Resumo: O presente artigo trata brevemente da condição do transexual no âmbito do direito brasileiro. Analisa-se tanto o aspecto penal, no que diz respeito à cirurgia de mudança de sexo, quanto no aspecto civil após a cirurgia, como o registro civil, o casamento e a filiação.
Palavras chaves: Transexualismo; Repercussões jurídicas.
Sumário: 1. O conceito de transexualismo; 2. A cirurgia de mudança de sexo; 3. Das repercussões jurídicas da cirurgia de mudança de sexo; 3.1. No direito penal; 3.2. No direito ciVIL; 3.2.1. Registro Civil; 3.2.2. Casamento; 3.2.3. Filiação; Conclusão
1- CONCEITO DE TRANSEXUALISMO
Transexual é um indivíduo que se identifica psicologicamente e socialmente com o sexo oposto. Ele tem todos as características físicas do sexo constante da sua certidão de nascimento, porém se sente como pertencente ao sexo oposto. Em síntese, o transexual masculino, é uma mulher vivendo em um corpo de homem e o feminino uma mulher em um corpo masculino. Segundo Maria Helena Diniz “o transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a auto-mutilação ou auto-extermínio.”
2 – A CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO
Para que o portador desse desvio psicológico consiga fazer a cirurgia, chamada de cirurgia de redesignação do sexo ou de adequação do sexo anatômico ao sexo psicológico, é necessário que se faça um diagnóstico extremamente criterioso por uma equipe que envolve psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, ginecologistas e cirurgiões. Normalmente exige-se um período de pelo menos dois anos como um período de teste, em que o indivíduo é submetido a tratamento hormonais e aconselhado a viver como se fosse do sexo oposto, para se ter certeza de que se trata de um transexual. Só assim será permitida a realização da cirurgia.
Nesse sentido a jurisprudência:
Ementa: REGISTRO CIVIL Assento de nascimento Alteração Pedido de retificação de nome e alteração de sexo no registro civil c c autorização para cirurgia de reatribuição sexual Inviabilidade Transexualismo que reclama tratamento médico que só pelo especialista pode ser deliberado Admissibilidade da cirurgia de transgenitalização mediante diagnóstico específico e avaliação por equipe multidisciplinar, por pelo menos durante dois anos (CFM, Resolução 1 652/02). Apelante inscrito e em fila de espera para o tratamento, que deve ser definido pela equipe multidisciplinar, independentemente de autorização judicial, por se tratar de procedimento médico, competindo ao médico a definição da oportunidade e conveniência Recorrente que, por ora, é pessoa do sexo masculino Alteração no registro civil que poderá ser tratada oportunamente após resolvida, no âmbito médico, a questão de transexualidade Apelo desprovido. (TJ-SP – Ap. 4174134500 – Rel. Carvalho Viana. 10ª Câmara de Direito Privado. j. 09/10/2007)
A Resolução CFM Nº 1.652/02, regula a cirurgia de mudança de sexo, autorizou que hospitais públicos e privados, independentemente da atividade de pesquisa, procedam à cirurgia de transgenitalização e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, como tratamento dos casos de transexualismo.
Em agosto de 2007, o TRF da 4ª Região em Porto Alegre, em sede de ação civil pública, determinou ao S.U.S. que realizasse cirurgias de mudança de sexo. A Justiça Federal deu prazo de 30 dias para que o SUS incluísse na sua lista de procedimentos cirúrgicos tal cirurgia. A decisão abrangia todo o território nacional e, em caso de descumprimento, o SUS teria que pagar multa diária de R$ 10 mil reais.
No entanto, logo em dezembro do mesmo ano, a Presidente do STF, Ministra Hellen Gracie, suspendeu a obrigatoriedade do SUS de realizar a cirurgia de mudança de sexo, pois em recurso interposto pela União foi argumentado que esses procedimentos poderiam causar um rombo nos cofres públicos.
3 – DAS REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO
3.1 – NO DIREITO PENAL
A cirurgia de mudança de sexo não constitui o crime de mutilação tipificado no artigo 129 §2o inciso III do Código Penal pois o fim da cirurgia é terapêutico. Não teria sentido, após anos de tratamento para o diagnóstico do transexual, envolvendo toda uma equipe médica e psicológica, que o médico fosse condenado pela realização da cirurgia.
Ademais, a conduta não está tipificada no Código Penal, e tampouco se configura a culpabilidade do médico, visto que este objetiva única e exclusivamente o bem-estar de seu paciente.
Ensina Elimar Szaniawski:
“A atividade médica tem sempre por escopo a conservação da vida e da saúde do indivíduo mediante a cura das moléstias. Por isso, nas atividades médicas curativas, está ausente o dolo na prática de lesões corporais. Outrossim, a terapia cirúrgica, que visa à cura do doente, mesmo que ocorram mutilações, não se enquadra no tipo lesão corporal, descrito nos Códigos Penais.”
3.2 – NO DIREITO CIVIL
3.2.1 – Registro Civil
Segundo Maria de Fátima Freire de Sá, o pedido de alteração do prenome do transexual após a cirurgia não possui fundamento legal, havendo inúmeros julgados que negam provimento ao pedido de alteração do registro, argumentando que há ainda prevalência do sexo biológico sobre o psíquico, o que justifica aplicar o princípio da imutabilidade do nome da pessoa.
Tal princípio, previsto no artigo 58 da Lei n.º 6.015/73, disciplina que “o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.
