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Opinião consultiva nº 17: Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança

Resumo: A evolução do direito e sua internacionalização levaram também à evolução da proteção dos direitos das crianças e a discussão de assuntos relativos aos menores em âmbito internacional, sobre sua condição de sujeito internacional de direitos ou como objeto de proteção do Direito. A necessidade de uma posição sobre a questão levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a solicitar à Corte Interamericana de Direitos Humanos uma opinião sobre o caso. Esta deu origem à “Opinião Consultiva número 17”, que trata de importantes questões concernentes aos direitos das crianças.


Palavras chaves: Direito Internacional, Direitos Humanos, Sistema Interamericano, criança e adolescente, opinião consultiva


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Abstract: The evolution of the law and its internationalization also led to the development of children’s rights protection and the international discussion of matters relating to minors, about their condition as subject of international rights or object of Law’s protection. The need for a position on the matter led the Inter-American Commission on Human Rights to request the Inter-American Court of human rights an opinion on the case. This gave rise to “number 17 advisory opinion”, which is important concerning children’s rights.


Keywords: International law, human rights, the Inter-American system, child and adolescent, advisory opinion


1.Introdução


O reconhecimento das crianças como sujeito de direito é algo moderno nos ordenamentos jurídicos. Inicialmente, as crianças eram vistas como seres sem vontades, e consequentemente sem diretos, totalmente incapazes. De acordo com o historiador francês Ariès, estudioso do descobrimento da criança, a descoberta da infância aconteceu somente no sec. XIII.


A evolução do Direito levou também à evolução da proteção dos direitos garantidos às crianças e adolescentes. Vários mecanismos de proteção aos direitos dos menores foram criados, tendo grande destaque a Declaração de Genebra de 1924, primeira a tratar do tema; a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, que dispõe, em seu art. 25, que “a infância tem direito a cuidados e proteção especiais”, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, que arrola dez princípios voltados à proteção das crianças; a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que garante medidas de proteção às crianças; a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; e, em âmbito nacional, a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).


Atualmente a grande discussão acerca do tema é a visão da criança como sujeito de direito internacional e não como mero objeto de proteção do Direito.  Essa dúvida sobre tema levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a solicitar um parecer da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema, que deu origem a “Opinião Consultiva n° 17”.


2. O Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos


No sistema regional interamericano, do qual o Brasil faz parte[1], a Convenção Americana de Diretos Humanos de 1969, também denominada de Pacto de São José da Costa Rica, foi criada para atender à necessidade de proteção e promoção dos direitos humanos nas Américas. Esta, além de arrolar os direitos protegidos, garante a proteção judicial dos mesmos, cabendo aos Estados cumprir suas decisões de garantir o uso desses recursos. Em seu preâmbulo, a Convenção[2] já deixa claro seus objetivos:


Os Estados Americanos signatários da presente Convenção, reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais;


Reconhecendo que os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos; […]


Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.”


Buscando o efetivo cumprimento dos direitos previstos na Convenção, foram estabelecidas a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.


A Comissão Americana de Direitos Humanos foi o primeiro órgão desenvolvido para administrar questões relacionadas aos direitos humanos nas Américas, criada antes mesmo da Convenção Americana de Direitos Humanos. Sediada em Washington (EUA) e começando a operar em 1960, a Comissão tinha atribuições limitadas, como estimular a consciência sobre direitos humanos na região e formular recomendações aos governos dos Estados-membros.


Em 1970, com a entrada em vigor do Protocolo de Buenos Aires a Comissão adquiriu status de órgão da Organização dos Estados Americanos e com isso foi se fortalecendo e, consequentemente, ampliando as suas funções.


Atualmente a Comissão possui poderes para receber petições legais sobre casos onde se alegam violações aos Direitos Humanos, podendo ser acionada desde que o Estado tenha ratificado sua jurisdição.


Em um primeiro momento, ela exerce uma função conciliatória, procurando realizar um acordo entre as partes. Caso não seja possível uma solução amistosa, ela pode submeter a demanda à Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de uma resolução final.              


Sendo que, com a mudança ocorrida em seu regulamento em 2001, fez com que o encaminhamento de um caso à Corte torne-se a regra e não excesão, como ocorria até então. Com o novo regulamento, cabe à Comissão encaminhar o caso à Corte, se esta notar que o Estado infundadamente não vem cumprindo as medidas recomendadas, salvo decisão fundada da maioria absoluta dos membros da Comissão.


