O presente artigo tem por objetivo avaliar quais são as implicações jurídicas, com base no Direito Internacional, que decorrem da criação do Parque Tecnológico de Itaipu (PTI). Nesse sentido, faz-se inicialmente uma abordagem sobre o Tratado de Itaipu e, em seguida, alternativas são discutidas com vistas à viabilizar a implementação desse projeto sem que haja violação tanto dos compromissos internacionais assumidos pelas partes envolvidas quanto do direito interno brasileiro.
1. O Tratado de Itaipu e o PTI
O instrumento jurídico que rege Itaipu é um Tratado Internacional, firmado entre Brasil e Paraguai, em 26 de abril de 1973. O objeto do Tratado de Itaipu, de acordo com o Artigo I do mesmo, é “o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná, pertencentes em condomínio aos dois países, desde e inclusive o Salto Grande em Sete Quedas ou Salto de Guairá até a Foz do Rio Iguaçu”.
Em 1973, o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná envolvia exclusivamente a preocupacao de produção/geração de energia para os mesmos, porque mundialmente vivia-se a crise do petróleo e a busca por formas alternativas de energia. Portanto, a urgência com que se apresentava a crise energética, o estágio de desenvolvimento da pesquisa e a pauta de interesses da sociedade civil naquela década do século passado não reconhecia em Itaipu um espectro de atividades como as que hoje são desenvolvidas pela mesma em campos tão amplos como a preservação ambiental e os programas sociais.
Passadas mais de três décadas da assinatura do Tratado de Itaipu, o objeto do mesmo ganhou novas feições, sendo ampliado. À idéia inicial de geração de energia, agregou-se a idéia de efetivo desenvolvimento econômico e social da região e a proteção do ecossistema formado pelo lago e pela fauna e flora das matas ciliares.
Como é de se notar, ao longo dos anos, paralelamente à preocupação com a geração de energia elétrica, surgiram preocupações com educação (Programa de Incentivo Educacional), emprego, trabalho e previdência (Programa de Iniciação e Incentivo ao Trabalho, Programa Trainees, Programa de estágios, Programa de Reflexão para a Aposentadoria), saúde (Programa de Apoio e Tratamento, Participação Comunitária, Prevenção a acidentes), preservação ambiental (Programa de manejo de bacias hidrográficas, Plantio Direto com Qualidade, Projeto de reaproveitamento de material reciclável) e ciência e tecnologia (ITAI – PTI).
Em 1973, o estado da ciência era um; por óbvio, em 2004, passados mais de 30 anos, o estado da ciência é outro. Por certo, com o passar dos anos, o desenvolvimento das atividades da Hidrelétrica e os próprios avanços da ciência implicariam o desenvolvimento sócio-econômico da região, e, conseqüentemente, a necessidade de ampliar os âmbitos de atuação na mesma.
Neste contexto, a iniciativa e constituição de um Parque Tecnológico de Itaipu- PTI começa a ganhar forma com a assinatura da Carta de Intenções em 23.05.03 por representantes ministeriais do Governo Federal brasileiro e do Governo paraguaio, que se somaram à Diretoria-Geral de Itaipu e a um conjunto de representantes das esferas pública e privada brasileiro-paraguaia. Nesta Carta de Intenções não estão expressos compromissos jurídicos internacionais, mas antes revela um consenso em torno de pautas mínimas de comportamento à qual aderem uma gama variada de agentes governamentais e não-governamentais, o que a doutrina internacional estuda sob a denominação dos gentlemen’s agreements.
Nesta Carta de Intenções se conceitua o PTI como:
“Espaço inovador que congrega projetos e programas voltados para a inserção social, a geração de emprego e renda, a geração e distribuição do conhecimento em todos os seus níveis, assim como o desenvolvimento e transferência de tecnologias, propiciando trocas de experiências e integração entre pessoais para uma melhor compreensão e mudança da realidade.”
Quanto aos objetivos, ali se definiram como sendo de natureza geral e específico. Os objetivos gerais são os de:
“Promover a integração da América Latina, através da mobilização de entidades governamentais, entidades representativas da sociedade civil organizada, das entidades acadêmicas, instituições de pesquisa e entidades de fomento para o desenvolvimento sustentável, visando o desenvolvimento econômico, social e cultural, baseado na educação, ciência e tecnologia, geração de emprego, trabalho e renda.”
