Os possíveis caminhos para cidadania rumo ao fortalecimento dos espaços de atuação democráticos

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento da Cidadania no Brasil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, procurando resgatar as contribuições do Direito para o fortalecimento da Democracia no país. Procurou-se contextualizar historicamente o período de redemocratização, com a promoção de meios para a ampliação do direito de acesso à justiça, bem como, a partir do período de transição, no qual se questiona o paradigma moderno, pensar nas possibilidades para a democracia e a cidadania, a fim de contribuir para uma convivência pacífica e igualitária. Questionou-se, portanto, qual a contribuição do direito para proteção e fortalecimento da Cidadania e da Democracia no Brasil. O debate do tema é importante para a construção de uma sociedade mais solidária e sustentável, apresentando-se tanto a Cidadania como a Democracia como elementos imprescindíveis para ampliar a participação de todos na condução desta sociedade, estabelecendo-se relações mais responsáveis e sustentáveis entre todos os seres humanos.

Palavras Chaves: Cidadania. Democracia. Direito.

Abstract: This article aims to analyze the development of citizenship in Brazil, since the enactment of the 1988 Federal Constitution, seeking to rescue the contributions of law for strengthening democracy in the country. The intention was to historically contextualize the period of democratization, by promoting ways to expand the right of access to justice, as well as, from the transition period, in which it questions the modern paradigm, to think of the possibilities for democracy and citizenship, in order to contribute to a peaceful and equitable coexistence. It was questioned, however, the contribution of the right to protection and strengthening of Citizenship and Democracy in Brazil. The theme of the debate is important for building a more inclusive and sustainable society, presenting both citizenship and democracy as essential elements to increase the participation of all in the conduct of this society, settling more responsible and sustainable relations between all human beings.

Keyswords: Citizenship. Democracy. Right.

Sumário: Introdução. 1. A cidadania no Brasil: alguns caminhos percorridos; 1.1 Apesar de você, amanhã há de ser outro dia; 1.2 Pai afasta de mim esse cálice; 2. Cidadania no Brasil: promessas a serem cumpridas; 2.1 O cenário incerto em tempos transitórios. 2.2 A Cidadania e suas promessas: novos contratos de convivência. Considerações finais. Referências

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento da Cidadania no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, procurando resgatar as contribuições do Direito para o fortalecimento da Democracia no país.

Para tanto, o problema que deve ser enfrentado: no momento atual, em que as instituições e fundamentos modernos estão abalados pela crise decorrente da insuficiência/incapacidade de respostas do paradigma da Modernidade, como o Direito poder contribuir para a proteção e fortalecimento da Cidadania e da Democracia no Brasil?

A importância do tema que se apresenta é notável, pois para a construção de uma sociedade mais solidária e sustentável tanto a Cidadania como a Democracia colocam-se como elementos imprescindíveis ao ampliar a participação de todos na condução desta sociedade. A responsabilidade consciente de cada pessoa na tomada de decisões que afetam a todos representa uma chance de propiciar uma vida melhor num planeta protegido.

O presente artigo será divido em duas partes. Na primeira, será feito um breve relato histórico, focado na situação da Cidadania e da Democracia, do período relacionado ao final da Ditadura Militar, com destaque ao movimento inicial do direito de acesso à justiça. A relevância da contextualização histórica se justifica pela necessidade de compreensão da Cidadania, da Democracia e do Direito como decorrentes do fazer/agir humano.

Na segunda parte deste artigo, será analisada alguns aspectos da relação entre Cidadania e Democracia, também de forma breve, com foco maior na época atual, marcada pelo período de transição enfrentado pela Modernidade. A partir dessa relação, será verificada as contribuições ou não do Direito para a ampliação e proteção dos espaços para a prática da Cidadania e da Democracia.

Para o desenvolvimento desse trabalho será utilizado o método indutivo[1], com utilização das técnicas da pesquisa bibliográfica[2], da categoria[3] e do conceito operacional[4]. Os conceitos operacionais das categorias relevantes para a compreensão do artigo serão apresentados ao longo do texto.

     Não se pode deixar de ressaltar que o tema, com certeza, não se esgota no presente artigo, havendo, ainda muitas nuances e focos que merecem o devido estudo, especialmente no atual contexto de perplexidade e de questionamentos, carente de novos fundamentos para a projeção de uma sociedade melhor.

Todo momento de transição, apesar dos incômodos e das incertezas que gera, se apresenta como uma oportunidade ímpar para a construção do novo. E esse “novo” pode representar o esforço sincero e firme de estabelecimento de relações mais responsáveis e sustentáveis entre todos os seres humanos.

1. A cidadania no Brasil: alguns caminhos percorridos

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver a manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar nosso coro a cantar
Na sua frente
[5].

A Cidadania[6], enquanto uma dimensão da pessoa humana no seu viver em sociedade, manifesta-se desde a antiguidade grega e transita por toda a História humana, ora avançando, ora regredindo. Deve-se ressaltar, contudo, que, nos momentos em que desponta, está sempre carregada de símbolos e de promessas. 

Portanto, ao estudar o tema, é preciso ter em mente as palavras de Andrade sobre a necessidade de ter uma concepção dinâmica e histórica sobre o conceito de Cidadania, quais sejam:

É que apreendida a partir de sua materialidade social, a cidadania não pode ser concebida como categoria monolítica, de significado cristalizado, cujo conteúdo tenha de ser preenchido de uma vez e para sempre (tal como no liberalismo) pois se trata de uma dimensão em movimento que assume, historicamente, diferentes formas de expressão e conteúdo, e cujo processo tem se desenvolvido nas sociedades centrais e periféricas com amplas repercussões sociais e políticas” (ANDRADE, 1998, p. 124).

Assim, não se pode pensar e tratar da Cidadania como se esta possuísse uma única definição, uma única dimensão, desmerecendo a sua construção ao longo da História, desde o momento que os homens perceberam a necessidade de conviver em grupos e que as relações foram tornando-se mais complexas. A noção de Cidadania é moldada pelo tempo/espaço em que está inserida.

