Resumo: A lei Maria da Penha surge como uma munição poderosa para o combate da violência doméstica e familiar contra a mulher. Contudo, para aplicá-la, fez-se necessária a consecução de instrumentos eficazes à sua efetivação.
Neste cenário, foi implementado, em consonância com a citada norma, no Estado de Pernambuco, o Juizado Estadual de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, como uma salutar estruturação da atividade jurisdicional mais atrelada à realidade social, e especificamente ao direito material atingido e abrangido por sua competência, visando também à garantir o exercício de outro direito, este de cunho constitucional, consistente no Acesso à Justiça, não mais compreendido apenas como o simples acesso ao Poder Judiciário, mas como a garantia de que a via judiciária estará franqueada para defesa de todo e qualquer direito.
Assim, por meio do presente trabalho, procuramos apresentar as profícuas inovações advindas com a criação da aludida instância jurisdicional especializada em Pernambuco, e como estas se coadunam com a nova compreensão do princípio constitucional do Acesso à Justiça e com a efetivação da Lei Maria de Penha.
Palavras chaves: Acesso à Justiça; Lei Maria da Penha; Violência Doméstica contra a Mulher; Juizado; Poder Judiciário.
Sumário: 1 Introdução; 1.1 Objetivos do presente trabalho; Do acesso à justiça: 2 O princípio do acesso à justiça; Da Lei 11.340/2006: 3 Lei 11.340/2006: Algumas considerações; Do juizado estadual de violência doméstica e familiar contra a mulher e da Lei 11.340/2006: 4 Juizado estadual de violência doméstica e familiar contra a mulher; 4.1 Os juizados especiais penais estaduais e o juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher ; 5 Conclusão: O acesso à justiça e a efetivação da Lei Maria no juizado estadual da penha de violência doméstica e familiar contra a mulher; 6 Referências;
1. Introdução
No dia 08 de maio de 2007, foi inaugurado, em Pernambuco, o primeiro Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em conformidade com a determinação insculpida na Lei 11.340/2006.
Visou-se, por meio desta norma, não apenas estruturar uma instância julgadora com atendimento especializado, mas também a realização do acesso à justiça em favor da mulher.
Embora conforme Mauro Capelletti e Bryant Garth, o aludido princípio, em obra de mesmo nome, seja “reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico (…). Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos” [1].
Neste sentido, no que tange à violência doméstica e familiar contra a mulher, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, instituídos pela Lei Maria da Penha, prestam-se bem às referidas finalidades, através do exercício de uma atividade jurisdicional direcionada, com processos mais céleres e eficazes. Isto é o que verificaremos durante o desenvolvimento desta monografia.
1.1 Objetivos do presente trabalho.
A presente pesquisa embasou-se em elementos teóricos e doutrinários, visando à elaboração de um estudo aprofundado acerca da hodierna compreensão sobre o Acesso à Justiça, dos institutos jurídicos inaugurados com a vigência da Lei 11340/2006, dentre eles a criação e o funcionamento do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher .
Não serão analisados, porém, casos fáticos, contudo, buscaremos uma avaliação de como o Poder Judiciário tem se prestado à proteção contra a violência familiar e doméstica e como os direitos materiais previstos na legislação pátria, dentre eles, a Lei Maria da Penha, devem ser efetivados, garantindo-se, inclusive, a acessibilidade à justiça.
Do acesso à justiça
2. O princípio do acesso à justiça
Em sua gênese, o princípio em tela correspondia ao “direito formal do indivíduo agravado de propor e contestar uma ação”[2]. Tal compreensão encontrava assento em dois fatores: em primeiro lugar, o acesso à justiça estaria incluso no rol de direitos naturais, e em virtude de sua anterioridade relativamente ao direito posto, não necessitaria de qualquer ação protetiva do Estado, exceto quando sua prática fosse obstada. Assim, a máquina estatal permanecia inerte a questões como a inaptidão dos indivíduos tanto para a movimentação do judiciário quanto para o reconhecimento de seus direitos quando infringidos. Havia, portanto, apenas “O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva”[3].