As competências que o PTI passaria a exercitar se aclaram quando se chega ao item 2.2 da Carta de Intenções referida. Ali, a par das atividades de ensino e pesquisa, a capacitação profissional com vistas à geração de empregos e a atração de iniciativas empresariais em uma incubadora e em um condomínio de empresas são definidas como o fim a que se propõe o PTI a realizar:
“2.2 – Específicos
Criar o “Parque Tecnológico Itaipu”, que será um espaço para a Integração Educacional, Tecnológica e Cultural da América Latina, que congregará:
a) atividades de ensino, pesquisa e extensão dentro de um modelo de cooperação técnico-científica entre as Universidades Públicas do Brasil, Universidades do Paraguay e dos demais países membros do Mercosul e a incorporação de outras Universidades da América Latina;
b)atividades de capacitação profissional em todos os níveis, contribuindo com os processos de empregabilidade e geração de emprego e renda;
c)incubadoras empresariais tradicionais mistas e de base tecnológica, para impulsionar a criação de empresas;
d)condomínio empresarial que agregue empresas de referência e permita a instalação de empresas graduadas oriundas de incubadoras.”
A proposta de incorporar ao território de Itaipu, assim como definido pelo Tratado de 26 de abril de 1973, um Parque Tecnológico, sob administração direta dos órgãos de gestão de Itaipu, ou organizado sob a forma de uma fundação, ampliará o objeto de atuação originalmente concebido para Itaipu.
A atuação pretendida pelo PTI não se restringe apenas à pesquisa e desenvolvimento, quando ainda se poderia defendê-las como atividades voltadas à realização do fim de aproveitar-se o potencial hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná.
A atividade empresarial que se pretende fomentar no PTI, ainda que possa focar-se no fornecimento de bens e serviços para Itaipu, possui objetivos de geração de empregos, desenvolvimento regional e integração da região fronteiriça que dificilmente poderão se enquadrar no figurino apertado do aproveitamento do potencial hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná.
Por esta razão, entende-se que há necessidade de que o PTI e seus objetivos sejam incorporados ao Tratado de 26 de abril de 1973, não sem antes ganhar aprovação imediata dos órgãos de natureza deliberativa e executiva de Itaipu.
A emenda aos termos de um tratado bilateral, como o Tratado de 26 de abril de 1973, depende de acordo dos Estados-parte do Tratado, Brasil e Paraguai. A eventual defesa da dispensa de uma tal emenda, sustentada na tese de que operam-se emendas aos Tratados também pela via da prática de atos reiterados reveladores da intenção das partes em promover mudanças aos compromissos originais não nos parece recomendável.
A tese das modificações tácitas empreendidas nos acordos internacionais que possibilitasse a defesa do alargamento do objeto de Itaipu é temerária. A própria proposta da Comissão de Direito Internacional para que uma tal provisão fosse incluída na Convenção de Viena foi rejeitada fortemente pelos delegados participantes da Conferencia de Viena, porque a idéia de que padrões consistentes de comportamentos aceitos pelas partes como aptos a modificar os tratados poderiam incientivar também defesas de má-fé em prol de mudanças nos tratados não mais desejados pelas partes. [1]
Da mesma forma, o esforço em buscar, pela via interpretativa, na expressão “aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná” a realização de objetivos como inserção social, empregabilidade, desenvolvimento regional e integração latino-americana introduz uma nota de insegurança jurídica que certamente afastará investimentos de risco no PTI. Já é de conhecimento público a resistência com que se admite que a natureza jurídica internacional de Itaipu lhe preserva dos controles e exigências que a Constituição Federal brasileira faz aos órgãos da administração publica direta e indireta dos diversos entes federativos[2].
Contudo, há espaço possível para tal tentativa. Para incluírem-se os objetivos do PTI nos limites estreitos do que hoje se define como objeto do Tratado, sem nada modificar, seria necessário lançar mão da interpretação do objeto do Tratado de Itaipu, levando em conta o que vem a ser “aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná”, o que nos levaria fatalmente a lidar com a semântica.
