Resumo: Os gêmeos xifópagos são muito raros, porém povoam com freqüência os estudos de Direito Penal, por abalar diversos pressupostos da teoria penal, como a individualidade da pena. O artigo busca entender por meio da Filosofia do Direito como e porque a existência desses gêmeos é tão perturbadora aos estudos de direito penal.
Palavras-chave: teoria da sanção, racionalidade no Direito, xipófagos, Filosofia do Direito
Sumário: Introdução, 1.Os xifópagos na doutrina penal. 2.O xifópago como pessoa e sujeito de Direito 3.Casos dos xifópagos no direito penal 4.O xifópago e a teoria da sanção, 5.O imaginário do criminoso e da vítima: o xifópago como outro estigmatizado e odiado, Considerações finais, Bibliografia
Introdução
Dentre os escritos dos doutrinadores de direito penal é possível encontrar a figura dos gêmeos xifópagos para exemplificar casos difíceis, em especial para o crime de homicídio. A alusão as esses gêmeos, muito raros na realidade, como vítima ou agente do homicídio, não ocorre apenas nos livros, mas também em muitas aulas de direito penal. O recurso não parece ser apenas retórico, buscando chamar atenção dos leitores/alunos, pois há um grande incômodo com o fato desses gêmeos, que vai além da curiosidade e do bizarro. O incômodo dos doutrinadores e professores parece estar no fato de que os gêmeos xifópagos por estarem grudados, um ao corpo do outro. Isso leva a discussão de um dogma do direito que é a individuação da pena e da sanção individual de reclusão. O direito penal, como outros direitos ocidentais, tem como principal pilar a penalização do indivíduo. Porém, os gêmeos xifópagos colocam em questão esse fundamental pilar, pois a sua existência coloca em questão o que é que caracteriza um indivíduo para o direito.
Alguns juristas consideram a questão apenas uma bizarrice, sem grandes conseqüências para o estudo do direito penal. Porém, acredita-se que a discussão de diversos autores de direito penal sobre o gêmeo xifópago seja algo mais do que um recurso retórico para prender o auditório ou mesmo apenas mais um caso para discussão de problemas difíceis. Entende-se que o gêmeo xifópago é um daqueles casos que coloca em dúvida os pilares de uma teoria do direito, causando tantos problemas como a mula para o filósofo Aristóteles, em seu livro a “Geração dos animais”.
O objetivo desse pequeno texto é buscar entender como um caso raro da existência humana, que é o gêmeo xifópago, pode abalar a teoria penal existente e levar a uma longa discussão entre os doutrinadores do direito. Trata-se de uma abordagem a partir da filosofia do Direito e não propriamente do direito penal. Este também não é um artigo sobre os gêmeos xifópagos, mas sobre o imaginário dos gêmeos xifópagos no âmbito do Direito penal. A hipótese a ser discutida é a de que o direito penal ocidental apresenta uma série de dogmas embutidos em suas teorias, não sendo muitas vezes explicitados por se pretenderem universais, e a existência dos gêmeos xifópagos colocam luz nesse ponto.
1. Os xifópagos na doutrina penal
Os doutrinadores do direito penal utilizam-se do exemplo dos gêmeos xifópagos para casos de direito, em especial os que envolvem crimes. O que está em discussão é a questão da individualidade da pena e a questão da sanção como reclusão do corpo (pena de liberdade). Esses são aspectos que dificilmente entram em discussão em outros tipos de direito, em que o corpo não tem relação com o tipo de direito ou sanção. O direito empresarial ou mesmo o direito do trabalho lidam com o sujeito e seu corpo, como no caso da prestação de trabalho física do empregado ou mesmo na existência de empresa individual. Porém, nesses ramos do direito a sanção decorrente de algum delito não tem relação com o corpo, mas sim com o patrimônio. Somente em casos de delito é que o corpo do sujeito ainda é relevante, talvez por isso os exemplos dos gêmeos xifópagos apareçam em profusão no direito penal, mas não nas outras áreas do direito.
