Vernacularmente Ortotanasia, de recente adoção, (1999), significa, conforme Houaiss, “morte natural, normal,” no sentido de boa morte, sem sofrimento. Medicamente consiste da supressão de medidas que prolonguem em vida ou no sofrimento um paciente, em estado terminal, acometido de uma doença seguramente incurável.
O Conselho Federal de Medicina baixou a Resolução n. 1805-2006 (DOU 28-11-2006), válida para todo país, aprovando o procedimento da ortotanásia em doentes terminais. O CFM argumenta que o doente incurável deve ser poupado de tratamentos dolorosos ou inúteis. A resolução, uma espécie de indicativo ético interna corporis, teria um sentido piedoso, humanitário, envolvendo também os sentimentos pesarosos dos entes queridos. A resolução foi proposta pela “Câmara Técnica Sobre Terminalidade da Vida”. Juristas vêm se opondo à resolução sob o fundamento de que estaria ao desamparo da lei, omissa em previsão pertinente, além de infringir princípios de ética médica. Em face da lei, pois, a prática da ortotanásia pode implicar sanção penal.
A ciência médica, com seu notável progresso científico, permite diagnosticar, com grande certeza, a irreversibilidade de uma doença. Tal segurança médica não existia, em 1940, data da elaboração do Código Penal. Hoje ainda persiste a repressão da ortotanásia, ainda que autorizada por familiares. O Código Penal é acoimado de ultrapassado neste assunto. Mas, está ainda vigente no concernente à ortotanásia. O prolongamento da agonia de doentes terminais encarece, quase sempre, as despesas médico-hospitalares, onerando o custo do seguro-saúde. A resolução parece inspirada na preocupação da humanização da medicina, que, como no Direito, não se compõe apenas de técnica e ciência. Cid Carvalhaes, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, opiniou que “é a humanização da fase final da vida do doente”.
O ortotanásia já foi objeto de anteprojeto de alteração do art. 121 do Código Penal. Foi, então, combatido, e equiparado a um artifício homicida e acusado de poder ser praticado por motivos torpes. Juristas criticam o CFM por estar legislando sobre matéria constitucional, que assegura o direito à vida como cláusula pétrea. O conflito está instaurado: na hierarquia das leis uma norma não pode alterar o ato jurídico garantido pela Lei Magna, consistente do dever do Estado de assegurar o direito à vida; os médicos, entretanto, vêem a inutilidade de um tratamento cruel sem qualquer esperança.
A ortotanásia está condicionada à autorização do paciente ou de algum responsável legal. A resolução invoca o art. 5º Inc. III da Constituição, pela qual “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. A resolução recomenda que a prática da ortotanásia seja fundamentada e registrada no prontuário médico. O CFM apresentou uma eloqüente exposição de motivos. Por ela destaca, que as UTI’s aferem e controlam as variáveis vitais, com o seu arsenal tecnológico disponível para adiar a morte. Esta revolução biotecnológica causa um impacto na nova realidade de vida dos enfermos. Consta que nos Estados Unidos a ortotanásia já tem regulamentação há cerca de duas décadas.
O Código Penal não faz referência à ortotanásia. Ele atem-se aos limites do risco permitido do exercício profissional de decidir a terapêutica, com bom senso e lastro científico. A morte vem consequentemente da doença e não do ato médico, o que afasta a tipicidade penal da conduta. O art. 23 do Código Penal admite como “exclusão de ilicitude”, quando o agente pratica o fato “em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. O Código de Ética Médica quer, no artigo 57, a prestação médica em favor do paciente, sem agravar-lhe a angústia. Inexistiria a culpa do médico na ortotanásia em face do moribundo, porque é-lhe inexigível conduta curativa diversa. A ortotanásia tende a corresponder a uma aceitação social, a qual repugna aceitar tratamentos cruentos e inúteis, para prolongar uma vida que já finda, inclusive os estados vegetativos presentes e a invalidez irreversível. É polêmica, porém, a identificação do ente familiar que autoriza a ortotanásia, quando sejam muitos e não exista o consenso entre eles.
No Estado de São Paulo, a Secretária da Saúde publicou (no final de 1990) uma “Cartilha dos Direitos do Paciente”, que dispõe (item 32) que o enfermo tem direito a uma morte digna e serena, podendo optar ele próprio (desde que lúcido), ou a família ou o responsável, por local ou acompanhamento e, ainda, se quer ou não o uso de tratamentos dolorosos e extraordinários para prolongar a vida. A Lei Paulista nº 10.245, sobre os direitos dos usuários dos serviços de Saúde do Estado de São Paulo, prevê: “VII – Consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem nele realizados (…)” e “XXIII – Recusar tratamentos dolorosos a vida” e “XXIV – Optar pelo local da morte”.
