espremido entre um passado que não existe, uma vez que já não é, e um futuro contingente, que ainda não é, e que por isso, também não existe[11]. Nessa incessante corrida, o tempo rege nossa vida pessoal, profissional e, como não poderia deixar de ser, o próprio direito.
No que se refere ao Direito Penal, o tempo é fundante de sua estrutura, na medida em que tanto cria como mata o direito (prescrição), podendo sintetizar-se essa relação na constatação de que a pena é tempo e o tempo é pena[12]. Pune-se através de quantidade de tempo e permite-se que o tempo substitua a pena. No primeiro caso, é o tempo do castigo, no segundo, o tempo do perdão e da prescrição. Como identificou MESSUTI[13], os muros da prisão não marcam apenas a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. O tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena.
O processo não escapa do tempo, pois ele está arraigado na sua própria concepção, enquanto concatenação de atos que se desenvolvem, duram e são realizados numa determinada temporalidade. O tempo é elemento constitutivo inafastável do nascimento, desenvolvimento e conclusão do processo, mas também na gravidade com que serão aplicadas as penas processuais, potencializadas pela (de)mora jurisdicional injustificada.
Sem embargo, gravíssimo paradoxo surge quando nos deparamos com a inexistência de um tempo absoluto, tanto sob o ponto de vista físico, como também social ou subjetivo, frente a concepção jurídica de tempo. O Direito não reconhece a relatividade ou mesmo o tempo subjetivo, e, como define PASTOR[14], o jurista parte do reconhecimento do tempo enquanto “realidade”, que pode ser fracionado e medido com exatidão, sendo absoluto e uniforme. O Direito só reconhece o tempo do calendário e do relógio, juridicamente objetivado e definitivo. E mais, para o Direito, é possível acelerar e retroceder a flecha do tempo, a partir de suas alquimias do estilo “antecipação de tutela” e “reversão dos efeitos”, em manifesta oposição as mais elementares leis da física.
No Direito Penal, em que pese as discussões em torno das teorias justificadoras da pena, o certo é que a pena mantém o significado de tempo fixo de aflição, de retribuição temporal pelo mal causado. Sem dúvida que esse “intercâmbio negativo”, na expressão de MOSCONI[15], é fator legitimante e de aceitabilidade da pena ante a opinião pública. O contraste é evidente: a pena de prisão está fundada num tempo fixo[16] de retribuição, de duração da aflição, ao passo que o tempo social é extremamente fluido, podendo se contrair ou se fragmentar e está sempre fugindo de definições rígidas. É uma concepção vinculada a idéia de controle e segurança jurídica, que deve ser repensada à luz da sociologia do risco e da própria teoria da relatividade.
Interessa-nos agora, abordar o choque entre o tempo absoluto do direito e o tempo subjetivo do réu, especialmente no que e refere ao direito de ser julgado num prazo razoável e a (de)mora judicial enquanto grave conseqüência da inobservância desse direito fundamental.
2. TEMPO E PENAS PROCESSUAIS
A concepção de poder passa hoje pela temporalidade, na medida em que o verdadeiro detentor do poder é aquele que está em condições de impor aos demais o seu ritmo, a sua dinâmica, a sua própria temporalidade. Como já explicamos em outra oportunidade, “o direito penal e o processo penal são provas inequívocas de que o Estado-Penitência (usando a expressão de LOÏC WACQUANT) já tomou, ao longo da história, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada a retirar, apossa-se do tempo[17].
Como veremos, quando a duração de um processo supera o limite da duração razoável, novamente o Estado se apossa ilegalmente do tempo do particular, de forma dolorosa e irreversível. E esse apossamento ilegal ocorre ainda que não exista uma prisão cautelar, pois o processo em si mesmo é uma pena.
Interessa-nos o difícil equilíbrio entre os dois extremos: de um lado o processo demasiadamente expedito, em que se atropelam os direitos e garantias fundamentais, e, de outro, aquele que se arrasta, equiparando-se à negação da (tutela da) justiça e agravando todo o conjunto de penas processuais ínsitas ao processo penal.
A visibilidade da pena processual é plena quando estamos diante de uma prisão cautelar, em que a segregação é prévia ao trânsito em julgado da sentença. Nesse caso, dúvida alguma paira em torno da gravidade dessa violência, que somente se justifica nos estritos limites de sua verdadeira cautelaridade.
Mas a questão da dilação indevida do processo, também deve ser reconhecida quando o imputado está solto, pois ele pode estar livre do cárcere, mas não do estigma e da angústia. É inegável que a submissão ao processo penal autoriza a ingerência estatal sobre toda uma série de direitos fundamentais, para além da liberdade de locomoção, pois autoriza restrições sobre a livre disposição de bens, a privacidade das comunicações, a inviolabilidade do domicílio, e a própria dignidade do réu.
O caráter punitivo está calcado no tempo de submissão ao constrangimento estatal, e não apenas na questão espacial de estar intra-muros. Com razão MESSUTI[18], quando afirma que não é apenas a separação física que define a prisão, pois os muros não marcam apenas a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. A marca essencial da pena (em sentido amplo) é “por quanto tempo”? Isso porque, o tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena. O processo penal encerra em si uma pena (la pena de banquillo)[19], ou conjunto de penas se preferirem, que mesmo possuindo natureza diversa da prisão cautelar, inegavelmente cobra(m) seu preço e sofre(m) um sobre-custo inflacionário proporcional a duração do processo. Em ambas as situações (com prisão cautelar ou sem ela), a dilação indevida deve ser reconhecida, ainda que os critérios utilizados para aferi-la, sejam diferentes, na medida em que havendo prisão cautelar, a urgência se impõe a partir da noção de tempo subjetivo.
A perpetuação do processo penal, além do tempo necessário para assegurar seus direitos fundamentais, se converte na principal violação de todas e de cada uma das diversas garantias que o réu possui.
A primeira garantia que cai por terra é a da Jurisdicionalidade insculpida na máxima latina do nulla poena, nulla culpa sine iudicio. Isso porque o processo se transforma em pena prévia a sentença, através da estigmatização[20], da angústia prolongada[21], da restrição de bens e, em muitos casos, através de verdadeiras penas privativas de liberdade aplicadas antecipadamente (prisões cautelares). É o que CARNELUTTI[22] define como a misure di soffrenza spirituale ou di umiliazione. O mais grave é que o custo da pena-processo não é meramente econômico, mas o social e psicológico.
A continuação, é fulminada a Presunção de Inocência, pois a demora e o prolongamento excessivo do processo penal vai, paulatinamente, sepultando a credibilidade em torno da versão do acusado[23]. Existe uma relação inversa e proporcional entre a estigmatização e a presunção de inocência, na medida em que o tempo implementa aquela e enfraquece esta.