Com essa perspectiva como guia, percebe-se que o estudo da Cidadania em terras brasileiras quase sempre se mostra uma tarefa árdua e frustrante uma vez que os momentos sociais e políticos do Brasil são marcados mais pela falta de Cidadania do que pelo seu exercício, atestando o quanto é preciso caminhar rumo à edificação de uma sociedade mais cidadã e democrática.

Assim, essa primeira parte, a partir de um viés histórico, terá dois focos: o primeiro se dedicará a elencar e analisar alguns passos dados no resgate da dimensão Cidadania após o fim do regime militar. A intenção é perceber a importância da Democracia[7] para a efetivação da Cidadania. Sem aquela, esta última se torna mera retórica no discurso oficial.

Na segunda parte, a análise se volta para um dos instrumentos de proteção e ampliação da Cidadania: o direito de Acesso à justiça[8]. Percebe-se, a partir da leitura feita, o papel protagonista que o Direito[9] tem e deve manter para que contribua na ampliação dos espaços e instrumentos que potencialize a participação democrática nos atuais Estados de direito.

1.1 Apesar de você, amanhã há de ser outro dia

O objetivo desta seção é analisar algumas informações históricas referentes ao período de “redemocratização”, iniciado ao término do regime militar, a fim de registrar os primeiros passos dados no resgate da participação popular e na efetivação da Cidadania em terras brasileiras.

O estudo feito demonstrou que a experiência da Democracia no Brasil teve momentos positivos e negativos, marcados de forma indelével com períodos de repressão, nos quais o ambiente democrático se tornou restrito, tal como descreve Bittar (2009, p. 215-216):

A inexperiência democrática é a principal causa de uma vivência ambígua de direitos na realidade brasileira, na medida em que fatores econômicos, culturais e sociais de base são o principal fator de carências elementares para a estruturação de uma cidadania plena. Centenas de anos de serventia à Colônia, seguidas de décadas de serventia à Monarquia imperial, seguidas de um republicanismo com interstícios ditatoriais, eis a escalada em direção à constituição de uma sociedade construída sob a insígnia do paternalismo servil”. 

Portanto, vários fatos políticos considerados antidemocráticos marcaram a história brasileira, com destaque para o período referente ao Regime Militar, que se iniciou em 1964, e foi marcado por “um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos foram restringidos pela violência”. (CARVALHO, 2013, p. 157)

Segundo Carvalho (2013, p. 173), a partir de 1974, iniciou-se o enfraquecimento do Regime Militar, com a diminuição das restrições à propaganda eleitoral, bem como a retomada e renovação de movimentos de oposição, especialmente as mobilizações populares pelas eleições diretas, em 1984, que transformou os comícios em grandes festas cívicas.

No entanto, apesar da restituição dos direitos civis, após a abertura política, nem toda a população foi beneficiada. Em relação ao direito de Acesso à justiça, apenas uma parcela reduzida da população, os mais ricos e os mais educados, foi beneficiada, ficando a maioria das pessoas de fora do alcance da proteção das leis e dos tribunais, como explica Carvalho (2013, p. 194-195):

“A forte urbanização favoreceu os direitos políticos, mas levou a formação de metrópoles com grande concentração de populações marginalizadas. Essas populações eram privadas de serviços urbanos e também de serviços de segurança e de justiça. Suas reivindicações, veiculadas pelas associações de moradores, tinham mais êxito quando se tratava de serviços urbanos do que de proteção de seus direitos civis. […] A expansão do tráfico de drogas e o surgimento do crime organizado aumentaram a violência urbana e pioraram ainda mais a situação das populações faveladas. Muitas favelas, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, passaram a ser controladas por traficantes, devido a ausência da segurança pública. Seus habitantes ficavam entre a cruz dos traficantes e a caldeirinha da polícia, e era muitas vezes difícil decidir qual a pior opção”.

No curso da história, no ano de 1988, promulgou-se a Constituição denominada de “Cidadã”, com eleições diretas para presidente em 1989, seguindo-se um clima de aparente normalidade política. Porém, a estabilidade democrática corria vários riscos uma vez que os problemas econômicos mais sérios, como a desigualdade e o desemprego não foram resolvidos, deixando suspensas as promessas aventadas com o fim do regime militar. Em consequência, percebe-se que a realidade descrita acima pelo historiador não está muito distante do que se enfrenta hoje em muitos centros urbanos. A população mais carente se viu e ainda se vê refém da violência e têm seus direitos constantemente violados, especialmente pelo Estado

Carvalho (2013, p. 199) anota que persistiam os “problemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços de saúde e saneamento” bem como que “houve agravamento da situação dos direitos civis no que se refere à segurança individual”. Tudo isso agravado pelas as rápidas transformações da economia internacional encampadas pelo neoliberalismo, gerando crises financeiras como a ocorrida em 2008[10] que impactaram prejudicialmente vários países.

Assim, percebe-se que os cidadãos brasileiros chegaram, ao final do milênio, envoltos num misto de esperança e incerteza, com avanços e frustrações no que se refere à prática democrática, como descreve Carvalho (2013, p. 203):

“A partir do terceiro ano do governo Sarney, o desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia-a-dia que mais afligiam o grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, o Legislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses”.

Nesse cenário, o citado historiador conclui que os Direitos Civis no Brasil apresentavam perigosas deficiências, o que resultou em classes de cidadãos. Os cidadãos de primeira classe eram “os privilegiados, os ‘doutores’, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social”, compondo-se de “brancos, ricos, bem vestidos, com formação universitária” (CARVALHO, 2013, p. 215).

Já os cidadãos de segunda classe era formada por uma grande massa de "cidadãos simples", representada pela “classe média modesta, os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho assinada, os pequenos funcionários, os pequenos proprietários urbanos e rurais” (CARVALHO, 2013, p. 216).