Oficialmente instalada em 1979, na Costa Rica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui uma jurisdição consultiva e uma jurisdição contenciosa.


Como jurisdição consultiva, os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos podem consultar a Corte acerca da interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos ou de outros tratados concernentes à proteção dos Direitos Humanos no âmbito dos Estados americanos. Pode a Corte, ainda, a pedido de um Estado-membro da Organização, emitir parecer sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados tratados internacionais.


De acordo com Jo M. Pasqualucci, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem a mais ampla jurisdição em matéria consultiva, se comparada a qualquer outro tribunal internacional. De acordo com este ainda: “Por meio de sua jurisdição consultiva, a Corte tem contribuído para conferir uniformidade e consistência à interpretação de previsões substantivas e procedimentais da Convenção Americana e de outros tratados de direitos Humanos” [3] 


Pela jurisdição contenciosa, a Corte tenta solucionar as controvérsias referentes a violações dos Direitos Humanos e aplicar a Convenção em casos individuais. Somente podem ser julgados os Estados que aceitaram a jurisdição contenciosa da Corte. O procedimento junto à Corte termina com uma sentença judicial motivada, obrigatória, definitiva e inapelável.


 De acordo com a jurista Flávia Piovesan, a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento, e se for fixada pela Corte uma compensação à vitima, a decisão valerá como titulo executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativo à execução de sentença desfavorável ao Estado.[4]


3. Opinião consultiva nº 17: Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança


Em 30 de Março de 2001, o Banco Interamericano de Comissão de Direitos Humanos apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos um pedido de parecer consultivo sobre a interpretação dos artigos 8º e 25 da Convenção Americana, a fim de determinar se as medidas especiais previstas no artigo 19 constituem “limites do poder discricionário ou à discrição dos Estados” em relação às crianças, e também solicitou a formulação de critérios de aplicação geral sobre o assunto no âmbito da Convenção Americana.


Em seu artigo 19, a Convenção Americana exige medidas de proteção especial para as crianças, mas não define seu conceito. A Corte adota o conceito de criança descrito pelo art. 1 º da Convenção sobre os Direitos da Criança, que determina: “criança é todo ser humano com idade inferior a dezoito anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, a maioridade seja alcançada antes da idade.” 


Em seu parecer consultivo, a Corte constatou que a noção de igualdade segue diretamente a noção de unidade e de humanidade, e da natureza inseparável da dignidade essencial da pessoa, considerando inaceitável que as disparidades de tratamento entre os seres humanos que não corresponda com sua natureza única e idêntica.


Após longa discussão sobre o tema a Corte, em seu parecer, levantou 13 pontos de suma importância para a proteção dos direitos da criança e do adolescente; são eles:


1. Que a criança é sujeito de direito, e não um mero objeto de proteção deste.


Tendo grande destaque o voto do juiz Antonio Augusto Cançado Trindade, que brilhantemente explica este fato; de acordo com ele: “O proprietário dos direitos é o ser humano de carne e osso e alma, não a condição existencial em que se encontra temporariamente.”


2. Que os “melhores interesses” da criança, art. 3 º da Convenção sobre os Direitos da Criança, engloba o desenvolvimento do presente e o pleno exercício de seus direitos, estes sempre devendo ser observados como critério para orientar na elaboração de normas voltadas para os menores.


3. Que o principio da igualdade, art. 24 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não impede um tratamento diferenciado dado às crianças por algumas normas, já que estas necessitam deste tratamento em razão da situação de maior fragilidade e desamparo em que elas se encontram.


4. O Estado deve apoiar e fortalecer a família, adotando as medidas necessárias para que esta possa cumprir seu papel, já que a família é o contexto primário para o desenvolvimento da criança, onde ela primeiro exerce seus direitos.


5. A separação da criança do seio familiar deve ocorrer somente em situações excepcionais e para o melhor interesse da própria criança, sendo preferencialmente temporária.


6. Que as instituições que cuidam de crianças devem contar com condições básicas para proporcionar um ambiente adequado às crianças, como pessoal em numero suficiente, com experiência no trabalho e instalações adequadas.