Os doutrinadores penais ao se utilizarem dos exemplos dos gêmeos, parecem ter como paradigma os irmãos Chang e Eng nascidos no Sião, atual Tailândia, no ano de 1811. Esses irmãos chegaram à idade adulta, tendo trabalhado em circo, em sua terra natal e depois como fazendeiros nos EUA, adotando o sobrenome Bunker. Eles chegaram a se casar com diferentes mulheres e tiveram um número considerável de filhos, ao todo 21 e não raro tinham brigas freqüentes entre si[1]. Foram esses irmãos que originou a expressão irmãos siameses, devido ao local de seu nascimento. Os irmãos morreram em 1874 e apresentavam apenas uma pequena parte do corpo interligado, na altura do abdômen. O fígado que os unia está em exposição ainda hoje no museu médico: Mütter Museum, na Philadelphia.
A literatura pode ter ajudado também a disseminar a história dos irmãos de Sião. O conto de Mark Twain “Os irmãos siameses” narra a vida pessoal dos gêmeos em seu cotidiano. O pequeno conto pode ter sido um dos meios de difusão dos gêmeos xifópagos em especial para os juristas, uma vez que o que interessava Twain não eram aspectos médicos, mas o cotidiano de pessoas diferentes[2]. O livro de Alexandre Dumas, os Irmãos Corsos, também conta a história de dois irmãos xifópagos que foram separados ao nascer, mas que continuaram conectados pelos sentimentos. Esse livro se transformou em filme (do diretor Gregory Ratoff, 1941) e também foi feita uma telenovela brasileira com o mesmo nome baseada no livro (TV Tupi 1966).
É muito provável que a noção que os juristas brasileiros tenham se baseado para seus relatos tenha relação com os irmãos Chang e Eng e com a narrativa da vida cotidiana influenciada muito mais pela literatura do que pelas considerações da medicina.
No Direito Penal brasileiro um dos autores clássicos que marcam a presença da existência dos xifópagos é Nelson Hungria. O autor não cita os xifópagos no texto, mas sim em uma nota explicativa no rodapé do texto, que se refere ainda a outro jurista Manzini. A solução dada é que no caso de homicídio dos xifópagos, sempre será homicídio duplo, ou nas palavras do autor:
No caso de indivíduos duplos ou xifópagos, ter-se-á sempre um duplo homicídio doloso, ainda que a ação imediata do criminoso tenha sido atingido um só dos seres unidos. É o que observa Manzini: “Se o criminoso queria matar ambos os irmãos siameses, é claro que responde por dois homicídios dolosos, em concurso material, se sua ação era determinada pelo propósito de matar um só, implicava, por necessidade lógica e biológica, a vontade de matar ambos, de vez que a morte de um determina, normalmente, também a morte do outro, e assim, quanto a essa subsiste o dolo eventual. No caso excepcionalissimo, em que uma pronta e eficaz intervenção cirúrgica logre salvar a vida de um deles, o réu responderá por homicídio consumado e tentativa de homicídio[3].
A referência de Hungria do livro de Vicenzo Manzini é tirada de uma nota de rodapé do livro do autor. As palavras ditas de Manzini, na verdade se referem a um outro autor, Poma, na obra Gli individidui doppi e la leggi italiana, publicados na Revista Arquivos de antropologia n.35 de 1915[4]. Mesmo com a questão remontando ao início do século XX, ainda há muita discussão na doutrina penal sobre os problemas gerados pela existência dos irmãos xifópagos.
Custódio da Silveira é um dos autores brasileiros mais modernos que comenta amplamente situações de xifópagos no caso de crime contra a pessoa, em especial no homicídio, como sujeitos ativos e passivos do crime. Guilherme Nucci também fala dos irmãos xifópagos ao tratar do sujeito ativo no crime de homicídio, repetindo as palavras de Euclides Custódio da Silveira.
Muitos doutrinadores penais modernos não citam o caso dos gêmeos xifópagos e os problemas causados por sua existência dupla para o Direito penal. O caráter quase telegráfico de alguns desses manuais, não permite que se faça uma discussão complexa como o caso dos xifópagos. Também se pode especular que a questão tenha perdido um interesse para o direito penal ou mesmo que haja um receio por parte de alguns autores de tratar desse assunto.