A semântica estuda o significado veiculado pelas expressões, buscando destacar, entre diversos possíveis, aquele que é mais apropriado, delimitando a extensão da interpretação. Do ponto de vista semântico, o que se procura nas palavras é a parcela de realidade por elas representada.
A aplicação do direito não pressupõe um raciocínio formalista. Pelo contrário, o direito está em constante construção e está intimamente ligado a valores sociais. Assim, a aplicação do direito pressupõe não só a consideração da linguagem do direito como um todo, como também o conhecimento de outras ciências sociais. Conseqüentemente, na análise semântica dos termos jurídicos de uma norma, deve-se sempre considerar todo o contexto no qual ela está inserida, não se restringindo à técnica jurídica, mas considerando toda a dinâmica do direito.
O operador jurídico, na adequação e aplicação da norma escrita, leva em consideração regras de interpretação jurídica, a fim de adequar a lei positivada aos elementos vivos da experiência social.
Interpretar não envolve apenas descobrir o sentido de determinada norma jurídica e aplicá-la ao caso concreto; envolve, além disso, adaptação da norma escrita às mudanças que a evolução cultural e o progresso científico e tecnológico geram na sociedade. O Direito deve acompanhar esta evolução, deve interagir com os acontecimentos sociais. A sociedade se transforma e o Direito deve acompanhar esta transformação.
Sendo assim, interpretar é, além de adequar e aplicar uma norma ao caso concreto, extrair desta norma tudo que nela está contido, revelando o verdadeiro significado de seus termos, revelando o sentido mais apropriado à realidade. Nas palavras de Carlos Maximiliano, citando Ennecerus, “interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta”.
No caso dos tratados, segundo a Convenção de Viena de 1969, estes deverão ser interpretados primeiramente através da referência dos termos de seu texto (o objeto e o fim do tratado), levando em conta também o contexto, mas apenas num segundo momento. Segundo Visscher, a Convenção de Viena adota como critérios básicos da interpretação o objeto e o fim do tratado.[3]
Se consideramos que o objetivo da interpretação de um tratado é elucidar a verdadeira intenção das partes, não se pode jamais desconsiderar o contexto no qual o tratado foi celebrado. [4]
Qualquer texto, mesmo quando expressão autêntica da intenção das partes, deve ser lido imparcialmente e em conjunto, e suas cláusulas devem ser lidas dentro de todo um contexto e à luz de seus objetivos e propósitos.[5]
Acredita-se que a experiência de mais de 30 anos de Itaipu tenha demonstrado suficientemente que o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná depende de muito mais condições do que simplesmente recursos naturais abundantes e geografia favorável. A consciência que se desenvolveu em torno da questão ambiental, desde a mesma década de 70 do nascimento de Itaipu, tornou claro que ausente a proteção dos recursos da fauna e flora das águas e do entorno do Lago de Itaipu, o potencial de aproveitamento hidrelétrico periclita perigosamente.Da mesma forma, pode-se buscar argumentos em prol do aproveitamento hidrelétrico adequado por Itaipu em iniciativas tão distantes como as de promoção social das populações ribeirinhas e a integração dos Estados que compõem a tríplice fronteira.
Poderia aina reforçar um tal argumento em prol da competência dos órgãos de Itaipu para executar imediaamente e sem emenda do Tratado de 26 de abril de 1973, o que se propõe no âmbito do PTI a denominada Teoria dos Poderes Implícitos (implied powers).
Construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no caso McCulloch vs. Maryland, em 1819. Esta teoria, segundo a qual, se o constituinte concedeu a determinado órgão ou instituição uma função, uma atividade-fim, implicitamente concedeu-lhe os meios necessários para atingir de seu objetivo, sob pena de ser frustrado o exercício do múnus constitucional que lhe foi cometido.
Na doutrina internacional, a teoria dos poderes implícitos remonta, além da decisão de 1819, a julgados da Corte Internacional de Justiça (CIJ). O julgado de maior relevo neste sentido é o Julgamento de 11 de abril de 1949, no qual se tratou da personalidade jurídica das Nações Unidas, e então se falou da sua competência implícita (implied powers).