Em segundo lugar, a compressão do aludido princípio estava intimamente atrelada ao estudo e ao ensino do processo civil, onde, a partir de modelos ideais, formulavam-se as normas, buscava-se sua validade formal, sem, no entanto, analisar sua operacionalidade no mundo fático, diante dos litígios postos a cotejo judicial.
Porém, quando o Estado, afastando a autotutela, trouxe para si a exclusividade na composição de conflitos de interesses e manutenção do equilíbrio das relações sociais, com a confecção, aplicação e execução das leis, viu-se inserido, ante as grandes concentrações demográficas, numa profusão de litígios interpessoais atinentes a diversas matérias.
Por tal fato, em muitas ocasiões, os indivíduos, aqueles a quem o Mauro Capelletti denominou de carentes, embora com seus direitos claramente violados, afastavam-se da égide da tutela jurisdicional, seja porque fossem desprovidos economicamente, ou porque vislumbravam algum outro motivo que os desestimulavam a recorrer ao Poder Judiciário. Neste sentido, preleciona Milton Santos[4]:
“Além dos intricados labirintos que os processos judiciais devem percorrer lentamente, as chamadas custas desses processos desanimam até mesmo os que dispõem de alguns recursos financeiros. Para os pobres, a justiça é mais barreira intransponível que uma porta aberta. As manifestações de desalento e descrença quando uma ofensa ao direito é constatada são muitas vezes mais numerosas que as palavras ou gestos de confiança, ou, ao menos, respeito pelo aparelho judicial-policial. Além desses entraves propriamente processuais, contêm-se, no lado ideológico ou sociológico, com a inadequação ou desatualização em que se encontram muito dos que são, oficialmente, guardiões da justiça e da paz social.”.
Restou evidente, diante disto, que aquele modelo liberal até então vigente, pregando o welfare state, não logrou êxito em suas promessas de atingir o bem comum pela livre concorrência, ocorrendo, o que Kazuo Wantanabe denominou de “litigiosidade contida”[5]; uma panela de pressão de pretensões em constante tensão social.
Por tal fato, foi necessária a realização de uma mudança paradigmática: em vez de um Estado mínimo, passou-se a ter um Estado muito mais atuante, com poderes e deveres de intervir nas relações individuais, para, com isso, levar à comunidade o efetivo bem estar social.
Com essa atuação positiva, houve uma mudança substancial de valores, onde a supremacia do social sobre o indivíduo deveria ser a regra. Diante disto, a própria noção de acesso à justiça também evoluiu, passando a representar, não apenas um direito formal a tutela jurisdicional, mas, nas palavras de Capelletti, “o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” [6], pois “o nível de desenvolvimento de uma nação também pode e deve ser avaliado do ponto de vista da democratização de seu aparato judiciário, ou seja, como e de que meios dispõe o povo para ter acesso ao aparato judiciário do Estado”[7].
Os movimentos de “declarações de direitos” foram precipuamente importantes na consagração de garantias, dentre estas o acesso à justiça, dentro da legislação. É o que se depreende da pesquisa mais aprofundada sobre o tema onde foi verificado que, “provavelmente o primeiro reconhecimento explícito do dever do Estado de assegurar igual acesso à justiça (pelo menos quando às partes estejam na Justiça) veio com o Código austríaco, de 1895, que conferiu ao juiz um papel ativo para equalizar as partes”[8].
Hodiernamente, o princípio do acesso à justiça tem assento constitucional no rol dos direitos e garantias fundamentais, em nossa Carta Magna de 1988, elencado no art. 5º, inciso XXXV, in litteris:
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”
Embora tal norma tenha, a primeira vista, um cunho eminentemente formal, sua compreensão comporta uma interpretação muito mais vasta, englobando em seu amalgama outros princípios, dentre os quais a duração razoável do processo e o devido processo legal, buscando um alcance superior, visando à operacionalidade das normas e ao resultado eficaz no mundo fático.
