NUNES, Yuri A.
Resumo: O presente artigo analisa como as inclinações do pensamento criminológico podem resultar em diferentes desdobramentos políticos, dependendo de sua proximidade ou de seu distanciamento em relação ao que Edgar Morin denomina paradigma da simplificação. Primeiramente é abordado o conceito de pensamento simplificador e o conceito de complexidade, conforme as obras de Morin. Por fim, são analisadas diversas pesquisas criminológicas e as suas diferentes repercussões políticas, conforme o papel que essa complexidade assume em seus estudos.
Palavras-chave: paradigma simplificador; complexidade; pesquisa criminológica; reflexos políticos.
Abstract: This article analyzes how the inclinations of criminological thought can result in different political developments, depending on its proximity or distance from what Edgar Morin calls the paradigm of simplification. Firstly, the concept of simplifying thinking and the concept of complexity are approached, according to the works of Morin. Finally, several criminological researches and their different political repercussions are analyzed, according to the role that this complexity assumes in their studies.
Keywords: Simplifying paradigm; complexity; criminological researche, political reflections.
Sumário: Introdução. 1 – A simplificação. 2 – A complexidade. 3- O discurso criminológico e suas relações com a simplificação e com a complexidade. Considerações finais. Referências.
Introdução
Em determinados campos do pensamento criminológico, é possível observar uma aplicação desajustada das ideias de ordem, disjunção e redução. Por mais que esses princípios tenham impulsionado notáveis avanços e descobertas em diversas áreas da ciência, sua utilização indevida em certas disciplinas (como a criminologia) pode resultar na produção de um conhecimento simplificador.
Ademais, conforme sua capacidade de diálogo com a complexidade, as pesquisas podem produzir diferentes consequências na esfera política, tendo em vista a relação que se estabelece entre saber e poder. Quando essas reflexões são remetidas ao âmbito de formação do conhecimento criminológico, a questão é redimensionada, justamente pelo fato de que a criminologia carrega potenciais desdobramentos político-criminais em seus estudos.
Partindo disso, a presente pesquisa se propõe a analisar diferentes teorias criminológicas a partir das ideias de simplificação e complexidade. Após uma análise do paradigma simplificador, o presente artigo passa a abordar o conceito de complexidade, conforme a visão de Edgar Morin, até que, por fim, analisa conhecidos estudos criminológicos com base nessas perspectivas, indicando seus potenciais reflexos político-criminais.
1- A simplificação
Tradicionalmente, os cientistas elaboram enunciados a respeito da natureza ao aplicar sobre o seu objeto de estudo um método baseado na experimentação e na verificação de hipóteses, produzindo conhecimento através do constante debate crítico. Essa postura intelectual possibilitou admiráveis avanços e descobertas. Contudo, quando seus postulados são aplicados de forma indevida em certas áreas do saber, estudos podem produzir um conhecimento simplificador, sobretudo diante de disciplinas que se mostram incapazes de assimilar a estrutura metodológica das ciências da natureza em razão das características de seus objetos de estudo (como ocorre na criminologia), motivo pelo qual se deve salientar que são justamente a tais disciplinas que se destinam as reflexões do presente estudo.
Nesse sentido, diante das lições de Edgar Morin, verifica-se a persistência daquilo que autor chama de paradigma simplificador, termo utilizado para ilustrar o sistema de produção de conhecimento decorrente de uma aplicação exacerbada das operações de redução e disjunção, herdadas do pensamento científico clássico e eventualmente empregadas de forma indevida em certos ramos do saber – entre os quais é possível destacar a criminologia. Ao analisar os princípios do método propostos por Descartes,[1] Morin ressalta que já se manifestavam as ideias de redução e separação, que posteriormente vieram a influenciar a consciência científica.[2] A ideia de disjunção expressa o isolamento/separação do objeto em relação ao seu meio,[3] enquanto a ideia de redução está presente no “princípio que reduz o conhecimento dos conjuntos ou sistemas ao conhecimento das partes simples ou unidades elementares que os constituem”.[4] Esse movimento de separação refletiu também na compartimentalização de disciplinas no século XIX a partir da ideia de desmembramento discursivo da realidade.[5]
Ademais, o Morin aponta que, na perspectiva científica clássica, “a complexidade era a aparência do real; a simplicidade sua natureza”,[6] de forma que os estudos partiam do pressuposto da existência uma ordem, uma estabilidade, uma repetição por traz a aparente desordem dos fenômenos. Essa pressuposição de uma ordem oculta (assim como sua instrumentalização através de operações de disjunção e redução) impulsionou o desenvolvimento de diversas pesquisas científicas. Contudo, quando indevidamente utilizada, também acabou ofuscando importantes dimensões dos fenômenos estudados, sobretudo quando o emprego exagerado da ideia de ordem refletiu em uma concepção de causalidade linear, marcadamente determinista, incompatível com certos objetos (como o desvio).
