Nicole Gonçalves[1], Galileu Broering[2]
Rafael de Almeida Pujol[3]
Resumo: O presente artigo propõe uma análise acerca da minissérie “Olhos que condenam” correlacionando o agir das Instituições Públicas, os direitos sociais, os princípios constitucionais do in dubio pro reo, presunção de inocência, devido processo legal, ampla defesa e o acesso à justiça como direitos fundamentais. Por meio do método analítico, avalia-se a história para responder se é justo despojar-se de regras processuais e até constitucionais em busca de uma verdade (não) real. O julgamento é marcado pela ausência de provas contundentes, confissões válidas, testemunhas e, também, sob as alegações de ações coercitivas da polícia que não conseguiram por si só obstaculizar a condenação injusta imposta pelo júri. O Estado não tem só o direito, mas o dever de punir, sob pena de despontar o famigerado discurso de impunidade. Há, entretanto, limites claros ao exercício Estatal. A proteção aos direitos e garantias fundamentais é primordial. Ao final, nota-se, seja numa visão moral ou seja no plano de eficácia das normas, que a postura adotada pelo Ministério Público no caso não respeitou o ser humano per si, derruiu a eficácia de direitos, garantias e princípios, de modo a reverberar preconceitos sociais construídos ao longo dos séculos contra os afro-americanos e estrangeiros latinos.
Palavras-chave: Condenações Injustas. Acesso à Justiça. Direito Penal. Processo Penal. Direitos Humanos.
Abstract: The article proposes an analysis of the miniseries “When they see us” correlating the actions of Public Institutions, social rights, the constitutional principles of in dubio pro reo, presumption of innocence, due to legal process, broad defense and access to justice as fundamental rights. Through the analytical method, history is assessed to answer whether it is fair to strip away procedural and even constitutional rules in search of a (non) real truth. The trial is marked by the absence of overwhelming evidence, valid confessions, witnesses and, also, on the grounds of coercive police actions that have not succeeded in preventing the unjust conviction imposed by the jury. The State has not only the right, but the duty to punish, otherwise the notorious speech of impunity will emerge. However, there are clear limits to the State exercise. Protection of fundamental rights and guarantees is paramount. In the end, it is noted, be it in a moral view or in the plan of effectiveness of the rules, that the posture adopted by the Public Prosecutor in the case did not respect the human being per se, overthrew the effectiveness of rights, guarantees and principles, in order to reverberate social prejudices built over the centuries against African Americans and Latin foreigners.
Keywords: Unjust Convictions. Access to justice. Criminal Law. Criminal proceedings. Human rights.
Sumário: Introdução. 1. O agir ministerial, princípios, direitos e vistas sociais. 1.1. O acesso à justiça. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
“– Justo? O que essa palavra significa, afinal?
– Algo relacionado à justiça, eu acho.
– Não se trata mais de justiça, doutor. Trata-se de política. Política tem a ver com sobrevivência. Não há nada justo sobre a sobrevivência.”[4]
Era noite de primavera de 19 de abril de 1989. Os cinco adolescentes resolveram acompanhar um grupo a um passeio ao Central Park, em Manhattan. Na mesma noite, Trisha Meilli executiva branca de 28 anos, foi brutalmente agredida e estuprada enquanto corria. Fotografias de roupas manchadas de sangue, dias de internação, perda de olfato e uma recuperação que durou meses. Trisha foi vítima de uma violência imperdoável. No entanto, Nova York, precocemente, elegeu o grupo de negros como algozes.
Os policiais prenderam os cinco suspeitos: 4 negros e 1 latino. Todos moradores de Harlem. Adolescentes entre 14 e 16 anos, que levavam vidas normais até o ocorrido.