Neste sentido, ainda em meados do século XIX, já afirmava Rui Barbosa, com muita propriedade, que a “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, as lesando o patrimônio, na hora e na liberdade” [9].
Entendemos, portanto, que o Juizado Estadual de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher presta-se, dentre outras, a tal finalidade, garantindo não apenas a punição efetiva daquele que agride, mas também à prestação de uma tutela jurisdicional célere, eficaz e intimamente direcionada aos casos abarcados por sua competência, assunto este que será mais detalhadamente analisado adiante.
Da Lei 11.340/2006
3. Lei 11.340/2006: algumas considerações
Em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006, a “Lei Maria da Penha”, como consta de seu preâmbulo, visa à criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
No tocante ao Poder Judiciário, determinou a criação de instrumentos para garantir uma prestação jurisdicional mais efetiva, como os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, alterando o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal.
A lei em comento – epitetada de Maria da Penha, em homenagem à biofarmacêutica, de mesmo nome, que lutou durante 20 anos para ver o agressor, seu cônjuge, condenado –, embora de iniciativa do Poder Executivo – o qual a apresentou no final de 2004 – teve sua gênese em anos de discussão entre o governo e a sociedade internacional, bem como o apelo de milhões de mulheres brasileiras vítimas de discriminação por gênero, de agressões físicas e psicológicas e de violência sexual.
Sob o pálio dos Juizados Especiais Criminais e sob a incidência dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, a violência doméstica familiar, compreendida como um crime de menor potencial, acumulou um crescimento estatístico no número de mulheres agredidas física e sexualmente. Havia, até então, uma incongruência entre as conseqüências oriundas da agressão doméstica e as penas aplicadas; no geral irrisórias e pouco eficazes diante do caso fático.
Apesar de algumas iniciativas de cunho legislativo para exasperar a punição, coibir a prática de tais delitos e sua reiteração – como, por exemplo, através da Lei 10.455/02, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69 da Lei 9.099/95, o qual previa uma medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento do agressor do lar conjugal na hipótese de violência doméstica, e em 2004, com a Lei 10.886/04, criando-se, por meio do art. 129 do Código Penal, um subtipo de lesão corporal leve, oriundo da violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis) meses – estas medidas não foram suficientes para minimizar o número de agressões e a impunidade do agressor.
A lei 11.340/2006, portanto, surge em nosso ordenamento jurídico como uma solução legislativa as impropriedades ocasionadas pela inserção da violência doméstica e familiar contra a mulher no rol de “crimes de menor potencial ofensivo”, e, consequentemente, como uma tentativa de reverter os alarmantes números referentes a esses crimes.
Uma pesquisa realizada pelo Ibope – Instituto Patrícia Galvão, em 2004, demonstra cabalmente quão relevante é a discussão acerca desse tema[10]. Do total de entrevistados, 91% consideram muito grave o fato de mulheres serem agredidas por companheiros e maridos. Entre as mulheres esse percentual chega a 94% e, entre os homens, 88%.
Contudo, ainda é significativo o índice de brasileiros que concordam com afirmações como “tapa de amor não dói” (16%), “a mulher deve agüentar a violência para manter a família unida” (11%), “ruim com ele, pior sem ele” (17%) e “não se deve interferir numa briga violenta entre marido e mulher” (40%). Para 66% dos entrevistados, vale o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Em contrapartida, a percepção da gravidade da violência contra a mulher se confirma quando se constata que 90% dos entrevistados consideram que o agressor deveria ser processado e encaminhado para uma reeducação. É interessante observar o contraste entre a quase unanimidade destas opiniões e a escassez de casos que são transformados em processo judicial e ainda mais escassas as instituições que trabalham com reeducação de agressores[11].
84% concordam que o agressor deveria ser penalizado, inclusive com cadeia. Na mesma direção, 77% não concordam com que os atos de violência contra as mulheres não sejam considerados criminosos. Não há variações significativas ao longo dos diferentes segmentos da amostra[12].
