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O Velho Oeste de Bytes

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Rodrigo T. Lamonato *

Já presente em nossas vidas como um dado da natureza, contamos duas décadas desde a chegada da internet de banda larga no Brasil e 10 anos da adoção maciça de smartphones e redes sociais. Com esta maioridade adquirida, cabe olhar para trás, em volta e para o espelho com algumas perguntas. A tal “grande estrada da informação” de fato funciona conforme a lógica progressista de quem a concebeu? Esse mundo mais informado que surgiu traduziu-se em uma sociedade mais racional, livre e plural? Ou as ferramentas de comunicação em realidade aprofundaram problemas antigos e facilitaram a vida de forças ocultas para aumentar distorções na vida individual e coletiva, interferindo até na vida política de uma sociedade? A resposta, talvez já saibamos.

Os dados mais do que sugerem o atropelamento da utopia inicial. Uma solução pensada para superar o nosso problema secular de desinformação, e o preconceito e ódio vindos em sua esteira, hoje é adotada para a disseminação maciça do que se propunha a erradicar – o medo que leva à paúra das massas. Esse sentimento dá asas à disseminação do conteúdo identificado como falso. Segundo AAAS[1], a difusão de notícias falsas pode ser até cem vezes mais viral em comparação com notícias verdadeiras.[2]

Os levantamentos indicam ainda uma preferência humana por acessar conteúdo alinhado com suas crenças e preferências.[3] Logo, não é forçado especular sobre o potencial viral de notícias falsas e consonantes à crença de quem as dissemina. Somando-se isso ao acesso irrestrito à (des)informação temos, na contramão do idealizado, um encurtado caminho aos suspeitos de sempre para semear boatos, turbulência e, mais grave de todos: deformidades adicionais na já falha representatividade da sociedade em governos e Estados.

Muito se discute, em escala global, sobre o fracasso do modelo político da Democracia Representativa na tarefa de refletir os anseios e interesses da sociedade moderna. “A pior forma de governo imaginável, exceto todas as outras”, por Sir. Winston, aqui corretamente citado, hoje encontra-se sob ataque feroz. Forças políticas não se dão mais ao trabalho de colocar tanques na rua como em outros tempos. A facilidade de se contornar o inconveniente maior da Democracia – a urna – via publicidade impulsionada rapidamente traz para o centro da discussão o papel das plataformas e dos ambientes de redes sociais, bem como o abuso do poder econômico perpetrado por alguns.

Empresas privadas avaliadas na casa das dezenas de bilhões de dólares são donas dos tais serviços, redes e ambientes que, hoje, drenam substancial parte do bolo publicitário, dando portentoso retorno aos seus acionistas, e atuando sem muitas explicações a dar sobre a qual crivo submetem toda a sorte de anúncios veiculados.[4] Menos ainda teriam a responder, não houvesse o Marco Civil da Internet, Lei 12.965/2014. À época de sua aprovação no Congresso, a grita enorme dizia mirar o Estado em interferir na atuação privada num ambiente livre.

Mas na verdade, aprende-se, verdadeiramente livre permaneceria a rede se tutelada pelo – sempre ele – Estado. Do contrário, imperará, como impera, a lei da selva, onde quem não prevalece, certamente, é o mais fraco. Aqui falamos de dados, análise dos fatos já documentados, comprovação e ciência. Infelizmente, nestes tempos, buscar base científica indica a tomada de lado, aos olhos de muitos.

Nas palavras do jornalista Sean Gallagher, a internet de hoje lembra a cidade de Nova Iorque dos anos 70: uma cacofonia de discursos de ódio, pequenos golpes, ondas de boatos.[5] Gallagher talvez não conheça o Brasil, reflito. Este bate-estaca de desinformação serve para erodir a credibilidade das fontes mais autorizadas de dados. Em meio à tempestade, duvida-se de tudo, acredita-se em quase nada. No nivelamento rasteiro gerado, quem mais tem a ganhar é justamente o propagador de notícias falsas, ou em português corrente – fake news.

Muito da urgência em se regular tais serviços, posturas e ambientes vem de constatações de que o cidadão comum não é apenas sujeito passivo de tais comportamentos, mas também parte integrante do movimento. Segundo estudo do Pew Research Center, conduzido em dezembro de 2016, na esteira da eleição presidencial americana, metade das pessoas que entende ter compartilhado notícias falsas praticou tais atos sabendo da ilegitimidade dos dados repassados – justamente quando as informações coincidem com suas crenças.[6]

A publicidade que corre nas veias das plataformas é livre e desimpedidamente ofertada com precisão cirúrgica a todos nós com base na riqueza maior gerada e entregue a troco de nada ou muito pouco: dados comportamentais. É a inteligência extraída deste oceano de bytes, chamada de data mining, candidamente assim nominada por quem explora o negócio, a grande arma utilizada e em utilização por detentores do poder econômico para disseminar ondas de boatos, fake news e assassinatos de reputação. E a sociedade segue hoje à mercê de interesses inconfessáveis, mas sabidos, consumindo ferramentas cujo funcionamento não compreende inteiramente e é continuamente impactada por conteúdo direcionado e impulsionado por dinheiro grosso.