É na delegacia que a história ganha corpo e onde os meninos acabam sendo acusados injustamente pelo estupro. Com uma ideia fixa na cabeça, a promotora Linda McCray passa por cima da lei e vai contra a ausência de indícios e provas para criar a narrativa que lhe convém: de que os jovens — mesmo sem se conhecerem — praticaram juntos o abuso sexual. Para isso, ela faz com que os agentes pressionem os quatro jovens, que à época eram menores de 16 anos de idade, a admitirem de qualquer jeito o crime, sem a presença dos pais ou de advogados. Fica a cargo de Korey, o único com 16 anos completos — idade na qual um adolescente já pode responder criminalmente por crimes hediondos em solo norte-americano –, unificar essa narrativa.
Inicia-se então uma série de interrogatórios dos adolescentes, sendo que nenhum deles acompanhados pelos pais. Os policiais coagem, agridem, e deixam os jovens por mais de 20 horas sob interrogatório, sem descanso e sem alimentação. A vítima não recordava nada sobre o ocorrido, nem sequer do momento em que tinha saído do trabalho. De nada serviu que, na hora do julgamento, os garotos se declarassem inocentes, nem que denunciassem a coação e que não houvesse uma só prova forense: o júri os declarou culpados.
A essa altura já haviam sido apelidados de A Manada de Lobos, Os Cinco do Central Park. Passaram entre 6 e 13 anos na prisão, até que em 2002 um estuprador em série confessou o crime. O DNA corroborou e a manada não era manada.
A série mostra em detalhes como policiais, detetives e promotores intimidaram e brutalizaram um grupo de adolescentes para que confessassem um crime que não haviam cometido, e como a caça às bruxas da mídia policialesca manipulou um júri a dar o veredito que foi um claro erro de justiça.
Além disso, o seriado traz dois contextos fortemente a serem debatidos: a questão racial e as condenações injustas. O presente estudo aprofundar-se-á no segundo. É justo despojar-se de regras processuais e direitos constitucionais em busca de uma convicção de justiça? Bem como, ante o analisado da narrativa da série e do problema anterior, far-se-á uma análise do acesso à justiça, indo além do narrado na produção hollywoodiana, por meio do estudo de princípios, direitos e teorias.
Para responder tais questionamentos e apresentar as teses baseou-se em um método analítico, já que se absorve o apresentado pelo roteiro da série da vida real, sendo a fonte de pesquisa eminentemente bibliográfica para os fins teóricos e de construção argumentativa.
1 O AGIR MINISTERIAL, PRINCÍPIOS, DIREITOS E VISTAS SOCIAIS
O princípio do in dubio pro reo é, sem dúvidas, um dos mais preteridos da prática forense. Mesmo na atualidade, com o avanço das técnicas de investigação, exames de DNA, do maior acesso à justiça por meio de defensores públicos e advogados, não são raros os casos em que réus que não cometeram crimes sejam condenados. Diversos fatores corroboram para essa situação: uma mídia que condena antes do veredito, o racismo enraizado, uma sociedade extremamente punitivista, erros de investigação cometidos pela polícia, pretensa busca pela “verdade real”, entre outros.
O princípio do in dubio pro reo, ou favor rei, implica que, na dúvida ou falta de provas suficientes para a condenação, absolva-se o réu. Por quê? Por inúmeros motivos. Absolva-se o réu, pois a ordem jurídica do Estado de Direito prefere absorver dezenas ou centenas de culpados a ver um único inocente sofrer a injustiça da punição indevida, que resultaria de um ato ilícito praticado pelo próprio Estado. Absolva-se o réu, pois em Direito Penal interpretam-se as regras sempre da forma mais restritiva possível, de modo a produzir a interferência mínima necessária à sociedade, sempre direcionada exclusivamente ao responsável pelo ato punível. Afinal, o Direito Penal é sempre a última alternativa. Representa o limite do exercício do poder do Estado-instituição sobre o tecido social, uma vez que dá a esse Estado poder sobre os corpos dos jurisdicionados, entendido aqui como a restrição das liberdades e, em essência, da maior liberdade conferida a cada indivíduo: a de ir e vir.
Dom Quixote, escrito por Miguel Cervantes, no tocante, diz:
“A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens.” É assim que devemos proceder.”