 7. Que o respeito à vida, consagrado no art. 4º da Convenção, não se restringe à sua privação arbitraria, mas abrange a obrigação de tomar medidas necessárias para a possibilidade das crianças se desenvolverem com dignidade.


8. Que a proteção das crianças deve ser plena, tendo o direito de desfrutar amplamente de seus direitos econômicos, sociais e culturais, garantidos em instrumentos internacionais, e os Estados signatários de tais tratados devem garantir a proteção de tais direitos.


9.  Os Estados signatários da Convenção têm a obrigação de tomar medidas positivas para assegurar a proteção das crianças contra qualquer abuso, nos termos dos artigos 19 e 17, conjugados com o artigo 1.1 da mesma.


10. Que em processos, judiciais ou administrativos que envolvam direitos ou interesses das crianças, devem ser observadas todas as normas do devido processo legal, tais como a do juiz natural e imparcial, o duplo grau de jurisdição, o contraditório e a ampla defesa, e, se possível, a participação direta do mesmo no processo.


11. Que o menor infrator deve ser julgado por um tribunal especializado para conhecer da sua causa.


12. Casos de abandono, desamparo, risco de doenças devem ter tratamento diferente do que é dado aos menores que comentem uma conduta típica


13. Que é possível a utilização de formas alternativas de resolução de litígios que envolvam as crianças, mas sempre observando se tais não restringirão ou mesmo diminuirão seus direitos.


Tendo sido aprovada por seis juízes, somente com um voto dissidente, voto do Juiz Jackman, que considerou que o pedido não preenchia os requisitos de admissibilidade previstos no artigo 64 da Convenção.


4. Considerações finais


A criança por muito tempo foi negligenciada pela sociedade e pelo Direito, tendo seu reconhecimento como sujeito de direitos um fato recente na história. Hoje, além da proteção garantida pela família, pela sociedade e pelo Estado, ela conta com a proteção do Direito Internacional.


A criança não só conta com a proteção do Direito Internacional, mas é reconhecidamente sujeito de direito internacional, podendo recorrer aos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos caso tenha seus direitos ameaçados.


Esses fatos recentes em nossa história demonstram a grande evolução dos direitos humanos, que cada vez mais vem se tornando um meio efetivo de proteção da humanidade e que nossos direitos de cidadãos nacionais estão se transformando, positivamente, em direitos do homem enquanto cidadão do mundo.


 


Referências

ALMEIDA, Guilherme de Assis; MOISÉS, Cláudia Perrone (coords). Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas, 2002.

BOBBIO, Norberto; A era dos Direitos. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier, 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 1969. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm>  Acesso em 10.out. 2009.

GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (cords.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. São Paulo: EDUSP, 2001.

JURISPRUDÊNCIA (OPINIÕES CONSULTIVAS) DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/opiniones.cfm> Acesso em 03 de outubro de 2008.

LAFER, Celso. A ONU e os direitos humanos. Estados Avançados, São Paulo, IEA/USP, v.9, n.25, set.-dez. 1995.

OLBERTZ, Karlin. A criança e o jus cogens, Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.5, n.5, jan./jun. 2007

PASQUALUCCI, Jo M. The practice and procedure Of the Inter-American Court on Human Rights, Cambridge, Cambridge University Press, 2003 apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e a Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e a jurisdição constitucional internacional. Revista latino-americana de estudos constitucionais, Belo Horizonte, n.1, p.319-338, jan./jun. 2003.

______. Direitos humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2007.

_____. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.

______. A justicialização do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: impacto, desafios e perspectivas. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, v.1, n.4, jul./set. 2002.


Notas:

[1] No Brasil, o Pacto de São José da Costa Rica foi recepcionado pelo Decreto 678 de 6 de novembro de 1992 e o país aceita a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 8 de dezembro de 1998.

[2] Convenção Americana de Direitos Humanos disponível em: <http:// www.cidh.oas.org/ Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm>. Acesso em 10 de outubro de 2009.

[3] PASQUALUCCI, Jo M. apud PIOVESAN, Flávia ( 2007; p. 100).

[4] Ibidem. p. 104

Informações Sobre o Autor

Juliana Vieira


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Equipe Âmbito Jurídico

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