Por fim, segundo o citado autor, há “os ‘elementos’ do jargão policial”, ou seja, os cidadãos de terceira classe, representados pela “grande população marginal das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas domésticas, biscateiros, camelôs, menores abandonados, mendigos” (CARVALHO, 2013, p. 216).

Para explicar essas diferenças, Vianna et al. (1999, p. 255-256) afirmam que no Brasil ocorreu a dissociação da agenda da igualdade com a da liberdade, promovendo uma esfera pública impermeável à livre participação do homem comum. Assim, mesmo portadora de alguns benefícios, a população pobre estava longe de se enquadrar na categoria Cidadã, pois desconhecia as leis e mantinha com o Estado uma relação de “clientes”, implicando na ausência de laços de solidariedade social e na indiferença para com o bem-comum.

Essa situação piora com o desenvolvimento da cultura do consumo entre a população, inclusive a mais excluída. A Cidadania é substituída pelo desejo de ser consumidor, no ritmo da ideologia neoliberal, como explica Carvalho (2013, p. 228): “Se o direito de comprar um telefone celular, um tênis, um relógio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os excluídos a militância política, o tradicional direito político, as perspectivas de avanço democrático se vêem diminuídas”.  As frustrações e angústias vão sendo, num primeiro momento, eliminadas na efêmera alegria de comprar, mas logo depois são revigoradas e levam as pessoas atrás de uma “nova” necessidade, não sobrando tempo para preocupações de cunho coletivo. 

Para agravar esse cenário, Carvalho (2013, p. 194) registra que durante o Regime Militar, o Poder Judiciário foi constantemente humilhado. Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal foram aposentados e tiveram seus direitos políticos cassados. Outros foram nomeados e colaboraram com o Regime, demonstrando o controle que o Executivo Militar exercia sobre o Judiciário. E mesmo após a abertura política, o Judiciário continuava a não cumprir o seu papel, pois o Acesso à Justiça era limitado à pequena parcela da população, como explica o autor:

“A maioria ou desconhece seus direitos, ou, se os conhece, não tem condições de os fazer valer. Os poucos que dão queixa à polícia têm que enfrentar depois os custos e a demora do processo judicial. Os custos dos serviços de um bom advogado estão além da capacidade da grande maioria da população. Apesar de ser dever constitucional do Estado prestar assistência jurídica gratuita aos pobres, os defensores públicos são em número insuficiente para atender à demanda. Uma vez instaurado o processo, há o problema da demora. Os tribunais estão sempre sobrecarregados de processos, tantos nas varas cíveis como nas criminais” (CARVALHO, 2013, p.214-215).

Não se duvida que a ofensa aos direitos civis e a consequente limitação da Cidadania agravavam-se com o tolhimento do Poder Judiciário. Nesse sentido, indaga-se: A quem se deve recorrer quando os direitos são ameaçados? Apesar do retrocesso da Cidadania durante o regime militar, como o Direito pode contribuir para superar tais retrocessos e para viabilizar espaços mais democráticos, possibilitando o exercício da Cidadania de forma efetiva e participativa?

1.2 Pai afasta de mim esse cálice

Após o final da Ditadura Militar, os brasileiros retornaram ao cenário político, libertos da opressão do regime, porém ainda sem os instrumentos necessários para fazer valer seus direitos. Portanto, o desenvolvimento do direito de Acesso à Justiça apresentou-se de suma relevância para efetivar os direitos e, consequentemente, fomentar os espaços democráticos para a atuação da Cidadania.

No cenário mundial, Santos (2010, p. 165) afirma que a ampliação do direito de Acesso à Justiça está relacionada às “lutas sociais protagonizadas por grupos sociais”, como “os negros, os estudantes, amplos setores da pequena burguesia em luta por novos direitos sociais no domínio da segurança social, habitação, educação, transportes, meio ambiente e qualidade de vida, etc.”, que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Surgem, portanto, novas demandas e novos autores, ultrapassando a concepção individualista determinada pelas ideias liberais.

A discussão acerca do Acesso à Justiça no Brasil teve início com o processo de redemocratização, demandado na década de 1980, e, segundo Viana et al. (1999, p. 153), expôs os efeitos da modernização econômica e autoritária promovida pelo regime militar: “Chegava-se à democracia política sem cultura cívica, sem vida associativa enraizada, sem partidos de massa e, mais grave ainda, sem normas e instituições confiáveis para a garantia da reprodução de um sistema democrático”.

Nessa conjetura, em novembro de 1984, “quando o regime militar já se mostrava abalado pela campanha nacional das ‘Diretas Já’ e se acelerava a solução negociada de uma transição para a democracia política”, foi aprovada a Lei n. 7.244/1984, que instituiu os Juizados de Pequenas Causas com competência para julgamento de causas com valor não superior a 20 (vinte) salários mínimos (VIANA et al., 1999, p. 173).

Em seguida, já no período “democrático”, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 98, inciso I[11], previu a criação de Juizados Especiais pelos estados e pela União nos territórios e no Distrito Federal, o que se consubstanciou com a edição da Lei n. 9.099, em 15 de setembro de 1995, ampliando a competência, determinando a criação do Juizado Especial Criminal e reformulando a função do instituto no sistema judiciário.

Com base nos princípios da oralidade, da simplicidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade[12], os Juizados Especiais apresentaram-se como uma oportunidade para a ampliação do direito de acesso à justiça.

Para Figueira Júnior (2009, p. 42), os Juizados Especiais apresentam-se como “um avanço legislativo de origem eminentemente constitucional, que vem dar guarida aos antigos anseios de todos os cidadãos, […] de uma justiça apta a proporcionar uma prestação de tutela simples, rápida, econômica e segura”, ou seja, um “mecanismo hábil na ampliação do acesso a ordem jurídica justa” (FIGUEIRA JR, 2009, p. 43).