No Código de Processo Penal brasileiro, este princípio está implícito no artigo 386, II:
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
(…)
VII – não existir prova suficiente para a condenação.
O princípio da presunção de inocência, outro sempre esquecido no cotidiano judicial por juízes e promotores com sede de condenação, assegura que a formação do convencimento do juiz deve ser construído em contraditório, orientando-se o processo, portanto, pela estrutura acusatória que impõe a estrutura dialética e mantém o juiz em estado de alheamento, não podendo se admitir a figura de um juiz inquisidor com poderes investigatórios/instrutórios.
A partir da uma análise constitucional e, também, do art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, aponta-se para três as principais manifestações (não excludentes, mas sim integradoras) da presunção de inocência.
É um princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal.
Somado a isso, é um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (incluindo-se a fase pré-processual).
E, por fim, a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada. Em suma: a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele. Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição (in dubio pro reo); ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?). Enfim, na dimensão interna, a presunção de inocência impõe regras de tratamento e regras de julgamento para o juiz. Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência (LOPES JR, Aury. 2018. Pgs. 59 e 60).
A história retrata um caso real, os “cinco do Central Park”, considerado um erro do judiciário norte-americano, condenados pelos crimes de estupro, tentativa de homicídio, roubo e tumulto. Crimes dos quais não cometeram. Os elementos são quase sempre os mesmos: réus negros (um dos acusados é latino), condenação pela mídia sensacionalista antes do veredito do Júri e um Ministério Público, cego por fazer “justiça”, que ignorou as provas dos autos a fim de obter uma condenação, um julgamento teatral em que os réus não tinham a menor chance de serem absolvidos. O veredito condenatório é só a consequência de todo o plano de fundo infundado feito pelas Instituições Públicas.
O interrogatório dos garotos durou mais de 30 horas. Sem advogados e sem ao menos um representante legal acompanhando-os, direitos que eram assegurados aos jovens por lei. Nenhum deles sabia descrever a vítima ou dar detalhes do crime de que eram acusados. Intimidados pelos investigadores, assustados, exaustos de tantas perguntas, fizeram uma confissão nula, absurda, de um crime do qual não tinham a mínima ideia.
No julgamento, a promiscuidade da instituição acusadora, na pessoa da Promotora-chefe do caso, é uma extensão do mal feito do Ministério Público: as confissões são exibidas aos jurados como prova fatal de autoria, mesmo sem quaisquer indícios materiais que os coloquem na cena do crime. Em dado momento do julgamento uma testemunha confirma que os DNA encontrados nos pertences da vítima não correspondem ao de nenhum dos réus. Nada obstante, diante do apelo acusatório, esse fato se torna coadjuvante do protagonismo que maliciosamente é dado às confissões.
O que perplexa ainda mais é que o “erro” é proposital: fica nítido que a Promotora sabia da fragilidade e inconsistência da versão acusatória que apresentava. Contudo, contaminada pelo racismo enraizado (traduzido na crença de que vidas negras não importam ou importam menos), somado a vaidades pessoais e ao anseio de reafirmar perante à sociedade a relevância da instituição da qual faz parte, leva a fio uma acusação da qual ela própria desacreditava.
Ainda que diante de toda a ilegalidade das confissões plantadas e a completa inexistência de provas materiais que ligassem os menores ao crime, a tardia absolvição deles não se deu por qualquer reanálise por parte das Instituições, mas unicamente porque o verdadeiro autor do crime resolveu confessar a autoria.
Paralelamente às nefastas consequências de uma condenação injusta (que jamais se restringe à pessoa do acusado, mas atinge amigos e familiares), o que fica muito claro ao se deparar com esse caso é o quanto a perversidade humana se potencializa quando manifestada através das instituições, pela óbvia força que essas ostentam frente aos indivíduos.
