Os diferentes critérios adotados para a conceituação do direito administrativo

Resumo: as influências histórica e cultural nas diferentes formas de conceituar do Direito Administrativo que ilustram a impossibilidade de precisar o momento do seu surgimento.


Precisar o surgimento do Direito Administrativo é tarefa impossível, pois a Ciência do Direito analisa objeto cultural baseada na imputação e no subjetivismo humano. Não há, como nas Ciências Humanas, uma relação de causalidade, existe sim a atribuição de consequências e valores aos fatos individuais e sociais relevantes.


O aparecimento de um fenômeno estudado pelas ciências exatas pode dar-se em um preciso e exato momento; por exemplo, os terremotos surgem em data precisa, não sendo necessária grande atividade intelectual para precisar a manifestação de tal fenômeno na natureza.


O Direito Administrativo é, segundo a ótica subjetiva, um conjunto de normas, regras e princípios que regem as relações endógenas da Administração Pública e as relações exógenas que são travadas entre ela e os administrados.


O conceito objetivo leva em conta não os atores da relação, mas, sim, como o próprio nome diz, o objeto da relação jurídica travada.


Sob a ótica objetiva, o Direito Administrativo é o conjunto de normas que regulamentam e regulam a atividade da Administração Pública de atendimento ao interesse público.


Para Lombard, o Direito Administrativo atual é definido como um conjunto de regras aplicáveis à Administração Pública cuja inobservância pode ser sancionada por julgadores independentes [1].


O conceito de Lombard acima remete-nos à tripartição de Poderes encetada formalmente por Montesquieu[2], com a ideia subliminar de limites ao Poder Absoluto[3]. Lombard[4] mostra claramente que divide o Direito Administrativo em duas fases, quais sejam, a moderna e a antiga.


O seu conceito pode ser sotoposto à fase moderna, que dispersa o Poder entre mais de um órgão, e que tem como expressão de maior importância a seguinte: “Estado de Direito”.


O surgimento do Estado não se confunde, entretanto, com o surgimento do Estado de Direito, e o Direito Administrativo, ainda que qualificado como antigo, surgiu com o aparecimento do Estado.


Limitar o conceito com a exigência de órgãos independentes para assegurar a sua observância representa limitar o seu período de existência e terminar por limitar o seu estudo à existência de um Estado Constitucional Moderno.


Não havia Administração Publica na França pré-constitucional?


É claro que havia, pois existia um poder estatal central que estava dividido em órgãos e que travava relações contratuais ou estatutárias com os administrados.


Tanto nas relações internas quanto nas relações externas havia, como há hoje, mesmo com o Estado de Direito, uma desproporção – um dos atores sobrepõe-se aos demais.


A Administração Pública sempre será onipotente, e o administrado, ou os seus elementos internos, será sempre hipossuficiente, pois, para atingir a finalidade pública, a Administração deve ser dotada de poderes extraordinários.


No Direito Administrativo antigo, tais poderes não sofriam as limitações do atual Estado de Direito.


O Estado representa uma sociedade política dotada de certa organização, devem estar bem claras as formas de aquisição, exercício, manutenção, perda do Poder e de fixar as normas de convivência entre os membros daquela sociedade.


Há três posições fundamentais sobre o surgimento do Estado[5], são elas:


a) A primeira considera o Estado como a própria sociedade, confundindo-se com a organização social dotada de poder para regulamentar o comportamento de todo o grupo. Tem-se o Estado como um elemento intrínseco e universal na formação inter-relacional humana;


b) A segunda considera que pode existir sociedade humana sem a existência de um Estado ainda que durante um certo período de tempo, sendo que depois, a depender do nível de evolução da sociedade e das suas necessidades, pode surgir um Estado;


c) A terceira somente considera criado o Estado se presentes certas características muito claras e específicas. Os adeptos desta teoria afirmam, inclusive, que podem precisar com absoluto grau de certeza a data do surgimento de um determinado Estado.


As afirmações do professor Dallari[6] mostram que as duas primeiras teorias sobre o surgimento do Estado são compatíveis com a classificação bipartite de Estado (antigo e moderno). A terceira mostra que pode haver um marco temporal exato para o surgimento do Estado, consubstanciado em um fato histórico preciso.