Porém, ainda há concursos públicos que se utilizam de questões em que os irmãos xifópagos são sujeitos do crime de homicídio. Uma das questões do concurso público do Rio Grande do Sul elencava algumas alternativas para o seguinte caso envolvendo os irmãos siameses e o direito penal, e pedia para que o examinado escolhendo uma das hipóteses dentre as possibilidades da teoria penal. O enunciado do problema dizia:
“André e Carlos, gêmeos xipófagos (sic), nasceram em 20 de janeiro de 1979. Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo por (sic) fim a vida de André, desfere-lhe um tiro mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive”[5]
A questão dos gêmeos xifópagos ainda sobrevive no Direito penal moderno, como um caso em que a teoria penal, é colocada à prova. Assim, inúmeros professores de direito penal gostam de se utilizar do exemplo dos gêmeos xifópagos, como sujeito ativo e passivo, para quase todos os casos de crimes, em especial para o homicídio.
2. O xifópago como pessoa e sujeito de Direito
Uma das primeiras dúvidas apontadas pelos juristas é se o gêmeo xifópago poderia ser considerado como pessoa. Essa discussão não é muito presente entre os juristas brasileiros modernos, uma vez que o único requisito é ela nascer com vida, independente da forma, doença, etc.. Há referência no antigo Código Italiano exigindo para que se considere pessoa que haja nascimento e que tenha forma humana[6]. Nesse caso, pode-se discutir se os gêmeos xifópagos têm forma humana ou não. Porém, essa questão parece ter sido colocada de lado pelos juristas brasileiros, devido a não restrição da lei.
Porém, ainda se pode discutir se os irmãos xifópagos são uma ou duas pessoas. A questão está longe de ser irrelevante, uma vez que há a possibilidade pela medicina de um dos gêmeos não ser considerado uma pessoa, mas sim um apêndice, pois não há vida independente. Nesses casos, chega-se a chamar o gêmeo sem possibilidade de vida independente de gêmeo parasita e com isso a medicina não o considera como uma pessoa e também o direito. Assim, no caso de um ‘irmão parasita’ poderia-se discutir a sua separação do corpo do irmão, mesmo que isso levasse a morte do outro. Há diversos tipos de gêmeos xifópagos, sendo que a classificação ocorre pela parte em que se encontram ligados[7]. Como o termo xifópago refere-se aos grudados pelo tronco, a literatura médica tem preferido o termo ‘gêmeos conjugados’[8], que se assemelha ao termo corriqueiramente utilizado na língua inglesa: conjoined twins.
As questões médicas estão além desse artigo, porém não se pode pelo menos tratar brevemente desse assunto, uma vez que a implicação do laudo de um médico ou de uma equipe médica sobre esse assunto teria implicações consideráveis no parecer de um magistrado, para resolver o caso. Equipes de médicos já recomendam a interrupção da gravidez no caso de gêmeos xifópagos, devido ao grande risco à mãe e a baixa possibilidade sobrevivência[9]. Essa recomendação está sendo seguida pela justiça de São Paulo, que no julgado (Mandado de segurança 990.09.100.287-9) permitiu o abordo eugênico para uma mãe grávida de gêmeos siameses sem possibilidade de vida extra-uterina.
O que os doutrinadores afirmam que os irmãos xifópagos podem ser considerados como duas pessoas. Assim, os xifópagos podem ter todos os direitos da personalidade (cap. 1 e 2 , título 1, livro 1 do Código Civil – art. 1-21) que começa com o nascimento com vida.
Há uma ligação em grande parte das doutrinas de direito brasileira entre a ter capacidade jurídica e ser sujeito de Direito. A essa construção ainda pode ser somada a questão do corpo, no caso das “pessoas físicas”. Todos esses termos são construções da sociedade sobre o Direito e nada tem de natural. O próprio conceito de sujeito e indivíduo são significações imaginárias sociais, como aponta Castoriadis:
Em toda sociedade, decerto, o indivíduo, como significação imaginária social e como instituição, existe – e existe enquanto unidade de imputação e de atribuição. Imputação: relacionam-se os fatos e atos a alguém, ‘construído’ pela sociedade (…). Atribuição: outorga de possibilidades de fazer e de ser na comunidade considerada – outorga de objetos ou de possibilidades materiais, por exemplo, outorga de meios de produção e/ou de produtos etc.[10].