Esses garotos receberam sentenças que variaram de 6 a 13 anos. Quatro dos réus recorreram de suas condenações, mas estas foram confirmadas pelos tribunais de apelação. Os quatro réus juvenis cumpriam 6 a 7 anos cada; o jovem de 16 anos foi julgado e sentenciado como adulto e cumpriu 13 anos em uma prisão de adultos. Os outros cinco acusados, acusados de agressão a outras vítimas, se declararam culpados e receberam sentenças menos graves. O verdadeiro autor do crime, Matias Reyes, não pôde ser processado por estuprar Meili, pois o crime havia prescrito.
Apenas em 2002, Robert Morgenthau, Procurador Distrital do condado de Nova York, fez seu escritório conduzir uma investigação e recomendou ao tribunal estadual que as condenações dos cinco homens por todas as acusações fossem resignadas e, dessa forma, o tribunal concedeu. Mas, tarde demais, a juventude e a vida já haviam sido perdidas atrás das grades.
1.1 O ACESSO À JUSTIÇA
Ante o fático-argumentativo apresentado, cumpre a discussão acerca do acesso à justiça, mas não somente no espaço delimitado pela série e sim como um todo teórico e prático.
Nesse sentido, por vezes direitos dos cidadãos são atingidos por outrem, ou ainda entram em confronto com a esfera jurídica alheia. Desse cenário, surge a inquietação do ser, uma vez que seu status quo fora modificado, modo que, caso desconfortável, irá buscar formas de retornar tanto quanto possível ao seu estado originário. Assim, se alguém sofre modificação em sua esfera jurídica, patrimonial, física ou até mesmo moral, alguém denota tal mudança, sendo assim passível de essa pessoa ser demandada. Ademais, fatos da natureza, omissões, leis instituídas, dentre outras situações, poderão surtir deformações no plano de direito das pessoas e até mesmo de entidades.
Entrementes, diante desses conflitos interindividuais, caso acionado, irá o Estado exercer seu poder para a solução de conflitos, isto é, irá exercer sua jurisdição. Nesse viés, jurisdição caracteriza-se pela capacidade que o Estado tem de decidir de maneira imperativa e impondo suas decisões sobre as partes. Assim, tendo o Estado avocado para si o monopólio jurisdicional, surge seu dever de garantir o acesso à justiça, bem como o direito do cidadão de acesso à justiça. Nas palavras de Cappelletti e Garth (2002) esse é o “sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios pelo Estado”.
Diante disso, os direitos humanos advindos de luta pela igualdade entre os desiguais, abarcam o acesso à justiça como uma necessidade básica reconhecida nos planos ético, sociológico e cultural dos cidadãos do mundo. Sendo inclusive encontrado em documentos internacionais tal como na Convenção Americana de Direitos Humanos, conforme depreende-se:
Artigo 8. Garantias judiciais
O acesso à justiça pode também ser direito fundamental quando encontrado positivado no direito constitucional de cada país. Cite-se como exemplo os incisos XXXV e LXXIV, do art. 5º, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
(…)
LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
Nada obstante a isso, o acesso à justiça não se esgota nesses dizeres, conforme Cintra, Grinover e Dinamarco (2004):
Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. Como se verá no texto, para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente (inclusive em processo criminal), sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas (pequeno valor, interesses difusos); mas para a integralidade do acesso à justiça, é preciso isso e muito mais.
Assim, o acesso à justiça como além da mera garantia de jus postulandi, detinha barreiras que deveriam ser superadas para o amplo acesso ao provimento jurisdicional. Dessa forma, segundo o estudo de Cappelletti e Garth (2002), três ondas deveriam ser superadas, sendo a primeira onda caracterizada pela garantia de assistência jurídica ao mais pobres, a segunda manifestada pela representação de direitos difusos em juízo, ao passo que a terceira ocorre com a informalização dos procedimentos de resolução de conflitos.
Entretanto, em que pese as ondas formuladas por Cappelletti e Garth, o caso real narrado na série faz saltar aos olhos que a mera garantia de fazer parte da relação processual, ser assistido por advogado, estar perante um juiz, dentre outros de nada adianta se as partes, bem como setores da sociedade os atacam cegamente, sem respeitar certos postulados. Assim, para que o devido e íntegro acesso à justiça seja materializado, procedimentos e outras garantias devem ser respeitadas, sob pena de, como visto no roteiro da série, estarmos diante de um sistema penal seletivo.