Não pretendemos, porém, nesse ponto, esgotar todas as particularidades do presente dispositivo legal, mas, de um modo geral, apresentar, de forma clara e sucinta, as principais inovações decorrentes deste.
Primeiramente, esse comando jurídico é aplicável à violência doméstica que cause morte, lesão, sofrimento físico (violência física), sexual (violência sexual), psicológico (violência psicológica), e dano moral (violência moral) ou patrimonial (violência patrimonial), quando estes são praticados no âmbito da unidade doméstica, onde haja o convívio de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, assim como relativamente àqueles indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.
Andou bem o legislador ao abarcar nessa lei às relações íntimas de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação, e com um posicionamento inovador, reconhecendo, inclusive às relações homossexuais (lésbicas).
Quando da confecção do registro da ocorrência, deverá a autoridade, de imediato, ouvir a ofendida, lavrando o boletim de ocorrência, tomando, a termo, a representação, além de colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato, remetendo-se, no prazo de 48 horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas.
O pedido da vítima deverá ser formulado contendo a sua qualificação e a do agressor, nome e idade dos dependentes, descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas, e cópia de todos os documentos disponíveis em sua posse.
Mas a principal inovação foi, indubitavelmente, a determinação da criação dos Juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo este, um instrumento poderoso na efetivação da Lei em comento, e o ponto que trataremos a seguir.
Do juizado estadual de violência doméstica e familiar contra a mulher e da Lei 11.340/2006
4 Juizado estadual de violência doméstica e familiar contra a mulher
Originados por meio da Lei 11.340/2006, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher são órgãos da Justiça Ordinária, com competência cível e criminal, e, conforme art. 14 do citado comando legal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Tendo em vista a urgência destes casos, tais Juízos tem a função de decidir, de imediato, as medidas protetivas de urgência, solicitada pela ofendida ou pelo Ministério Público, no prazo de 48 horas, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público. Inclusive, das inovações trazidas pela aludida legislação, importante salientar a possibilidade da prática de atos processuais em horário noturno.
Outro ponto importante é comando legal que determina a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistências do governo federal, estadual e municipal, assegurando-se também a preservação da sua integridade física e psicológica através do acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta, com a manutenção do vínculo trabalhista e, quando necessário, o afastamento do local de trabalho por até seis meses, bem como o acesso a medicação gratuita para a prevenção às DSTs e AIDS e outros procedimentos médicos cabíveis no caso de violência sexual, quando solicitado.
Sua composição conta com uma equipe de atendimento multidisciplinar, formada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, que tem competência, entre outras atribuições que lhes são reservadas pela legislação local, fornecer subsídios, por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência. Os profissionais devem desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes.
Em Pernambuco, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher foi instituído através da Lei estadual 13.169/2006. Apesar de sua denominação, na verdade, ante o conteúdo do art. 41 da Lei 11.340/2006, a este Juizado não se aplicam as disposições da Lei Federal n° 9.099/95, ou seja, a Lei dos Juizados Especiais Estaduais. Isso ocorre porque instância julgadora sob análise é provida da mesma forma que as varas judiciais, pelo que impendemos que melhor seria denominá-la de Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Para restar plenamente elucidado, no ponto que se segue, abordaremos as principais diferenças entre os Juizados Especiais Criminais Estaduais e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, e como este superou as incongruências geradas pela aplicação da Lei 9.099/95 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
4.1 Os Juizados Especiais Penais Estaduais e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Alguns doutrinadores suscitam a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, afirmando que o artigo 226, § 8º, da Constituição Federal, impõe ao legislador a obrigação de criar mecanismos para coibir a violência familiar, e não exclusivamente a violência contra a mulher. Alegam também que desnivelar materialmente o homem da mulher é uma completa desarmonia com o art. 5.º, inc. I da CF, uma vez que não pode o legislador infraconstitucional excluir direitos constitucionalmente assegurados apenas pelo fato de a vítima ser do sexo feminino. Desta forma, seriam, portanto, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, uma anomalia jurídica e totalmente dissonante com nossa Legislação Maior.
