POR: HUGO RIOS BRETAS
SUMÁRIO: RESUMO; 1. INTRODUÇÃO; 2. IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS; 3. PROBLEMATIZAÇÕES PSICANALÍTICAS ACERCA DO INCESTO; 4. CONCLUSÃO; 5. REFERÊNCIAS
RESUMO: Este artigo tem o escopo de analisar a construção dogmática dos impedimentos matrimoniais, enfocando a proibição ao incesto, a partir de um introdutório olhar psicanalítico. Nesse trabalho, será perceptível a interface entre o Código Civil e certa doutrina psicanalítica, na medida em que o artigo 1.521 preceitua os impedimentos dirimentes absolutos, cujo fundamento maior consiste na vedação ao incesto.
1.INTRODUÇÃO
Os impedimentos matrimonias se reportam a ordem de pertencimento sociologicamente basilar, qual seja, a família, que tem diversas conceituações historicamente.
As modificações hermenêuticas concernentes à família se dão por conta da inelutável teleologia de que do direito deve racionalmente acompanhar mudanças sociais.
Em nome do princípio da multiplicidade ou pluralidade, em razão da acentuada valoração do eudemonismo pluralista, não há tão somente a admissibilidade da família em seu sentido clássico, que é composta pelos genitores e sua prole. Em verdade, ao longo do tempo a família deixa de ser necessariamente matrimonializada, formal, indissolúvel e sacramental.
A vedação ao incesto é central no artigo 1.521 do Código Civil. Nesse tom, o Código Civil veda e “super abomina” o incesto na construção dos impedimentos matrimoniais. Diante disso, tal proibitivo se dá por conta da defesa de uma futura prole, oriunda do casamento incestuoso, ante ao propósito de elisão da confusão sanguínea? Ora, de antemão, o casamento não necessariamente gerará filhos, ante a Lei do Planejamento Familiar, conforme o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e a Lei 9.263 de 1996.
Outra possibilidade: Seria o incesto uma vedação cultural, moral ou jurídica?
Proibir o incesto não seria uma intervenção estatal na autonomia do indivíduo? Casamento é misto, posto que institucional e patrimonial, além de plurilateral, na medida em que é contrato segundo o qual os nubentes convergem os seus desígnios para viver uma comunhão plena de vida.
Os impedimentos se desdobram em: dirimentes relativos ou privados, que são hipóteses de anulabilidade conjugal, bem como em dirimentes absolutos ou públicos, que são hipóteses de nulidade conjugal.
Nulidade é a consequência do casamento incestuoso. Assim, há quem defenda que nulidade implica a inexistência do ato jurídico. Ora, é o plano de existência o afetado pela nulidade?
A existência é fenômeno que se apresenta aos sentidos humanos. Assim, os atos nulos, em verdade, existiram no plano fático, posto que se alastraram perante os sentidos humanos. De modo que, a nulidade atingirá o ato jurídico
O efeito da nulidade prima pelo regresso ao estado anterior. Contudo, existem fatos que, em meio as circunstâncias fáticas, obstam o regresso pleno ao estado anterior. Por óbvio, se foi celebrado o casamento incestuoso e filhos foram gerados, por mais que o ato seja nulo, certamente não será possível o regresso ao estado anterior ao casamento, em outro termos, a existência da prole implicará efeitos inclusive na seara dos alimentos, para fins de subsistência da prole.
Ainda de forma trivial, imagine-se uma criança de cinco anos, absolutamente incapaz, nos termos do artigo 3º do Código Civil de 2002, que compra um chocolate na padaria. Ora, houve a celebração de um contrato de compra e venda, bilateral, oneroso, comutativo e sinalagmático, todavia, nulo e existente faticamente, em virtude do fato de que o produto inclusive já foi consumido, obstando o regresso ao pleno estado anterior. Em outros termos, a nulidade está no plano de validade, conforme o artigo 104 do Código Civil vigente:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei. (BRASIL, 2002)
O mesmo simplório exemplo da criança é importante para a compreensão dos impedimentos. Dessa maneira, o efeito precípuo de regresso ao estado anterior só acontecerá se as circunstâncias permitirem.