O direito de defesa e o próprio contraditório, também são afetados, na medida em que a prolongação excessiva do processo gera graves dificuldades para o exercício eficaz da resistência processual, bem como implica um sobre-custo financeiro para o acusado, não apenas com os gastos em honorários advocatícios, mas também pelo empobrecimento gerado pela estigmatização social. Não há que olvidar a eventual indisponibilidade patrimonial do réu, que por si só é gravíssima, mas que se for conjugada com uma prisão cautelar, conduz a inexorável bancarrota do imputado e de seus familiares. A prisão (mesmo cautelar) não apenas gera pobreza, senão que a exporta, a ponto de a “intranscendência da pena” não passar de romantismo do direito penal.
A lista de direitos fundamentais violados cresce na mesma proporção em que o processo penal se dilata indevidamente.
Mas o que deve ficar claro, é que existe uma pena processual mesmo quando não há prisão cautelar, e que ela aumenta progressivamente com a duração do processo. Seu imenso custo, será ainda maior, a partir do momento em que se configurar a duração excessiva do processo, pois então, essa violência passa a ser qualificada pela ilegitimidade do Estado em exercê-la.
3. A (DE)MORA JURISDICIONAL E O DIREITO A UM PROCESSO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS
BECCARIA[24], a seu tempo, já afirmava com acerto que o processo deve ser conduzido sem protelações, até porque, quanto mais rápida for a aplicação da pena e mais perto estiver do delito, mais justa e útil ela será.
Cunhamos a expressão “(de)mora jurisdicional” porque ela nos remete ao próprio conceito (em sentido amplo) da “mora”, na medida em que existe uma injustificada procrastinação do dever de adimplemento da obrigação de prestação jurisdicional. Daí porque, nos parece adequada a construção (de)mora judicial no sentido de não-cumprimento de uma obrigação claramente definida, que é a da própria prestação da tutela (jurisdicional) devida.
Cumpre agora analisar os contornos e os problemas que rodeiam o direito de ser julgado num prazo razoável ou a um processo sem dilações indevidas.
3.1. Fundamentos da existência do direito de ser julgado num prazo razoável
A (de)mora na prestação jurisdicional constitui um dos mais antigos problemas da administração da justiça. Contudo, como aponta PASTOR[25], somente após a Segunda Guerra Mundial é que esse direito fundamental foi objeto de uma preocupação mais intensa. Isso coincidiu com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10/12/1948, especialmente no art. 10, que foi fonte direta tanto do art. 6.1 da Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH) como também dos arts.7.5 e 8.1 da CADH.
Os principais fundamentos de uma célere tramitação do processo, sem atropelo de garantias fundamentais, é claro, estão calcados no respeito a dignidade do acusado, no interesse probatório, no interesse coletivo no correto funcionamento das instituições, e na própria confiança na capacidade da justiça de resolver os assuntos que a ela são levados, no prazo legalmente considerado como adequado e razoável.
O núcleo do problema da (de)mora, como bem identificou o Tribunal Supremo da Espanha na STS 4519[26], está em que, quando se julga além do prazo razoável, independentemente da causa da demora, se está julgando um homem completamente distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de prevenção específica e retribuição (muito menos da falaciosa “reinserção social”).
Trata-se de um paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário: um juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena e, seu presente no futuro, será um constante reviver o passado[27].
O Estado resulta, como sintetiza PEDRAZ PENALVA[28], no principal obrigado por esse direito fundamental, na medida em que cria deveres para o juiz (impulso oficial), bem como para o Estado-legislador (promulgação de um sistema normativo material, processual e mesmo orgânico) para uma efetiva administração da justiça, sem esquecer os meios materiais e pessoais[29]. Tampouco se pode exigir “cooperação” do imputado, na medida em que protegido pelo nemo tenetur se detegere. Ademais, os arts. 7.5 e 8.1 da CADH não exige tal participação ativa junto as autoridades judiciais ou policiais.
Processualmente, o direito a um processo sem dilações indevidas insere-se num principio mais amplo, o de Celeridade Processual. Inobstante, uma vez mais se evidencia o equívoco de uma “teoria geral do processo”, na medida em que, o dever de observância das categorias jurídicas próprias do processo penal, impõe uma leitura da questão de forma diversa daquela realizada no processo civil. No processo penal, o principio de celeridade processual deve ser reinterpretado à luz da epistemologia constitucional de proteção do réu, constituindo, portanto, um direito subjetivo processual do imputado.
Sua existência funda-se na garantia de que los procesos deben terminar lo más rapidamente que sea posible en interés de todos, pero ante todo en resguardo de la dignidad del imputado[30]. Somente em segundo plano, numa dimensão secundária, a celeridade pode ser invocada para otimizar os fins sociais ou acusatórios do processo penal, sem que isso, jamais, implique sacrifício do direito de ampla defesa e pleno contraditório para o réu.
3.2. A recepção pelo direito brasileiro
Esse direito fundamental já estava expressamente assegurado nos arts. 7.5 e 8.1 da CADH[31], recepcionados pelo art. 5º, § 2º da Constituição. Assim, a Emenda Constitucional n. 45 de 08 de dezembro de 2004, não inovou em nada com a inclusão do inciso LXXVIII no art. 5° da Constituição, apenas seguiu a mesma diretriz protetora da CADH, com a seguinte redação:
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Dessarte, o sistema jurídico vigente deve adequar-se a essa nova exigência, revisando seus procedimentos e o próprio ritual judiciário, buscando equilibrar garantia e aceleração. Ao mesmo tempo em que se deve evitar a dilação indevida, não se pode atropelar direitos e garantias fundamentais.
Além de firmatário da CADH, o Brasil é passível de ser demandado junto à Corte Americana de Direitos Humanos, que previsivelmente ”importa” muitos dos entendimentos do TEDH. Não tardará para que o STF comece também a lançar mão desse artifício doutrinário, para adequação do sistema jurídico interno à nova diretriz ditada pelo direito internacional dos direitos humanos. Daí a necessidade de constante remissão às decisões do TEDH e da doutrina européia, com muito mais tradição no trato da questão.
Importa destacar, que o tema em questão não se confunde com uma eventual “constitucionalização de prazos”, senão, como ensina a STC 5/85[32], que o constitucionalizado é o direito fundamental como um todo, no sentido de que uma pessoa tem direito a que seu processo seja objeto de manifestação jurisdicional num tempo razoável. A mera e isolada inobservância de algum prazo, por si só não conduz, automaticamente, a violação do direito fundamental em análise.
Evidenciada a recepção do direito a um processo sem dilações indevidas por parte do ordenamento jurídico brasileiro, bem como a importância prática da temática, passemos a problemática em torno de sua efetividade.
3.3. A problemática definição dos critérios: a doutrina do não-prazo
Tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos como a Constituição, não fixaram prazos máximos para a duração dos processos e tampouco delegaram para que lei ordinária regulamentasse a matéria.
Adotou o sistema brasileiro a chamada “doutrina do não-prazo”, persistindo numa sistemática ultrapassada e que a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem há décadas debatendo-se.
Dessa forma, a indeterminação conceitual do art. 5°, LXXVIII, da Constituição, nos conduzirá pelo mesmo (tortuoso) caminho da jurisprudência do TEDH e da CADH, sendo importante explicar essa evolução para melhor compreensão da questão.