A terceira teoria desconsidera o Direito como um objeto em plena evolução de acordo com os valores escolhidos pela sociedade da época, fixando marcos estáticos para o surgimento de ideias, algo impensável no campo das ciências sociais.


Fato é que o Estado surge com a sociedade organizada para a satisfação do bem comum ou coletivo, sendo certo que não há como precisar o momento exato de organização da sociedade. É lógico que, para a sua existência é indispensável um mínimo conjunto de regras consolidado e cognoscível aos seus membros.


Ressalte-se que houve épocas em que as normas de Direito Administrativo estavam inseridas em repositórios de Direito Civil. Por isso, pode-se afirmar que o Direito Administrativo como hoje conhecemos surgiu de uma evolução sistemática das normas de Direito Civil.


Esta evolução, com consequente aparecimento de novos ramos do Direito derivados dos ramos clássicos, aconteceu também com o Direito Econômico, que, antes de tornar-se um ramo autônomo, com princípios próprios, podia ter as suas regras encontradas em repositórios legais de Direito Administrativo.


O conceito de Direito Administrativo enceta também como elemento próprio um regime jurídico diferenciado, visto que, em regra, as relações travadas pela Administração Pública ilustram um claro desequilíbrio entre as partes.


As relações estatutárias, ou seja, baseadas somente nas normas gerais implicam impossibilidade de alteração no conteúdo da relação jurídica, sendo facultada, normalmente, apenas a adesão. Assim, um futuro servidor público que tenha sido convocado a apresentar documentos para a nomeação, depois deste ato, poderá ou não tomar posse, mas, se o fizer, deverá, na esfera da União, observar, sem possibilidade de negociação, o disposto na Lei 8.112/90, que trata do regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.


As relações contratuais são firmadas com cláusula geral de poderes exorbitantes para a Administração Pública, pois, em alguns casos, podem ser alteradas ou pode ser rescindido o contrato administrativo unilateralmente.


A finalidade deste regime jurídico diferenciado, mitigador da relação equitativa entre as pessoas envolvidas, é a satisfação do interesse público, sendo certo que, para o Poder Constituinte Originário, tal interesse é um valor tão caro que pode afastar o Princípio Constitucional da igualdade insculpido no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988.


O conceito menos impreciso de Direito Administrativo é o seguinte: conjunto de normas, regras e princípios, que regem as relações endógenas da Administração Pública e as relações exógenas que são travadas entre ela e os administrados, sob um regime jurídico diferenciado, para a satisfação do interesse público.


Observe-se, porém, que os conceitos variam de acordo com o seu autor e de acordo com as referências que são usadas na sua elaboração. Não há conceito correto ou conceito incorreto dentro de um mínimo de consensualismo.


Fernando Alves Correia[7], professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), afirma que o Direito Administrativo é o sistema de normas jurídicas, distintas das do direito privado, que regulam a organização e o funcionamento da Administração Pública e, bem assim, a função ou atividade materialmente administrativa dos órgãos administrativos.


É um sistema de normas jurídicas, pois se apresenta como um conjunto de normas dotadas de uma lógica interna, inspirado por princípios comuns e que constituem algo de homogêneo e específico.


É distinto do Direito Privado por tratar-se de um corpo de normas, nas palavras de Correia, de direito público, cujos princípios, conceitos e institutos afastam-se do Direito Privado, sendo que as especificidades das normas de Direito Administrativo manifestam-se no reconhecimento à Administração Pública de prerrogativas sem equivalente nas relações jurídico-privadas e na imposição, em virtude do princípio da legalidade, à sua liberdade de limitações mais estrita do que as que atingem os particulares.


O Direito Administrativo busca o equilíbrio entre as exigências da ação administrativa na prossecução do interesse público e as exigências de respeito pelos direitos e interesses legítimos dos administrados.


As normas que formam o Direito Administrativo disciplinam a organização e o funcionamento da Administração Pública, definindo os entes e as entidades públicas que a compõem e as suas atribuições, os respectivos órgãos e competências e a estrutura dos serviços públicos, bem como o seu modo de agir específico, e regulam a função ou a atividade materialmente administrativa.