Dessa forma, a aplicação exacerbada e indevida dos princípios mencionados pode potencializar processos de racionalização, limitando os espaços de racionalidade. Conforme aponta o autor, “a racionalização é a construção de uma visão coerente, totalizante do universo, a partir de dados parciais, de uma visão parcial, ou de um princípio único”,[7] ou seja, “consiste em querer prender a realidade num sistema coerente”.[8] Já a racionalidade “é o estabelecimento de adequação entre uma coerência lógica (descritiva explicativa) e uma realidade empírica”;[9] é justamente “o jogo, é o diálogo incessante entre nossa mente, que cria estruturas lógicas, que as aplica ao mundo e que dialoga com este mundo real”.[10] O pensamento simplificador empregado em certos estudos acaba, portanto, privilegiando a construção de um conhecimento racionalizador, justamente ao promover uma utilização desajustada das ideais de ordem, redução e disjunção, compactando os fenômenos estudados conforme os limites de determina teoria.
Evidentemente, esse pensamento simplificador demanda importantes reflexões sobre seus desdobramentos no âmbito político, uma vez que o conhecimento e o poder encontram-se intimamente vinculados. Foucault ressalta a partir das obras de Nietzsche que “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber”.[11] Aponta ainda que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”[12] O conhecimento produzido pelo pesquisador possuirá implicações políticas que transcendem seu controle. Nesse sentido está a ideia de ecologia da ação, que segundo Morin “tem, como primeiro princípio, o fato de que toda ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um resultado contrário ao esperado”.[13]
Considerando os possíveis desdobramentos do pensamento simplificador, evidencia-se sua inaptidão para lidar com a complexa dinâmica social, tendo em vista que um saber que só sabe separar “atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo”.[14] Além disso, como bem adverte Morin, “quanto menos um pensamento for mutilador, menos ele mutilara humanos. […] Milhões de seres sofrem o resultado dos efeitos do pensamento fragmentado e unidimensional”.[15] Assim, é possível observar que a formação de um conhecimento baseado na aplicação desajustada dos princípios da ordem, disjunção e redução pode gerar perigosos reflexos políticos, principalmente no âmbito da criminologia, onde saberes simplificadores podem legitimar e instrumentalizar diversas práticas penais persecutórias.
2- A complexidade
Edgar Morin trabalha com a noção de complexidade como importante elemento para compreensão dos fenômenos, ressaltando que “existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes”.[16] Nessa linha, é essencial a ideia trazida por Morin no sentido de que o conhecimento do todo está condicionado ao conhecimento das partes, assim como o conhecimento das partes está condicionado ao conhecimento do todo. Segundo o autor, “não apenas a parte está no todo, como o todo está inscrito na parte”.[17]
Essa relação entre parte e todo também apresenta características retroativas e recursivas. Enquanto a questão da retroatividade diz respeito ao fato de que as causas agem sobre os efeitos, que por sua vez agem sobre as causas,[18] a recursividade se relaciona com a ideia de que “os produtos e os efeitos são, eles mesmos, produtores e causadores daquilo que os produz”.[19] Morin exemplifica essa complexa relação ao apontar que:
A sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas a sociedade, uma vez produzida, retroage sobre os indivíduos e os produz. Se não houvesse a sociedade e sua cultura, uma linguagem, um saber adquirido, não seríamos indivíduos humanos. Ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos. [20]