Em verdade, o ato nulo pode ter existência legal no primeiro momento, além de consequências e, por conseguinte, pode haver o reconhecimento da nulidade. Segundo Francisco Amaral, o ato inexistente, segundo a dogmática de países como França e Portugal, é um puro fato, sem existência legal.
O Código Civil pátrio preceitua que o ato inexistente não produzirá efeitos. Por outro lado, os atos nulos poderão eventualmente produzi-los.
A invalidade é gênero, que se fraciona em duas espécies: nulidade e anulabilidade. De modo específico, conforme o artigo 1.548 do Código Civil, a invalidade do casamento se desdobra em impedimentos matrimoniais e enfermidade mental:
Da Invalidade do Casamento
Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:
I – pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;
II – por infringência de impedimento. (BRASIL, 2002)
Uma das hipóteses de invalidade é de ordem psíquica, que remete o estudioso do direito, a teoria das incapacidades, nos termos do artigo 3º do Código Civil.
O artigo 3º do Código Civil, de forma genérica e o artigo 1.521, de forma específica, referem-se aos impedimentos dirimentes absolutos, conforme o qual:
Art. 1.521. Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. (BRASIL, 2002)
Os impedimentos dirimentes públicos se dão em hipóteses graves, em razão da expressão “não podem se casar”.
Com a leitura do artigo 1.521 do Código Civil, segundo César Fiúza, algumas razões legislativas podem ser extraídas, entre as quais, o combate ao adultério, à bigamia, ao incesto, ao rapto, à coação. Segundo o autor:
Impedimentos matrimoniais são causas que tornam o casamento impossível para ambos ou um só dos noivos. Há impedimentos de duas categorias. A primeira categoria congrega os chamados impedimentos dirimentes. Por que dirimentes? Porque impedem a realização do casamento e, se por acaso ele ocorrer, torna-o inválido, pondo-lhe fim. Os impedimentos dirimentes podem ser públicos ou privados.(FIUZA, p.935, 2005)
Os impedimentos dirimentes públicos proíbem a constituição do casamento em hipóteses gravosas, cujo centro consiste na proibição ao incesto. Nas palavras de César Fiúza, as hipóteses de nulidade são:
Homicídio- Ninguém poderá casar-se com quem quer que lhe tenha matado (ou tentado matar) o cônjuge. Por exemplo: João e Maria são casados. Se José mata João, Maria e José não podem se casar. Para que valha o impedimento, o autor do homicídio ou tentativa deverá ter sido por tal condenado criminalmente. ( FIUZA, p. 935, 2005)
O artigo 1521 apresenta sete incisos, cinco dos quais têm a razão legislativa direta ou indireta com o incesto. As ressalvas são os incisos VI e VII, que têm o propósito de proibição da bigamia e macular o homicídio.
Nessa busca conceitual, César Fiúza afirma que o incesto é a união verificada entre alguns parentes e que é abominada pelo legislador.
Nem todas as uniões entre parentes são abominadas. Segundo o Código Civil, os parentes que têm vocação hereditária são aqueles cujo parentesco não esteja além do quarto grau em linha colateral.
O parentesco é determinado pela ancestralidade sob a égide civil, consanguínea ou por afinidade.
