Com a finalidade de bem atender o interesse coletivo, a Administração Pública é dotada de Poderes Administrativos (Vinculado, Discricionário, Hierárquico, Disciplinar, Regulamentar e de Polícia), sem os quais não conseguiria sobrepor a vontade da lei à vontade individual, bem como o interesse público ao privado.
Imperioso é destacar que o condão hierárquico é peculiar do Poder Executivo, ou seja, é característica típica do exercício da função administrativa. Nas funções próprias dos Poderes Legislativo e Judiciário, não se verifica a mesma relação de subordinação entre órgãos e agentes.
No Judiciário observa-se clara distribuição de competências entre instâncias, sempre resguardada a independência no âmbito de atuação de uma em relação à outra. Neste sentido, o juiz da instância superior não pode substituir–se ao da instância inferior, nem dar ordens ou revogar e anular os atos por este praticados[1]. Isto decorre do fato de que a prerrogativa cabível ao superior de praticar atos que competem ao superior é conseqüência imediata da hierarquia, que não se observa nesta forma de organização por instâncias. Prova disso é que o órgão ad quem não pode praticar atos que competem estritamente ao Juiz do órgão a quo, por exemplo.
No Legislativo, faz-se igualmente existente a divisão de competências entre Câmara e Senado, mantida a independência entre as Casas do Congresso Nacional, o que afasta a existência de relação de hierarquia entre ambas.
Com base neste raciocínio, é possível concluir que as funções típicas jurisdicional e legislativa, apesar de residirem no plano da interdependência, posto que são complementares, resguardam entre si clara autonomia em seu âmbito de atuação, uma vez que representam instâncias independentes. Ainda neste tocante, questão interessante e curiosa se impõe se considerarmos a hierarquia permanente que é característica das funções administrativas vinculadas a estas esferas de poder. É o caso dos cartórios cíveis, por exemplo, nos quais existe grau de hierarquia entre cargos internos, mas tal se apresenta no sentido de exercício de função administrativa vinculada ao Poder Judiciário, posto que os cartórios em si apresentam independência no exercício de função típica jurisdicional. Como se depreende, o liame objetivo de diferenciação é tênue conforme o caso concreto observado.
Outrossim, seguindo a pertinente esteira de análise desenvolvida por Renato Alessi, podemos considerar a expressão hierarquia de diferentes formas. Primeiramente, é princípio inerente á organização administrativa, verificado na prática sob a ótica de uma pirâmide, em cujo ápice encontra-se o Chefe do Poder Executivo, de onde emanam as diretrizes mestras aos órgãos inferiores, e estes, por sua vez, fornecem e preparam as decisões dos órgãos superiores[2]. É também, sob o aspecto jurídico, ordenamento definido por lei, que define a distribuição de competências de forma mais ou menos rígida (concorrente ou exclusiva), o que indicará maior ou menor possibilidade de controle por parte dos órgãos e agentes superiores frente a seus subordinados. Por fim, ainda sob o prisma jurídico de análise, a hierarquia é relação estabelecida entre órgãos de forma necessária e permanente, demandando vínculo que, ao mesmo tempo, coordena e subordina uns aos outros, graduando a competência de cada um[3].
Logo, a hierarquia aqui considerada se dá por meio da superposição harmônica de muitos órgãos e cargos, formando uma estrutura piramidal pautada em relações de coordenação e subordinação, no sentido de que cada agente desempenha função agregada e voltada ao todo e, ao mesmo tempo, vinculada ao respeito de uma escala gradual de autoridade. Disso decorre, ainda, a prerrogativa da Administração Pública de dar ordens aos subordinados, ao que corresponde e se impõe o dever de obediência, salvo para ordens manifestamente ilegais.