Assim, observa-se que a complexidade de fenômenos como o desvio é ofuscada no âmbito de um pensamento simplificador, que isola seu objeto dos demais níveis de sua realidade. Diante dessa disjunção, diversas qualidades sistêmicas do objeto são perdidas, uma vez que suas características não são encontradas diante de um estado de isolamento, mas sim em seu processo de auto-eco-organização, pois, além de se auto-organizar a partir de fatores internos e individuais, o objeto complexo se auto-eco-organiza a partir de suas relações com fatores externos, ou seja, suas características decorrem de sua inserção em uma realidade complexa, na qual elementos internos e externos determinam sua dinâmica organizacional.[21] Isso revela outra dimensão de entendimento da ideia complexidade para Morin. Apesar de, à primeira vista, relacionar-se com uma noção de quantidade, especificamente em relação ao imensurável número de interações e interferências entre um número muito grande de unidades, a complexidade compreende também as ideias de incerteza, indeterminação e aleatoriedade no seio de sistemas ricamente organizados; “ela diz respeito a sistemas semialeatórios cuja ordem é inseparável dos acasos que os concernem”.[22]
Edgar Morin aponta que o objeto ou fenômeno complexo, em seu processo de auto-eco-organização, lida constantemente com a relação entre ordem e desordem. Ordem, conforme Morin, “é tudo o que é repetição, constância, invariância, tudo o que pode ser posto sob a égide de uma relação altamente provável, enquadrado sob a dependência de uma lei”.[23] Já a desordem, por sua vez, “é tudo o que é irregularidade, desvios com relação a uma estrutura dada, acaso, imprevisibilidade”.[24] Estes dois elementos interagem entre si em uma relação organizacional dentro dos fenômenos, sendo impossível, segundo Morin, pensar em um universo de pura ordem, uma vez que não haveria inovação, criação ou evolução, ao mesmo tempo em que seria inviável um universo de pura desordem, diante da ausência de estabilidade para se instituir uma organização.[25] Logo, “as organizações tem necessidade de ordem e necessidade de desordem. Num universo onde os sistemas sofrem incremento da desordem e tendem a se desintegrar, sua organização permite refrear, captar e utilizar a desordem”.[26]
Portanto, o conceito de complexidade aponta para a insuficiência do pensamento simplificador para compreensão de determinados fenômenos. A redução e o isolamento do objeto acabam ofuscando a compreensão de seus aspectos auto-eco-organizadores. Além disso, ao utilizar de forma indevida a ideia de ordem, o pensamento simplificador encontra dificuldade para assimilar o dinâmico processo organização, desorganização e reorganização. Assim, percebe-se que o conceito de complexidade abre espaços para ampliar compreensão de certos fenômenos e, assim, possibilita a criação de estratégias mais conscientes e responsáveis para tratar das questões sociais com eles relacionadas.
3- O discurso criminológico e suas relações com a simplificação e com a complexidade
Passa-se agora a abordar os espaços e desdobramentos da perspectiva complexa e da abordagem simplificadora dentro do pensamento criminológico. Ressalta-se que a questão ganha importância especial no âmbito das ciências criminais, especificamente da criminologia, pois, conforme lição de Eugenio Raul Zaffaroni, “a imbricação de criminologia e política é inegável e alcança sua mais alta evidência em nossos dias, pois toda criminologia se ocupa de reforçar ou criticar atos políticos”.[27] Nesse sentido, é possível perceber que determinadas pesquisas se aproximam de um pensamento complexo, capaz de dialogar de forma mais aberta com as diferentes dimensões do objeto de estudo, limitando os espaços para formação de políticas criminalizadoras; ao mesmo tempo em que outras são marcadas pela aplicação indevida das ideias de ordem, redução e disjunção, possibilitando a ampliação de políticas excludentes.