Foi no caso “Wemhoff”[33] (STEDH de 27/6/1968) que se deu o primeiro passo na direção da definição de certos critérios para a valoração da “duração indevida”, através do que se convencionou chamar de “doutrina dos sete critérios”. Para valorar a situação, a Comissão sugeriu que a razoabilidade da prisão cautelar (e conseqüente dilação indevida do processo) fosse aferida considerando-se: a) a duração da prisão cautelar; b) a duração da prisão cautelar em relação a natureza do delito, a pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de condenação; c) os efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem material como moral ou outros; d) a influência da conduta do imputado em relação à demora do processo; e) as dificuldades para a investigação do caso (complexidade dos fatos, quantidade de testemunhas e réus, dificuldades probatórias, etc.); f) a maneira como a investigação foi conduzida; g) a conduta das autoridades judiciais.
Tratavam-se de critérios que deveriam ser apreciados em conjunto, com valor e importância relativas, admitindo-se, inclusive, que um deles fosse decisivo na aferição do excesso de prazo.
A doutrina dos sete critérios não restou expressamente acolhida pelo TEDH como referencial decisivo, mas tampouco foi completamente descartada, tendo sido utilizada pela Comissão em diversos casos posteriores e servido de inspiração para um referencial mais enxuto: a teoria dos três critérios básicos (complexidade do caso; a atividade processual do interessado (imputado); a conduta das autoridades judiciárias).
Esses três critérios têm sido sistematicamente invocados, tanto pelo TEDH, como também pela Corte Americana de Direitos Humanos. Ainda que mais delimitados, não são menos discricionários.
Como tratar do direito de ser julgado num “prazo” razoável, se o TEDH (e também a Corte Americana de Direitos Humanos) jamais fixou um limite temporal? Que prazo é esse que nunca foi quantificado? Se não há um limite temporal claro (ainda que admita certa flexibilidade diante das especificidades), o critério para definir se a dilação é “indevida” ou está justificada, é totalmente discricionário, com um amplo e impróprio espaço para a (des)valoração, sem qualquer possibilidade de refutação.
Nessa indefinição e vagueza de conceitos foi consolidada a (criticada) doutrina do “não-prazo”, pois deixa amplo espaço discricionário para avaliação segundo as circunstâncias do caso e o “sentir” do julgador.
Para falar-se em dilação “indevida” é necessário que o ordenamento jurídico interno defina limites ordinários para os processos, um referencial do que seja a “dilação devida”, ou o “estándar medio admisible para proscribir dialaciones más allá de él”[34].
Uma vez definido um parâmetro, a discussão desviará seu rumo para outras questões, como por exemplo: se o limite abstratamente fixado é substancialmente constitucional (à luz dos diversos princípios em torno da qual gira a questão); em que situações a superação desse limite poderá ser considerada como “justificada”[35]; possibilidade de reconhecer-se como indevida uma dilação, ainda que não se tenha alcançado o prazo fixado, mas as circunstâncias específicas do caso indicarem uma conduta danosa e negligente por parte dos órgãos que integram a administração da justiça, etc.
Fundamental ainda, é a leitura da questão à luz do princípio da proporcionalidade[36], critério inafastável na ponderação dos bens jurídicos em questão.
A questão pode ser ainda abordada desde uma interpretação gramatical. Por dilação entende-se a (de)mora, o adiamento, a postergação em relação aos prazos e termos (inicial-final) previamente estabelecidos em lei, sempre recordando o dever de impulso(oficial) atribuído ao órgão jurisdicional (o que não se confunde com poderes instrutórios-inquisitórios). Incumbe as partes o interesse de impulsionar o feito (enquanto carga no sentido empregado por James Goldschmidt), mas um dever jurisdicional em relação ao juiz.
Já o adjetivo “indevida” que acompanha o substantivo “dilação”, constitui o ponto nevrálgico da questão, pois a simples dilação não constitui o problema em si, eis que pode estar legitimada. Para ser “indevida”, deve-se buscar o referencial “devida”, enquanto marco de legitimação, verdadeiro divisor de águas (para isso é imprescindível um limite normativo, conforme tratado a continuação).
GIMENO SENDRA[37] aponta que a dilação indevida corresponde a mera inatividade, dolosa, negligente ou fortuita do órgão jurisdicional. Não constitui causa de justificação a sobrecarga de trabalho do órgão jurisdicional, pois é inadmissível transformar em “devido” o “indevido” funcionamento da justiça. Como afirma o autor, “lo que no puede suceder es que lo normal sea el funcionamiento anormal de la justicia, pues los Estados han de procurar los medios necesarios a sus tribunales a fin de que los procesos transcurran en un plazo razonable (SSTEDH Bucholz cit., Eckle, S. 15 julio 1982; Zimmerman-Steiner, S. 13 julio 1983; DCE 7984/77, 11 julio; SSTC 223/1988; 37/ 1991).”
Em síntese, o art. 5°, LXXVIII, da Constituição – incluindo pela Emenda Constitucional n. 45 – adotou a doutrina do não-prazo, fazendo como que exista uma indefinição de critérios e conceitos. Nessa vagueza, cremos que quatro deverão ser os referenciais adotados pelos Tribunais brasileiros, a exemplo do que já acontece nos TEDH e na CADH:
– complexidade do caso;
– atividade processual do interessado (imputado), que obviamente não poderá se beneficiar de sua própria demora;
– a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia, Ministério Público, juízes, servidores, etc.);
– princípio da proporcionalidade.
Ainda não é o modelo mais adequado, mas enquanto não se tem claros limites temporais por parte da legislação interna, já representa uma grande evolução.
3.4. Nulla coactio sine lege: a (urgente) necessidade de estabelecer limites normativos
O ideal seria abandonar a noção newtoniana de tempo absoluto, à qual o direito ainda está vinculado, para reconduzir o tempo ao sujeito, por meio da concepção de tempo subjetivo. A ponderação deveria partir do tempo subjetivo, colocando esse poder de valoração nas mãos dos tribunais. Mas, se por um lado, não seria adequado cientificamente definir rigidamente um tempo universal e absoluto para o desenvolvimento do processo penal (recusa einsteniana), por outro a questão não pode ficar inteiramente nas mãos dos juízes e tribunais, pois a experiência com a (ampla) discricionariedade judicial contida na doutrina do não-prazo, não se mostrou positiva.
A principal crítica em relação às decisões do TEDH (e também da Corte Americana de Direitos Humanos) sobre a matéria, está calcada no inadequado exercício da discricionariedade jurisdicional, com os tribunais lançando mão de um decisionismo arbitrário e sem critérios razoáveis. Sem falar no majoritário desprezo dos tribunais brasileiros em relação à matéria (com poucas exceções meritórias, como se verá no próximo tópico).