Isso pois, o mesmo direito não é reconhecido pelas mesmas pessoas, alguns poucos, visto que poucos conhecem o judiciário, enquanto outros conhecem tão somente o procedimento penal especial da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). José Murilo Carvalho (2005, p. 286) faz um parecer acerca disso:
“(…) a justiça entre nós, no sentido de garantia de direitos, existe apenas para a pequena minoria de doutores. Ela é inacessível à multidão dos crentes e macumbeiros, isto é, à grande maioria dos brasileiros. Para eles, existe o Código Penal, não o Código Civil, assim como para os doutores existe apenas o Código Civil”.
Logo, tão importante quanto simplificar procedimentos, garantir assistência jurídica e extinguir custas é equanimizar de que forma cada cidadão terá seu acesso à justiça, se será por meio de demandas particulares por bens ou sendo demandado criminalmente. Nesse diapasão, essa equalização é recuperada por Boaventura (2000, p. 176) ao dizer que “o tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econômica (sic).”
Agora, em que pese a boa colocação exposta de Boaventura, importante situar-se no campo da esfera penal, isso pois o uso da expressão “acesso à justiça” no âmbito do processo penal, deve ser lido com certa parcimônia uma vez que o réu não acessa ao judiciário, mas sim é submetido a sua presença. Dessa forma, apesar dos estudos da garantia da jurisdição, a submissão do réu ao processo criminal não encontra tanto espaço nas pesquisas, cabendo a Boaventura (2000, p. 176) esclarecer um pouco dizendo que “na justiça penal há, por assim dizer, uma procura forçada da justiça, nomeadamente por parte do réu; no entanto, a nível global, pode igualmente falar-se em procura social da justiça penal.”
Portanto, do já analisado no presente estudo, o acesso à justiça, ainda mais no âmbito penal, deve ter em seu objeto outra coisa senão a proteção dos direitos fundamentais, sejam os da sociedade sejam os do acusado, dentre esses o respeito ao devido processo legal e uma participação igualitária dentro do processo.
Como pode observar-se da sanha punitivista engendrada no roteiro hollywoodiano, mas que encena histórias reais, o devido processo legal em vários aspectos não foi respeitado, gerando o cenário de injustiças vistos e estudados. Nada obstante aquilo, o due process of law (princípio do devido processo legal) é sustentáculo constitucional do direito norte-americano, senão vejamos a emenda VI da Constituição dos Estados Unidos da América:
Em todos os processos criminais, o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial do Estado e distrito onde o crime houver sido cometido, distrito esse que será previamente estabelecido por lei, e de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ser acareado com as testemunhas de acusação; de fazer comparecer por meios legais testemunhas da defesa, e de ser defendido por um advogado.
Ante o exposto, no cenário narrado a ampla não defesa não fora respeitada, constituindo óbice no caminho ao provimento final incerto do juiz. Na história vivenciada pelos 5 meninos, e por diversas pessoas na mesma situação nos mais diversos sistemas penais, a ampla defesa não foi respeitada, não sendo garantido o acesso de um advogado durante os interrogatórios ainda em delegacia, nem o acesso de seus pais ao ambiente. Sendo que a defesa tem papel essencial no modelo do processo penal brasileiro, isso pois não há prova sem defesa, não destoando disso o entendimento do Superior Tribunal Federal que na súmula nº 523 diz que “no processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.