Contudo, há ainda um longo caminho a ser percorrido. Os Juizados Especiais, assim como outros instrumentos de ampliação da Cidadania, criados pela Constituição de 1988, como a Defensoria Pública, enfrentam grandes e várias dificuldades para sua efetiva efetivação.

Portanto, além da previsão legal dessas garantias, é preciso orçamento e vontade política para torná-las efetivas bem como é imprescindível a participação social que trará sentido a essas garantias, configurando a Cidadania. Caso contrário, como diria Warat (2011, p. XII), os textos normativos serão apenas “simples e impossíveis promessas de amor”.

Em relação aos direitos humanos, Flores afirma que os conceitos e as definições já não têm mais serventia, tornando-se necessário uma nova perspectiva, uma nova proposta para esses direitos, pois:

Os direitos humanos constituem o principal desafio para a humanidade nos primórdios do século XXI. Entretanto, os limites impostos ao longo da história pelas propostas do liberalismo político e econômico exigem uma reformulação geral que os aproximem da problemática pela qual passamos hoje em dia. A globalização da racionalidade capitalista supõe a generalização de uma ideologia baseada no individualismo, competitividade e exploração. Essa constatação nos obriga a todos que estamos comprometidos com uma visão crítica e emancipadora dos direitos humanos a contrapor outro tipo de racionalidade mais atenta aos desejos e às necessidades humanas que às expectativas de benefício imediato do capital. Os direitos humanos podem se converter em uma pauta jurídica, ética e social que sirva de guia para a construção dessa nova racionalidade. Mas, para tanto, devemos libertá-los da jaula de ferro na qual foram encerrados pela ideologia de mercado e sua legitimação jurídica formalista e abstrata” (FLORES, 2009, p. 23).

No cenário atual, marcado por um período de transição[13] de paradigmas, percebe-se que a condição Pós-Moderna atinge a efetivação e a concretização dos direitos, os quais, na fala de Flores (2009, p. 26) não podem ser reduzidos “à mera retórica conservadora – ou evangelizadora – que serve mais para justificar o injustificável que para resolver os problemas concretos da humanidade”, nem serem concebidos “como uma proposta utópica dirigida a vingar os povos das maldades de ditadores e golpistas absolutamente funcionais ao novo totalitarismo do mercado absoluto e onisciente”.

Para Flores, então, é preciso outra concepção de direitos humanos que ultrapasse o rol das declarações de direito, com conteúdo vazio e sem efeito real na vida das pessoas, para se tornar de fato um lugar de luta, de rompimento com as situações de repressão, exploração e sem esperanças. Para tanto, é imprescindível que as pessoas, titulares de direitos, tornem-se protagonistas nessa luta.

Assim, não é suficiente apenas a positivação do Direito de Acesso à Justiça no texto constitucional, revestido da proteção de “cláusula pétrea”, se o titular de tal direito não está apto a exercê-lo. Essa é a principal lição de Flores: para garantir a efetividade dos direitos é necessário o “empoderamento do cidadão[14]”. Portanto, os “direitos humanos devem prestar-se para aumentar nossa ‘potência’ e nossa ‘capacidade’ de atuar no mundo”, isto é, para que o Cidadão assuma uma posição ativa (FLORES, 2009, p. 81).

O direito de acesso à justiça pode compor um espaço privilegiado para a concretização e o fortalecimento da Cidadania, desde que, como alertado por Flores, o cidadão perceba seu papel de protagonista e assuma não só seus direitos, mas igualmente suas responsabilidades perante uma sociedade que requer o estabelecimento de uma convivência mais harmoniosa e equilibrada.

Espera-se, por fim, que o direito de acesso a justiça seja sempre instrumento importante para a manutenção da democracia no país, afastando qualquer ameaça ao direito de participar da vida pública.

2. Cidadania no brasil: promessas a serem cumpridas.

Da análise feita até aqui, verifica-se que além da previsão e vigência dos direitos (sejam os civis, os políticos, os sociais, os humanos), a Cidadania requer instrumentos nos quais possa se socorrer, requer Democracia no seu sentido mais forte. Sem o Direito e sem um Poder Judiciário independente, a Cidadania não se realiza, funciona como se fosse promessas de amor: “Aquelas que se formulam os amantes quando sabem que não poderão ser cumpridas” (WARAT, 2011, p. XI).

Além disso, é preciso levar em conta o atual momento de Transição no qual o paradigma moderno encontra-se numa situação de insuficiências, de contestações. Momento de grandes questionamentos e de grandes incertezas, com implicações mundiais na economia, na política e na cultura e que, sem dúvidas, afeta o Direito.

Assim, a questão que se coloca é: como a Cidadania poderá cumprir suas promessas e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária? Qual o papel do Direito nesse desiderato?

A resposta a tais questionamentos será analisada em duas partes. Na primeira, será feito uma breve análise do momento atual de transição que instala um ambiente de crise e exige respostas que já não podem ser dadas pelos paradigmas da Modernidade[15].

Na segunda parte, concluindo este artigo, o foco volta-se para o estudo de alguns aspectos da relação entre Cidadania e Democracia possíveis e necessárias para o atual contexto de crise.

2.1 O cenário incerto em tempos transitórios.

A história nos mostra que o caminhar da humanidade se constrói a partir das descobertas promovidas pelo seu labor e das insatisfações com uma determinada ordem estabelecida. Assim, a Modernidade representou a ruptura com a tradição medieval, a oposição ao que é antigo e, portanto, inadequado aos novos desejos. Foi uma época marcada por um espírito revolucionário, por acontecimentos que mudaram definitivamente a forma de viver o mundo.

