“[…] as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social.” Ferdinand Lassalle
Resumo: O presente artigo pretende apresentar os resultados da pesquisa intitulada “Reificação & Direito”. O objetivo central da pesquisa foi analisar a jurisprudência do STF, os princípios fundamentais da constituição de 1988, assim como o fenômeno da reificação das normas jurídicas. A pesquisa caracteriza-se como bibliográfico-documental, tendo como fontes primárias o texto constitucional de 1988 e acórdãos do STF. *
Palavras-chave: Reificação, Direito Constitucional, Trabalho, STF, Sociedade Mercantil, Constituição de 1988.
Sumário: 1 Introdução; 2 A reificação da norma constitucional, 2.1 Relações sociais no modo de produção mercantil, 2.2 O fenômeno da reificação, 2.3 A reificação da norma; 3 A constituição reificada, 3.1 A Constituição de 1988: princípios e objetivos fundamentais, 3.2. Trabalho e Constituição no STF; 4 Considerações finais; 5 Referências.
1.Introdução
O Brasil, desde 1988, é considerado pela Constituição da República (Art. 1º) um Estado Democrático de Direito.
Os Estados Democráticos de Direito ou sociedades constitucionais caracterizam-se pela regulação jurídica das relações sociais (legalidade), submetendo-as, portanto, a revisão por órgão judicial. Essa revisão jurisdicional tem como paradigma as regras do direito pátrio, cuja validade depende de sua conformidade com as normas constitucionais.
A Constituição é, pois, o regramento estatal supremo da vida coletiva, sob o discurso de que positiva a vontade política nacional. E uma vez que o Supremo Tribunal Federal – STF é a instituição judicial responsável pela interpretação oficial da Constituição, ou seja, é o decodificador da vontade política nacional, as ações propostas perante o STF constituem instrumentos de controle de constitucionalidade, ou melhor, definem o que é e o que não é constitucional, ou ainda, o que é e o que não é pertinente ao Estado Democrático de Direito.
Assim, é legítimo, legal e constitucional e, portanto, válido aquilo que o STF disser que o é e tendo como parâmetro a Constituição abstrata.
Nesse sentido, o presente estudo se propôs ao exame da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tendo como parâmetro o fenômeno da reificação, que consiste em que as relações sociais (humanas) apresentem-se como coisas na medida em que as relações mercantis generalizam-se, tornando-se protótipo de todas as demais relações humanas.
A indagação que instigou este trabalho foi a seguinte: Por que a Constituição da República Federativa do Brasil tem o condão de regulamentar a vida material no interior do estado democrático de direito, apresentando-se como originalmente independente do homem? Ou seja, procurou fornecer subsídios para a compreensão da constituição de 1988 como uma norma reificada.
Para tanto, parte da definição do fenômeno da reificação, que nas palavras de Bottomore (2001, p.314):
“É ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A reificação é um caso “especial” de ALIENAÇÃO, sua forma mais radical e generalizada, característica da moderna sociedade capitalista.”
Ou seja, parte do pressuposto de que a Constituição é mecanismo auxiliar de dominação de classes que tem, como condição de eficácia, a aparência de algo que transcende a vontade humana, ganha vida própria e passa a governá-la (COELHO, 2005a, p. 12).
O presente trabalho objetiva, então, explicar o fenômeno da reificação da norma constitucional com utilização de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no período pós-1988.
Para abordar o problema proposto e atingir os objetivos definidos nessa pesquisa, adotou-se a Metodologia Qualitativa e para a coleta de dados foram realizadas: revisão bibliográfica e pesquisa documental.
Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas como fontes documentais primárias a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e jurisprudências do STF que tratassem diretamente da categoria “trabalho”, mediante busca no sítio da Corte Suprema brasileira, tendo como parâmetro de busca decisões publicadas após a promulgação da Constituição de 1988. A seleção das jurisprudências que compõem esta pesquisa foi aleatória.
A análise textual, assim, consistiu em uma revisão bibliográfica acerca do fenômeno da reificação, quer seja ao tratar da função do estado democrático de direito e do papel do Supremo Tribunal Federal nessa organização societal, quer seja na análise do princípio da supremacia constitucional e na crítica à legalidade e à igualdade jurídicas. Constitui também elemento desta pesquisa a análise textual da jurisprudência do STF, centrada na definição de reificação da norma jurídica.
Os resultados da pesquisa podem ser conferidos nas páginas que se seguem.
2 A reificação da norma constitucional
2.1 Relações sociais no modo de produção mercantil
A reificação é um fenômeno específico da nossa época, a época do capitalismo moderno. O fenômeno da reificação foi considerado por Lukács (2003, p. 193-5) o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais. Constitui, pois, categoria essencial em uma análise marxiana, quer da sociedade, das relações sociais ou mesmo do direito. Nesse mesmo sentido, Mayer (2006, p. 74) afirma que a idéia central do sistema de Marx é sua crítica da reificação capitalista das relações sociais de produção, a alienação do trabalho através das mediações reificadas do trabalho assalariado, propriedade privada e troca. Isso porque, na sociedade burguesa, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma-valor da mercadoria, é a forma celular econômica, ou seja, a mercadoria na sociedade capitalista constitui a célula econômica fundamental (MARX, 1983, p. 23).
“Que a sociedade burguesa constituída se funda sobre a produção mercantil, eis o óbvio; mas não é igualmente óbvio que, inseridas as relações mercantis no âmbito de uma sociedade onde a universalização total da forma mercadoria vai muito além da sua materialidade palpável, muito além do circuito das trocas, envolvendo todos os “serviços” e todas as relações homem/homem no seu contexto vital, transforma-se estruturalmente o modo de emergência das relações sociais.” (Netto, 1981, p.84)
Portanto, compreender a reificação é descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa (LUKÁCS, 2003, p. 193).
É imprescindível, pois, para o estudo da reificação das normas constitucionais, conhecer a estrutura da relação mercantil na sociedade burguesa a partir de sua unidade celular econômica fundamental: a mercadoria.
“A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção.” (MARX, 2006, p. 57)
A mercadoria é, assim, um objeto externo ao homem e que, por suas propriedades, satisfaz uma necessidade humana. Sua utilidade, determinada por suas propriedades, faz dela um valor de uso (NETTO, 2006, p.79).
O valor de uso da mercadoria é sua utilidade para o usuário, que é o que lhe permite ser objeto de uma troca. Desse modo, por exemplo, o valor de uso da força de trabalho é sua capacidade de produzir valor novo ao ser transformada em trabalho aplicado à produção. Assim, o valor de uso da força de trabalho vem do desenvolvimento das relações de produção e troca de mercadorias, de valor e de dinheiro (BOTTOMORE, 2001, p.401-2).
Os valores de uso são, portanto, bens resultantes do intercâmbio entre a sociedade e a natureza, isto é, resultam da atividade humana sobre matérias naturais, transformando-as em produtos que atendam às suas necessidades. Essa atividade humana transformadora da natureza denomina-se trabalho e constitui a base da atividade econômica, vez que torna possível a produção de qualquer bem. A respeito, escreveu Marx (1983, p. 149-150, 153):
“[…] O trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. […] Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais de trabalho. […] Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes à do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, o seu objetivo. […] Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. […] O processo de trabalho […] é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, […] comum a todas as suas formas sociais.”
Então, o que diferencia o trabalho humano das atividades naturais é a intencionalidade do sujeito, é o fato de o trabalho ser uma atividade teleologicamente direcionada, isto é, o homem antes de iniciar sua atividade prefigura o resultado de sua ação, o que caracteriza o trabalho como uma objetivação do sujeito que o efetua. Lukacs assevera no sentido de que a realização do trabalho só se dá quando essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do sujeito, é transformada (apud NETTO, 2006, p. 32).