Para Fiúza, o incesto se caracteriza na relação entre parentes em linha reta, como os pais com seus respectivos filhos, bem como é incestuoso o casamento entre irmãos, exemplificadamente e outras. Segundo o autor:
Incesto é a união entre certos parentes. Para o Direito, é considerada incestuosa a união dos parentes em linha reta, ou seja, pais, avós, bisavós, filhos, netos, bisnetos etc. Estes parentes não podem se casar entre si, ainda que o parentesco seja por adoção, uma vez que os filhos adotivos se equiparam aos filhos consangüíneos. A mesma proibição se estende ao casamento entre o adotado e o ex-cônjuge do adotante e ao casamento entre o adotante e o ex-cônjuge do adotado. Tampouco podem casar-se os parentes em linha reta por afinidade como, por exemplo, o sogro com a nora, a sogra com o genro, ainda que sejam viúvos ou divorciados. Também se considera incestuoso o casamento entre irmãos, mesmo que um deles ou ambos tenham sido adotados. Por fim, os parentes em linha colateral até o terceiro grau, inclusive, isto é, tios e sobrinhos, não podem contrair núpcias. (FIÚZA, 2005, p. 935)
A par do incesto, uma conclusão que se pode extrair é que são circunstâncias de cunho objetivo, que afastam qualquer possibilidade de casamento em tais circunstâncias.
Mirreile Cifali citando Freud, firma o seguinte pensamento:
`O incesto é um fato anti-social que a civilização, para existir, teve aos poucos de renunciar´. Quer dizer, o humano se desenvolve a partir de um `sacrifício´ fundador, o do poder absoluto e o do gozo absoluto. (CIFALI, 1999, p. 22)
Rodrigo da Cunha Pereira analisa o “totem”, que se concebe como especial para o entendimento da proibição ao incesto. Segundo o autor, “totem” pode ser considerado um animal, um vegetal, ou algum fenômeno da natureza, que merece reverência por parte de um grupo de pessoas, além de transmitir uma conotação ancestral.
“Totem” comumente para algumas comunidades pode repercutir como um axioma, uma verdade incontestável. Nesse sentido, incesto pode ser concebido como um axioma para dadas comunidades.
Interessante é constatar antropologicamente e psicanaliticamente, ainda segundo Pereira, que de fato se instaura um horror ao incesto, um repúdio substancial, o que denota um caráter proibitivo de cunho moral. Segundo o autor “apud” Sigmund Freud, a religião, a moral, convergirão para o complexo de Édipo.
O que se constata, na mesma linha teórica, é que algumas tribos vedavam o relacionamento entre pais e filhos, outras tantas, entre genros e sogras, e outras tantas variações.
Nessa seara, outra constatação de Rodrigo da Cunha Pereira é que a lei é a contraposição ou a mitigação ou o exercício de freios sobre desejos, inclusive de ordem sexual.
O artigo 1.521 do Código Civil de 2002 transmite o anseio legislativo de conter desejos matrimoniais incestuosos, de forma a blindar, inclusive moralmente, a família.
Para se atingir tal explicação emerge identificar o complexo de Édipo, feito em investigação antropológica por Freud, segundo Pereira. Nesse patamar, a primeira lei sobre a qual o indivíduo se submete consiste na lei paterna, que já deve se portar no sentido de afastar completamente o filho de qualquer desejo sexual em relação a seus irmãos, pais, avós, etc. Desse modo, se a citada lei paterna não se impuser, o risco de desejos incestuosos podem ser fortificados.
O pai deve se portar de tal forma que elida qualquer aproximação com vias eróticas ou sexuais, de maneira a solidificar o horror ao incesto. Trata-se, portanto, de uma castração.
Conforme se apurou, de modo algum, a psicanálise firma o entendimento de que é impossível o desejo incestuoso. O que acontece é que o homem traz consigo desejos sexuais, que não podem ser manifestos a todo instante, por conta de uma série de variáveis.