Entretanto, não basta um mero acompanhamento de defensor, como ocorrem muitas vezes nos processos em que as abarrotadas defensorias públicas atuam, prendendo-se ao exemplo brasileiro. Nesses exemplos, basta que o defensor público ou dativo, ou ainda o advogado informe o acusado do feito e já estará adimplida sua defesa, sem a necessidade de que ofereça resistência à pretensão acusatória. Diante disso, há a necessidade de uma defesa técnica efetiva e real para o adimplemento do acesso à justiça, isso pois conforme Aury Lopes apud Moreno Catena (2011, p. 148):
(…) a defesa técnica atua também como um mecanismo de autoproteção do sistema processual penal, estabelecido para que sejam cumpridas as regras do jogo da dialética processual e da igualdade das partes. É, na realidade, uma satisfação alheia à vontade do sujeito passivo, pois resulta de um imperativo de ordem pública, contido no princípio do due process of law.
Portanto, depreende-se, pois, que os estudos de acesso à justiça são de grande importância, já que enquadram o presente direito como universal, garantindo a todo cidadão do mundo, seja qual for o Estado o acesso à jurisdição. Nada obstante a isso, conforme compreende-se do caso estudado, a mera admissão das pessoas ao processo, ou até mesmo a simplificação dos procedimentos não é garante de um acesso real ao justo e ao certo, deve-se garantir uma defesa técnica, um devido andar do processo, uma igualdade jurídico-formal, social e econômica das partes. Isso pois, na série e na vida de milhares de pessoas a corda sempre arrebenta para os mais fracos e desprotegidos, sendo assim fonte de injustiças.
CONCLUSÃO
No caso em tela, dos meninos do Central Park, a Promotora moralmente agiu fora de padrões idôneos ou racionais. Pontuando de maneira tangencial, em que pese buscar sua verdade real, a Promotora não agiu de acordo princípios gerais tanto do processo penal quanto constitucional, uma vez que a lei que seria considerada universal, não respeitaria o humano como um fim em si, já que enjaular pessoas a todo custo não é tratá-las com respeito, sendo assim injustas suas ações frente ao processo.
Ademais, importa-se em repreender as ações tomadas no caso no plano de teoria da norma jurídica, uma vez que afetam o plano de eficácia das normas e princípios. Ao analisar-se os critérios valorativos e conforme o estudado, os procedimentos legais infringidos são justos, uma vez que atendem aos fins valorativos buscados pelo legislador norte-americano e pelas convenções de direitos humanos; são válidos uma vez que quem as emanou tinha legitimidade para tanto, sendo válidas e compatíveis com os fins de sua nação, nada obstante a isso perdem muito de sua eficácia uma vez que não foram seguidos, atentando contra o estado democrático de direito da tão antiga democracia norte-americana.
O ser humano tem a capacidade de condenar sem antes ouvir, conhecer ou avaliar. Somos seres impetuosos no julgamento, pois a nossa bússola moral sempre pende para o lado do outro e nunca para si próprios. Alinhando esse desregulado senso moral aos nossos preconceitos e anseios, abdicamos das regras processuais e direitos constitucionais consagrados, em busca do “fazer a justiça” mas, inúmeras vezes, fazemos com que a nossa justiça se torne totalmente injusta.
A história de Korey Wise, Raymond Santana, Kevin Richardson, Antron McCray e Yusef Salaam também serve de retrato das injustiças que há séculos o sistema judicial norte-americano causa aos afro-americanos com o seu viés contrário às minorias.
REFERÊNCIAS
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[1] Graduanda em Direito na Faculdade CESUSC. Competidora pela equipe do Núcleo de Prática Jurídica em Arbitragem da Faculdade CESUSC (NuPArb CESUSC). E-mail: nnicolegoncalves@gmail.com.
[2] Graduando em Direito na Faculdade CESUSC. Presidente da Sociedade de Debates CESUSC (SdD CESUSC). E-mail: galileubro@gmail.com.
[3] Professor de Direito na Faculdade CESUSC. Mestrado em Análise Econômica do Direito pela UFSC. Doutorando em Direito, Negociação e Resolução de Conflitos pela UFSC. E-mail: rafaelpujol@hotmail.com.
[4] Diálogo entabulado entre a promotora de justiça, Elizabeth Lederer, e o advogado de defesa, Mickey Joseph, na série “Olhos que Condenam”.
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