Em 1948, um mediador na ONU, Folke Bernadotte, foi assassinado na Palestina. Em função deste assassinato, a Assembléia Geral da ONU consultou a CIJ sobre se a ONU teria capacidade de demandar reparação frente ao governo responsável, em seu próprio nome, em benefício daqueles que sofrem danos a serviço da ONU.
A resposta da CIJ foi afirmativa:
No parecer da CIJ, a ONU pretendia exercer e gozar de funções e direitos que só poderiam sê-lo com ampla personalidade internacional e capacidade para operar no plano internacional. A ONU era o protótipo da organização internacional e não poderia representar seus fundadores se não lhe faltasse personalidade internacional. Os membros da ONU, ao confiar-lhe certas funções, com os respectivos deveres e responsabilidades, revestiram-na com a competência requerida para fazer com que estas funções fossem efetivamente realizadas.
Conseqüentemente, a Corte chegou à conclusão que a ONU é uma pessoa internacional. Não significava dizer que era um Estado, mas que era sujeito de direito internacional e capaz de ter direitos e deveres internacionais, e que tinha capacidade de manter seus direitos através de demandas internacionais.
A Carta da ONU não lhe conferiu expressamente a capacidade de incluir, em suas demandas de reparações, danos causados a vítimas ou pessoas agindo em seu nome. A Corte precisou, portanto, perquirir se as previsões da Carta relativas às funções da Organização e as desempenhadas por seus agentes no exercício daquelas funções implicavam, para a ONU, poder de dar aos seus agentes as proteções limitadas, que consistiam em demandar em seu benefício por dano sofrido naquelas circunstâncias.
Sob o direito internacional, a Organização deve ter aqueles poderes que, embora não expressamente previstos na Carta, são conferidos pela necessidade de implicação, como sendo essenciais à performance de seus deveres. Pelo exame das funções confiadas à ONU e a natureza das missões de seus agentes, fica claro que a capacidade da Organização para exercer medida de proteção de seus agentes vem do próprio propósito da Carta.[6]
Este método de interpretação da CIJ, segundo entendimento da doutrina, vale para toda organização e toda jurisdição internacional, como uma diretiva de interpretação.[7]
Pois bem, de acordo com a Teoria dos Poderes Implícitos, a Constituição, ao atribuir poderes explícitos, reconhece, implicitamente, a titularidade de outros poderes, consubstanciados em meios destinados a viabilizar a competência diretamente outorgada – seriam poderes implícitos noutros expressamente atribuídos, a fim de dar eficácia real ao exercício de uma determinada competência (voto do Ministro Celso de Mello, no MS 24.510-7/DF).
As Constituições deixam à interpretação e ao critério de cada um dos poderes constituídos, no uso dessas funções, a escolha dos meios e instrumentos com que os tem de exercer a cada atribuição conferida. A cada um dos órgãos da soberania nacional, corresponde, implicitamente, mas inegavelmente, o direito ao uso dos meios necessários, dos instrumentos convenientes ao bom desempenho da missão que lhe é conferida. Se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer estas funções (Ministro Celso de Mello, citando Rui Barbosa, Comentários à Constituição Brasileira, 1932).
Na doutrina administrativista nacional, os implied powers estão nos atos administrativos autônomos ou independentes (eles são expressão nacional dos implied powers do direito internacional).
Os regulamentos autônomos ou independentes são aqueles que não se autoriza por lei, mas cuja autorização decorre da Constituição diretamente ou do costume constitucional, geralmente concentrado na organização dos serviços públicos e justificado pelo dever da Administração de tornar efetivas suas atribuições, de que é exemplo o inciso XII, art. 21 da Constituição Federal: “Art. 21 – Compete à União: (…) XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens e demais serviços de telecomunicações; (…)”.[8]
O mesmo que ocorre com a Constituição, em nível nacional, ocorre com os Tratados, no âmbito internacional. Se um Tratado outorga competência para realização de um objetivo, implicitamente está outorgando competência para realização de tudo o que for necessário para a concretização deste objetivo.