PASTOR[38] critica o entendimento dominante do não-prazo (como o adotado pela Constituição brasileira), pois se, inteligentemente, não confiamos nos juízes a ponto de delegar-lhes o poder de determinar o conteúdo das condutas puníveis, nem o tipo de pena a aplicar, ou sua duração sem limites mínimos e máximos, nem as regras de natureza procedimental, não há motivo algum para confiar a eles a determinação do prazo máximo razoável de duração do processo penal, na medida em que o processo penal em si mesmo constitui um exercício de poder estatal, e, igual a pena, as buscas domiciliares, a interceptação das comunicações e todas as demais formas de intervenção do Estado, deve estar metajudicialmente regulado, com precisão e detalhe.
Assim como o direito penal está estritamente limitado pelo principio da legalidade e o procedimento pelas diversas normas que o regulam, também a duração dos processos deve ser objeto de regulamentação normativa clara e bem definida.
Na falta de bom senso por parte dos responsáveis em reconduzir o tempo ao sujeito, devemos partir para uma definição normativa[39] do tempo máximo de duração do processo, a exemplo da pena de prisão. O Princípio da Legalidade, muito bem explicado por BRANDÃO[40], surge para romper com esse terror e dar, como conseqüência, uma outra feição ao Direito Penal. A partir dele o Direito Penal se prestará a proteger o homem, não se coadunando com aquela realidade pretérita.
No Brasil, a situação é gravíssima. Não existe limite algum para duração do processo penal (não se confunda isso com prescrição)[41] e, o que é mais grave, sequer existe limite de duração das prisões cautelares, especialmente a prisão preventiva, mais abrangente de todas.
A questão da dilação indevida do processo penal nasce tendo como núcleo a excessiva duração da prisão preventiva e assim permanece até hoje, na imensa maioria dos casos em discussão (inclusive no TEDH). No Brasil a história não é diferente. Trava-se uma histórica discussão em torno dos já lendários 81 dias, construídos a partir da soma dos diversos prazos que compõem o procedimento ordinário quando o imputado encontra-se submetido à prisão preventiva.
No processo penal brasileiro campeia a absoluta indeterminação acerca da duração da prisão cautelar, pois em momento algum foi disciplinada essa questão. Excetuando-se a prisão temporária, cujo prazo máximo de duração está previsto em lei, as demais prisões cautelares (preventiva, decorrente da pronúncia ou da sentença penal condenatória recorrível) são absolutamente indeterminadas.
Diante da imensa lacuna legislativa, a jurisprudência tentou, sem grande sucesso, construir limites globais, a partir da soma dos prazos que compõem o procedimento aplicável ao caso. Assim, resumidamente, se superados os tais 81 dias o imputado continuasse preso, e o procedimento não estivesse concluído (leia-se: sentença de 1º grau) haveria “excesso de prazo”, remediável pela via do habeas corpus (art. 648, II). A liberdade, em tese, poderia ser restabelecida, permitindo-se a continuação do processo.
Até mesmo algumas bem intencionadas tentativas de considerar que, superado o limite para realização de algum dos atos que compõem o procedimento, sem a sua realização (por ex. denúncia, interrogatório, instrução, etc.), haveria constrangimento ilegal, devendo o imputado ser solto. Mas esse tipo de construção, excessivamente “benevolente” (ou perniciosamente garantista….), obviamente não caiu no agrado do senso comum, adorador do simbólico fracassado do law and order.
Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite temporal das prisões cautelares. Infelizmente, a cada dia, alastra-se mais no processo penal uma praga civilista, chamada de relativismo das garantias processuais. Isso vai da relativização da teoria das nulidades[42], passando pelas garantias processuais e fulminando até mesmo direitos fundamentais. O mais interessante é a alquimia de “relativizar” o que deveria ser radicalizado no viés da intagibilidade, e manter a lógica newtoniana naquilo que sim deveria ser relativo (tempo, verdades, etc.).
Inexiste um referencial de duração temporal máxima e, cada vez mais, os Tribunais avalizam a (de)mora judicial a partir dos mais frágeis argumentos, do estilo: complexidade (apriorística?) do fato, gravidade (in abstrato?), clamor público (ou seria opinião publicada?), ou a simples rotulação de “crime hediondo”, como se essa infeliz definição legal se bastasse, auto-legitimando qualquer ato repressivo.
É óbvio que o legislador deve sim estabelecer de forma clara os limites temporais das prisões cautelares (e do processo penal, como um todo), a partir dos quais a segregação é ilegal, bem como deveria consagrar expressamente um “dever de revisar periodicamente” a medida adotada[43].
Cumpre esclarecer que não basta fixar limites de duração da prisão cautelar. Sempre destacamos a existência de penas processuais, para além da prisão cautelar (punição processual mais forte, mas não única), e que resultam de todo o conjunto de coações que se realizam no curso do processo penal. Essa é uma questão inegável e inerente ao processo penal.
Estabelecida existência de uma coação estatal, devemos recordar que ela deve estar precisamente estabelecida em lei. É a garantia básica da nulla coactio sine lege, principio basilar de um Estado Democrático de Direito, que incorpora a necessidade de que a coação seja expressamente prevista em lei, previamente e com contornos claramente definidos. Nisso está compreendido, obviamente, o aspecto temporal.
Como ensina BRANDÃO[44], se é através da Legalidade que se limita a intervenção penal, é porque ela tem a função de garantir o indivíduo do próprio Direito Penal (e processual), delimitando o âmbito de atuação do Estado na inflição da pena. Neste espeque, podemos fazer a ilação de que é a Legalidade que torna o homem a figura central de todo o Ordenamento Penal, valorizando-o em sua dignidade.
Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto. Essa afirmação com certeza causará espanto e até um profundo rechaço por algum setor atrelado ainda ao paleopositivismo e, principalmente, cegos pelo autismo jurídico. Basta um mínimo de capacidade de abstração, para ver que isso está presente – o tempo todo – no direito e fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, previamente, quanto tempo poderá durar, no máximo, um processo? Porque a arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer esse direito do cidadão e não quer enfrentar esse problema.
Além disso, dar ao réu o direito de saber previamente o prazo máximo de duração do processo ou de uma prisão cautelar, é uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão.
O “direito a jurisdição”, como bem recorda o Tribunal Constitucional espanhol[45], no puede entederse como algo desligado del tiempo en que debe prestarse por los órganos del Poder Judicial, sino que ha de ser comprendido en el sentido de que se otorgue por éstos dentro de los razonables términos temporales en que las personas lo reclaman en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos”.
Um bom exemplo de limite normativo interno, encontramos no Código de Processo Penal do Paraguai (Ley 1286/1998), que em sintonia com a CADH, estabelece importantes instrumentos de controle para evitar a dilação indevida.
O prazo máximo de duração do processo penal será de 3 anos (arts. 136 e ss), após o qual, o juiz o declarará extinto (adoção de uma solução processual extintiva). Também fixa, no art. 139, um limite para a fase pré-processual (a investigação preliminar), que uma vez superado, dará lugar a extinção da ação penal.