Inicialmente, ressalta-se que algumas das principais criminologias baseadas nos princípios simplificadores são marcadas pelo caráter etiológico. Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde destacam que “a característica principal do enfoque etiológico é que pretende explicar a criminalidade como resultado de uma série de causas biológicas, psicológicas ou sociais”.[28] Na esfera individual, a pesquisa etiológica encontra expressão na criminologia positivista, na qual o crime era entendido como uma patologia. Nessa tradição, uma das obras mais conhecidas é sem dúvida o L’uomo delinquente, de Cesare Lombroso, o qual abordava o crime com base em uma visão antropológica, sendo o criminoso um ser atávico, um selvagem que já nascia delinquente e poderia ser identificado a partir de diversas características fisionômicas.[29] Essa concepção patológica, como bem ressalta Zaffaroni, não se esgotava em Lombroso, uma vez que a etiologia biológica se manifestou em toda Europa e nos Estados Unidos durante o final do século XIX e começo do século XX.[30] Baratta aponta ainda que essa visão predominantemente antropológica levantada por Lombroso foi posteriormente ampliada por Garófalo, com a acentuação dos fatores psicológicos, e por Ferri, com a acentuação dos fatores sociológicos, mas sempre mantendo uma concepção determinista do real, sendo o comportamento criminoso uma expressão dessa realidade.[31] Ademais, conforme observa Salo de Carvalho a partir das lições de Jock Young, apesar das fortes críticas a esse pensamento que se deram ao longo do século XX:
[…] se estabelece o retorno aos processos de essencialização através de dois discursos: o biológico e o cultural – “o essencialismo pode envolver a crença de que a tradição de um grupo origina uma essência (essencialismo cultural) ou então a crença de que esta cultura e padrões de comportamento sã caucionados por diferenças biológicas (essencialismo biológico)”. As neurociências revitalizam o positivismo criminológico e, ao criarem a especialidade neurocriminologia, mantêm viva a rede de distribuição de estigmas do sistema punitivo. O “retorno à biologia como explicação do comportamento humano” e o uso da cultura para projetar qualidades negativas a determinados grupos (raciais, étnicos, sociais, religiosos e/ou econômicos), resolvem duplo problema da tradição positivista: os criminosos não apenas nascem criminosos como, pela cultura do grupo, se tornam criminosos. Conforme assinala Jock Young, a fusão dos essencialismos culturais e biológicos permite condições ideais para o exercício de demonizações bem sucedidas e fabricação de monstros.[32]
Verifica-se que, ao tomar o criminoso como objeto, com a intenção de determinar a causa do desvio a partir de suas características individuais, os tradicionais estudos positivistas partiam de uma concepção excessivamente baseada na ideia de ordem determinista, além de promover a redução do desvio ao estudo do indivíduo, separado do exame dos processos de criminalização. Assim, utilizando indevidamente as ideias de ordem, redução e disjunção, essa abordagem criminológica abriu espaço para os perigos que decorrem do pensamento simplificador, justamente por potencializar intervenções políticas excludentes e persecutórias, motivadas pela crença preventiva, perpetuando/renovando de forma racionalizadora a inferiorização de diferentes indivíduos e grupos. Além disso, pelo fato de o crime ser entendido como uma patologia intrínseca ao indivíduo, as medidas intervencionistas encontram espaço para atuar desprendidas de limites temporais predeterminados,[33] além de prescindirem inclusive de um ato delituoso para serem aplicadas.[34]
Os pressupostos da tradicional perspectiva positivista foram contestados pelo pensamento de Durkheim, de acordo com o qual o crime consistiria em um elemento normal do convívio social, visão que permitiu um giro criminológico.[35] Essa nova noção introduzida por Durkheim, que foi posteriormente desenvolvida pela obra de Robert Merton, constituiu “a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciais biopsicológicos do delinquente”.[36] Robert Merton buscou explicar o desvio a partir de um descompasso entre estrutura social e o âmbito cultural: enquanto essa última representa um conjunto de metas e fins que orientam o comportamento dos indivíduos, a primeira, por sua vez, consiste no conjunto dos meios legítimos para alcançar tais metas.[37] Para o autor, a discrepância entre os fins culturais e as possibilidades socialmente estruturadas de agir conforme essas finalidades resulta em diferentes respostas individuais de caráter conformista ou desviante,[38] sendo o crime, portanto, uma dessas respostas.
Assim, a partir dos emergentes postulados da sociologia, um novo saber criminológico passou a ser produzido, oferecendo diversas formas de compreensão do desvio. Entre elas está a pesquisa de Edwin Sutherland que introduziu a teoria da associação diferencial. Sutherland analisou o delito a partir da concepção de que a conduta criminosa é aprendida diante do contato próximo do indivíduo com pessoas desviantes, especialmente quando os modelos criminais superam os modelos não criminais em seu processo de socialização.[39] Ressalta-se ainda a perspectiva apresentada por Albert Cohen, através da teoria das subculturas. Assumindo a existência de diversos grupos sociais com normas e valores específicos, Cohen explica o desvio como “expressão de um sistema normativo próprio, característico da subcultura, cujos valores diferem dos majoritários em forma deliberadamente contraposta”,[40] ou seja, o indivíduo seria desviante apenas na perspectiva da cultura oficial, mas não no ponto de vista do grupo subcultural a que pertence.[41] Acrescenta-se ainda as noções referentes às técnicas de neutralização, promovidas pelos trabalhos de Sykes e Matza, os quais complementaram a teoria das subculturas ao ressaltar que os indivíduos pertencentes a esses grupos também interiorizam normas da cultura mais ampla, mas através de determinadas estratégias acabam neutralizando esses valores.[42]
Assim, verifica-se que a criminologia sociológica foi capaz de deslocar a discussão a respeito das causas do crime do horizonte de análise da escola positivista, contestando suas concepções a respeito do desvio e introduzindo conceitos que ampliam o estudo do fenômeno. No entanto, apesar de inserir elementos sociais que contradizem a redução do crime a patologias individuais, essas pesquisas não contestam diretamente as definições oficiais de desvio, o que releva certa separação entre as ideias de criminalidade e criminalização, uma forma de persistência indevida do princípio da disjunção.