Assim, se o Tratado de Itaipu outorgou competência para produção/geração de energia elétrica, tudo aquilo que for necessário para realização deste objetivo deverá ser feito, e se considera que tudo está implícito naquele objetivo inicial. O objeto do Tratado de Itaipu, qual seja, aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná, para sua máxima consecução, implica uma série de outros aspectos que não estão especificados, enumerados no texto, mas que dele decorrem, e que são necessários para levar adiante o melhor aproveitamento hidrelétrico.
Esse poderia ser o caso do desenvolvimento do PTI. Ele não está previsto entre os objetivos do Tratado, mas é inerente ao seu objetivo inicial, e dele decorre. Para se ter máximo aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná, há que se ter em mente o desenvolvimento da região como um todo, levando em conta, principalmente, o plano científico e tecnológico. O PTI, com sua proposta, integra o objetivo do Tratado, na medida em que tem muito a contribuir para a melhor realização do mesmo.
Nesse sentido, lançando mão da interpretação do que vem a ser o objeto do Tratado de Itaipu, considerando aquilo que se disse sobre a adequação da interpretação do Direito relativamente à vida real, bem como o que se disse sobre a análise semântica no que concerne ao contexto em que se insere a norma, e também considerando a teoria dos poderes implícitos, a definição do que se entenda hoje necessário para realizar o fim de aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná poderia ser buscado previamente entre as Altas Partes Contratantes, pela via que canalizou até hoje as iniciativas interpretativas do Tratado de 26 de abril de 1973 pelos Estados-parte, ou seja, a Nota Reversal.
Contudo, o PTI não e apenas uma estrutura administrativa de gestão de iniciativas econômicas e educacionais. O PTI também será um espaço onde relações jurídicas de natureza trabalhista e fiscal, por exemplo, serão desenvolvidas entre os sujeitos participantes do PTI entre si, com Itaipu e com terceiros. Neste ponto, não se defende que se possa estender autmaticamente o regime jurídico estabelecido para Itaipu e seus empregados aos participantes do PTI e seus empregados. Aqui nos parece imprescindível a alteração formal do Tratado de 26 de abril de 1973 e não apenas a sua interpretação, pela via de uma Nota Reversal aprovada de forma simplificada, como foi sugerido no parágrafo anterior para a questão do alargamento da interpretação das Altas Partes Contratantes sobre os objetivos de Itaipu.
Diferentemente de uma simples Nota Reveral aprovada de forma simplificada, portanto sem a intervencao congressual brasileira e paraguaia, os temas que afetem competências constitucionais brasileira e paraguaia, como os temas ambiental, trabalhista e tributário devem ser objeto de Nota Reveral específica, esta sim tramitada pela via complexa da aprovação prévia do Congresso Nacional e a emenda formal do Tratado de 26 de abril de 1973.
Na hipótese de emenda, portanto, deve-e buscar sua previsão no próprio instrumento que se pretenda emendar. Supletivamente, nos termos da Convenção de Viena de 1969. Sendo o Tratado de Itaipu um instrumento bilateral, descabem considerações sobre a diferença que faz essa Convenção entre emenda e modificação (emenda aplicável às alterações promovidas por todas as partes do tratado e modificação aplicável às alterações promovidas por apenas algumas das partes de um tratado).
O próprio Tratado de 26 de abril de 1973 prevê, em seu Artigo 3º e parágrafos, a possibilidade de emenda:
Artigo III: “As Altas Partes Contratantes criam, em igualdade de direitos e obrigações, uma entidade binacional denominada ITAIPU, com a finalidade de realizar o aproveitamento hidrelétrico a que se refere o Artigo I”.
Parágrafo 1°: “A ITAIPU será constituída pela ELETROBRÁS e pela ANDE, com igual participação no capital, e reger-se-á pelas normas estabelecidas no presente Tratado, no Estatuto que constitui seu Anexo A e nos demais Anexos”.
Parágrafo 2°: “O Estatuto e os demais Anexos, poderão ser modificados de comum acordo pelos dois Governos”.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, PARTE IV, Artigo 39°, prevê que:
Artigo 39: “Regra geral relativa à revisão dos tratados – Um tratado pode ser revisto por acordo entre as Partes. Aplicam-se a tal acordo as normas enunciadas na parte II, salvo disposição do tratado em contrário”.