Correia[8] entende que somente com o surgimento do Estado de Direito e com o acolhimento do princípio da separação dos poderes é que se pode falar em Direito Administrativo.


Outro conceito de Direito Administrativo o qualifica como o ramo do Direito Público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública[9].


Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[10] afirma, com precisão, em seu conceito analítico, que o Direito Administrativo juridicamente ordena a atividade do Estado, quanto à organização, ou seja, quanto aos modos e aos meios da sua ação, e quanto à forma da sua própria ação, ou seja, legislativa e executiva, por meio de atos jurídicos normativos ou concretos, na consecução do seu fim de criação de utilidade pública, em que participa, de maneira direta e imediata, bem como das pessoas de direito que façam as vezes do Estado-poder.


Tais atos jurídicos envolvem a ação na disciplina, na fiscalização, na garantia e publicidade dos atos jurídicos dos particulares; no fomento das atividades livres dos particulares; nas limitações à liberdade, à igualdade e propriedade deles em favor do bem comum; na execução de obras públicas e na efetivação de serviços públicos de oferecimento de comodidades de coisas e prestações; e na exigência de encargos análogos aos particulares, para atender ao interesse do todo social.


A busca por um conceito completo de Direito Administrativo não é recente, pois Albert Venn Dicey[11] afirmava que “droit administratif, or administrative law, has been defined by French authorities in general terms as the body of rules which regulate the relations of the administration or of the administrative authority towards private citizens[12].


Dicey[13] apresenta, de fato, um conceito subjetivista baseado nos atores das relações tratadas pelo Direito Administrativo, deixando de considerar os elementos regime jurídico diferenciado e satisfação do interesse público.


Ressalte-se que Renato Alessi[14] diferencia o interesse público primário do interesse público secundário, afirmando, em resumo, que o primeiro seria o interesse da sociedade e o segundo o interesse do Estado. De fato, a dicotomia orgânica Ministério Público/Advocacia Pública adotada pelo Constituinte de 1987 ilustra a existência de tal diferença, visto que o interesse da sociedade nem sempre se confunde com o estatal, principalmente quando as políticas de governo chocam com as políticas públicas.


A Administração Pública deve, entretanto, buscar a satisfação do interesse público como um todo, pois a sua natureza somente resta preservada quando deixa de existir como um fim em si mesmo para existir como instrumento de realização do bem comum, independentemente do conceito de Direito Administrativo escolhido.


 


Notas:

[1] Martine Lombard. Droit Administratif, 4ª. Ed., Paris: Dalloz, 2001.

[2] O espírito das leis, 2ª. Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[3] A ideia de três poderes independentes e harmônicos entre si ilustra a existência de um poder judiciário independente que pode adentrar nos aspectos formais do ato administrativo e, em alguns casos, sindicar os aspectos materiais.

[4] Opus cit.

[5] Dalmo de Abreu Dallari. Elementos de Teoria Geral do Estado, 26ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

[6] Opus cit.

[7] Alguns Conceitos de Direito Administrativo, 2ª. ed., Coimbra: Almedina, 2001.

[8] Opus cit.

[9] Maria Sylvia Zanella di Pietro. Direito Administrativo, 18ª. Ed., São Paulo:Atlas, 2005.

[10] Princípios Gerais de Direito Administrativo, 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979.

[11] Introduction to the study of The Law of the Constitution, 8th. ed., London: Macmillan, 1915.

[12] Tradução do próprio autor: Direito Administrativo, ou leis administrativas, tem sido definido pelas autoridades francesas, em termos gerais, como o corpo de normas que regula as relações da administração ou das autoridades administrativas com os cidadãos.

[13] Opus cit.

[14] Principi di Diritto Amministrativo, Milano: A. Giuffrè, 1974.

Informações Sobre o Autor

Reinaldo de Souza Couto Filho

Advogado da União, Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia, ex-professor de Direito constitucional da UNIME/BA, ex-coordenador da revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal da Bahia e autor do livro “Dívidas condominiais e bem de família no sistema jurídico brasileiro” da Editora Lumen Juris.


Equipe Âmbito Jurídico

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