Paralelamente, entende-se Poder disciplinar como a faculdade de punir internamente as infrações de servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração Pública, no exercício de suas funções[4]. Ressalte-se que a aplicação de tal prerrogativa exige a existência de vínculo especial em face da Administração, ou seja, é aplicável àqueles que com ela contratam, não abrangendo eventual sanção imposta a particular não sujeito ao comando interno administrativo, hipótese que se enquadraria no vínculo geral atinente a todo e qualquer cidadão, na qual a medida punitiva encontra respaldo no exercício do poder de polícia[5]. A título de exemplificação, eventual multa aplicada pela Administração Pública a uma empresa, por ela contratada, com vistas à prestação de um serviço público, evidencia clara decorrência do poder disciplinar, em face do vínculo contratual estabelecido; difere, com isso, de eventual multa imposta por edificação irregular ou exercício de atividade sem alvará, hipóteses que denotam inexistência de qualquer vínculo especial entre a Administração Pública e a outra parte, recaindo no vínculo geral comum que permeia todo e qualquer cidadão em sociedade.
Como se verifica, os poderes hierárquico e disciplinar são correlatos, andam juntos, uma vez que representam verdadeiros sustentáculos da organização administrativa, mas não se confundem. No exercício do poder hierárquico, a Administração Pública distribui e escalona as suas funções executivas; já no uso do poder disciplinar ela controla o desempenho dessas funções e a conduta interna de seus servidores, responsabilizando-os pelas faltas cometidas[6]. Neste sentido, o poder disciplinar encontra origem e razão de ser no interesse e necessidade de aperfeiçoamento progressivo do serviço público[7]. Em outras palavras, atuando enquanto titular do poder disciplinar, a Administração procura exercê-lo buscando sempre zelar pela qualidade e efetividade do serviço público prestado, e ao fazê-lo é também responsável por avaliar, mediante juízo discricionário de conveniência e oportunidade, o cabimento de eventual punição ao servidor faltoso, dentro das normas específicas que regem sua repartição.
Outra pertinente distinção a ser traçada é a existente entre poder disciplinar e poder punitivo do Estado. Enquanto aquele se restringe ao âmbito interno da Administração Pública, abrangendo tão somente infrações cometidas no desempenho de função pública típica, este exorbita tal limitação e é exercido com base na Justiça Penal, por meio de punições voltadas à repressão de crimes e contravenções definidas nas leis penais, aplicadas pelo Poder Judiciário com vistas à finalidade de busca da paz social. Logo, punições disciplinares e criminais são diversas em relação à natureza peculiar de cada uma das penas impostas.
A diferença aqui tratada não é de grau de aplicação conforme a infração cometida, mas sim quanto à própria substância de cada falta, o que possibilita a aplicação concomitante de ambas sem que haja bis in idem, posto que a punição disciplinar é sempre um minus em relação à criminal[8]. Em outros termos, algumas faltas administrativas são mais leves e, portanto, passíveis de correção por meio da aplicação isolada do poder disciplinar; entretanto, algumas infrações no exercício de função administrativa são de tamanha gravidade que alcançam a configuração de contravenção penal ou até crime, hipótese na qual haverá aplicação concorrente do poder disciplinar (na esfera administrativa) e do poder punitivo do Estado, por meio de sanção penal (adentrando na esfera judicial). Assim, uma falha singela na prestação de serviços, como chegar atrasado injustificadamente, poderá acarretar a aplicação de uma pena disciplinar (advertência), mas não constitui crime; por outro lado, um ato de desonestidade, como o desvio de verbas públicas, fatalmente implicará na aplicação de pena disciplinar (demissão) e também na sanção penal respectiva (art. 315 CP).
Outro aspecto peculiar ao poder disciplinar reside em seu caráter discricionário, no sentido de que o administrador, tendo em vista os deveres do infrator em relação à função que deveria desempenhar, e verificando a falta cometida, aplicará, pautado em critérios de conveniência e oportunidade, a sanção que julgar cabível dentre as que estiverem enumeradas em lei ou regulamento de infrações administrativas[9]. Com isso, não pode o superior hierárquico punir de maneira arbitrária, ou sem se ater a critérios jurídicos de análise, pois seu julgamento deve estar voltado a buscar a pena legal que se preste ao interesse do serviço e a que mais bem reprima a falta cometida. Assim, a discricionariedade do poder disciplinar se apresenta no sentido de este não se vincular a definição prévia de lei e respectiva sanção no que pertine à infração funcional, diferentemente da praxe do Direito Penal, por exemplo, em que se aplica indistintamente o Princípio da Legalidade (“nullum crimen, nulla poena sine lege”). Além disso, existe discricionariedade quanto a infrações previstas com base em expressões imprecisas, tais como “procedimento irregular”, “ineficiência do serviço” e “falta grave”, casos nos quais a lei ofertou à Administração Pública a possibilidade de enquadrar os casos concretos em uma ou outra dessas infrações[10], abrindo margem para um juízo subjetivo de aplicação da pena disciplinar. Pode ocorrer ainda situação na qual a lei delimite diretamente determinada sanção caso se verifique a ocorrência de uma infração específica, hipótese em que não haverá possibilidade de discricionariedade no exercício do poder disciplinar.