Apesar dessa linha argumentativa, profundamente galgada em comandos constitucionais, verificamos que a Carta Magna, embora haja assegurado alguns privilégios diante dos delitos de menor potencial ofensivo – aqueles cuja competência de processamento, instrução e julgamento são abarcados pelos Juizados Especiais Criminais, conforme art. 98, inc. I da CF – determinou que cabe à legislação infraconstitucional definir os crimes que assim devem ser considerados. A Lei 9.099/95, portanto, presta-se a isso, determinando, em seu bojo, quais condutas típicas podem ser definidas como de menor potencial ofensivo, a exemplo da lesão corporal leve e a lesão culposa, sem qualquer adequação à definição legal insculpida no Código Penal, conforme art. 88 da Lei 9.099/95.
Porém, a Lei 11.340/06, além de posterior, também goza da mesma hierarquia da Lei dos Juizados, pelo que possui o poder de excluir do mencionado rol a violência doméstica. Ora, nestes casos, quando a vítima é a mulher, e o crime aconteceu no seio doméstico, não se pode afirmar que as lesões oriundas desta agressão são de pouca lesividade, afinal, em seu amalgama, traz a lume questões como convivência afetiva.
Andou bem, a nosso ver, o legislador ao determinar a criação de instâncias julgadoras especializadas na violência doméstica e familiar, com clara sensibilização para os fatores sociais e também para o atendimento às necessidades dos jurisdicionados.
De fato “a Lei 9.099/95, com os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, revolucionou o processo penal brasileiro, especialmente no tocante aos delitos de pouca ou média gravidade, pois com a transação penal, criou-se a possibilidade da aplicação imediata de pena sem a existência da ação penal e com a suspensão, evitou-se que o processo tramitasse por longos anos no Poder Judiciário. Nesses delitos não há mais audiências, interrogatórios, alegações finais, sentenças e recursos. Tudo se resolve na base do consenso, podendo o Estado utilizar melhor seus parcos recursos na luta contra a criminalidade grave”[13].
Porém, no que tange a violência doméstica, a utilização de mecanismos de despenalização, lastreados numa justiça restaurativa, não surtiu os efeitos esperados, isso porque:
“De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 25% do total de 29% das mulheres agredidas no Brasil, em 2005, não contaram a ninguém sobre a violência que sofreram; 60% nunca deixaram o lar, nem por uma noite, em função das agressões sofridas; menos de 10% procuraram serviços especializados de saúde ou segurança, e em média, a mulher demora 10 anos para pedir ajuda pela primeira vez”[14].
“No modelo clássico de Justiça Criminal tudo é programado para a decisão formalista do caso”[15]. Não há uma preocupação no que tange ao estado da vítima ou suas particularidades. “O crime é visto como mero enfrentamento entre o seu autor e as leis do Estado, esquecendo-se que em sua base há um conflito humano que gera expectativas outras bem distintas e além da mera pretensão punitiva estatal”[16]. “A vítima é encarada como mero objeto, dela se espera que cumpra seu papel testemunhal, com todos os inconvenientes e riscos que isso acarreta”[17]
A formulação de acordos, penas alternativas, com o escopo de uma nova justiça, lastreada nas transações, em casos que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher fica muito aquém das necessidades efetivas da sociedade.
Certamente a estruturação de instâncias julgadoras dotadas, não apenas de mecanismos jurídicos e legais, mas também psicosociais, com equipes multidisciplinares, presta-se, não apenas a fornecer segurança para a mulher que deseja ingressar em Juízo, mas também ofecer-lhe suporte durante o processamento do feito para a continuidade da demanda.
Portanto, impendemos que medidas, como as verificadas nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, garantem um acesso à justiça muito mais amplo e efetivo, nos moldes em que tal princípio, também de fulcro constitucional, possui hodiernamente, garantindo um equilíbrio e um tratamento adequado ao caso levado à Juízo, para a aplicação de uma lei muito mais específica e preocupada com a realidade social.