O Renascimento, as grandes navegações, a revolução científica, o iluminismo, a revolução industrial e as revoluções liberais, dentre outros acontecimentos que eclodiram a partir do século XV, marcaram a história do mundo e inauguraram uma época da ciência, da racionalidade, como se colhe de Abreu (2011, p. 64):

A Modernidade significou a busca constante de mudanças e de progresso e a reinvenção de uma nova representação da ordem social. O processo de racionalização tornou-se a sua principal característica, impulsionando a modernização da sociedade e da cultura, e teve sua expressão na distinção entre as esferas sociais e axiológicas, desgarrando-se da religião”.

Contudo, a Modernidade ao promover as rupturas e novos paradigmas tornou-se também a origem de sua própria crise. Pois, como destaca Santos (2010, p. 77-78), a Modernidade está repleta de contradições e de potencialidades, marcada pela tensão existente entre a regulação social e a emancipação social: enquanto a emancipação propõe, a partir da Razão, libertar a Pessoa das amarras da tradição, a regulação tem como fim a ordem e, consequentemente, controlar a vida humana. O que pode ser agravado em períodos de repressão política e sociais, tais como os vivido pelo Brasil.

Portanto, a Modernidade não teve sucesso em realizar seus projetos sociais e políticos, instalando-se, então, uma crise sem precedentes, que desestabilizou tanto as nações poderosas dos países centrais como as nações em desenvolvimento dos países periféricos. Com explica Bittar (2009, p. 6):

A dificuldade de pensar tempos de indefinição é ainda maior, pois estes tempos estão marcados pela erosão de valores, pela alteração de parâmetros de comportamento, pela decrepitude e pela inadequação das instituições aos desafios presentes, pelas mudanças socioeconômicas, pelas crises simultâneas que afetam diversos aspectos da vida organizada em sociedade, pela explosão de complexidade provocada pela emergência de novos conflitos socioinstitucionais, pela requalificação dinâmica dos modos de produção, pelas alterações profundas nos modos tradicionais de se conceber o ferramental jurídico para a construção de regras sociais […]”.

Tratam-se de cenários que diminuem a atuação das pessoas, que, como visto na sessão anterior, lhes retiram da cena principal. As pessoas não conseguem ser protagonistas de suas vidas e as decisões que lhes afetam agravam tal situação, aumentando a distância entre as declarações de direitos e a sua efetiva concretização.

O debate que se segue a essa crise reflete-se em uma época de transição paradigmática, não havendo consenso quanto à definição desse período. Bittar (2009, p. 104) adota o conceito de Pós-Modernidade, “para designar um contexto sócio-histórico particular, marcado pela transição”. Contudo, alerta que o seu uso “não gera unanimidades” e “não somente é contestado como também está associado a diversas reações ou a concepções divergentes”.

Assim, a Pós-Modernidade configura-se em um momento em que “novas ansiedades, indeterminações e efemeridades se projetam no inconsciente coletivo, provocando um sentimento generalizado de instabilidade moral e falta de rumos éticos a seguir”, propagando-se “as sensações de desordem, caos, descomando, descontrole, violência, insegurança, desestruturação, decadência moral […]” (BITTAR, 2009, p. 151).

São cenários que podem agravar situações de repressão, como a Ditadura Militar pela qual passou o país, e que tornam mais dificultosa a superação, pois amplia a sensação de “impotência”, a distância entre os direitos e sua efetivação. No entanto, por outro lado, também são cenários de contestação e que se forem devidamente aproveitados podem fomentar mudanças na forma de ver o mundo e modificar as relações sociais.

2.2 A Cidadania e suas promessas: novos contratos de convivência.

Sabe-se que na Modernidade o Direto teve um importante papel ao justificar e legitimar a existência dos Estados modernos e do poder soberano, especialmente a partir das teorias contratualistas de Hobbes, Rousseau e de Locke. Para isso, o Direito precisou aderir à cientificidade positivista.

Nesse sentido, ganhou espaço a proposta normativista de Hans Kelsen e a sua “teoria pura do direito”, a qual reforça a ideia de um Direito puro, hermético, composto apenas da lei escrita, dada pelo Estado ordenador e organizador das relações intersubjetivas, como anota Bittar (2009, p. 185):

‘“[…] a máxima idealização sistêmica do direito, organizado a partir de parâmetros contidos na ideia de validade, pois, enfim, norma válida será aquela definida como expedida pela autoridade competente, dentro da forma procedimental prevista e publicada de acordo com os parâmetros legais superiores a ela”.

Feita essa consideração, Bittar (2009, p. 212) afirma que no contexto da crise estabelecida, “a transição paradigmática produz um estado de coisas capaz de gerar a fragilidade do sistema jurídico”, configurando-se em uma crise pós-moderna de eficácia, capaz de reduzir o projeto do Estado de Direito em absoluto desuso, pois incapaz de cumprir com sua principal meta de “pacificação do convívio social e de mediação regulamentada dos interesses sociais”.

Conforme destaca Abreu (2011, p. 231-232), essa leitura é reforçada por Santos, para o qual a realidade atual demonstra que as promessas modernas de liberdade, igualdade e fraternidade estão muito longe de serem cumpridas, apesar de todos os avanços tecnológicos e científicos frutos da mesma Modernidade. Com isso, as diversas ideologias capitalistas, socialistas, liberais, neoliberais, marxistas, sem respostas adequadas, estão em profunda crise.

Portanto, necessário pensar na proposta de Direito que possa fornecer as respostas necessárias a esse momento de transição. Pensar um Direito que atenda as expectativas de uma Cidadania que igualmente busca o seu lugar no novo cenário.

Como já anotado, a Cidadania, mais do que uma dimensão política, assume feição história, concreta, balizada pelas lutas sociais. Ou seja, não se trata de uma concessão, um presente, mas, sim, de uma conquista: ser Cidadão é estar presente no mundo de forma ativa. Aquino ressalta que “Não é possível elaborar os significados da Cidadania no decorrer do tempo dissociado da fecundidade que nasce a partir das relações humanas, nas vivências intencionais, as quais se (des)encontram no cotidiano” (AQUINO, 2014, p. 107).