Hoje, a doutrina e a jurisprudência não vêm utilizando como regra absoluta o artigo 58 da Lei mencionada. Pelo contrário, é possível perceber que os Tribunais brasileiros têm autorizado a alteração do prenome no registro civil desde que a pessoa tenha se submetido à cirurgia de mudança de sexo.
Os fundamentos jurídicos utilizados para sustentar a decisão de permissão de mudança de prenome consistem no artigo 3.º, inciso IV, da Constituição Federal[1]e nos artigos 4.º e 5.º[2] da Lei de Introdução ao Código Civil. Além disso, Maria de Fátima Freire de Sá afirma que a jurisprudência e os doutrinadores que são favoráveis à alteração do prenome nos registros públicos adotam também os seguintes argumentos:
1) o artigo 1º, III, da Constituição Federal, estabelece a dignidade humana como um dos fundamentos da República. Assim, este dispositivo assegura o livre desenvolvimento da personalidade, protegendo o direito à cidadania e a posição do transexual como sujeito de direitos na sociedade;
2) A cirurgia não possui caráter mutilador, mas sim corretivo;
3) Uma vez que o direito de dispor sobre o próprio corpo integra os direitos da personalidade, o transexual tem o direito de buscar o livre desenvolvimento de sua personalidade, através do seu equilíbrio psicofísico que constitui um direito à saúde, também considerado direito da personalidade.
Apesar disso, Maria Helena Diniz ressalta que “a jurisprudência brasileira tem entendido que se deve permitir a alteração do prenome, colocando-se no lugar reservado a sexo o termo ‘transexual’, por ser esta a condição física e psíquica da pessoa, para garantir que outrem não seja induzido em erro”.
Alguns doutrinadores não concordam com este entendimento, alegando que deve ocorrer a alteração do prenome sem estabelecer nenhuma menção discriminatória no documento de identidade, carteira de trabalho, carteira de habilitação, etc., nem referência alguma, mesmo em averbação sigilosa, no registro de nascimento. Isso porque afetaria a integração social e afetiva do transexual e o impediria esquecer o estado sexual em que se encontrava antes da cirurgia.
3.2.2 – Casamento
Casamento é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher, legitimando-se por ele suas relações sexuais e que visa o auxílio mútuo material e espiritual e o compromisso de criar e educar a prole de que ambos nascer.
São condições indispensáveis à existência jurídica do casamento seja contraído entre homem e mulher; celebração na forma prevista em lei; e consentimento. A falta de qualquer um dos três requisitos faz com que o casamento seja considerado inexistente.
Se uma pessoa que se submeteu à cirurgia e obteve a mudança de nome no registro civil contrai matrimonio com cônjuge que não sabe da condição de transexual daquele, poderá este pedir a anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa, nos termos do artigo 1557 do Código Civil? Não, nesse caso, trata-se de casamento inexistente, pois, nas palavras de Maria Helena Diniz “se a lei brasileira só permite matrimonio entre pessoas de sexo oposto, logo, inadmissível seria a união legalizada entre pessoas do mesmo sexo, ainda que uma delas tenha se submetido à operação de conversão sexual”.
O Ministério Público, na apelação n° 43925743, interposta perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pediu a reforma parcial da sentença que deferiu a mudança do nome de um transexual operado e determinou a alteração, no registro de nascimento do autor, do sexo masculino para o feminino. Recorreu o MP sob o argumento de que esta última medida ameaça a integridade do permissivo constitucional ao casamento e união estável, bem como do principio da dignidade humana, pois o artigo 226, §§ 3o e 5o da Constituição Brasileira[3] impedem o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
3.2.3 – Filiação
Entende-se que a mudança do sexo do transexual no registro civil não acarreta modificação na relação filial já existente. Ademais, a redesignação de um dos genitores não deve constar na documentação pertencente ao filho.
Segundo Antônio Chaves, a questão da herança não suscita grandes problemas para o transexual, uma vez que comprovada sua filiação, terá direito à legítima, tanto no caso de o ascendente ter falecido ab intestato ou não.
Atualmente, tem ocorrido o depósito de sêmen e óvulos por transexuais em clínicas especializadas, para, posteriormente, utilizar-se deste material genético para a procriação artificial. Eles também podem se valer da adoção. Em qualquer dos casos, os filhos terão assegurados seus direitos referentes à filiação constitucionalmente garantidos.
4 – CONCLUSÃO
A definição do sexo deve considerar inúmeros fatores, e não somente o sexo biológico, evoluindo para a compreensão e acolhimento de fenômenos sexuais como o transexualismo.
No campo do Direito, deve-se editar regulamentação específica, que trate das questões pertinentes ao transexualismo, como, por exemplo, a retificação do registro civil e o sigilo quanto ao estado sexual anterior, conferindo segurança jurídica a estes indivíduos, posto que após a conformação do sexo biológico ao psíquico, a imutabilidade do seu registro civil pode lhe causar constrangimentos sociais e, mesmo, impedimentos jurídicos, como, por exemplo, ao casamento.
E, por fim, têm-se as famílias desses indivíduos e a sociedade, cujos papéis são fundamentais, para que os indivíduos acometidos pelo transexualismo não sejam prejudicados pela insensatez daqueles que, por ignorância, o repelem.
Não se pode permitir que o desconhecimento justifique o preconceito e a discriminação, que aumentam o sofrimento psíquico do transexual e dificultam seu tratamento e sua vida.
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