O trabalho é, pois, a atividade humana intencionada a um fim (teleológica) que transforma matéria natural em um produto apto a satisfazer uma necessidade, ou seja, em um valor de uso; e ao transformar a natureza, o homem se transforma.
“Através do trabalho, diz Lukacs, “tem lugar uma dupla transformação. Por um lado, o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza; ‘desenvolve as potências nela ocultas’ e subordina as forças da natureza ‘ao seu próprio poder’. Por outro lado, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios, em objetos de trabalho, em matérias-primas etc. O homem que trabalha ‘utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas, a fim de fazê-las atuar como meios para poder exercer seu poder sobre outras coisas, de acordo com sua finalidade’”. (ANTUNES, 2003, p. 125)
Essa dupla transformação de que fala Lukacs é que atribui ao trabalho um caráter central na teoria marxiana, ou seja:
“O trabalho mostra-se como momento fundante de realização do ser social, condição para sua existência; é ponto de partida para a humanização do ser social e o “motor decisivo do processo de humanização do homem”. Não foi outro o significado dado por Marx ao enfatizar que: “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana”. Essa formulação permite entender o trabalho como “a única lei objetiva e ultra-universal do ser social, que é tão ‘eterna’ quanto o próprio ser social ; ou seja, trata-se também de uma lei histórica, à medida que nasce simultaneamente com o ser social, mas que permanece ativa apenas enquanto esse existir”. (ANTUNES, 2003, p. 125)
Logo, o trabalho deve ser compreendido como atividade essencialmente humana, ‘responsável’ pela humanização do homem e que constitui condição sine quan non da existência desse homem, já que tem a função de mediação da relação homem e natureza na produção de sua existência material, caracterizada pela produção de valores de uso.
Como relacionar, então, mercadoria e valor de uso? As mercadorias são valores de uso e os valores de uso são mercadorias? Estas são as questões que se colocam quando se pretende esclarecer o que são mercadorias.
As mercadorias são valores de uso que derivam do trabalho humano e que podem ser reproduzidos. Essa assertiva indica que existem valores de uso que não derivam do trabalho humano, como certos bens naturais que são indispensáveis à vida do homem (a água e o ar, por exemplo.). Também fica claro que existem valores de uso que não são mercadorias, quais sejam, os que são insuscetíveis de serem produzidos mais de uma vez, repetidamente (uma importante obra de arte constitui exemplo disso, lembrando que suas réplicas são mercadorias por serem reprodutíveis).
“A mercadoria é um valor de uso que se produz para a troca, para a venda; os valores de uso produzidos para o autoconsumo do produtor (…) não são mercadorias – somente valores de uso que satisfaçam necessidades sociais (humanas) de outrem e, portanto, sejam requisitados por outrem, constituem mercadoria; esta pois, dispõe de uma dimensão que sempre vem vinculada ao seu valor de uso: a sua faculdade de ser trocada, vendida (o seu valor de troca). Assim, portanto, a mercadoria é uma unidade que sintetiza valor de uso e valor de troca.” (NETTO, 2006, p. 79-80)
Disso decorre que para haver produção de mercadorias duas condições devem ser obedecidas: existência (1) da divisão social do trabalho e (2) da propriedade privada dos meios de produção. A divisão social do trabalho é necessária para que haja a produção de diferentes mercadorias, como móveis, roupas, utensílios etc; pressupõe, então, que o trabalho está repartido para diferentes grupos humanos e que o acesso aos diferentes tipos de mercadorias depende da troca entre produtores.
Mas a divisão social do trabalho não garante, por si só, a produção de mercadorias uma vez que se a propriedade dos meios de produção for coletiva, não haverá troca (compra/venda) pois o produto do trabalho pertence a todos. A produção mercantil necessita, então, da propriedade privada dos meios de produção já que somente troca (compra e vende) aquele que é proprietário; e para que alguém o seja deve ser dono dos meios com os quais se produziu o bem. Isso significa que a produção de mercadorias tem como condições indispensáveis a divisão social do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção – sem ambas, produzem-se bens, valores de uso, mas não há a produção mercantil (NETTO, 2006, p. 80).
As bases da produção mercantil capitalista, além de pressupor uma divisão social do trabalho e a propriedade dos meios de produção, agregam um fator agravante: que a propriedade dos meios de produção não caiba ao produtor direto, mas ao capitalista. Aqui desaparece o trabalho pessoal do proprietário: o capitalista é proprietário dos meios de produção, mas não é ele quem trabalha – ele compra a força de trabalho que, com os meios de produção que lhe pertencem, vai produzir mercadorias. Desse modo, a força de trabalho pode ser comprada e vendida, isto é, a força de trabalho torna-se uma mercadoria.
A produção mercantil capitalista baseia-se, então, na exploração da força de trabalho comprada pelo capitalista por meio do salário. Os ganhos (lucros) do capitalista não provêm da circulação, mas sim da exploração do trabalho, isto é, sua origem está no interior do processo de produção das mercadorias, o qual está sob controle do capitalista.
Por isso é próprio da produção mercantil que o trabalho tenha ocultada sua característica elementar: o trabalho é sempre trabalho social.
Já foi dito que a produção mercantil, para produzir as mercadorias, necessita de uma ampla divisão do trabalho: há vários ramos de produção e, na composição de uma só mercadoria, entram muitas outras – sintetizando, surge uma grande interdependência entre todos os produtores, o que implica que o trabalho de cada um deles (trabalho privado) é parte do conjunto total do trabalho da sociedade (trabalho social) e só é possível no seu interior.
“No entanto, como se trata de um produtor privado (ou seja, que tem a propriedade privada dos meios de produção), ele administra isoladamente, privadamente, a sua produção; o produtor atua independentemente dos outros produtores e, por isso, o seu trabalho, parte do trabalho social, aparece-lhe essencialmente como trabalho privado. O produtor só se confronta com o caráter social do seu trabalho no mercado: sua interdependência em face dos outros produtores lhe aparece no momento da compra-venda das mercadorias; em poucas palavras: as relações sociais dos produtores aparecem como se fossem relações entre mercadorias, como se fossem relações entre coisas. A mercadoria passa a ser, então, a portadora e a expressão das relações entre homens. Na medida em que a troca mercantil é regulada por uma lei que não resulta do controle consciente dos homens sobre a produção (a lei do valor), na medida em que o movimento das mercadorias se apresenta independentemente da vontade de cada produtor, opera-se uma inversão: a mercadoria, criada pelos homens, aparece como algo que lhes é alheio e os domina; a criatura (mercadoria) revela um poder que passa a subordinar o criador (os homens).” (NETTO, 2006, p. 92)
Esse poder autônomo que as mercadorias parecem ter e que de fato exercem sobre seus produtores foi chamado por Marx de fetichismo da mercadoria, isto é, quando determinada relação social entre os próprios homens assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (MARX, 1983, p.71). Daí que no modo de produção capitalista seja universalizada a lógica mercantil, isto é, o fetichismo alcança sua máxima gradação que consiste na aparência aos homens de que suas relações sociais são relações entre coisas. Por isso mesmo, o fenômeno da reificação é peculiar ás sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a reificação é a forma típica de alienação engendrada no modo de produção capitalista (NETTO, 2006, p.93).