Acerca disto, discorreremos de modo mais detido, no ponto a seguir, analisando como as hodiernas facetas do acesso à justiça encontram assento nos Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher, por meio da efetivação da Lei Maria da Penha.
5. Conclusão: O Acesso à Justiça e a efetivação da Lei Maria no Juizado Estadual da Penha de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Como amplamente discorrido nesta pesquisa, indubitavelmente, a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher demandou a adequação do processo e da própria lei no âmbito penal às necessidades emanadas da sociedade. Não basta, nestes casos, a simples ação do jus puniendi estatal, com modelos formalmente genéricos, mas também a prática políticas sociais que propiciem o início e o prosseguimento dos feitos, de modo eficaz e célere, o que se coaduna plenamente com a hodierna compreesão do acesso a justiça.
Neste sentido, não se trata apenas de munir a mulher de artefatos para ingressar em Juízo ou divulgar o órgão a que deve recorrer quando vitimada pela violência doméstica, mas sim faze-la acreditar no Poder Judiciário, nas medidas judiciais, e, acima de tudo, estimulando-a ao exercício de seu direito de ação.
Até a criação dos Juizados de violência doméstica e familiar contra mulher, o tratamento iminetemente transacional das Instâncias Criminais Especializadas apenas corroborou para que houvesse na ofendida uma sensação de impunidade, causando, inclusive, desinteresse em denunciar o agressor, apesar dos benefícios de ordem material e jurídico oferecidos por tais juízos – como a justiça gratuita, isenção de custas, e a presença de defensores públicos.
Além disso, questões de cunho financeiro, aliado à ausência de previsão legal de medidas protetivas adequadas a tais crimes, detiveram que muitos desses casos fossem trazidos a cotejo judicial e punidos com rigor.
Neste sentido:
“Em 2003, pesquisando um universo formado por mulheres com 16 anos ou mais residentes nas 27 capitais brasileiras, o Senado Federal constatou que (Relatório de Pesquisa – SEPO 03/2005: 11, 12, 13): (a) – ‘17% das mulheres entrevistadas declararam já ter sofrido algum tipo de violência doméstica em suas vidas. Deste total, mais da metade (55%) afirmaram ter sofrido violência física, seguida pela violência psicológica (24%), violência moral (14%) e, apenas, 7% relataram ter sofrido violência sexual.” (b) – “Em relação à freqüência da violência doméstica, identificou-se que a maioria das mulheres agredidas (71%) já foram vítima da violência mais de uma vez, sendo que 50% foram vítima por 4 vezes ou mais.” (c) – “O maior agressor das mulheres no ambiente doméstico é o marido ou companheiro, com 65% das respostas. Em seguida, o namorado passa a ser o potencial agressor, com 9% e o pai, com 6%.” (d) – “Em relação à atitude da mulher após a agressão, 22% das entrevistadas responderam que foram procurar ajuda da família e 53% se dirigiram à delegacia, sendo que deste total, 22% procuraram especificamente a delegacia da mulher. Das mulheres que foram à delegacia, 70% não tinham para onde voltar e, então, retornaram à própria casa (…) elas tiveram que enfrentar novamente o agressor após denunciá-lo à polícia.”[18]
É notório que medidas despenalizadoras devem ser adotadas, visando, principalmente, a manutenção de uma sociedade mais equilibrada e sã. No entanto, em casos extremos, quando os danos, além de físicos ou psíquicos, influem, inclusive, na estrutura familiar, não há como se admitir que transações judiciais sejam vistas como soluções eficazes para os aludidos conflitos.
Por tal fato, concluímos que a legislação em tela, apesar dos questionamentos quanto a sua constitucionalidade e após as necessárias adequações, trará grandes benefícios, aproximando o Poder Judiciário das jurisdicionadas, e principalmente, auxiliando na manutenção do equilíbrio familiar, sendo instrumentos para a diminuição da violência física, sexual e psíquica a qual tantas mulheres são submetidas
Referência:
Notas:
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