Por fim, cumpre destacar a resolução ficta, insculpida nos arts. 141 e 142 do CPP paraguaio, através da qual, em síntese, se um recurso contra uma prisão cautelar não for julgado no prazo fixado no Código, o imputado poderá exigir que o despacho seja proferido em 24h. Caso não o seja, se entenderá que lhe foi concedida a liberdade.
Igual sistemática resolutiva opera-se quando a Corte Suprema não julgar um recurso interposto no prazo devido. Se o recorrente for o imputado, uma vez superado o prazo máximo previsto para tramitação do recurso, sem que a Corte tenha proferido uma decisão, entender-se-á que o pedido foi provido. Quando o postulado for desfavorável ao imputado (recurso interposto pelo acusador), superado o prazo sem julgamento, o recurso será automaticamente rechaçado.
O Código de Processo Penal paraguaio é, sem dúvida, um exemplo a ser seguido, pois em harmonia com as diretrizes da CADH. Trata-se, como o Brasil, de um país sul-americano, com graves deficiências na Administração da Justiça, especialmente na justiça penal, mas com um importante diferencial: ao invés de reformas pontuais, inconsistentes e eivadas de dicotomias (uma verdadeira colcha de retalhos), muito mais sedantes e simbólicas do que realmente progressistas, partiram para um novo código, norteado pela CADH. São vantagens de uma codificação que, além de corajosamente avançada, possui um princípio unificador.
Definida assim a necessidade de um referencial normativo claro da duração máxima do processo penal e das prisões cautelares, bem como das “soluções” adotadas em caso de violação desses limites, passemos agora a uma rápida análise de decisões do TEDH, da Corte Americana e de uma pioneira decisão do TJRS.
3.5. Algumas decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Corte Americana de Direitos Humanos e o pioneiro acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Como já destacamos, além de firmatário da CADH, o Brasil é passível de ser demandado junto a Corte Americana de Direitos Humanos, que previsivelmente ”importa” muitos dos entendimentos do TEDH, que acabarão – por via transversa – afetando nossa jurisprudência interna, como já ocorreu na pioneira decisão do TJRS, a seguir analisada.
O direito a um processo sem dilações indevidas (ou de ser julgado num prazo razoável) é “jovem direito fundamental”, ainda pendente de definições e mesmo de reconhecimento por parte dos tribunais brasileiros, em geral bastante tímidos na recepção de novos (e também de “velhos”) direitos fundamentais, mas que já vem sendo objeto de preocupação há bastante tempo por parte do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), e dos sistemas processuais europeus. Diante dessa tradição européia na questão, e a inegável influência que as decisões do TEDH exercem sobre a Corte Americana de Direitos Humanos e ela, sobre o sistema interno brasileiro, é importante analisar a doutrina construída em torno do art. 6.1 da CEDH[46] (também fonte de inspiração da CADH).
A essa altura, o leitor pode estar questionando “quanto tempo” é necessário para constituir a “dilação indevida” nos casos submetidos ao TEDH. Como já foi apontado, não há um critério único, rígido, senão uma análise do caso em concreto (doutrina do não-prazo). Feita essa ressalva, apenas como ilustração, vejamos alguns exemplos[47] de condenações por violação ao direito de ser julgado num prazo razoável:
a) Caso “Zimmermann y Steiner contra Suiça”, STEDH 13/07/1983: esse caso é de natureza administrativa, mas considerando que o direito a um processo sem dilações indevidas está inserido no princípio geral de celeridade, também é invocável sua violação. Trata-se de uma ação de reparação de danos promovida contra o Estado suíço, tendo como objeto de reclamação junto ao TEDH, a demora de aproximadamente 3 anos e meio para julgamento de um recurso junto ao Supremo Tribunal Federal suíço. A dilação[48] foi considerada indevida e o Estado condenado a indenizá-la.
b) Caso “Foti e outros contra Itália”, STEDH 10/12/1982: envolvia delitos praticados em uma rebelião popular, envolvendo porte ilegal de armas, resistência e “obstrução de vias públicas”. Foi considerado que o procedimento mais rápido durou três anos e o mais longo, 5 anos e 10 meses, tendo o TEDH condenado a Itália por violação ao art. 6.1 da CEDH (direito a um processo sem dilações indevidas), na medida em que havia longos lapsos “mortos” de tempo, em que os procedimentos ficaram injustificadamente sem atividade.
Na esfera da Corte Americana de Direitos Humanos, a garantia prevista nos arts. 7.5 e 8.1 da CADH, já foi objeto de decisão em algumas oportunidades, como por exemplo[49]:
a) Caso “Gimenez contra Argentina”, Sentença prolatada em 01/03/1996: o réu foi condenado por delitos de roubo a uma pena de 9 anos de prisão. Cautelarmente, ficou detido por cerca de 5 anos. A Corte expressou seu reconhecimento pelo avanço legislativo daquele país, que havia promulgado lei estabelecendo o limite de duração da prisão preventiva (2 anos). Destacou a possibilidade de uma cautelar exceder o prazo fixado no sistema jurídico interno (2 anos), sem com isso ser considerado, automaticamente, como “indevido”, ao mesmo tempo em que, uma prisão cautelar poderia ser vista como excessiva, ainda que sua duração fosse inferior ao prazo de 2 anos. No caso em questão, a partir da doutrina dos três critérios, entendeu que houve dilação indevida do processo e excesso na duração da prisão cautelar.
b) Caso “Bronstein e outros contra Argentina”, Sentença de 29/01/1997: foram reunidas 23 reclamações de excesso de prazo da prisão preventiva, em diferentes processos penais. As detenções variavam de 1 ano e 4 meses a 6 anos e 9 meses e 11 imputados ainda se encontravam presos quando do julgamento na Corte. A Comissão entendeu que havia uma denegação de justiça em relação aos reclamantes e dos demais que se encontravam em situação similar na Argentina. Destacou que o poder estatal de deter uma pessoa a qualquer momento ao longo do processo penal, constitui, ao mesmo tempo, o fundamento do dever de julgar tais casos dentro de um prazo razoável. Em decisão única, a Corte entendeu que Argentina violou, em relação a todos os peticionários, o direito a um processo sem dilações indevidas, assim como o direito a presunção de inocência.
No Brasil, encontramos uma única decisão que realmente enfrentou a violação do direito de ser julgado num prazo razoável, com a seriedade e o comprometimento efetivo que a questão exige, aplicando uma das “soluções compensatórias” cabíveis. Entendeu a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na apelação nº 70007100902, Rel. Des. Luis Gonzaga da Silva Moura, j. 17/12/2003:
Penal. Estupro e Atentado violento ao pudor. Autoria e materialidade suficientemente comprovadas. Condenação confirmada. Redimensionamento da pena. Atenuante inominada do artigo 66 do Código Penal caracterizada pelo longo e injustificado tempo de tramitação do processo (quase oito anos) associado ao não cometimento de novos delitos pelo apelante. Hediondez afastada. Provimento parcial. Unânime.