Esta mesma sociedade, então, vai às urnas, depois de marinar por meses e anos no tempero deste conteúdo feito sob medida para impactar e despertar “seus instintos mais primitivos”, em fala de figura menos célebre.

E se o ambiente das plataformas e sites com publicidade direcionada tem terreno farto para a disseminação de toda sorte de conteúdo, que dirá então a terra arrasada das redes de comunicação direta, tendo o WhatsApp como seu expoente máximo. Naquele Velho Oeste da “comunicação individual entre pessoas” corre livremente toda sorte de material radioativo, do terraplanismo à negação das vacinas.

Apenas recentemente aquele serviço de mensagens diretas também pertencente ao gigantesco Facebook passou a adotar medidas para limitar o encaminhamento de mensagens, limitando a quantidade de vezes que um mesmo texto pode ser compartilhado por um usuário a seus contatos, por vez.[7] A medida é ainda tímida, como tímida foi a resposta remetida ao Senado Federal, ao tratar das medidas adotadas quando da eleição de 2018 no Brasil.[8]

Anda bem o Estado, na representação da sociedade, quando busca ordenar a rede, estabelecer limites e quebrar a barreira do anonimato perverso que serve apenas aos suspeitos de sempre. O ambiente virtual, as redes, seus serviços, mercadorias e relações nela travadas já tomaram proporções grandes demais em nossas vidas para prevalecer a lógica californiana progressista de quem criou a internet – um ambiente livre, sem a atuação do Estado e independente de tiranias[9].  O paradoxo da intolerância não pode mais ser usado na Democracia como álibi para permitir a atuação de quem usa das liberdades arduamente conquistadas justamente para atentar contra a existência destas mesmas. Ao legislador é imperativo colocar o Estado fortemente presente, regulamentando todo um campo de expressão e interação da sociedade ainda entregue a iniciativas e desmandos de agentes pouco ou nada interessados em prestar contas de seus atos. Neste vácuo de poder, o que se faz nos meios eletrônicos há muito já extrapolou os limites do virtual, produzindo efeitos para lá de concretos na vida real de toda a população.

* Rodrigo T. Lamonato é Advogado, Gerente Jurídico, Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela PUC/SP, com extensão em Contratos pela FGV/SP e Compliance pelo INSPER. 

 

 

 

 

[1] American Association for the Advancement of Science

[2] SOROUSH, Vosoughi, DEB, Roy, SINAN, Aral, The spread of true and false news online, Science Maganize, 2020.

Disponível em https://science.sciencemag.org/content/359/6380/1146

[3] ANDERSON, Janna, The Future of Truth and Misinformation Online, Pew Reseasch, 2020.

Disponível em https://www.pewresearch.org/internet/2017/10/19/the-future-of-truth-and-misinformation-online/

[4] HANDLEY, Lucy, Google and Facebook take 20 percent of total global ad spend, top list of world’s largest media owners, CNBC, 2020.

Disponível em https://www.cnbc.com/2017/05/02/google-and-facebook-take-20-percent-of-total-global-ad-spend.html

[5] GALLAGHER, Sean, Cybergeddon: Why the Internet could be the next “failed state”, ARS Technica, 2020.

Disponível em https://arstechnica.com/information-technology/2015/02/fear-in-the-digital-city-why-the-internet-has-never-been-more-dangerous/?comments=1&post=28548223;

[6] BARTHEL, Michael, MITCHELL, Amy, HOLCOMB, Jesse, Many Americans Believe Fake News Is Sowing Confusion, 2020.

Disponível em  https://arstechnica.com/information-technology/2015/02/fear-in-the-digital-city-why-the-internet-has-never-been-more-dangerous/?comments=1&post=28548223https://www.journalism.org/2016/12/15/many-americans-believe-fake-news-is-sowing-confusion/

[7] WHATSAPP TO IMPOSE NEW LIMIT ON FORWARDING TO FIGHT FAKE NEWS, The Guardian, 2020.

Disponível em https://www.theguardian.com/technology/2020/apr/07/whatsapp-to-impose-new-limit-on-forwarding-to-fight-fake-news

[8] SENADO FEDERAL, Atividade Legislativa, CPMI Fake News, 2020.

Disponível em http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/ef845079-5061-41c4-a86b-f7c78159753d

[9] BARLOW, John Perry, A Declaration of Independence of Cyberspace, Electronic Frontier Foundation, 2020.

Disponível em https://www.eff.org/cyberspace-independence

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