Já foi mencionado como a relação mercantil condiciona todas as demais relações sociais no capitalismo. Claro está, então, que a mercadoria apenas pode ser compreendida em sua essência autêntica como categoria universal de todo o ser social. E é justamente nesse sentido que a reificação originada pela e na relação mercantil ganha sublinhado relevo, quer no que tange ao desenvolvimento objetivo da sociedade, quer no que diz respeito à atitude dos homens a seu respeito, ou nas palavras de Lukacs (2003, p. 198-9), para a submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo. A esse respeito, Marx escreveu o seguinte:
“O caráter misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres objetivos do produto do trabalho, como qualidades sociais naturais dessas coisas e, conseqüentemente, também a relação social dos produtores com o conjunto do trabalho como uma relação social de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse qüiproquó, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou serem coisas sociais […] É apenas a relação social determinada dos próprios homens que assume para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.” (Marx, 1983, p.71)
Por assim ser, Lukacs (2003, p. 199) conclui que, por meio desse fato básico e estrutural, ao homem sua própria atividade, seu próprio trabalho são colocados como algo objetivo, e que, portanto, independe dele e o domina por leis próprias, que lhes são estranhas.
Tal fenômeno interfere tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o subjetivo:
“Objetivamente: quando surge um mundo de coisas acabadas e de relações entre coisas (o mundo das mercadorias e de sua circulação no mercado), cujas leis, embora se tornem gradualmente conhecidas pelos homens, mesmo nesse caso se lhes opõem como poderes intransponíveis, que se exercem a partir de si mesmos. O indivíduo pode, portanto, utilizar seu conhecimento sobre essas leis a seu favor, sem que lhe seja dado exercer, mesmo nesse caso, uma influência transformadora sobre o processo real por meio de sua atividade.
Subjetivamente: numa economia mercantil desenvolvida, quando e atividade do homem se objetiva em relação a ele, torna-se uma mercadoria que é submetida à objetividade estranha aos homens, de leis sócias naturais, e deve executar seus movimentos de maneira tão independente dos homens como qualquer bem destinado à satisfação de necessidades que se tornou artigo de consumo.”(LUKACS, 2003, p. 198)
Por isso, Marx afirma que o capitalismo caracteriza-se pelo fato de que a força de trabalho apresenta-se ao próprio trabalhador como uma mercadoria que lhe pertence. Desse modo, é justamente nesse momento que a forma mercantil dos produtos do trabalho se generaliza.
“A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o aspecto subjetivo, uma abstração do trabalho humano que se objetiva nas mercadorias. […] Desse modo, o princípio de sua igualdade formal só pode ser fundado em sua essência como produto do trabalho humano abstrato (portanto, formalmente igual). […] igualdade formal do trabalho humano abstrato não é somente denominador comum ao qual os diferentes objetos são reduzidos na relação mercantil, mas torna-se também o princípio real do processo efetivo de produção de mercadorias. […] o trabalho abstrato, igual, mensurável com uma precisão crescente em relação ao tempo de trabalho socialmente necessário, o trabalho da divisão capitalista do trabalho, que existe ao mesmo tempo como produto e condição da produção capitalista, surge apenas no curso do desenvolvimento desta e, portanto, somente no curso dessa evolução ele se torna uma categoria social que influencia de maneira decisiva a forma de objetivação tanto dos objetos como dos sujeitos da sociedade emergente, de sua relação com a natureza, das relações dos homens entre si que nela são possíveis.” (LUKACS, 2003, p. 200-1)
As modificações decisivas que assim são operadas sobre o sujeito e o objeto do processo econômico são as seguintes:
“1ª) O produto que forma uma unidade, como objeto do processo de trabalho, desaparece. O processo torna-se a reunião objetiva de sistemas parciais racionalizados, cuja unidade é determinada pelo puro cálculo, que por sua vez devem aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros. […] A unidade do produto como mercadoria não coincide mais com sua unidade como valor de uso;
2ª) Essa fragmentação do objeto da produção implica necessariamente a fragmentação do seu sujeito […], ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis deve se submeter.” (LUKACS, 2003, p. 203-4)
Ocorre, pois, um apassivamento do sujeito, uma vez que, como o processo de trabalho é progressivamente racionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforçada pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa.
Opera, assim, uma redução do espaço e do tempo a um mesmo denominador e do tempo ao nível do espaço.
“Com a subordinação do homem à máquina os homens acabam sendo apagados pelo trabalho, o pêndulo do relógio torna-se a medida exata da atividade relativa de dois operários, tal como a medida da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, não se pode dizer que uma hora [de trabalho] de um homem vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma hora, um homem vale tanto quanto outro. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo. A qualidade não está mais em questão. Somente a quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jornada. O tempo perde, assim, o seu caráter qualitativo, mutável e fluido: ele se fixa num continuum delimitado com precisão, quantitativamente mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensuráveis (…); torna-se um espaço.” (MARX apud LUKACS, 2003, p. 204-5)
Por um lado, o trabalho mecanizado e fragmentado leva a personalidade a tornar-se um espectador impotente de tudo o que ocorre com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho. Por outro lado, a desintegração mecânica do processo de produção também rompe os elos que, na produção ‘orgânica’, religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho.
O afastamento entre o produtor e os seus meios de produção, a extinção e a fragmentação de todas as unidades originais de produção, entre outros, isto é, todas as condições econômicas e sociais do surgimento do capitalismo moderno convergem ao mesmo ponto: substituir por relações racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas. Nesse mesmo sentido, Marx afirmou que as relações sociais dos homens no seu trabalho não se apresentam disfarçadas em relações sociais entre coisas, mas como se fossem suas próprias relações pessoais.
“[…] O isolamento e a atomização assim nascentes são uma mera aparência. O movimento das mercadorias no mercado, o surgimento do seu valor, numa mente é submetida a leis rigorosas, mas pressupõe, como fundamento do cálculo, uma legalidade rigorosa de todo acontecimento. […] pela primeira vez na história – toda a sociedade está submetida, ou pelo menos tende, a um processo econômico uniforme, e de que o destino de todos os membros da sociedade é movido por leis também uniformes. […] Mas essa aparência é necessária enquanto aparência. […] a confrontação imediata, tanto prática quanto intelectual, do indivíduo com a sociedade, a produção e a reprodução imediatas da vida (…), só poderiam desenrolar-se sob essa forma de atos isolados e racionais de troca entre proprietários isolados de mercadorias.” O trabalhador apresenta-se, pois, como proprietário de uma mercadoria: sua força de trabalho. “Sua posição específica reside no fato de essa força de trabalho ser sua única propriedade. Em seu destino, é típico da estrutura de toda a sociedade que essa auto-objetivação, esse tornar-se mercadoria de uma função do homem revelem com vigor extremo o caráter desumanizado e desumanizante da relação mercantil.”(LUKACS, 2003, p. 208-9, grifo nosso)
Há, pois, uma separação entre os fenômenos da reificação e o fundamento econômico de sua existência (a base que permite compreendê-los). Tal separação é facilitada pelo fato de que esse processo de transformação deve necessariamente englobar o conjunto das formas de manifestação da vida social, para que sejam preenchidas as condições de uma produção capitalista com pleno rendimento. Assim, o desenvolvimento capitalista encarregou-se de criar um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse a sua estrutura, um Estado correspondente e, por conseguinte, um direito também correspondente, entre outras coisas.
2.3 A reificação da norma
Fábio Ulhôa Coelho defendeu em importante trabalho jusfilosófico que a idéia que prevalece no que tange à origem das normas jurídicas em toda a experiência da vida em sociedade é a de que elas são produto da vontade humana. Afirma ele que, embora pareçam ganhar uma existência própria, as leis e demais normas são tidas como resultantes de um esforço humano, de um trabalho dos homens. De modo geral, as normas jurídicas são tidas como manifestação de vontade de homens concretos.