Portanto, é nítida a importância que o direito de Acesso à justiça tem em tal cenário, fortalecendo a Democracia. Não somente por meio do acesso aos tribunais, ao direito de petição que têm relevância na defesa dos direitos. Mas, inclusive, por meio de acesso a uma justiça mais próxima, integrada em suas realidades, portadora de instrumentos que efetivem uma vida melhor para todos.

A Cidadania na Modernidade vai se configurar a partir do surgimento do Estado Moderno, marcada, num primeiro momento, pelo Liberalismo político-econômico e, num segundo momento, pela atuação do Estado Social. Além disso, vai se concretizar a partir da ideia de Democracia Representativa, imposta pelo Estado Liberal (ANDRADE, 1998, p. 121)

 Percebe-se que a Declaração Universal de Direitos vai expor a dicotomia entre “direitos do homem” e “direitos do cidadão”. Assim, as ideias de “homem” e de “cidadão” ficaram dissociadas, forjando a concepção do indivíduo como categoria abstrata, na qual se refere apenas a si, sem pertencer a uma classe ou grupo; e a cidadania, como um “status”. Como explica Andrade (1998, p. 122):

“O homem, no liberalismo, é aquele indivíduo atomizado, que deve exercer seus direitos (direito à vida, à liberdade, à propriedade, a contratar, etc.) individualmente no espaço privado da vida: a sociedade civil. O cidadão, o status de cidadania, vincula o homem ao espaço público. O homem, transformado periodicamente em cidadão, transforma-se em fonte e objeto último do Estado de Direito, através de cujo status registra sua presença no espaço público – ao mesmo tempo em que o legitima – para, em seguida, despindo-se do status, retornar à condição de homem, restrito ao espaço privado e à domesticidade da vida”.

Assim, para atender a ideologia liberal, a Democracia ficou restrita à Democracia Representativa ou Indireta, afastando qualquer possibilidade de uma “democracia participativa, direta ou outra, que abrangeria a democratização da sociedade civil”, ficando a Cidadania moderna reduzida ao fenômeno eleitoral (ANDRADE, 1998, p. 121). O cidadão e a pessoa são dissociados, duas realidades distintas que refletem nas relações pessoais e nas relações com o Estado.

Sobre essa concepção de Democracia, Bobbio afirma que havia a “convicção de que os representantes eleitos pelos cidadãos estariam em condições de avaliar quais seriam os interesses gerais melhor do que os próprios cidadãos, fechados demais na contemplação de seus próprios interesses particulares” (BOBBIO, 2005, p. 34).  O Estado assume um papel paternalista e retira das esferas de decisão as pessoas e suas necessidades reais, afastando-se de uma proposta emancipadora. E as pessoas voltam-se para suas vidas, seus lares, suas preocupações e deixam de entender que as decisões a serem tomadas pelo Estado afetarão esse mundo particular. O cidadão se realiza apenas na hora do voto.

Complementando, Santos (2010, p. 170) pondera que mesmo a Democracia Representativa, isto é, a possibilidade de escolher seus representantes e governantes, é melhor do que um governo despótico. No entanto, o citado autor defende a “renovação da teoria democrática”, que ultrapasse o “ato de votar”, como explica:

“Implica, pois, uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa. Para que tal articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do político seja radicalmente redefinido e ampliado. A teoria política liberal transformou o político numa dimensão sectorial e especializada da prática social – o espaço da cidadania – e confinou-o ao Estado. Do mesmo passo, todas as outras dimensões da prática social foram despolitizadas e, com isso, mantidas imunes ao exercício da cidadania. O autoritarismo e mesmo o despotismo das relações sociais “não-políticas” (económicas, sociais, familiares, profissionais, culturais, religiosas) pôde assim conviver sem contradição com a democratização das relações sociais “políticas” e sem qualquer perda da legitimação para estas últimas. (SANTOS, 2010, p. 270-271)

Desta feita, a nova teoria democrática proposta por Santos (2010, p. 270-271) requer uma “repolitização global da prática social” para se criar “novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania”, identificando as “relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada”. Portanto, a democracia não se realiza somente nas relações externas, entre as pessoas e o Estado, mas também em suas relações internas, no seu dia a dia, na vida cotidiana, sendo necessário também nesses locais quebrar as relações autoritárias.

Nesse cenário, o Direito ultrapassa o texto da lei, a prisão do positivismo, e é produzido a partir dessas experiências para legitimar a nova concepção de Cidadania.

Sobre a democracia participativa, Abreu (2011, p. 233) informa que esta tem angariado expressão, “ao adotar uma nova dinâmica política, protagonizada, sobretudo, ‘por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos’”. A participação consciente dos cidadãos é a condição que pode possibilitar mudanças reais na sociedade para efetivação de modelos democráticos alternativos, que possam suprir a perda de sentido da democracia representativa.

     A partir dessa concepção, Abreu (2011, p. 237), então, faz a seguinte proposta sobre o conceito de Cidadania:

“[…] conceito ampliado de cidadania e de democracia cosmopolita, que ultrapassa a ‘simples extensão do conjunto de direitos civis, políticos e sociais e suas respectivas garantias para a seara internacional’, por se constituírem em deveres éticos para com os outros ‘para além das fronteiras geográficas, ideológicas, raciais, culturais etc.’, conformando uma instância de atribuição de legitimidade global”.

No mesmo sentido, Aquino (2014, p. 387) defende que a “Cidadania não pode mais ser caracterizada como unilateral, particular e descompromissada com outras localidades da Terra”, pois “num mundo interdependente, a manifestação cidadã que se limita às fronteiras nacionais colabora para aumentar as misérias, as guerras, a individualidade solipsista, a indiferença endêmica e a insustentabilidade planetária”.