A introdução do poder punitivo no horizonte de análise da criminologia foi impulsionada pela teoria do etiquetamento, que, entre outros autores, foi desenvolvida por Howard Becker, em sua obra “Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio”, perspectiva que representou um importante passo rumo à compreensão da complexidade do fenômeno criminal. Becker estrutura sua obra a partir do questionamento aos postulados das criminologias etiológicas, as quais não interrogavam a concepção de crime que tomavam como base para suas análises, ressaltando que:
O outsider – aquele que se desvia das regras do grupo – foi objeto de muito especulação, teorização e estudo científico. O que os leigos querem saber sobre desviantes é: por que fazem isso? Como podemos explicar sua transgressão das regras? Que há neles que os leva a fazer coisas proibidas? A pesquisa científica tentou encontrar respostas para essas perguntas. Ao fazê-lo, aceitou a premissa de senso comum segundo a qual há algo inerentemente desviante (qualitativamente distinto) em atos que infringem (ou parecem infringir) regras sociais. Aceitou também o pressuposto de senso comum de que o ato desviante ocorre porque alguma característica da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o cometa. Em geral os cientistas não questionam o rótulo “desviante” quando é aplicado a atos ou pessoas particulares, dando-o por certo. Quando o fazem, estão aceitando os valores do grupo que está formulando o julgamento.[43]
A partir dessa perspectiva, ocorreu o “deslocamento da indagação causal para a avaliação dos processos de criminalização e do funcionamento das agências punitivas”.[44] Na visão de Becker:
[…] grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso, o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.[45]
Ao integrar o poder punitivo e a própria construção do conceito de crime em seus estudos, autores como Becker aprofundaram a complexidade no horizonte de análise da criminologia, o que influenciou a formação de diversas novas correntes de pensamento criminológico, as quais compartilham a intenção de denunciar as diferentes formas de manifestação dos processos criminalizadores. Entre as correntes influenciadas pela ruptura promovida pela teoria do etiquetamento está a criminologia cultural, que emerge de várias formas da tradição crítica na sociologia, na criminologia, e nos estudos culturais, incorporando uma variedade de perspectivas a respeito do crime e de seu controle, o que revela seu caráter interdisciplinar.[46]
Como bem refere Salo de Carvalho a partir das lições de Keith Hayward e Jock Young, a criminologia cultural visa, antes de tudo, colocar o fenômeno do crime e o seu controle no âmbito cultural, ou seja, perceber o crime e as agências de controle como produtos da própria cultura.[47] Abre-se o conceito de criminalização, incluindo-se mais do que simplesmente a criação e aplicação da lei penal, uma vez que é analisado o processo de criminalização cultural, a reconstrução dos significados e percepções quanto ao crime e a cultura.[48] Considerando que os sentidos culturais se manifestam através das disposições estruturais da sociedade sem reduzir, contudo, os significados coletivos a meros reflexos dessa estrutura,[49] a criminologia cultural aborda processo de formação, construção e distribuição desses significados a partir de variados objetos de estudo. Como refere Mike Presdee, a criminologia cultural utiliza, para suas análises, artefatos culturais quando e onde quer que se apresentem, examinando-se os reflexos deixados por eles.[50] Nessa linha, Salo de Carvalho destaca que:
[…] representações televisivas, cinematográficas, artes plásticas, teatro, expressões e estilos musicais, campanhas publicitárias, websites, vídeo games, moda urbana e práticas desportivas de entretenimento, sejam transgressivas ou conformistas, apresentam-se como potenciais objetos de análise que falam sobre o sujeito contemporâneo.[51]
Ademais, sua postura metodológica também permite importantes reflexões. Através da etnografia e, cumulativa ou alternativamente, da análise de textos e manifestações midiáticas, a criminologia cultural procura expor as dinâmicas situações culturais em que o crime e o seu controle são construídos.[52] Ferrell ressalta que a abordagem etnográfica reflete a contínua e duradoura atenção do pesquisador em seu estudo para observar, com precisão, nuances de significados em determinado meio cultural.[53] O autor destaca que esse método de pesquisa incorpora o significado cultural das pessoas estudadas, afirmando, com isso, a sua complexa humanidade,[54] e também oferece uma alternativa à redução do potencial crítico da criminologia diante de certas abordagens quantitativas.[55]
Além de abordar o desvio como um fenômeno dinâmico e multidimensional, que se encontra sujeito a diversas interações e retroações de significado no âmbito social, a criminologia cultural propõe uma visão multidisciplinar a respeito de seu objeto, com uma postura metodológica que permite associar a análise de experiências individuais, interações subculturais e questões estruturais, bem como o exame conjunto e complementar das condutas desviantes e dos processos de criminalização. Trata-se de uma abordagem que se afasta da aplicação desajustada dos princípios da ordem, da redução e da disjunção, permitindo importantes reflexões sobre a complexidade do fenômeno do desvio, bem como a formação de um conhecimento atendo às manifestações do poder punitivo.