A Convenção de Viena não foi ratificada pelo Brasil, mas é considerada fonte de direito, pela via consuetudinária. Segundo Cachapuz, em O Poder de Celebrar Tratados (1995), “O Itamaraty procura pautar sua atividade na negociação de tratados de acordo com a Convenção de Viena, apesar de não ter sido ratificada, assim como ocorre nos EUA.[9]
Pois bem, em resumo, há duas formas de alterar o Tratado de Itaipu, relativamente ao seu objeto: a forma complexa, passando pela aprovação do Congresso Nacional (modificação do tratado), e a forma simplificada, que prescinde de tal aprovação, sendo celebrada por troca de notas diplomáticas (complementação do tratado). Na sequência, abordam-se mais detalhadamente as duas formas, para fins de clareza e compreensão.
2. Alteração complexa do objeto do Tratado (modificação do objeto), passando pela aprovação do Congresso Nacional, como prevê a Constituição
A realizacão por Itaipu dos objetivos definidos no PTI implica ampliação do objeto do Tratado de 26 de abril de 1973 e o estabelecimetno de regulamento próprio ao desenvolvimento incentivado de atividades empresariais por agentes econômicos diversos de Itaipu, perseguindo objetivos não necessariamente congruentes com os de Itaipu. Não se trata mais, portanto, de mera complementação, mas de modificação dos termos originais do acordo internacional.
O entendimento do Itamaraty é de que os acordos modificativos devem, necessariamente, passar pela aprovação do Congresso, o que observa com base nos pareceres da Consultoria Jurídica do Ministério das Relações Exteriores. Assim. via de regra, no Brasil, o ato internacional necessita, para a sua conclusão, da colaboração dos Poderes Executivo e Legislativo.
Segundo a vigente Constituição brasileira, é competência privativa do Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais (art. 84, inciso VIII), embora estejam sujeitos ao referendo do Congresso Nacional, a quem cabe, ademais, resolver definitivamente sobre tratados, acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, inciso I).
Art. 84: “Compete privativamente ao Presidente da República:”
Inciso VIII: “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”
Art. 49 : “É da competência exclusiva do Congresso Nacional:”
Inciso I: “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.
O referendo do Congresso Nacional não é sinônimo de ratificação de um acordo de vontades celebrado entre entes soberanos, porque a prática de atos internacionais é reservada exclusivamente à chefia da União. O referendo de que fala o inciso VIII do art. 84 consiste na participação do legislativo na formação da norma geral e abstrata que orientará as condutas daqueles dos nacionais brasileiros ou residentes no Brasil.
O referendo do Congresso Nacional é, portanto, condição necessária para que o Presidente da República possa vincular o Estado brasileiro, por meio da ratificação, ao cumprimento de uma norma internacional. A ausência de referendo do Congresso Nacional equivale à ausência de autorização para a ratificação e sepulta a vinculação do Brasil aos compromissos expressos no ato internacional.
O referendo do Congresso Nacional, da mesma forma, não obriga o Presidente da República a ratificar o ato internacional. Ao contrário, autoriza-o, mas é decisão exclusiva do Chefe de Estado promover a ratificação. Não o fazendo, não haverá tratado internacional a vincular o Brasil como parte.
Tendo em vista da discussão que se estabelece sobre a processualística dos atos internacionais, vinculamo-nos aos que não atribuem ao Decreto Legislativo, que materializa a aprovação Congressual do ato internacional e portanto é expressão normativa do exercício de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 59 da Constituição Federal), o poder de produzir efeitos na órbita internacional e na órbita interna.[10]
A produção de efeitos de um tratado na órbita internacional é dependente do respeito às normas fundamentais do Estado (Convenção de Viena de 1969 sobre Direito dos Tratados) sobre exercício de competência internacional. A Constituição Federal brasileira é norma fundamental e ali está definida a competência exclusiva da Chefia do Executivo da União para a prática de todo e qualquer ato internacional. Portanto, após a publicação do Decreto Legislativo pela Presidência do Senado Federal, caberá ao Presidente da República ratificar o ato internacional e somente a partir da troca de instrumentos ou o depósito do instrumento de ratificação é que se pode falar em início de produção de efeitos na esfera internacional.