No caso em questão, o réu foi acusado pelo delito de atentado violento ao pudor (art. 214, c/c 224, alínea “a”, 225, inciso II, e 226, inciso II, na forma do art. 70, parágrafo único do CP) sendo ao final condenado a uma pena de 17 anos e seis meses de reclusão, no regime integralmente fechado. Em grau recursal, o TJRS redimensionou a pena, considerando, entre outros elementos, a ocorrência de dilação indevida, na medida em que o processo tramitou por quase oito anos sem justificativa. Ponderou o Relator dois aspectos:
“Um, que a excessiva duração da demanda penal, como na espécie presente, por culpa exclusiva do aparelho judicial, viola direito fundamental do homem – o de ter um julgamento rápido (artigo 1.º da Declaração dos Direitos do Homem da Virgínia) -, pelo que tal situação deve ser valorada no momento da individualização da pena. Aliás, já há na jurisprudência européia decisões no sentido de atenuar o apenamento, em razão da exorbitante duração do processo criminal (ver Daniel R. Pastor, in “EL PLAZO RAZONABLE EN EL PROCESSO DEL ESTADO DE DERECHO”, pág. 177/180).
Dois, se a pena tem na prevenção e retribuição seus objetivos, é de se concluir que, na hipótese, a finalidade preventiva restou atendido só pelo moroso tramitar da lide penal – sem sentido se falar em prevenção de novos delitos, quando, durante os quase oito anos de “andamento” do processo, o apelante não cometeu nenhum novo crime -. E se isto aconteceu, evidente que, em respeito ao princípio da proporcionalidade e necessidade, tal deve refletir na definição do apenamento a ser imposto ao acusado.”
Interessa-nos, especificamente, o reconhecimento por parte do Tribunal da existência (recepção) do direito fundamental de ser julgado num prazo razoável e sua incidência no processo penal brasileiro. Invocou o relator a incidência do princípio da proporcionalidade, na medida em que as funções de prevenção e retribuição da pena foram atendidas pela morosa tramitação do feito. Destacou que a função de prevenção de novos delitos acabou por perder seu objeto, considerando que durante os oito anos de duração do processo o imputado não cometeu nenhum novo crime.
Ao redimensionar a pena, o Tribunal lançou mão de uma solução compensatória de natureza penal (explicaremos as “soluções” a continuação), reduzindo a pena aplicada através da incidência da atenuante inominada do art. 66 do CP para um quantitativo inferior ao mínimo legal, desprezando – acertadamente – o disposto na Súmula 231 do STJ.
Admitida ainda a continuidade delitiva, a pena tornou-se definitiva em 8 anos de reclusão, no regime semi-aberto, porque também foi afastada a incidência da Lei 8072, em que pese o novo entendimento do STF, pois a Câmara segue a orientação de que somente há hediondez quando resulta lesão corporal grave ou morte.
Até onde tivemos notícia, esse foi o primeiro acórdão a enfrentar a violação do direito de ser julgado num prazo razoável, adotando com precisão uma das soluções compensatórias cabíveis (no caso, a atenuante inominada do art. 66 do CP) com real eficácia, posto que a pena foi substancialmente reduzida e a punição – como um todo – compensada pela pena processual (longa e injustificada tramitação do feito).
Concluindo, os exemplos citados demonstram que a demora não precisa ser tão longa como se imagina, e que, na maioria dos casos, sequer se operaria a prescrição (mesmo pela pena aplicada). Saindo da esfera penal e ingressando no universo de demandas ajuizadas por particulares contra a União ou Estados, o direito a um julgamento sem dilações indevidas teriam um imenso campo de incidência, ainda completamente inexplorado. Mas não basta afirmar que houve uma dilação indevida, é necessário buscar e aplicar uma solução para o caso, conforme as opções que analisaremos a continuação.
4. EM BUSCA DE “SOLUÇÕES”: COMPENSATÓRIAS, PROCESSUAIS E SANCIONATÓRIAS
Reconhecida a violação do direito a um processo sem dilações indevidas, deve-se buscar uma das seguintes soluções[50]:
1. Soluções Compensatórias: Na esfera do direito internacional, pode-se cogitar de uma responsabilidade por “ilícito legislativo”, pela omissão em dispor da questão quando já reconhecida a necessária atividade legislativa na CADH. Noutra dimensão, a compensação poderá ser de natureza civil ou penal. Na esfera civil, resolve-se com a indenização dos danos materiais e/ou morais produzidos, devidos ainda que não tenha ocorrido prisão preventiva. Existe uma imensa e injustificada resistência em reconhecer a ocorrência de danos, e o dever de indenizar, pela (mera) submissão a um processo penal (sem prisão cautelar), e que deve ser superada[51]. Já a compensação penal poderá ser através da atenuação da pena ao final aplicada (aplicação da atenuante inominada, art. 66 do CP) ou mesmo concessão de perdão judicial, nos casos em que é possível (v.g. art. 121, § 5º, art. 129, § 8º do CP). Nesse caso, a dilação excessiva do processo penal – uma conseqüência da infração – atingiu o próprio agente de forma tão grave, que a sanção penal se tornou desnecessária. Havendo prisão cautelar, a detração (art. 42 do CP), é uma forma de compensação, ainda que insuficiente.
2. Soluções Processuais: a melhor solução é a extinção do feito, mas encontra ainda sérias resistências. Ao lado dele, alguns países prevêem o arquivamento (vedada nova acusação pelo mesmo fato) ou a declaração de nulidade dos atos praticados após o marco de duração legítima[52]. Como afirmado no início, a extinção do feito é a solução mais adequada, em termos processuais, na medida em que reconhecida a ilegitimidade do poder punitivo pela própria desídia do Estado, o processo deve findar. Sua continuação, além do prazo razoável, não é mais legítima e vulnera o Princípio da Legalidade, fundante do Estado de Direito, que exige limites precisos, absolutos e categóricos – incluindo-se o limite temporal – ao exercício do poder penal estatal. Também existe uma grande resistência em compreender que a instrumentalidade do processo é toda voltada para impedir uma pena sem o devido processo, mas esse nível de exigência não existe quando se trata de não aplicar pena alguma. Logo, para não aplicar uma pena, o Estado pode prescindir completamente do instrumento, absolvendo desde logo o imputado, sem que o processo tenha que tramitar integralmente. Finalizando, também são apontadas como soluções processuais: possibilidade de suspensão da execução ou dispensabilidade da pena, indulto e comutação.
Soluções Sancionatórias: punição do servidor (incluindo juízes, promotores, etc.) responsável pela dilação indevida. Isso exige, ainda, uma incursão pelo direito administrativo, civil e penal (se constituir um delito). A Emenda Constitucional n. 45, além de recepcionar o direito de ser julgado em um prazo razoável, também previu a possibilidade de uma sanção administrativa para o juiz quer der causa a demora. A nova redação do art.93, II, e, determina que:
“e) não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão;”
Cumpre agora esperar para ver se a sanção ficará apenas nessa dimensão simbólica ou se os Tribunais efetivamente aplicarão a sanção.