São seis as espécies de penas disciplinares previstas no Direito Administrativo Federal (art. 127 da Lei 8.112/90), enumeradas na seguinte ordem crescente de gravidade: Advertência, Suspensão, Demissão, Cassação de aposentadoria ou disponibilidade, Destituição de cargo em comissão e Destituição de função comissionada[11]. Na escolha da pena disciplinar, a lei confere à Administração Pública o Poder de levar em consideração a natureza e gravidade da infração e os danos que dela provierem ao serviço público (art. 128 da Lei nº 8.112/90). Isto faz com que a administração conceitue a falta cometida à luz do caso concreto para escolher e graduar a pena disciplinar cabível, conforme a maior ou menor gravidade da falta ou a natureza da pena a ser aplicada. Em suma, o âmbito discricionário se restringe à escolha da penalidade entre as demais possíveis e à gradação da pena disciplinar tão somente.
É preciso lembrar, contudo, que a aplicação da pena disciplinar possui o caráter de poder-dever. Logo, seu caráter discricionário encontra limite na obrigação que se impõe à administração de, uma vez tendo conhecimento da falta praticada pelo servidor, imediatamente instaurar o respectivo procedimento adequado à sua apuração e, conforme o caso, a conseqüente aplicação das penas cabíveis. Não o fazendo, incide o superior em crime de condescendência criminosa (art. 320 do CP) e ainda em improbidade administrativa (art. 11, II, da Lei nº 8429/92).
Como decorrência evidente da aplicação de toda e qualquer pena, impõe-se a apuração regular da falta disciplinar por meio de procedimento administrativo, para assegurar a legalidade de eventual punição interna da administração[12]. Conforme os dispositivos constitucionais do art 5º, LIV e LV, da CF, é arbitrária (e não discricionária), ilegítima e invalidável pelo Judiciário toda e qualquer punição que não respeite ao devido processo legal, ou que cerceie do acusado o direito ao contraditório e a ampla defesa.
Por fim, faz-se imprescindível a presença de motivação da punição como requisito de validade da aplicação da pena disciplinar, nos termos do artigo 128, parágrafo único, da Lei 8.112/90. A autoridade deve, com isso, apresentar a justificativa de punição, assim como declinar claramente o motivo que a embasou e os meios regulares utilizados para a verificação da falta observada. Conforme brilhante descrição do eminente jurista Hely Lopes Meirelles, “a motivação destina-se a evidenciar a conformação da pena com a falta e permitir que se confiram a todo tempo a realidade e a legitimidade dos atos ou fatos ensejadores da punição administrativa”. Ou seja, ao motivar a imposição da pena o administrador legaliza o exercício de sua discricionariedade, posto que a valoração dos motivos é matéria privativa de sua consideração, sobre a qual mesmo o Poder Judiciário não poderá interferir no tocante ao mérito, uma vez que tão somente poderá avaliar o exame material e jurídico dos motivos invocados, sem lhes adentrar a substância administrativa[13].
Conclui-se afinal, após breve exposição aduzida acerca do tema, que dentre os instrumentos de que dispõe a administração pública na busca da gerência plena do interesses coletivos, os Poderes Hierárquico e Disciplinar resguardam certamente função destacada, por representarem poderes-dever de caráter irrenunciável, reconhecidos ao Poder Público para que este os exerça em benefício da coletividade; seja ao regular a distribuição de funções e a gradação de autoridade de agentes e órgãos no contexto da organização administrativa, seja como faculdade da autoridade administrativa de escolher, entre as penas legais, tomando por base a gravidade do fato a ser punido, a que mais bem reprima a falta disciplinar cometida.
Acadêmico de Direito nas Faculdades Integradas Curitiba/PR
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