A Lei Paulista n. 10.241-99, que dispõe sobre a recusa do paciente a tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida, foi sancionada pelo governador Mário Covas, que teria dito então: “Não assino esta lei apenas como governador de São Paulo. Assino como governador e paciente”. A discussão inicial sobre ortotanásia iniciou-se em 2004 na CRM de São Paulo e depois levado, no início de 2006, ao CFM. Este procedeu à consulta a uma Câmara Técnica composta de um teólogo, um desembargador, representantes das áreas de cuidados paliativos, geriatria, terapia intensiva e bioética, e, antes do texto final, procedeu a uma consulta pública.
A CNBB – Reunião dos Bispos Católicos, embora contra a eutanásia, manifestou concordância com a Resolução do CFM sobre ortotanasia. Invocam, do Vaticano, a “Encíclica Evangelium Vitae” A resolução não é impositiva da conduta do médico. Faculta-lhe, apenas, a opção, medicamente adequada, sobretudo quando o solicitar o representante legal do paciente. O CFM admite o direito do paciente a uma morte digna, dentro do princípio da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Juristas consideram a resolução uma interpretação correta da Constituição Federal. Isto é, a proteção à vida, buscada pelo direito, não deve ser a qualquer preço. A medicina se defronta, quando entre a vida e a morte, ou limitação do tratamento, ou nos cuidados paliativos, ou ao suicídio assistido ou a eutanásia. A distanásia, ao contrário da eutanásia, consiste de procedimentos que atrasem, quanto possível, o momento da morte. Os evangélicos lembram, da Bíblia, o trecho de JÓ – cap. 14, vers. 15, pelo qual “Deus ao homem pôs limites, além dos quais não passará”.
O “Código de Ética do Hospital Brasileiro” orienta (art. 8º): “O direito do paciente à esperança pela própria vida torna ilícita – independente de eventuais sanções legais aplicáveis – a interrupção de terapias que a sustentem. Excetuam-se, apenas, os casos suportados por parecer médico, subscritos por comissão especialmente designadas para determinar a irreversibilidade do caso, em doenças terminais…”. Em várias ocasiões, vários estudos, por comissões de ilustres juristas, buscaram a alteração do Código Penal para regular, na área penal, a prática da eutanásia e da ortotanásia. Os conflitos de opiniões impediram o encontro de conceitos aceitáveis. Prevalece, todavia, o princípio de que deve caber ao médico a interpretação e decisão em face da indevida obstinação terapêutica. Isto é, a ortotanásia deve ser uma decisão médica, observada as cautelas próprias.
A eutanásia é chamada de ativa quando há a relação de causa e efeito entre a ação do agente e a morte do paciente. A ortotanásia é uma eutanásia passiva, isto é, a morte resulta da omissão ou limitação do esforço terapêutico. Há a morte com a chamada “sedação paliativa”, isto é, suavisar a dor do paciente terminal até a chegada da morte. Inexistiria, neste caso, crime. Só médicos podem praticar a eutanásia ou a ortotanásia. A prática da eutanásia, não sendo por médico, pode ser enquadrado como homicídio privilegiado, e se pratica ortotanásia pode ser considerado como “auxílio do suicídio”.
A ortotanásia quer ser um novo modelo de moralidade; um novo sistema unificado ético da vida e da morte. Busca priorização da pessoa doente e não mais o tratamento da doença. Atenuar a obsessão de sustentar sempre a vida biológica, levada a obstinação diagnóstica e terapêutica. Esta batalha se torna fútil, porque, ao defender o direito sagrado à vida, equivale à negação da sua própria dignidade. Esta ênfase humanística não tem sido dada pelas cátedras médicas, mais voltadas para as questões técnicas e científicas. A ortotanásia gira em torno do tema trágico da morte, mas tem a grandeza de defender a dignidade humana.
Assessor Jurídico da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo – SP; Diretor da Diretoria Plena da \”Associação Comercial de São Paulo\”, tendo sido presidente do seu \”Conselho Jurídico\”. É também conselheiro do centenário \”Instituto dos Advogados de São Paulo\”, de cuja revista é permanente colaborador, é membro da Diretoria do CESA (Centro de Estudos das Sociedades dos Advogados). Foi presidente, em duas gestões, da 93ª Subseção de São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil, e durante os anos de 1990 a 1997, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo, com dezenas de pareceres sobre ética profissional publicados em vários volumes editados pela OAB de São Paulo, e várias palestras proferidas em diversas faculdades de direito da Capital e interior. Nos últimos 15 anos de ativa militância, Farah publicou cerca de 400 (quatrocentos) artigos, sobre temas políticos, sociais e jurídicos nos jornais DCI e Diário do Comércio e revistas. Foi presidente, em duas gestões, da Associação dos Advogados de Pinheiros, em São Paulo.
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