Na atual sistemática brasileira, não vemos dificuldade na aplicação das soluções compensatórias de natureza cível (devidas ainda que não exista prisão cautelar), bem como das sancionatórias. É importante destacar, que a responsabilidade estatal independe dos efeitos causados pela dilação. Em outras palavras, a reparação é devida pelo atraso injustificado em si mesmo, independentemente da demonstração de danos as partes, até porque, presumidos. Também haverá, na prática, dois sérios inconvenientes: a dificuldade que os tribunais têm de reconhecer e assumir o funcionamento anormal da justiça (resistência corporativa), bem como a imensa timidez dos valores fixados, sempre muito aquém do mínimo devido por uma violência dessa natureza.
Na esfera penal, não compreendemos a timidez em aplicar a atenuante genérica do art. 66 do CP. Assumido o caráter punitivo do tempo, não resta outra coisa ao juiz que (além da elementar detração em caso de prisão cautelar) compensar a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da punição já foi efetivada pelo tempo. Para tanto, formalmente, deverá lançar mão da atenuante genérica do art. 66 do Código Penal. É assumir o tempo do processo enquanto pena e que, portanto, deverá ser compensado na pena de prisão ao final aplicada.
Para além dessa indiscutível incidência, somos partidários de que a atenuante pode reduzir a pena além do mínimo legal, estando completamente equivocada a linha discursiva norteada pela Súmula 231 do STJ[53].
A aplicação da atenuante terá ainda, conforme o caso, caráter decisivo para a ocorrência da prescrição, tornando a redução um fator decisivo para fulminar a própria pretensão punitiva (a solução mais adequada em termos processuais).
Ainda que o campo de incidência seja limitado, não vislumbramos nenhum inconveniente na concessão do perdão judicial, nos casos em que é possível (v.g. art. 121, § 5º, art. 129, § 8º do CP), pois a dilação excessiva do processo penal é uma conseqüência da infração – que atinge o próprio agente de forma tão grave, que a sanção penal se tornou desnecessária. Mas, na esteira de PASTOR[54], o fato de apontarmos soluções compensatórias não significa que toleramos pacificamente as violações do Estado, senão que elas são um primeiro passo na direção da efetivação do direito de ser julgado num processo sem dilações indevidas. A flecha do tempo é irreversível e o tempo que o Estado indevidamente se apropriou, jamais será suficientemente indenizado, pois não pode ser restituído.
As soluções compensatórias são meramente paliativas, uma falsa compensação, não só por sua pouca eficácia (limites para atenuação), mas também porque representam um “retoque cosmético”, como define PASTOR[55], sobre uma pena inválida e ilegítima, eis que obtida através de um instrumento (processo) viciado. Ademais, a atenuação da pena é completamente ineficiente quando o réu for absolvido ou a pena processual exceder o suplício penal. Nesse caso, o máximo que se poderá obter é uma paliativa e, quase sempre, tímida indenização.
Em relação à indenização pela demora, evidencia-se o paradoxo de obrigar alguém a cumprir uma pena – considerada legítima e conforme o Direito – e, ao mesmo tempo, gerar uma indenização pela demora do processo que impôs essa pena – processo esse, em conseqüência, ilegítimo e ilegal.
Quanto às soluções processuais, o problema é ainda mais grave. O sistema processual penal brasileiro está completamente engessado e inadequado para atender as diretrizes da CADH. Não dispõe de instrumentos necessários para efetivar a garantia do direito a um processo sem dilações indevidas. Sequer possui um prazo máximo de duração das prisões cautelares.
O ideal seria uma boa dose de coragem legislativa para prever claramente o prazo máximo de duração do processo e das prisões cautelares, fixando condições resolutivas pelo descumprimento. Na fase de investigação preliminar, deve-se prever a impossibilidade de exercício da ação penal depois de superado o limite temporal, ou, no mínimo, fixar a pena de inutilidade para os atos praticados após o prazo razoável.
Também é preciso que se compreenda a instrumentalidade do processo penal, de modo que, para não aplicar uma pena, o Estado pode prescindir completamente do instrumento, absolvendo desde logo o imputado, sem que o processo tenha que tramitar integralmente. Isso permite que se exija, por exemplo, o pronto reconhecimento da prescrição pela provável pena a ser aplicada, como imediata extinção do feito.
Deve-se voltar os olhos para os sistemas europeus, mas também para o Código de Processo Penal paraguaio, que acertadamente consagra um instrumento que efetivamente assegura a eficácia do direito fundamental de ser julgado num prazo razoável: resolução ficta em favor do imputado.
Se, diante de um recurso (contra decisões definitivas ou mesmo interlocutórias) interposto pelo réu, o Tribunal competente não se manifestar no prazo legal (marco normativo do prazo razoável), entendem-se automaticamente concedidos os direitos pleiteados. É óbvio que o imputado, que já está sofrendo todo um feixe de penas processuais, não está obrigado a suportar o sobre-custo da demora na prestação jurisdicional. Essa é a verdadeira compreensão do que seja a (de)mora judicial. E não se diga, por favor, que isso justificará decisões apressadas e sem a devida motivação, pois um direito fundamental (ser julgado no prazo razoável) não legitima o sacrifício de outros, autônomos e igualmente imperativos para o Estado.
O Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer nesse terreno.
Outra questão de suma relevância brota da análise do “Caso Metzger”, da lúcida interpretação do TEDH no sentido de que o reconhecimento da culpabilidade do acusado através da sentença condenatória não justifica a duração excessiva do processo. É um importante alerta, frente a equivocada tendência de considerar que qualquer abuso ou excesso está justificado pela sentença condenatória ao final proferida, como se o “fim” justificasse os arbitrários “meios” empregados. Desnecessária qualquer argumentação em torno do grave erro desse tipo de premissa, mas perigosamente difundida atualmente pelos movimentos repressivistas de lei e ordem, tolerância zero, etc.
5. A TÍTULO DE CONCLUSÕES PROVISÓRIAS: O DIFÍCIL EQUILÍBRIO ENTRE A (DE)MORA JURISDICIONAL E O ATROPELO DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Até aqui nos ocupamos do direito de ser julgado num prazo razoável, seu fundamento, recepção pelo sistema jurídico brasileiro, dificuldade no seu reconhecimento e os graves problemas gerados pela (de)mora jurisdicional.
O processo nasceu para retardar e dilatar o próprio tempo da reação. Mas ao lado dessa regra basilar, devemos (também) considerar que o processo que se prolonga indevidamente, conduz a uma distorção de suas regras de funcionamento[56], e as restrições processuais dos direitos do imputado, que sempre são precárias e provisórias, já não estão mais legitimadas, na medida em que adquirem contornos de sobre-custo inflacionário da pena processual, algo intolerável em um Estado Democrático de Direito.
Contudo, não se pode cair no outro extremo, no qual a duração do processo é abreviada (aceleração antigarantista) não para assegurar esses direitos, senão para violá-los.