Portanto, desvincula-se a ideia de Cidadania do Estado nacional. Para atender seus objetivos emancipadores é preciso ampliar as fronteiras e superar o interesse restrito de cidadãos votantes para possibilitar a configuração de cidadãos que entendem a vida além de seus muros e percebam que somente a solidariedade global poderá ter chances de enfrentar as situações de não-vida[16] do capitalismo.

Abreu (2011, p. 238-239), ainda ressalta que “a construção da democracia participativa, como adverte Sousa Santos, não acarreta a destruição da democracia representativa”, pois o modelo de representação é necessário. Portanto, o que se pretende é “alargar os espaços de participação”, a fim de estabelecer “relações de coexistência e complementariedade entre a democracia participativa e a representativa mesmo porque não são formas políticas contrapostas”.

Ocorre, então, a modificação do espaço da Cidadania, que tem o seu conceito ampliado para eliminar os mecanismos de exclusão que possam surgir, objetivo para o qual o Acesso à justiça tem grande relevância. Trata-se de uma Cidadania ativa, participativa, individual e coletiva, inclusive para o novo cenário mundial marcado pela Globalização. Nesse sentido, complementa Aquino (2014, p. 382):

“Quando se vivencia uma situação de opressão ou exclusão, convergem-se esforços, formas de participação, a fim de se aperfeiçoar nosso sentimento de Humanidade e permitir a distribuição e acesso ao Poder, bens, serviços e direitos em todo o território continental. Essa é uma Cidadania que não isola, nem exclui, mas convoca à participação, torna-se crítica e reflexiva contra esses critérios que disseminam o sobre-viver ao viver em comunhão”.

Portanto, para promover suas intenções, a Cidadania “precisa ser, sob o ângulo jurídico, constituída como Princípio a fim de orientar a procura e a práxis de vínculos humanos mais responsáveis e solidários”, numa nova Estética da Convivência, como Aquino (2014, p. 387) propõe a pensar sobre a Cidadania Sul-Americana: “a integração somente ocorre quando se sente algo junto com alguém e se promove a amizade como abertura dialogal ao estranho, o diferente”.

O cenário brasileiro descrito na primeira sessão demonstrou como as relações autoritárias podem prejudicar a sociedade como um todo e como é difícil superar as suas consequências, especialmente para a população mais carente e vulnerável. Também destacou a importância do desenvolvimento de mecanismos que possam empoderar as pessoas e torná-las agentes de mudanças, como o acesso à justiça, concretizado na experiência dos juizados especiais. Uma experiência, deve-se destacar, que precisa ser ampliada, revigorada e priorizada, a partir da pauta dos direitos humanos concretizados na luta diária pelo bem da vida.

Por isso, a importância da Democracia e do Direito no seu sentido mais forte, ou seja, de pacto com a vida plena para todos, de superação das realidades de não-vida. Somente assim, é possível estabelecer algumas alternativas para a Cidadania numa concepção que ultrapasse o mero ato de votar e se realize na experiência viva com o outro, além das fronteiras limitadoras.

Conclusão

O presente artigo teve como objetivo analisar o desenvolvimento da Cidadania no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 procurando resgatar as contribuições do Direito para o fortalecimento da Democracia no país.

Procurou-se responder a questão de como o Direito poderia contribuir para a proteção e fortalecimento da Cidadania e da Democracia no Brasil, no momento atual, em que as instituições e fundamentos modernos estão abalados pela crise decorrente da insuficiência/incapacidade de respostas do paradigma da Modernidade.

A hipótese levantada de que o Direito de Acesso à Justiça no Brasil, especialmente após a edição da Lei n. 9.099 de 1995, contribuiu para a ampliação da Cidadania e das práticas democráticas foi confirmada. Sem, contudo, ressaltar que é preciso repensar a Cidadania além do modelo representativo e do espaço nacional.

A Cidadania é compreendida enquanto uma dimensão da pessoa humana construída historicamente, a medida que as relações se tornam mais complexas, ora avançando, ora regredindo, mas sempre carregada de símbolos e de promessas.  

No Brasil, o qual tem a sua história marcada por vários momentos de opressão e restrição de direitos, a Cidadania desponta ao final do regime militar, no processo de redemocratização, no entanto a Cidadania encontrou entraves ao seu desenvolvimento pleno tendo em conta a realidade brasileira marcada por grande desigualdade.

A partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, começa a ganhar destaque os meios de promoção do direito de acesso à justiça, como a edição de Lei dos Juizados Especiais, promovendo espaços democráticos de participação popular no campo jurisdicional. Além de garantir o direito de acesso à justiça, conclui-se também que é preciso que ocorra uma atuação mais efetiva do cidadão, pois para garantir a efetividade dos direitos é necessário o empoderamento do cidadão.

Percebe-se que o contexto atual mundial encontra-se tomado por uma crise de transição, causada pelo esgotamento do paradigma da Modernidade, surgindo o debate que anuncia o fim desse período, marcado por incertezas e inúmeros questionamentos. Mesmo não havendo consenso quanto à denominação do novo espaço que se configura, trabalha-se com a proposta de Pós-Modernidade, caracterizada pela crise que se apresenta, refletindo-se na fragilidade do sistema jurídico.

A Cidadania, mais do que uma dimensão política, assume feição história, concreta, balizada pelas lutas sociais, decorrer do tempo, a partir das relações humanas. No entanto, o Estado moderno, marcado pelo liberalismo, proporcionou uma Cidadania limitada ao ato de votar, vinculada à Democracia Representativa ou Indireta, afastando qualquer possibilidade de uma democracia participativa, direta ou outra, que abrangeria a democratização da sociedade civil.

Contudo, os tempos atuais requerem uma repolitização global da prática social a fim de criar novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania, como a democracia participativa. Portanto, a democracia participativa desponta na prática das comunidades e grupos sociais subalternos, na sua luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, procurando o estabelecimento de contratos sociais mais inclusivos e democracia de mais alta intensidade.