Devido ao fato do sujeito, capacidade e corpo estarem ligados nessa significação imaginária do Direito, há uma desconfiança por parte dos juristas em considerar os gêmeos xifópagos como sujeitos de direito, uma vez que seu corpo não é comum. A questão do corpo tem relação com os sujeitos de direito, tanto é que há uma figura especial, que é a pessoa jurídica, que tem como ponto especial a não necessidade de corpo físico.
3. Casos dos xifópagos no direito penal
O Direito Penal é um dos ramos do direito que discute o caso dos irmãos xifópagos, muito por causa da individualidade da pena e da sanção de privação da liberdade. A individualidade da pena assegurada no art. 5 da Constituição Federal, garante que a pena não passará da pessoa condenada.
O crime mais discutido é o homicídio, previsto na legislação brasileira no art. 121 do Código Penal. Na sua forma dolosa a sanção é de reclusão de 6 a 20 anos e na culposa a sanção é de 1 a 3 anos. A individualidade da pena e a questão da sanção de reclusão estão presentes tanto para aquele que comete o crime, como também para a(s) vítima(s). No caso dos irmãos xifópagos serem autores do crime, os juristas costumam dar uma diferente solução para o caso, baseada na vontade de cometer o crime.
Se apenas um dos irmãos teve a vontade de cometer o crime e assim procedeu, assassinando uma outra pessoa, esse irmão será condenado pelo crime, mas não cumprirá a sentença de reclusão, pois isso levaria o outro irmão a cumprir uma pena pelo que não fez, atingindo a teoria da individualidade da pena. A escolha do magistrado pelo não cumprimento da pena se dá pela valorização da liberdade em detrimento do cumprimento da pena. Trata-se de um valor a ser escolhido, que implica em uma decisão política do magistrado frente a um caso que o legislador não previu. Quem defende a corrente da liberdade como valor preponderante no Brasil é Euclides Custódio Silveira:
“Dado que a deformidade física não impede o reconhecimento da imputabilidade criminal, a conclusão lógica é que responderão como sujeitos ativos. Assim, se os dois praticarem homicídio, conjuntamente ou de comum acordo, não há dúvida que responderão ambos como sujeitos ativos, passíveis de punição. Todavia, se o fato é cometido por um, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição do único sujeito ativo, se a separação cirúrgica é impraticável por qualquer motivo, não se podendo excluir sequer a recusa do inocente, que àquela não está obrigado”[11].
Esse autor também entende que os gêmeos podem figurar como sujeitos passivos do homicídio e nesse caso apresenta a seguinte solução, utilizando-se do mesmo autor que Nelson Hungria se utiliza, que é o Manzini:
“Se o agente queria matar os dois, responderá por dois homicídios dolosos, em concurso material (art. 51, caput); se a vontade era matar apenas um deles, e morrem os dois, a ação envolve dolo direto em relação ao visado e dolo eventual quanto a morte do outro, pelas simples ração de que a morte de um determina, normalmente, a morte do outro. Na hipótese excepcionalíssima de salvamento da vida um deles, por meio cirúrgico, responderá o agente por um homicídio consumado e uma tentativa de homicídio”[12].
Alguns doutrinadores cogitam a possibilidade de separação para o cumprimento da sentença, quando isso não acarretar na morte do outro gêmeo. Porém, quando é possível separar os gêmeos, esse procedimento já é realizado pelos médicos, somente não sendo em caso de risco de morte a um ou aos dois gêmeos.
Há ainda uma outra hipótese, no caso de somente um irmão ser condenado e não cumprir por isso a sentença. Ele poderia cumprir a sentença, se o seu irmão viesse a cometer um crime tempos depois e não tivesse ocorrido a prescrição do crime do primeiro.
Também há doutrinadores que entendem que o irmão xifópago condenado deve cumprir a sentença, mesmo que isso leve a reclusão do outro irmão. Nesse caso o valor predominante é o do cumprimento da sentença e não o da liberdade. Quem defende essa corrente no Brasil é Flávio Monteiro de Barros[13].