Não existe nada mais demonstrativo da arbitrariedade de um procedimento que os juízos sumários ou sumaríssimos em matéria penal, pois eles impedem que o imputado possa exercer todas as faculdades próprias de um processo penal adequado a Constituição democrática. Isso nos remete a um primeiro ponto de partida, que é analisar o problema a partir da perspectiva dos direitos do imputado. O processo penal reclama tempo suficiente para satisfação, com plenitude, de seus direitos e garantias processuais.
A CADH não se contentou em prever o direito aos meios adequados de defesa, senão que consagrou, de forma cumulativa (conjunção aditiva “e”), a garantia de concessão ao acusado de tempo. Trata-se de garantir o tempo da defesa, na medida em que a eficácia dessa garantia está pendente de tempo para seu preparo. Tem-se assim uma clara orientação a ser seguida: em caso de dúvida, o tempo está a favor do acusado. Isso implica vedação ao atropelo das garantias fundamentais (aceleração antigarantista) e, ao mesmo tempo, negação a dilação indevida do processo penal.
Devemos considerar ainda, que existe uma clara relação entre o aumento do número de processos com a duração que eles acabarão tendo, onde a panpenalização, gerada por movimentos como law and order e tolerância zero, sobrecarregam a justiça penal, muitas vezes com condutas penalmente irrelevantes (eis que passíveis de resolução em outras esferas, como cível e direito administrativo sancionador), entupindo juízes e tribunais com volumes absurdos de trabalho e, em última análise, aumentando a duração dos processos.
De nada servirá um simplório (senão simbólico) “aumento de pessoal”, pois o volume de processos criminais gerados pela maximização do direito penal é inalcançável, ainda mais para um Estado que tende, cada vez mais, a ser “mínimo”.
É interessante o infindável ciclo que se estabelece: o Estado se afasta completamente da esfera social, explode a violência urbana. Para remediar, tratamento penal para a pobreza. Diante da banalização do direito penal, maior será a ineficiência do aparelho repressor e a própria demora judicial (em relação a todos os crimes, mas especialmente dos mais graves, que demandam maior dose de tempo, diante de sua complexidade). Atulham-se as varas penais e evidencia-se a letargia da justiça penal. Nada funciona. A violência continua e sua percepção amplia-se, diante da impunidade que campeia. Que fazer? Subministrar doses ainda maiores de direito penal. E o ciclo se repete.
É conseqüência natural da complexidade, onde os diversos elementos atuam em rede, numa permanente relação e interação, sendo inviável pensar em compartimentos estanques e herméticos, que permitam tratamentos isolados.
Mas a situação pode ficar ainda mais grave, quando o tratamento vem acompanhado por doses de utilitarismo processual, pois “também deve-se acelerar o processo”, para torná-lo ainda mais eficiente. Começa então o sacrifício lento e paulatino dos direitos fundamentais. É o óbito do Estado Democrático de Direito e o nascimento de um Estado Policial, autoritário. O resto da história, é por todos conhecida.
Vimos assim, os dois extremos da questão “tempo” no processo penal: aceleração antigarantista e dilação indevida. Em ambos, temos a negação da jurisdição, pois não basta qualquer juiz e qualquer julgamento, a garantia da tutela jurisdicional exige qualidade e, neste tema, ela está no equilíbrio do direito a ser julgado num prazo razoável[57], enquanto recusa aos dois extremos.
Dessarte, pensamos que:
a) Deve haver um marco normativo interno de duração máxima do processo e da prisão cautelar, construído a partir das especificidades do sistema processual de cada país, mas tendo como norte um prazo fixado pela Corte Americana de Direitos Humanos. Com isso, os tribunais internacionais deveriam abandonar a doutrina do não-prazo, deixando de lado os axiomas abertos, para buscar uma clara definição de “prazo razoável”, ainda que admitisse certo grau de flexibilidade atendendo as peculiaridades do caso. Inadmissível é a total abertura conceitual, que permite ampla manipulação dos critérios.
b) São insuficientes as soluções compensatórias (reparação dos danos) e atenuação da pena (sequer aplicada pela imensa maioria de juízes e tribunais brasileiros), pois produz pouco ou nenhum efeito inibitório da arbitrariedade estatal. É necessário que o reconhecimento da dilação indevida também produza a extinção do feito, enquanto inafastável conseqüência processual. O poder estatal de perseguir e punir deve ser estritamente limitado pela Legalidade, e isso também inclui o respeito a certas condições temporais máximas. Entre as regras do jogo, também se inclui a limitação temporal para exercício legítimo do poder de perseguir e punir. Tão ilegítima como é a admissão de uma prova ilícita, para fundamentar uma sentença condenatória, é reconhecer que um processo viola o direito de ser julgado num prazo razoável e, ainda assim, permitir que ele prossiga e produza efeitos. É como querer extrair efeitos legítimos de um instrumento ilegítimo, voltando a (absurda) máxima de que os fins justificam os meios.
c) O processo penal deve ser agilizado. Insistimos na necessidade de acelerar o tempo do processo, mas desde a perspectiva de quem o sofre, enquanto forma de abreviar o tempo de duração da pena-processo. Não se trata da aceleração utilitarista como tem sido feito, através da mera supressão de atos e atropelo de garantias processuais, ou mesmo a completa supressão de uma jurisdição de qualidade, como ocorre na justiça negociada, senão de acelerar através da diminuição da demora judicial com caráter punitivo. É diminuição de tempo burocrático, através da inserção de tecnologia e otimização de atos cartorários e mesmo judiciais. Uma reordenação racional do sistema recursal, dos diversos procedimentos que o CPP e leis esparsas absurdamente contemplam e ainda, na esfera material, um (re)pensar os limites e os fins do próprio direito penal, absurdamente maximizado e inchado. Trata-se de reler a aceleração não mais pela perspectiva utilitarista, mas sim pelo viés garantista, o que não constitui nenhum paradoxo.
Atento a questão, SALO DE CARVALHO[58] leciona “que a legislação seja aperfeiçoada no sentido do estabelecimento de prazos razoáveis às decisões judiciais em sede executiva, mas apreendendo os valores ínsitos ao Pacto de São José, sejam criadas técnicas judiciais idôneas a uma célere decisão sobre os incidentes de execução penal.”
Ainda que estivesse se ocupando da execução penal (sem dúvida um ponto sensível da questão), sua acertada indicação encontra plena ressonância em todo o processo penal, especialmente a “resolução ficta”, que SALO busca inspiração no Código de Processo Penal Paraguaio, no sentido da “concessão automática dos direitos pleiteados em caso de omissão dos poderes jurisdicionais”.
Em suma, um capítulo a ser escrito no processo penal brasileiro é o direito de ser julgado num prazo razoável, num processo sem dilações indevidas, mas também sem atropelos. Não estamos aqui buscando soluções, ou definições cartesianas em torno de tão complexa temática, senão dando um primeiro e importante passo em direção a solução de um grave problema, e isso passa pelo necessário reconhecimento desse “jovem direito fundamental”.
Doutor em Direito Processual Penal
Prof. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais da PUCRS
Pesquisador do CNPq
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