Nas palavras Mireille Cifali:
A pulsão sexual, montagem de pulsões parciais, não poderia ser compreendida como o inimigo radical da civilização: ela `põe à disposição do trabalho cultural uma extraordinário quantidade de forças, sem dúvida em conseqüência de sua propriedade particularmente pronunciada de deslocar sua meta sem perder em termos essenciais sua intensidade. Denomina-se capacidade de sublimação essa capacidade de trocar a meta, que é sexual na sua origem, por uma outra que já não é sexual mas que parentesco psíquico com a primeira’. Mas o texto esclarece que `esse processo de deslocamento´ tem seus limites, que certa dose de satisfação sexual direta é indispensável, podendo sua carência levar ao surgimento da doença.(CIFALI, 1999, p. 25)
Pereira “apud” Levi Strauss analisa que controles sociais sobre relações sexuais sempre existiram e persistirão. Tal proibição é nevrálgica, motivo pelo qual o exercício da castração, obstando qualquer relacionamento incestuoso é condição essencial para a eficácia das demais imposições.
Freud, segundo Pereira, chega a reputar que será o entendimento sobre o complexo de Édipo, que permitirá a construção saudável das leis da sociedade. Trata-se do desejo incestuoso pela figura da mãe, e, em contrapartida, a deflagração da disputa com o pai.
Para Bruno Bettelheim o complexo de Édipo:
Freud criou o termo “complexo de Édipo” para descrever a profusão de idéias, emoções e impulsos, todos em grande parte ou inteiramente inconscientes, que gravitam em torno das relações que uma criança forma com seus pais. É impossível compreender por que Freud escolheu esse termo – essa metáfora – se não estivermos familiarizados com importantes detalhes da história de Édipo. Lamentavelmente, a maioria dos graduados de universidades americanas a quem tentei expor a psicanálise tinha apenas uma vaga noção do mito de Édipo ou da tragédia de Sófocles, Édipo Rei.(BETTLHEIM, 2002, p. 34)
Assim, uma sociedade que não concebe bem o complexo de Édipo pode ser convidativa para a prática de perversões e descontrole moral.
Os papéis exercidos, por exemplo, por irmãos em uma casa, transmitem sentimentos incontestes de amizades, sem qualquer conotação diversa. Nesse sentido, é abalizada a educação dos pais aos seus filhos, vale afirmar, educa-se com o absoluto desígnio de repelir qualquer indício de incesto. A importância da castração é identificada nas palavras de Strauss, segundo o qual:
A proibição do incesto não é nem puramente de origem cultural nem puramente de origem natural, e também não é uma dosagem de elementos variados tomados de empréstimos parcialmente à natureza e parcialmente à cultura. Constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza para a cultura. (PEREIRA “apud” STRAUSS, 2003, p. 20)
Portanto, o complexo de Édipo traz efeitos nefastos à família. E, sociologicamente, a permissibilidade do incesto pode implicar prejuízos à família.
Isso posto, a psicanálise não ignora a possibilidade de incesto, entretanto, o papel fundamental dos pais é o exercício da castração, sob pena de o complexo de Édipo se aflorar. Por essas razões, o direito é contributivo e participativo no sentido de obstar o afloramento do complexo de Édipo.
O direito assume vital participação no processo de construção da moral individual a partir da codificação do horror ao incesto. Isto é, o direito é fundamental na proibição da promiscuidade, tão abominável em um direito racional.
Portanto, se o direito legitimasse e não escalasse o incesto como um impedimento de ordem pública, comprometida estaria toda a ordem racional do ordenamento pátrio. De modo que, o artigo 1.521 do Código Civil de 2002 tem central relevância no ordenamento jurídico brasileiro, pois lá está o preceito por meio do qual se constrói a lei basilar do homem, uma lei de ordem psicanalítica, que teleologicamente busca repudiar o incesto.
BETTELHEIM, Bruno. Freud e a alma humana. 7.ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
BRASIL, Código Civil, lei 10.406/2002. Organização dos textos, notas remissivas, índices e Adendo Especial do Código Civil de 1916 por Lívia Céspedes, 59a edição, São Paulo: Saraiva, 2008.
CIFALI, Mirreille; FRANCIS, Imbert. Freud e a Pedagogia. São Paulo: Loyola, 1999.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: Uma abordagem psicanalítica. 3ª . Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro de. Um toque de clássicos: Durkheim, Marx e Weber. 2. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.
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