No caso dos dois irmãos xifópagos tendo tido vontade de assassinar uma pessoa, os dois responderão pelo crime de homicídio e cumprirão a pena de reclusão. Não há aqui a exceção pelo cumprimento da sentença, uma vez que ela pode ser cumprida pelos dois irmãos, mesmo unidos.
No caso dos irmãos xifópagos serem vítima(s) de homicídio, também há um tratamento diferente, caso o autor do homicídio visou um ou os dois irmãos. Se o autor visou matar os dois irmãos xifópagos, responderá por dois homicídios ou para outros dois homicídios na modalidade de concurso formal. Se o autor visou matar um dos irmãos, a coisa se torna um pouco complexa, pois há os que entendem que responderá por crime de homicídio para o irmão que quis matar e homicídio na modalidade de dolo eventual, pois de certa forma assumiu o risco de matar o outro irmão. No caso de o homicida visar um irmão e em uma cirurgia conseguir separar o outro com vida, mesmo assim ele responde por homicídio de um e tentativa de homicídio do irmão sobrevivente.
Guilherme Nucci apresenta uma série elaborada sobre os xifópagos como vítimas no Direito Penal, levando em consideração a teoria do direito penal adotada no Brasil. Mais uma vez o caso dos irmãos xifópagos é colocado como exemplo extremo em que a distinção dos conceitos pode tornar-se clara. Nucci apresenta diversas hipóteses para os xifópagos como vítimas, como se pode ver abaixo:
“Levando em conta o mesmo exemplo supramencionado dos irmãos xifópagos siameses, se eles forem vítimas, trata-se de duplo homicídio. Havendo intenção de matar ambos (dolo direto), cuida-se de concurso formal imperfeito (desígnios autônomos), previsto no art. 70, caput, segunda parte do Código Penal. Se a intenção era atingir apenas um deles, mas ambos morrem, há dolo direto de segundo grau quanto ao outro. Aplica-se o concurso formal imperfeito, igualmente. Afinal, se um morre, é obvio arrastar o outro a idêntico fim. Porém, por derradeiro, caso o agente pretenda matar um deles, atingindo-o, mas o outro, não visando primordialmente, termina sobrevivendo em razão de uma pronta intervenção cirúrgica, temos também um concurso formal imperfeito (homicídio consumado e tentativa de homicídio, ambos os delitos contidos em uma única conduta)”[14].
Os irmãos xifópagos, por apresentar o caso raro de duas pessoas unidas ao mesmo corpo ou partes dele, colocam de pernas para o ar as teorias penais, que tem como pressuposto: uma pessoa, um corpo. A teoria penal precisa do corpo físico do condenado. O corpo duplo já leva os juristas a milhões de hipóteses, o que faz pensar como seria o caso das pessoas prescindirem do corpo físico. As pessoas jurídicas não precisam de um corpo físico, porém há toda uma teoria para sustentar essa construção conceitual e mesmo assim, pessoas físicas não podem se equipara às pessoas físicas quanto aos crimes, que são para elas especiais. Os irmãos xifópagos levam a pensar porque a teoria penal adotou como hegemônica a teoria da sanção que adota a prisão de liberdade como principal pena.
4. O xifópago e a teoria da sanção
A teoria da sanção no Direito ocidental tem como foco principal as sanções de restrição de liberdade, que restringe o movimento do corpo físico do condenado, seja enclausurando-o em um espaço fechado organizado pelo Estado, seja permitindo o seu movimento, mas limitadamente. O corpo físico do condenado sofre os tormentos de uma pena sobre seu corpo, como no caso dos açoites, torturas, etc., mas o condenado fica retirado do convívio social. Há outras espécies de sanções que estão substituindo as penas privativas e restritivas de liberdade, como as sanções pecuniárias, porém essas ainda não são a maioria, dentre do direito penal. Outros ramos do direto, como no direito civil e no direito trabalhista, não apontam a sanção sobre a liberdade que é a que impede o movimento do corpo do condenado.
A sanção de liberdade no direito penal segundo as teorias predominantes tem como objetivo a recuperação do condenado e de certa forma a expiação do crime pelo decurso do tempo em reclusão involuntária proporcionada pelos órgãos do Estado. O objetivo da pena importa aqui menos para o caso dos irmãos xifópagos, pois o que está em foco é a reclusão do corpo.