A produção de efeitos de um tratado na órbita interna é dependente da ratificação internacional, porque somente após a prática deste ato, que lógica e cronologicamente é sempre posterior à publicação do Decreto Legislativo que aprovou o tratado, é que o Estado passa a ser parte do tratado e somente a partir deste momento é que direitos e obrigações passam a vincular o Estado, agora como parte e não apenas como signatário do ato internacional.
É neste contexto que se compreende a prática republicana brasileira de identificar-se o início de vigência de um tratado na esfera interna à publicação do Decreto presidencial que noticia a ratificação pela República Federativa do Brasil do tratado internacional. Dá-se, com isso, publicidade ao compromisso assumido pelo Brasil pela ratificação. A ratificação é ato externo condicionado à aprovação Congressual expressada no Decreto Legislativo e em relação a esse é sempre posterior. A ratificação dá publicidade externa ao compromisso assumido pelo Estado perante os demais sujeitos da esfera internacional, mas não dá publicidade interna. A publicidade interna, portanto, ocorre com a promulgação[11] e publicação do Decreto Presidencial, que nada mais faz do que comunicar a ratificação e, portanto, o início de vigência também na esfera interna.
Considerando que o PTI envolverá atividades empresariais, de pesquisa e desenvolvimento e de cunho ambiental e social, suas repercussões, em especial nas esferas da regulação ambiental, tributária e trabalhista, tocarão de perto competências constitucionais, o que fatalmente exigirá intervenção do Congreso Nacional, para a aprovação final do instrumento jurídico internacional – Nota Reveral – que venha a contemplar tais matérias, no âmbito do PTI, promovendo, também, a ampliação do objeto orignalmente definido para Itaipu.
Desta forma, defende-se que o Acordo de Forma Simplificada, pela via de uma Nota Reversal, pode contemplar o tratamento minudente de tais matérias e o alargamento do objeto de Itaipuntomas que tal instrumento internacional deverá ser aprovado pelos Congressos nacionais brasileiro e paraguaio e após ratificado por meio de troca de notas, para que e outorgue suficiente segurança jurídica aos investimentos que ali se pretendem realizar.
3. Alteração simples do objeto do Tratado, por troca de Notas Reversais, dispensando a aprovação do Congresso Nacional.
A par da alteração complexa, há também alteração feita de forma simples, através de acordo em forma simplificada, sem necessidade de aprovação do Legislativo.
Cachapuz, em O Poder de Celebrar Tratados, pontua que certos Estados optaram por enumerar, nas suas Constituições, os tratados que requerem obrigatoriamente a aprovação do Legislativo, ou tratados que não requerem aprovação Parlamentar. Nos Estados em que as Constituições não previram tal expediente, mantendo procedimentos constitucionais de celebração de tratados mais lentos e complexos, foi a necessidade prática de celeridade que deu corpo à celebração de atos internacionais de forma simplificada.
Assim ocorreu no Brasil, onde a prática da celebração de acordos à margem da letra da Constituição foi se desenvolvendo aos poucos e terminou por se instalar.
Tal prática decorreu não só da necessidade de celeridade na celebração dos atos internacionais, como também do fato do Direito Internacional não estabelecer nenhuma regra imperativa sobre a forma dos tratados (p. 223). Ademais, apesar de várias Constituições determinarem que os tratados internacionais devem ser aprovados pelo Legislativo, sem abrir exceção, nenhuma proíbe expressamente a celebração de acordos em forma simplificada (p. 239).
A Constituição determina em quem repousa o poder de negociar e de ajustar os tratados com as potências estrangeiras. Na Constituição Brasileira, o Chefe do Executivo tem o papel preeminente na formação da vontade do Estado relativamente à celebração de tratados, mas é exigida participação do Legislativo na ratificação dos mesmos.