No novo contexto mundial, com a crise do Estado moderno, a Cidadania ultrapassou o espaço do Estado-Nação, ampliando-se o seu conceito para uma Cidadania transnacional, cosmopolita, que tem como fim promover a práxis de vínculos humanos mais responsáveis e solidários, ultrapassando o mero ato de votar e se realizando na experiência viva com o outro.

 

Referências
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Notas
[1] O método indutivo caracteriza-se por “[…] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-la de modo a ter uma percepção ou conclusão geral […]”. (PASOLD, 2011, p. 101).
[2]A Pesquisa Bibliográfica trata-se da “técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas leias”. (PASOLD, 2011, p. 207).
[3] A Categoria trata-se “[…] da palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma ideia”. (PASOLD, 2011, p. 34).
[4] O Conceito Operacional consiste na “[…] definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das ideias que expomos.” (PASOLD, 2011, p. 50)
[5] Trecho da música Apesar de você, composta por Chico Buarque de Holanda, em 1970, considerada uma de suas músicas de protesto ao regime militar. (HOMEM, 2009, p. 83-84).
[6] Para os fins deste trabalho a categoria Cidadania é concebida na acepção formulada por Longo: “A cidadania é, inegavelmente, uma possibilidade natural ou legal, mas é, acima de tudo, um compromisso sincero e solene entre um sujeito de direito, que a aceita e a quer, e um outro sujeito de Direito, que a reconhece e a legitima”. (LONGO, 2004, p. 92).
[7] Como conceito operacional de Democracia, lato sensu, segue o conceito de Bobbio (2015, p. 27): “chamei de definição mínima de democracia, segundo a qual por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”.
[8] Como conceito operacional de “acesso à justiça”, colhe-se de Cappelletti e Garth (1988, p. 8): “A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pela qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”.
[9] A categoria Direito será compreendida de acordo com a definição de Reale como “um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social”. (REALE, 2007, p. 02).
[10] Faria explica que a crise financeira “se originou entre junho e agosto de 2007, atingiu o nível mais crítico em setembro de 2008, com a quebra de um dos principais bancos norte-americanos, e foi a maior desde a Grande Depressão da década de 1920 e do colapso da Bolsa de Nova York, em 1929”. FARIA, José Eduardo. O Estado e o direito depois da crise. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 18.
[11] Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br /ccivil_03 /Constituicao /Constituicao. htm.> Acesso em: 08 mai. 2011.
[12] Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. BRASIL. Lei 9.099 de 29 de Setembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 08 mai. 2011.
[13] Para definir a categoria Transição, adotar-se-á a conceituação de Melo, qual seja: “É a transição global de um sistema cultural complexo, de padrões civilizatórios que se foram caracterizando ao longo do tempo, eles mesmos formados por transições contínuas de sistemas particulares, como o político, o social, o econômico, o tecnológico, o jurídico e outros, para uma fase em que novos paradigmas começam a formar-se com o desprestígio de alguns valores e o privilégio de outros”. (MELO, 1994, p. 18).
[14] Para Flores (2009, p. 81) o “empoderamento do cidadão” ou “ontologia da potência” significa “a ação política cidadã sempre em tensão com as tendências dirigidas a reificar, quer dizer, a coisificar as relações sociais. Uma ontologia assim permite compreender e colocar em prática o político-estratégico de um modo socialmente compatível com uma política democrática de textura aberta. O ser não é estático, o ser é aquilo que se entende sob a forma do possível. Portanto, entre os direitos humanos e as políticas concretas há uma estreita relação de interdependência”.
[15] A categoria Modernidade será compreendida, conforme construção de Bittar (2009, p. 34): “[…] a palavra revela, portanto, uma preocupação de designar o que está nascente, o que está associado ao presente-que-deseja-o-futuro, e, portanto, coube bem para designar um período histórico que haveria de ser plantado sob a insígnia da liberdade e da racionalidade. A modernidade, para designar o período histórico pós-renascentista, é a expressão do próprio espírito de um tempo ansioso pela superação dos dogmas e das limitações medievais”.
[16] Para caracterizar as situações de não-vida, pode-se utilizar dos diversos sintomas da crise civilizacional, elencados por Boff que “aparece sob o fenômeno do descuido, do descaso e do abandono, numa palavra da falta de cuidado”, quais sejam: o descuido para com as crianças, vítimas do trabalho infantil, privadas de uma ‘infância’; o descuido para com os pobres que passam fome e sofrem com as epidemias; o descuido para com os excluídos do processo de produção; o descuido para com a generosidade e a solidariedade, que são suplantadas pelo individualismo, em uma sociedade que privilegia a propriedade privada; o descuido para com o ‘conviver’ em sociedade; o descuido para com a dimensão espiritual do homem, oprimida pelo excesso de violência, pela ausência de pudor; o descuido para com a coisa pública, com a diminuição do investimento em políticas sociais, e com o aumento da corrupção e do mau uso do dinheiro público; o descuido para com as outras formas de vida que co-habitam o planeta com a raça humana, promovendo-se uma perda incrível de biodiversidade; o descuido para com o planeta, que tem seu solo envenenado, seu ar e águas poluídos, suas florestas dizimadas, a vida sendo exterminada; o descuido para com a morada das pessoas, obrigadas a viverem em espaços insalubres e desumanos”. BOFF, Leonardo. Saber cuidar. 70. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 18-20.

Informações Sobre o Autor

Silvia Regina Danielski

mestranda do Curso de Mestrado em Ciências Jurídicas da Univali – Itajaí/SC; especialista em Direito Processual Civil pelo CESUSC – Florianópolis/SC; graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brusque – SC. Atualmente exerce a função de Secretária do Juizado Especial da Comarca de São João Batista – Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Atua como mediadora e conciliadora judicial, com formação institucional pelo CNJ. Faz parte do corpo de instrutores da Academia Judicial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na área da Conciliação e como supervisora do estágio do curso de Mediação Judicial


Equipe Âmbito Jurídico

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