“Mesmo no interior de uma relação naturalista, a questão da correspondência entre a vontade expressa em normas e a natureza ética do agir humano está relacionada apenas com a legitimidade do conteúdo normatizado e não com sua origem. A norma jurídica aparece, assim, como manifestação da vontade humana ainda quando se pretende a existência de um direito natural.” (COELHO, 2005, p. 1)
Diante disso, Coelho se coloca a seguinte questão: Mas quais são, exatamente, os fatores que interferem com a produção das leis e normas, condicionando a vontade dos homens concretos dedicados à sua elaboração? E a responde, criticando, antes, respostas vagas que não tornam a questão mais clara, como falar-se em contingências históricas, meio, determinantes sociais, culturais, morais etc. Por isso, propõe o eminente jurista uma resposta bem específica, que seja capaz de indicar fatores reais condicionantes da produção normativa. São elencados dois fatores, quais sejam: o estágio de evolução das forças produtivas e as nuanças da luta de classes.
“Quando se fala em interferência da moral, cultura, política, economia etc., na criação do direito, é necessário esclarecer-se, em termos bastante específicos, o que se pretende identificar. Tomar a evolução das forças produtivas e a luta de classes como os fatores condicionantes da elaboração das normas jurídicas é proceder-se a tal especificação. A moral não tem uma interferência que se explique por si mesma, mas necessariamente com reporte ao modo de produção e à luta de classes que igualmente a condicionam. Assim também a cultura, a política, a economia etc. Levar em conta a totalidade em que se insere o direito, para entendê-lo, significa considerá-lo articulado nesta medida com os demais fatores distinguíveis da vida em sociedade. […] O modo de produção, em que se traduz a evolução do domínio do homem sobre a natureza, e os antagonismos das classes sociais fixam balizas, em cujo interior se desenvolve o trabalho mental de homens concretos de que resultam as normas jurídicas. Não há uma determinação mecânica, mas um condicionamento, o estabelecimento de limites para a vontade humana. A norma jurídica, nestes termos, é e não é uma expressão desta vontade.” (COELHO, 2005, p.3-4)
Entretanto, a identificação da evolução das forças produtivas e das nuanças da luta de classes como fatores reais condicionantes da produção normativa não é feita sem ressalvas. Deve-se observar que o pensamento de inspiração marxista1, por vezes, apresenta reduções ao abordar o tema que incorrem em equívocos quanto à natureza do direito. Trata-se de duas posições assumidas:
“1º) De um lado, de tomar o modo de produção da vida material como determinante absoluto de todas as manifestações do espírito humano, como a moral, a religião, a cultura e o próprio direito, através de um reducionismo economicista;
2º) De outro lado, de atribuir ao direito o caráter de simples reflexo da vontade da classe dominante, por meio de uma redução voluntarista.” (COELHO, 2003, p. 7)
Essa equação reducionista, que consiste em um economicismo exacerbado, é uma deturpação simplificadora do marxismo marxista. A base real de uma sociedade e que, portanto, a condiciona é o modo de produção existente. As manifestações do espírito humano possuem o que se costuma chamar de relativa autonomia, de uma lógica interna que não se consegue entender apenas com o reporte às condições materiais da vida social.
“Exemplifica muito bem essa situação a metáfora marxiana da sociedade como edifício: Os alicerces de um prédio condicionam, de verdade, algumas de suas características, como o número de pavimentos, algumas das distribuições possíveis dos cômodos etc., porém, de forma alguma, determinam todos os aspectos da construção, tais a efetiva quantidade de pavimentos, o revestimento e a cor das paredes etc. As expressões do espírito humano, dentre as quais se inserem as normas jurídicas, são determinadas pela evolução das forças produtivas, mas em última instância. Vale dizer, as normas jurídicas são um produto da vontade humana balizada pelo modo de produção material.” (COELHO, 2005, p.8)
Pela redução voluntarista, o direito representa simples expressão dos interesses da classe dominante. Nesse sentido, esquece-se o papel histórico desempenhado pela classe subalterna e ignora-se a dinâmica da luta de classes. As concessões localizadas da burguesia e os avanços e conquistas do proletariado estão presentes no condicionamento da produção normativa. Ademais, a classe dominante possui estratos e segmentações, tornando seus projetos diferenciados, e que constituem complexa rede de interesses, impossível de ser sintetizada na idéia de um direito que atenda exclusivamente aos de uma classe social apenas. Obviamente, o direito tende a privilegiar os interesses dominantes, mas isso não ocorre simplesmente por ser a vontade da classe dominante, mas porque tais interesses prevalecem sobre os demais nas evoluções da luta de classes. Não é desconsiderado o papel que a vontade humana desempenha no processo, situando-a, no entanto, no interior de balizas em geral inultrapassáveis2.
“Outra idéia presente no senso comum, de membros ou não da comunidade jurídica, é a de que as normas, embora nascidas da vontade humana, ganham, por assim dizer, vida própria. Seriam dotadas de uma força tal que passariam a controlar todos os seus destinatários,inclusive os homens que as formularam. É o que se costuma designar por reificação, conceito originariamente utilizado por Marx no estudo da mercadoria, que designa o processo pelo qual uma relação social é despida, aos olhos dos seus partícipes, do caráter humano que possui para assumir a aparência de algo totalmente independente de sua vontade. As coisas que um homem produz não vão ao mercado por si só, mas por uma ação da vontade de seu produtor. Não se trocam em função de si mesmas, uma vez que a quantidade de mercadorias de outro produtor que serão trocadas pelo produto em questão decorre das relações sociais entre os proprietários e não de algum atributo que exista na materialidade das coisas intercambiadas. Com a reiteração das trocas, as proporções entre as coisas fazem os seus proprietários tomarem as mercadorias como dotadas de um valor intrínseco, independente das relações sociais. O fato de uma certa quantidade de trigo ser, continuamente, trocada por uma outra quantidade de ouro imprime nas mentes dos seus produtores a idéia de que o trigo vale por si, dentro de uma certa proporcionalidade, o ouro. Por este processo, descrito por Marx (…), as mercadorias são fetichizadas, ganham uma substancialidade distante da ação humana, como se não tivesse sido esta que as valorizou.” (COELHO, 2005, p. 9-10)
Como já mencionado esse processo, que é a forma típica de alienação no capitalismo, universaliza-se e atinge, pois, o direito. A ideologia jurídica compreende as normas jurídicas, e também um conjunto de crenças que tem o direito como referencial. Entre estas pode-se mencionar a da realização da justiça, da imparcialidade do juiz, da imprescindibilidade do direito, dos direitos naturais e inalienáveis etc. Desse modo quando se explica determinada situação em sociedade como decorrência da lei ou de decisão judicial, Coelho (2005, p. 11) afirma que uma áurea de justiça parece recobri-la. A ideologia jurídica, nesse sentido, opera com particular contribuição à dominação de classes.
Em uma sociedade capitalista moderna, a reificação não alcança apenas a mercadoria e as normas jurídicas; antes marca todas as manifestações da consciência humana. A reificação da norma jurídica está ligada à sua natureza ideológica. Na verdade, ela constitui mecanismo auxiliar de dominação de classes na medida em que se apresenta como algo que transcende a vontade humana. Originada por esta, ganha vida própria e passa a comandá-la. A desfetichização da norma jurídica faria com que ela não mais fosse vista como algo acima dos conflitos sociais. Do mesmo modo, qualquer decisão que possui caráter normativo tem os mesmos atributos da norma jurídica, isto é, são capazes de subjugar os homens, inclusive aqueles de quem tenha emanado a decisão e, em tese, teriam poderes para alterá-la. A impessoalização da norma jurídica é uma forma pela qual a teoria do direito se refere à sua reificação.
“A norma jurídica, apesar de condicionada por fatores que independem da vontade humana (as forças produtivas e a luta de classes) e apesar de aparentar, em razão de sua reificação, uma independência em relação a essa vontade, é, em parte, produto de opções tomadas por homens concretos. A contradição dialética entre a vontade humana e os seus limites é a realidade da norma jurídica.” (COELHO, 2005, p. 12)
A norma jurídica caracteriza-se, pois, como resultado da correlação de forças entre trabalho e capital e expressa, assim, na atualidade, os interesses da classe dominante, muito embora se apresente como algo acima da luta de classes e que, uma vez emanada por homens, ganha vida própria e os domina.