O direito penal tem como pressuposto que cada pessoa tem um corpo, que pode ser levado à prisão, no caso de crimes com essa sanção. Porém, esse dogma que está implícito na teoria da sanção, não ocorre no caso dos gêmeos xifópagos, em que duas pessoas se encontram unidas por seus corpos, sem possibilidade real de separação. A teoria do direito penal colocou o dogma do um corpo, uma pessoa, mas não previu exceções para quando isso não acontecesse. Essa não previsibilidade é compreensível, uma vez que são raríssimos os gêmeos xifópagos que nascem com vida, atingem a idade adulta e mais raro ainda os que cometeram crimes. A dificuldade que os irmãos xifópagos causam ao direito penal é muito mais teórica, do que prática, mas não se pode desconsiderar o desconforto da existência dos xifópagos para os juristas. Apesar da situação anômala para os juristas, não foi verificada na doutrina a possibilidade de se pensar em sanções alternativas à pena de liberdade para casos raros como os xifópagos.
5. O imaginário do criminoso e da vítima: o xifópago como outro estigmatizado e odiado
Os livros didáticos de direito apresentam como um recurso para o melhor entendimento da teoria e também da legislação, os exemplos. O antigo recurso retórico dos “exempla” é retomado a exaustão, especialmente pelos manuais de direito penal. Esse exemplo geralmente constitui de um pequeno caso apresentado pelo jurista, contendo o criminoso, a vítima, as circunstâncias do crime, o tempo do crime e outros dados que sejam relevantes. Porém, deve-se notar que nem todos os exemplos possíveis são dados pelo jurista, que escolhe dentro de um universo real o caso ou cria-o buscando alguma verossimilhança com a realidade. A própria construção dos exemplos dos crimes é social/histórica.
Muitos dos exemplos dos manuais de direito penal levam a uma não identificação do aluno com os personagens dos crimes. Os criminosos ou as vítimas se chamam Tício, Caio, Mévio ou qualquer outro nome que o leitor/aluno nunca conheceu. O distanciamento emocional do aluno/leitor não parece ser algo não pensado pelos autores dos manuais, que procuram muitas vezes apresentar um direito como uma técnica de adequação da realidade aos moldes da norma. Situações complexas são descritas, com elementos que levam o enquadramento da situação em uma norma anteriormente prevista pelo legislador. Os muitos casos de lacunas não são enfatizados pelo doutrinador, que privilegia o exercício mental da adequação da realidade à norma. Os gêmeos xifópagos são como tantos outros sujeitos que o leitor/aluno não conhece e que dificilmente tem um envolvimento pessoal e emocional.
Os irmãos xifópagos são também sujeitos estigmatizados, tanto quando são criminosos quando são vítimas. Há uma construção dos exemplos dos xifópagos como vítimas de crimes, em geral homicídios. Os xifópagos são estigmatizados socialmente, assim como tantos outros grupos de pessoas, por serem portadores de uma forma de corpo não usual, que evidencia um mal ou pelo menos um desconforto social. Goffman identifica o estigma no corpo como um sinal do mal já nos gregos antigos e aponta que esse conceito ainda tem força na atualidade. Assim diz Goffman:
“Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. Além disso, houve alterações nos tipos de desgraças que causam preocupação”[15].
O problema da estima não é necessariamente a questão do corpo, mas sim a ideologia construída socialmente que liga àquela diferença ou sinal corporal a um mal. Goffman, explica essa relação, que leva a imputação daquele que carrega um sinal de estima, como alguém não humano e não digno:
Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original.
O jurista não tem pudores de falar dos xifópagos como pessoas odiadas, porque estigmatizados, que levariam o ódio ao extremo a ponto de terem inimigos mortais. Seria difícil encontrar um exemplo de homicídio em que a homicida fosse uma avó e a vítima um bebê de 3 meses de vida, seu neto, apesar de isso poder ser quantitativamente mais fácil de ser verificado do que homicídios envolvendo gêmeos xifópagos. Esse último exemplo incomoda, pois é próximo, uma vez que todos conhecem uma avó. Esse exemplo poderia figurar nos livros de direito penal, mas apenas como um caso de erro, em que a avó não queria matar o neto, mas acabou fazendo-o ao administrar veneno e não um remédio, com rótulo semelhante.