Considerações finais
O presente estudo abordou brevemente as tendências e desdobramento do conhecimento criminológico conforme sua maior inclinação ao pensamento simplificador ou ao pensamento complexo, indicando que a aplicação desajustada dos princípios simplificadores contribuiu não apenas para ofuscar a complexidade do fenômeno do desvio, mas, em alguns casos, mostrou-se também capaz de legitimar diferentes práticas excludentes. Por outro lado, o rompimento promovido pela teoria do etiquetamento e a abordagem promovida pela criminologia cultural apresentam possíveis espaços para expressão de um pensamento criminológico mais complexo, potencializando a identificação das sensíveis distribuições de significados que impulsionam processos de criminalização, através de uma análise multidimensional e multidisciplinar desse fenômeno.
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[1] DESCARTES, René. Discurso do Método. Ed. 3. São Paulo: Martin Fontes, 2001. p. 23.
[2] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 87.
[3] MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 331.
[4] MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 330.
[5] KHALED Jr, Salah Hassan. A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial. São Paulo: Atlas S.A, 2013. p. 217.
[6] MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 329.
[7] MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. Ed. 13. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.157.
[8] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 70.
[9] MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. Ed. 13. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.157.
[10] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 70.
[11] FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Ed. 3. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2002. p. 51.
[12] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de Frence, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Ed. 24. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 10.
[13] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 61.
[14] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 14.
[15] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 83.
[16] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 14.
[17] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 94.
[18] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 94.
[19] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 95.
[20] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 74.
[21] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 33.
[22] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 35.
[23] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 89.
[24] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 89.
[25] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 89.
[26] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. P. 89.
[27]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 32.
[28] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.20.
[29] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 87-88.
[30] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p.104.
[31] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 39.
[32] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 31.
[33] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 40.
[34] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p.101.
[35] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 8.
[36] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 59.
[37] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.20
[38] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 64.
[39] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 173-174.
[40] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.224.
[41] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 63.
[42] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.63-65.
[43] BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 17.
[44] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 25.
[45] BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. P. 21-22.
[46] FERRELL, Jeff. Cultural criminology. In: Annual Review of Sociology Vol. 25. 1999. p. 398.
[47] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 32-33.
[48] FERRELL, Jeff. Cultural criminology. In: Annual Review of Sociology Vol. 25. 1999. p. 405.
[49] FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith; YOUNG, Jock. Cultural criminology: an invitation. London: Sage, 2008. p. 2.
[50] PRESDEE, Mike. Cultural criminology and the carnival of crime. London: Routeledge, 2001. p. 15.
[51] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 35.
[52] FERRELL, Jeff. Cultural criminology. In: Annual Review of Sociology Vol. 25. 1999. p. 402.
[53] FERRELL, Jeff. Cultural criminology. In: Annual Review of Sociology Vol. 25. 1999. p. 399.
[54] FERRELL, Jeff. Tédio, crime e criminologia: um convite à criminologia cultural. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18. Nº 82. Jan-fev. 2010. p. 354.
[55] FERRELL, Jeff. Morte ao método. In: DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Vol. 5 – no1 – JAN/FEV/MAR 2012 . p. 157-158.
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