A reificação das normas, a partir do séc. XVIII, intensifica-se no que tange às normas constitucionais uma vez que a consolidação do Estado burguês, após a Revolução de 1789, exigiu a elaboração de uma Constituição e leis para regulamentar as novas relações sociais e econômicas, que iam substituindo as feudais. Tudo isso era determinado pelo modo de produção capitalista, que, por sua vez, elaborava uma nova formação social e econômica (CAMPOS, 1990, p. 18), razão pela qual se impôs ao estado moderno a elaboração de uma Constituição, desde então considerada lei de maior expressão no interior dos Estados-nacionais e cujo texto condiciona a validade de todas as demais normas em seu território.
3 constituição reificada
3.1 A Constituição de 1988: princípios e objetivos fundamentais
José Afonso da Silva (2000, p. 99-100), no que tange aos princípios fundamantais de uma Constituição, destaca sua função ordenadora e sua ação imediata que consiste, em primeiro lugar, na sua atuação como critério interpretativo e integrador capaz de conferir coerência geral ao sistema.
Por isso, para compreender a correlação de forças capitalxtrabalho e o estágio do modo de produção a partir do direito e, portanto, da Constituição, pode-se ater ao estudo de seus princípios e objetivos fundamentais.
Benedicto de Campos (1990, p. 48-9) afirma que os princípios e objetivos fundamentais da Constituição são a pedra basilar para a construção de uma ordem social, política e jurídica democráticas, para tanto se constituindo em meta para os poderes do Estado, suas instituições e órgãos.
A constituição de 1988 proclamou em seu artigo 1º a adoção da forma de governo republicana, com a federalização em três níveis (União; Estados-membros e Distrito Federal; e Municípios), os quais são indissolúveis e constituem o Estado democrático de direito: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito […].(CF/1988).
A principal relevância do conteúdo dessa norma constitucional, segundo Silva (2001, p. 123), está em que a Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, não o faz como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando.
Dessa maneira, antes de qualquer coisa, parece ser necessário definir o que vem a ser o Estado de direito, para depois lhe acrescer o componente democrático. Isso porque o Estado de direito tem sua origem histórica, carente de conteúdo democrático, no pensamento liberal.
“Daí falar-se em Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: (a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão dos poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande conquista da civilização liberal.” (SILVA, 2001, p. 116-117).
Além disso, Silva (2001, p. 118) afirma ser um elemento importante do Estado de direito o fato de esse estar submetido ao Poder Judiciário, ou seja, todos os atos legislativos, executivos, administrativos e, inclusive, os judiciais estão sujeitos ao controle jurisdicional, no que se refere à legitimidade constitucional e legal.
Mas a garantia de um Estado de direito não pressupõe o componente democrático, ou seja, o Estado de direito não é necessariamente um Estado democrático. Este alicerça-se no princípio da soberania popular3, o qual impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública. Mas essa participação não se exaure […] na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado democrático, mas não o seu completo desenvolvimento (SILVA, 2001, p. 121).
Agregando, então, o elemento democrático ao Estado de direito, não se tem a mera união formal dos conceitos, mas a sua superação na medida em que o novo conceito incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo (SILVA, 2001, p. 123).
“A diferença, quando se fala de reformas no âmbito de uma revolução, é a participação do povo na direção do processo. Ou seja, a diferença é a democracia. Se é disso que se trata quando se menciona as reformas no âmbito da revolução, com mais razão ainda quando se fala da possibilidade de transformação da sociedade através da democracia.
A diferença é a participação popular nas mudanças. Significa mudar para criar no âmbito da democracia, mesmo que em caráter parcial, os processos de participação que são típicos de uma revolução. Ou seja, para quem quer realmente mudar a sociedade, o caminho é mais participação, ou seja, mais democracia, e não menos.” (WEFFORT, 1986, p. 113).
Esta possibilidade se dá na medida em que a Constituição de 1988, mesmo não tendo estruturado um Estado democrático de direito de conteúdo socialista, nem prometido uma transição para o socialismo mediante a realização da democracia econômica como o fez a Constituição portuguesa, ela abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana (SILVA, 2001, p. 124).
Esse, então caracterizado, Estado democrático de direito apresenta, no art. 1º de sua Constituição, os seguintes princípios fundamentais: (I) a soberania; (II) a cidadania; (III) a dignidade da pessoa humana; (IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (V) o pluralismo político e, por fim, a representatividade e participação do povo no poder político (parágrafo único). (Art. 1º, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)
Esses princípios, assim como os demais dispositivos constitucionais, afirma Campos (1990, p.50), não são estanques, em que a interpretação de um não se relacione com a de outro; pelo contrário, eles formam um complexo em que todos se relacionam, de tal sorte que, por exemplo: o princípio da representatividade e participação do povo no poder político (direitos políticos) é um componente do princípio da cidadania (direitos civis, sociais e políticos), que se exerce no marco da soberania nacional (autodeterminação dos povos, independência nacional, não-intervenção e igualdade entre os Estados, todos princípios de relações internacionais também insertos na carta constitucional).
O princípio fundamental da representatividade e participação do povo no poder político indica que o povo somente exerce sua soberania (interna) pela forma e dentro dos limites estabelecidos pela norma constitucional. A constituição impõe que o poder do povo seja exercido por seus representantes eleitos (representatividade) ou que seja exercido diretamente (participação do povo no poder político) pelos seguintes instrumentos: plebiscito, referendo, iniciativa de lei e ação popular, além dos conselhos gestores, conferências, audiências públicas, consultas públicas, tribunal do júri etc.
Entretanto, essa possibilidade de participação do povo é uma forma de institucionalizar os movimentos sociais (em prol da criança e do adolescente – ECA; em prol da cidade – Estatuto da Cidade; sanitarista – LOS; da assistência social – LOAS; em defesa do idoso – Estatuto do Idoso etc.) para facilitar a captação/assimilação das demandas sociais, permitindo, assim, sua recuperação pelo capital e conseqüente conversão em direito.
Parece haver, na verdade, uma aplicação dos princípios do toytotismo na administração pública, o que não exclui a importância da apropriação desses mecanismos pelas massas tendendo à ampliação da democracia, cuja finalidade socializadora conduz a transformações societárias.
Em razão dessa tutela estatal ao exercício da participação do povo no poder político a cidadania no Brasil, que é outro princípio fundamental do Estado, já recebeu diversos predicados, tais como cidadania tutelada e assistida (DEMO, 1995) ou invertida (FLEURY, 1989), entre outros.
Uma cidadania plena pressupõe soberania estatal, ou como fora dito, necessita minimamente da possibilidade de autodeterminação de seu povo, de independência nacional, de não-intervenção externa de outros países e de igualdade entre os Estados.
Entretanto, no estágio atual do capitalismo, as megacorporações detêm um poder planetário que obriga considerável número de Estados nacionais a abdicar de qualquer pretensão à soberania; a ofensiva do capital impõe uma determinação cultural externa ao povo, conforme seja adequado à produtividade do capital; há um notável distanciamento entre os países ricos e os pobres; e instalam-se mecanismos de intervenção em outros Estados por meio de guerras, incentivos comerciais ou financeiros.
Há, pois, um abalo real na estrutura constitucional do Estado brasileiro pelo esfacelamento material da soberania estatal, do qual decorre a impossibilidade do exercício pleno da cidadania e que afeta, por conseguinte, qualquer tentativa de efetivação do princípio fundamental da dignidade humana.