Todavia, na prática, o Brasil firma acordos de forma simplificada, dispensando a participação do Congresso; existem, portanto, ajustes internacionais independentes do consentimento do Legislativo. Mesmo que a Constituição imponha a obrigatoriedade de obter aprovação do Parlamento para tratados internacionais, é difícil contornar a prática do Executivo de celebrar acordos sem a participação do Legislativo (p. 167).
Os chamados acordos em forma simplificada são acordos de processo abreviado, sobretudo utilizados em acordos bilaterais, quem em geral, suprimem a aprovação parlamentar e a ratificação (p.202).
Na doutrina brasileira, o grande defensor deste entendimento foi Hildebrando Accioly, que sustentou que nosso País pode ser parte em atos internacionais que não dependam da aprovação do Congresso Nacional (Cachapuz, em O controle legislativo dos atos internacionais, 1985). Segundo Cachapuz, o Itamarati, na prática, adotou a interpretação de Accioly, no sentido da validade dos acordos de forma simplificada no sistema brasileiro de celebração de tratados, acordos estes que dispensam a aprovação do Legislativo e a ratificação, entrando em vigor no momento em que são assinados, ou que se processam por troca de notas diplomáticas, protocolos de entendimentos, declarações conjuntas, memorandos, etc.
E mais, de acordo com o parecer de Accioly, os acordos em forma simplificada são admissíveis, entre outros casos, para os acordos que decorrem, lógica e necessariamente, de algum tratado vigente e são como que seu complemento.
Essa posição foi rebatida e foi alvo de muita crítica, mas o fato é que, como conclui Cachapuz, o Itamarati manteve o entendimento defendido por Accioly, e tem concluído vários atos internacionais em forma simplificada.
Conforme Cachapuz (em O controle legislativo dos atos internacionais), com base em pesquisa realizada, no período compreendido entre os anos de 1946 e 1981, foram celebrados pelo Governo brasileiro, no mínimo, 317 acordos em forma simplificada, sem aprovação expressa e específica do Legislativo, incluindo, neste rol, acordos sobre assuntos administrativos, ajustes sobre questões de importância restrita, acordos consignando interpretação de cláusulas de tratado já vigente, acordos que complementam tratados vigentes, entre outros. E, mesmo com a reação do Congresso em alguns casos específicos, o Executivo continuou e continua celebrando acordos em forma simplificada.
Mais adiante, Cachapuz afirma que não encontrou, na jurisprudência brasileira, casos de declaração de inconstitucionalidade de tratado internacional por causa da inobservância das formalidades constitucionais para sua celebração, em especial pela falta de submissão ao Poder Legislativo. Indo adiante, este autor afirma que, entre 5 de outubro de 1988 e 31 de dezembro de 1983, foram apreciados pelo Congresso Nacional 185 tratados e o Governo celebrou 182 acordos em forma simplificada (p. 431). Destes 182 acordos em forma simplificada, 81 eram ajustes complementares a tratados preexistentes.
Coincidentemente, o autor mencionado, que hoje ocupa a importante função de Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil cita que no período de 1988-83 também foram celebrados alguns poucos acordos de forma simplificada, introduzindo modificações em tratados vigentes, como o Acordo entre Brasil e Paraguai modificativo do Anexo A (Estatuto de Itaipu), relativo ao Tratado de Itaipu, concluído por troca de notas.
Considerando a necessidade de atos imediatos que incorporem a proposta e os objetivos do PTI no espectro de atividades amparadas pelo acordo de vontades dos dois Estados que formam Itaipu, defende-se que o Acordo de Forma Simplificada, pela via de uma Nota Reversal, que prepare o terreno para a reforma pontual do Tratado original, incorporando elementos interpretativos que definam o entendimento comum dos Estados sobre o alargamento dos objeitvos que deve realizar Itaipu, para continuar promovendo a geração de energia elétrica com respeito ao meio-ambiente e aos compromissos sociais, possa dispensar a aprovação congressual em ambos os Estados-parte, respeitando a prática já estabelecida por Itaipu.
Este acordo sob forma simplificada será prévio e preparará caminho para nova Nota Reversal, agora contemplando emeda ao Tratado de 26 de abril de 1973, assim como definido no item anterior.
Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo
Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil e Professor do Curso de Pós-graduação em Direito da UFSC
Advogado
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