O autor dos livros de direito penal evitam o mal próximo, evitam a identificação do crime com aquilo que é socialmente considerado como bom. A avó é sujeito construído como aquela que ama o neto, assim como a mãe ama o filho; por mais que isso possa não corresponder com a realidade. Por outro lado, o estrangeiro, o outro, o socialmente indesejado é aquele que é estigmatizado como o portador do mal e por isso é associado aos criminosos.
A tradição ocidental também tem em um mito grego antigo a existência de pessoas grudadas. Trata-se do mito do andrógino, também conhecido como mito da alma-gêmea, que é retratado por Platão no livro O Banquete. Esse mito conta que antes cada homem era dotado de dois sexos, 4 braços, 4 pernas, que tinham dois rostos opostos. Esses homens eram dotados de grande força e vigor, chegando a desafiar os deuses, que como castigo dividiram os homens, cortando cada um em dois e tornando-os mais fracos. O umbigo foi deixado para marcar a antiga condição que era unida. Quando cada metade se encontrava elas voltavam a se fundir[16].
Porém, não é essa visão positiva de pessoas grudadas pelo mesmo corpo que prevalece no imaginário social, especialmente no Brasil. Não se pode deixar de lado a influência do imaginário religioso no entendimento de que os irmãos xifópagos têm alguma relação com o mau. A religião espírita brasileira entende que os irmãos xifópagos são a encarnação de duas pessoas que teriam sido inimigas capitais na última vida e nesta apresentam como desafio permanecerem grudadas, dividindo o mesmo sangue, o mesmo alimento. A construção do argumento via religião pode ser fortíssimo no modo como a sociedade encara esses irmãos. Se o espiritismo vê como um castigo a condição de xifópago, apontando para um valor negativo, enquanto que religiosos indianos viram em uma irmã xifópaga a encarnação de uma deusa[17].
Os irmãos xifópagos figuram nos exemplos de direito penal não apenas pela distância dos leitores/alunos, evitando o envolvimento emocional; mas também porque essa rara forma humana não é comum-normal e para muitos deve ser evitada. Evitada no sentido de não ser querida socialmente, em especial em uma sociedade que privilegia muito a individualidade e a privacidade, e tem grandes dificuldades de lidar com o corpo[18]. A sociedade ocidental não dá um peso positivo a essa existência, porque ela vai contra os valores elegidos como fundamentais na atualidade. Assim, há uma vontade forte de separar os gêmeos xifópagos, tornando-os como todos os outros; impedir que eles nasçam ou mesmo pensar que essa condição é tão terrível que eles mesmos se matariam. O direito penal deixa escapar em seus exemplos os valores hegemônicos da sociedade, explicitando preconceitos e ódios sociais contra aqueles que são diferentes do esperado.
Considerações Finais
Os gêmeos xifópagos são utilizados na teoria penal como exemplo paradigmático que causa problemas para a teoria da sanção que coloca a prisão do corpo como principal sanção. A teoria da individuação da pena aponta para uma pena para cada pessoa, porém como a sanção hegemônica é a sanção restritiva de liberdade, há problemas em aplicar o direito para os gêmeos xifópagos, sendo apenas um deles criminoso. O paradigma utilizado de um corpo, uma sentença, torna-se revelado. Também é revelado que a principal sanção para muitos crimes penais ainda é o encarceramento do corpo, e que ainda há uma dificuldade de se pensar outras penas para os crimes tidos como graves. A teoria penal também se utiliza dos irmãos xifópagos para demonstrar a complexidade de suas elaborações teóricas, como a teoria da vontade. Por outro lado, o exemplo de crimes como o homicídio que apontam como vítima ou como criminoso(s) o(s) irmão(s) xifópago(s), denotam o estigma que essas pessoas ainda sofrem na sociedade atual. Estigma esse, que leva muitos a pensar, que essa rara formação humana, por complicada que seja, não tem o direito de existir em uma sociedade que tem enorme dificuldade de compartilhar, de viver junto.
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056
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