É que a dignidade humana implica reconhecer e garantir o merecimento do ser humano, historicamente construído, a certos direitos essenciais à vida humana, tais como todos os direitos civis (vida, igualdade, liberdade etc.), sociais (trabalho, educação, saúde, lazer etc.) e políticos (votar e ser votado, participar das decisões governamentais etc.) – cidadania –, necessitando, pois, de uma organização político-institucional para tutelá-los (Estado soberano).
Não se ousa negar que os princípios da cidadania e da soberania constituem elementos essenciais na promoção e proteção do princípio da dignidade humana. Nesse sentido, Campos (1990, p. 55) afirma que se houver vigilância e firmeza dos partidos políticos, das associações de classes, dos movimentos populares (pluralismo político) e respeitados os princípios de nossa soberania e de cidadania, a dignidade da pessoa humana será respeitada em todas suas dimensões.
Torna-se perceptível que essa totalidade jurídico-constitucional complexa é composta, ainda, pelo princípio fundamental do pluralismo político que não se refere somente a livre organização partidária, mas a organização livre de associações culturais, religiosas ou ideológicas que adotem as mais diversas doutrinas, excetuadas as de caráter racista, tais como o nazismo e o racismo (CAMPOS, 1990, p. 55). O exercício do pluralismo político possui caráter pedagógico na construção da democracia e, por conseguinte, na constituição de uma nova ordem societária.
E, muito embora, possa esfacelar o movimento operário em lutas de segmentos, faixas etárias, etnias, gênero, ou temas, como já mencionado, o exercício prolongado da democracia e a ampliação do rol dos direitos sociais e sua implementação via políticas sociais, a médio prazo, tem efeitos socializadores que, somados às concessões da burguesia, provoca um salto dos trabalhadores da condição de fiel da democracia burguesa para de fator de uma democracia popular (operária).
Outros dois princípios fundamentais do Estado brasileiro e contraditórios entre si são o da livre iniciativa e dos valores sociais do trabalho. A livre iniciativa ou livre concorrência é um princípio do liberalismo econômico4 e revela grande importância na análise aqui empreendida uma vez que se refere diretamente à infra-estrutura econômica da sociedade que se constitui como a base real, sobre a qual se erguem todas as superestruturas sociais e jurídicas, como também as diversas formas de consciência social (CAMPOS, 1990, p. 51).
Desse modo, não surpreende o fato de que a livre iniciativa seja elevada a princípio fundamental da Constituição de 1988, a não ser pelo fato de que muitos países, face à fase imperialista do capitalismo contemporâneo, tenham limitado a incidência desse princípio. No Brasil, conforme menciona Campos (1990, p. 51), o sistema econômico, de saúde e educacional, o regime da propriedade, todos sofrem a influência nefasta da livre iniciativa.
A livre iniciativa, conforme Silva (2001, p.771), envolve liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato e assegura a todos, consoante o art. 170 da Constituição de 1988, o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei.
“No início, e durante o século passado até a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a liberdade de iniciativa econômica significava garantia aos proprietários da possibilidade de usar e trocar seus bens; garantia, portanto, do caráter absoluto da propriedade; garantia de autonomia jurídica e, por isso, garantia aos sujeitos da possibilidade de regular suas relações do modo que tivessem por mais conveniente; garantia a cada um para desenvolver livremente a atividade escolhida.” (SILVA, 2001, p. 771-2)
Mas, conforme já explicitado, o capitalismo assumiu, no século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, um caráter monopolista que implicou uma limitação à liberdade de contratar, de um lado e, de outro, um caráter interventivo ao Estado. Diante dessas mudanças vividas no desenvolvimento do capitalismo, Campos alertou que:
“[…] se o liberalismo econômico deu conta dos problemas do século passado, na época do capitalismo concorrencial, hoje é criticado, inclusive por sociólogos e economistas burgueses. Vivemos a época do capitalismo monopolista de Estado, que é a fase do imperialismo, em que a luta se trava no campo econômico, entre grupos nacionais e estrangeiros. Não existe, assim, lugar para a livre iniciativa. O princípio do liberalismo econômico serve hoje apenas para encobrir as manobras do imperialismo. Adolf Berle Jr., defensor da livre iniciativa, admite que, “de um modo geral, o direito americano, quando não a própria economia americana, impediu o monopólio. Mas ambos toleraram e mesmo estimularam um sistema pelo qual, em cada ramo da indústria, se estabelece o domínio de umas poucas grandes empresas. Duas ou três, no máximo cinco grandes empresas são possuidoras da metade do mercado, sendo o restante entregue as menores empresas(…)”. Muitas dessas empresas trabalham para as maiores, produzindo peças oi equipamentos, ocorrendo, como diz Adolf Berle Jr., que, em muitas, os proprietários são apenas “nominais”. Afirma ainda Adolf Berle Jr. Que existe agravantes de que “a faculdade de que dispõe uma grande empresa, quanto a decidir e dirigir operações, transcende às limitações do exercício normal do direito de propriedade”. Realmente, a livre iniciativa inexiste na época do capitalismo monopolista de Estado.” (CAMPOS, 1990, 51-2)
Nesse sentido, a introdução da livre iniciativa no rol dos princípios fundamentais da República brasileira indica mais a possibilidade de dominação hegemônica do mercado por um número pequeno de megacorporações nacionais ou internacionais, do que a verdadeira possibilidade de ingresso em condições eqüitativas no mercado. É que, em tese, qualquer pessoa, só ou em grupo, é livre para concorrer no mercado, mas somente em tese, abstratamente, uma vez que as condições materiais não lhes permitem fazê-lo. As limitações às liberdades são facilmente exemplificadas em sociedades capitalistas. Veja-se o exemplo da liberdade ambulatorial ou de locomoção, garantida constitucionalmente como direito fundamental5, mas, desprovido de dinheiro, como se locomover do Oiapoque ao Chuí? Não são fornecidos os meios para o exercício efetivo do direito.
O que dizer, então, do derradeiro princípio fundamental da república? Os valores sociais do trabalho são realmente reconhecidos na República brasileira? A expressão “valores sociais do trabalho” remete o debate ao trabalho sociologicamente considerado ou, nas palavras de Engels (1973, p. 215):
“[…] como fonte de toda a riqueza, ao lado da natureza, que lhe fornece a matéria-prima por ele transformada em riqueza. É a condição fundamental de toda a vida humana, e o é num grau tão elevado que, em certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o homem.”
Mas a Constituição, de modo diverso, trata do trabalho abstrato, considerado abstratamente como mero dispêndio de força mecânica, isto é, em sentido fisiológico.
“Na sociedade capitalista, a ideologia burguesa procura, por todos os modos, escamotear a verdadeira natureza do trabalho; fala em trabalho de uma forma abstrata tal como a nossa Constituição, sem verificar a sua base concreta, ao lado do trabalho geral existente na sociedade, ao trabalho concreto que se materializa nas mercadorias ou em qualquer obra dos indivíduos (prédios, máquinas, ruas etc.). É justamente esse trabalho concreto que cria toda a riqueza da sociedade burguesa. Esse trabalho concreto é o produto da força de trabalho, que é o conjunto das energias físicas e mentais existentes no ser humano. Para manter, como para reproduzir a força de trabalho, o indivíduo necessita de alimentos, roupas, educação, moradia etc. No sistema capitalista, os trabalhadores despossuídos dos meios de produção vendem sua força de trabalho para sobreviver; o trabalhador possui uma única liberdade, que é poder procurar quem pague mais pela sua força de trabalho [escravidão assalariada].” (CAMPOS, 1990, p. 52-3)
O trabalho concreto, que pressupõe os valores sociais, é também um dispêndio de força mecânica, mas de uma determinada forma e com um objetivo definido e é nessa qualidade que produz valores de uso.
Assim, na medida em que o trabalho assume na Constituição um caráter abstrato, a norma constitucional reforça a reificação do trabalho, qualificando-o como mercadoria a ser vendida no mercado por um preço (salário); a simples análise constitucional exclui a visibilidade da essência do trabalho e reduz seus valores sociais aos econômicos e sua tutela à proteção dentro da ordem burguesa (regulamentação de jornada de trabalho, férias, licença gestante etc.). Desse modo, torna-se necessário verificar como os homens concretos lidam com essas normas, razão pela qual se impõe o estudo das decisões do Supremo Tribunal Federal no que tange à forma central da reificação das relações sociais: o trabalho.
3.2. Trabalho e Constituição no STF
Já foi dito que o trabalho consiste em atividade do homem prefigurada em sua consciência que tem como resultado a criação de valores de uso, constituindo, pois, a única lei objetiva e ultra-universal do ser social, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza. Entretanto, o trabalho recebe na Constituição brasileira de 1988 uma conotação bem distinta.
A Constituição de 1988, ao abordar a categoria trabalho, o faz na qualidade de trabalho abstrato, isto é, trabalho abstratamente considerado, mero dispêndio de força mecânica, que pode, portanto, ser reduzido a um denominador comum pelo qual se define o valor da hora de trabalho – como uma mercadoria qualquer –, bem como as garantias respectivas para a reprodução da força de trabalho.
O trabalho possui normatização no texto constitucional, principalmente, nos arts. 6º (Direitos sociais), 7º (Direitos dos trabalhadores, decorrentes da relação de trabalho), 8º (Associação profissional ou sindical), 9º (Direito de greve), 10 (Participação na gestão pública) e 11 (Representação perante o capital-empregador).
Nesse contexto, é garantia do trabalhador, por exemplo, um salário mínimo em âmbito nacional (art. 7º, inciso IV, CF/1988) que lhe permita a reprodução da sua força de trabalho, ou mais claramente, o preço trabalho deve ser suficiente para que o trabalhador possa atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo. Isto é, a Constituição de 1988 traz a afirmação de que o trabalho é mercadoria e terá um preço regulado nacionalmente; esse preço deve permitir ao trabalhador a aquisição de bens e serviços capazes de manter sua energia, seu vigor no trabalho para, assim, produzir mercadorias e reproduzir sua força de trabalho.
Isso fica claro em manifestação expressa do Ministro Celso de Melo, do Supremo Tribunal Federal – STF, em relatório a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade:
“A insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo — definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família — configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração digna (CF, art. 7º, IV), estará realizando, de modo imperfeito, porque incompleto, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica. A omissão do Estado — que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional — qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também compromete a eficácia da declaração constitucional de direitos e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. As situações configuradoras de omissão inconstitucional, ainda que se cuide de omissão parcial, refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado — além de gerar a erosão da própria consciência constitucional — qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança ilegítima da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário. (recedentes: RTJ 162/877-879, Rel. Min. Celso de Mello – RTJ 185/794-796, Rel. Min. Celso de Mello.” (ADI 1.442, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 29/04/05). No mesmo sentido: ADI 1.458-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 20/09/96)
Note-se que a relação entre trabalhador e capitalista sofre a mediação de uma norma jurídica, qual seja, a prevista no inciso IV, do art. 7º da CF/1988. Pode-se afirmar, então, que a exploração decorrente da relação capital x trabalho é garantida por uma norma jurídica de natureza constitucional, que aparentemente resultou da vontade livre e consciente da maioria. Mais que isso, a relação entre trabalhador e capitalista aparece como relação entre normas: Constituição de 1988 e Decreto regulamentador do salário-mínimo.
A discussão realizada no STF não tem por finalidade, então, promover justiça, ou ainda mais, justiça social, mas sim promover uma adequação das normas infraconstitucionais ao texto constitucional, já que este seria o portador da vontade da maioria, dos anseios da sociedade, resultado da discussão ampla e aberta do povo.
Constitui, pois, fenômeno jurídico da reificação das normas o fato de que relações entre homens se apresentam como relações entre normas e as relações entre normas se apresentam como humanas. Constitui, ainda, ideologia jurídica incontestável pensar a constituição e as normas jurídicas como manifestação da vontade da maioria, quando se sabe que a realidade das normas jurídicas é justamente a contradição dialética entre a vontade humana e os seus limites (condicionados pelas forças produtivas e luta de classes).
Outra questão que salta aos olhos na análise aqui empreendida é o fato de que o Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF defende com muito mais vigor a realização do texto constitucional e as normas por ele trazidas, que a situação de fato, isto é, relega o direito concreto (no caso específico, na relação fatídica) a segundo plano, ainda que se trate de um direito carente de verdade sócio-histórica.
Desse modo, a constituição apresenta-se como dogma, como paradigma da solução de todos os fatos ocorridos no território nacional, ressalvadas as hipóteses de interferência externa regulamentados pela própria carta constitucional, tais como os tratados, convenções e acordos internacionais.
A situação que permanece a sofrer juízo de legitimação pelo judiciário é a seguinte: a classe dominante nas sociedades mercantis, como é caso do Brasil, vive da exploração do trabalho humano, ou seja, nos Estados capitalistas existe a necessidade de regulamentação da exploração do trabalho como meio de legitimá-la. Assim, como o direito é condicionado pelas nuanças da luta de classes e pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, a constituição, que é a norma máxima de direito em uma nação (expressão dos fatores reais de poder), faz menção a um trabalho não como categoria humanizante do homem, mas como uma mercadoria, cujo contrato de compra e venda sofre uma série de intervenções de ordem pública, as quais, desde que respeitadas, autorizam a comercialização da força de trabalho, como se fosse uma coisa, algo externo ao homem.
O mesmo é notado na regulamentação do repouso semanal do trabalhador, o qual, conforme disposição expressa do texto constitucional (art. 7º, inc. XV, CF/1988), deve ser gozado, preferencialmente, aos domingos. Assim, um conflito surgiu quando fora regulamentado o funcionamento do comércio de varejo aos domingos, por decreto federal. O Ministro relator do STF, Sepúlveda Pertence, teve vencido seu voto, uma vez que os demais Ministros concluíram, em maioria, pelo seguinte:
“A Constituição não faz absoluta a opção pelo repouso aos domingos, que só impôs preferentemente; a relatividade daí decorrente não pode, contudo, esvaziar a norma constitucional de preferência, em relação à qual as exceções, sujeitas à razoabilidade e objetividade dos seus critérios, não pode converter-se em regra, a arbítrio unicamente de empregador. A Convenção 126 da OIT reforça a argüição de inconstitucionalidade: ainda quando não se queira comprometer o Tribunal com a tese da hierarquia constitucional dos tratados sobre direitos fundamentais ratificados antes da Constituição, o mínimo a conferir-lhe é o valor de poderoso reforço à interpretação do texto constitucional que sirva melhor à sua efetividade: não é de presumir, em Constituição tão ciosa da proteção dos direitos fundamentais quanto a nossa, a ruptura com as convenções internacionais que se inspiram na mesma preocupação. (ADI 1.675-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/09/03) Repouso semanal remunerado referentemente aos domingos: medida provisória que autoriza o funcionamento do comércio varejista no domingo desde que nele recaia o repouso semanal do trabalhador pelo menos uma vez a cada período de quatro semanas: suspensão cautelar indeferida por seis votos, vencido o Relator, ao contrário do que decidido sobre norma semelhante de versão anterior da Medida Provisória 1.539 (ADI1.675 MC), na qual nenhum domingo se garantia. (ADI 1.687-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31/10/01)”
Ao apreciar a questão suscitada por trabalhadores do comércio varejista, os Ministros do STF limitaram-se à análise de compatibilidade lógica entre a regulamentação do exercício da atividade empresarial aos domingos com a norma que define a preferência do descanso remunerado dos trabalhadores neste dia da semana. Sequer foi ventilada a questão da conveniência social, ou do traço cultural, historicamente construído, do descanso aos domingos. O fator social, a questão fatídica, a realidade social a partir da qual se fundou a controvérsia, sequer fora comentada.
Houve apenas um debate sobre questões abstratas, envolvendo um decreto, uma convenção e a constituição; a discussão, em tese, acerca de três normas; um debate que independia da situação que ensejou o processo judicial. Em suma, não houve interpretação constitucional, nem se levou a cabo uma situação criada após a promulgação da constituição de 1988, que reflete conseqüências para todos os trabalhadores do setor varejista. O que houve foi uma mera reafirmação do texto constitucional, independente da vontade do povo, perante normas hierarquicamente inferiores.
Foram citados dois exemplos ilustrativos, mas poderiam ser tantos quantos existam, ou fossem selecionados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF. A constatação é sempre a mesma.
Dessa aplicação pura da constituição decorrem algumas conseqüências:
1. A constituição limita o poder que emana do povo ao limite de seu texto;
2. O STF pode julgar sem apreciar a situação de fato, limitando-se à fixação do sentido das normas e, portanto, definindo direitos, mesmo que isso se dê em detrimento da vontade da maioria e em prejuízo da justiça social;
3. O direito constitucional é sempre abstrato, não se concretiza na vida cotidiana, mas no julgamento formal do STF;
4. O trabalho, também, constitui categoria abstrata, resumindo-se em atividade fisiológica humana posta no mercado, mediante a salvaguarda de algumas garantias essências à sua reprodução (tais como uma contraprestação capaz de garantir a subsistência do trabalhador e de sua família, repouso semanal para recarregar suas energias, adicional para atividade perigosa etc.).”
Do exposto, é correto afirmar, então, que a constituição encontra documentalmente a expressão máxima de sua reificação nos julgados do STF, quer por sua análise abstrata, quer pela ideologia de que ela constitui vontade da maioria, ou ainda pelo reforço do trabalho abstratamente considerado enquanto mercadoria.
4 Considerações finais
Se o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual, e se é o trabalho que constitui a mediação entre homem e natureza na produção da vida material, pode-se afirmar que as relações sociais no modo de produção mercantil ocultam o caráter social do trabalho, na medida em que seu produto apresenta-se ao seu sujeito (o homem) como mercadoria para a troca, isto é, como se tivesse vida autônoma. Assim, o produto do trabalho de um homem (trabalhador) pertence a outro (capitalista), que o leva ao mercado para trocar por dinheiro, o qual, por sua vez, será trocado por outra mercadoria e/ou pelo trabalho de outros homens e, assim, sucessivamente, de modo a que a relação de troca mercantil apresente-se como protótipo de todas as demais relações sociais.
Essa subversão do trabalho ao patamar de mercadoria que condiciona todas as demais relações sociais é que recebe o nome de reificação, fenômeno que sintetiza o modo pelo qual as relações são fetichizadas e desumanizadas no capitalismo.
Dentre as diversas manifestações do fenômeno da reificação, destaca-se aquela advinda do “direito”: constituição, leis e demais normas jurídicas que caracterizam os Estados capitalistas modernos.
O Estado moderno caracteriza-se essencialmente pela submissão ao império da lei (legalidade), separação ou divisão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e pelo enunciado e garantia dos direitos individuais (direitos fundamentais), sendo que todas essas características são lançadas em um documento político, com conseqüências jurídicas: a Constituição, a partir da qual todas as normas jurídicas e todos os direitos e garantias advindos delas são concebidos, interpretados e concretizados.
Desse modo, a Constituição de um Estado revela o duplo caráter do direito: de um lado é resultado das demandas sociais e, de outro, é paradigma para a efetivação de garantias; ou ainda: de um lado é resultado da luta dos trabalhadores e, de outro, é concessão do capital para manutenção do status quo. Em suma, uma constituição expressa os fatores reais de poder que podem ser sintetizados pela luta de classes e pelo desenvolvimento das forças produtivas.
Por isso, compreender uma Constituição permite compreender um Estado respectivo e sua função social, além de permitir buscar nessa função social seu potencial transformador, suas possibilidades de subversão da ordem reificada, enfim, de constituição de uma nova ordem societária, centrada na justiça social.
Nesse contexto, a Constituição do Brasil de 1988 revelou a inoperância de seus princípios fundamentais, por não expressarem fatores reais de poder, uma vez que o texto constitucional deu grande relevo a um nacionalismo mercantil que não pode mais ser garantido diante da internacionalização do capital. Entretanto, no que tange ao trabalho, como categoria abstrata, esse responde aos interesses do capital interno e internacional, razão pela qual possuem validade incondicional, ou seja, representam fatores reais de poder no capitalismo contemporâneo.
Mais do que isso, além de possuir expressa previsão no texto constitucional, assegurando a redução do trabalho à condição de mercadoria, a constituição prevê a existência de um tribunal (Supremo Tribunal Federal – STF) para defender seu texto acima de qualquer fato, acima de qualquer situação, acima do que quer que seja, desde que não seja o capital. Garante ao trabalho o que lhe é permitido garantir: seu preço como mercadoria e demais condições capazes de permitir ao trabalhador prover a reprodução de sua força de trabalho.
Daí que a constituição limita o poder que emana do povo, a finalidade do Estado, e tudo o mais ao limite de seu texto, independente do resultado, fato que se agrava pelo fato de que o STF pode proferir decisões de efeito geral sem apreciar a situação de fato, limitando-se à fixação do sentido das normas e, portanto, definindo direitos, mesmo que isso se dê em detrimento da vontade da maioria e em prejuízo da justiça social.
Por isso, é possível afirmar que o direito constitucional é sempre abstrato, não se concretiza na vida cotidiana, mas no julgamento formal do STF, isto é, independente de qualquer situação de fato, ou de senso de justiça, ou de desfetichização da norma constitucional, o STF diz o que pode e o que não pode ser feito no limite territorial do país tendo sempre como parâmetro o texto de uma constituição que sequer teve uma participação generalizada e difundida na sociedade brasileira.
Por fim, o trabalho, do ponto de vista jurídico, ideologicamente considerado (o que o é), constitui categoria abstrata, cujo conteúdo resume-se em atividade fisiológica e mecânica humana posta à venda no mercado como mercadoria, mediante a salvaguarda de algumas garantias essências à sua reprodução (tais como uma contraprestação capaz de garantir a subsistência do trabalhador e de sua família, repouso semanal para recarregar suas energias, adicional para atividade perigosa etc.).
Desse modo, o direito (Constituição, leis, decretos, tribunais e demais normas e órgãos jurídicos) é dialético, ou seja, serve a duas funções: de um lado legitimar a reificação das relações sociais, garantindo-lhes sua reprodução; de outro, permitir a universalização e ampliação dos direitos que conduzirá a um processo revolucionário na medida em que as lutas se socializam e implicam concessões cada vez maiores por parte do capital.
É justamente da tensão entre essas funções contrárias, contraditórias e antagônicas que resulta o direito enquanto fenômeno social e que se apresenta, neste momento histórico, como estrutura reificada, isto é, independe de seu sujeito (o homem), dominando-o, pois.
Conciliador no Juizado Especial de Uberaba/MG, membro suplente da COMOVEEC – Comissão de Monitoramento da Violência em Eventos Esportivos e Culturais, membro das Comissões de Implantação do Conselho Municipal de Direitos do Idoso e do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Uberaba/MG (2003/2005), Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia – FADIR/UFU e em Filosofia do Direito pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia – DEFIL/UFU.
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