Perspectiva e aplicação de novos princípios do Direito Civil: Da função social do contrato e da boa-fé objetiva

A última metade do século vinte pareceu enfraquecer o instituto do contrato – antes tido como verdadeiro pilar do direito privado, particularmente, no que se refere à autonomia e à vontade privada.


Houve inegável limitação da denominada ‘autonomia privada’ – ao menos dentro de uma perspectiva liberal ou clássica do termo. Promoveu-se singular limitação à liberdade dos partícipes contratuais no que respeita à possibilidade de fixação do conteúdo das cláusulas contratuais. Essa tendência de crescente envolvimento estatal desembocou em verdadeiro descrédito do instituto contratual que trazia em si, ou tinha, por natureza, a expressão da desvinculação e liberdade. Consoante a professora Giselda Hironaka, porém, tal agouro proveio da confusão existente entre “liberdade de contratar” de um lado e, de outro, “liberdade contratual” – como expressões análogas, quando na realidade representam coisas diversas.


O contrato em si não foi abalado; mas, submeteu-se-lhe roupagem diferente no tempo: ora mais publicizado, ora menos; ora mais suscetível à intervenção estatal, ora menos. São faces de um instituto que evolui sempre – e de acordo com a própria evolução humana e das relações que seus membros estabelecem com os demais.


Mudam os fatos, muda a realidade social; altera-se, em conseqüência, a arquitetura jurídica, embora, apesar do novo enfoque (ou paradigma) não deixe de ser contrato. A intervenção do Estado como resposta ao liberalismo jurídico evitou o perecimento do mais pobre, do mais fraco, do hipossuficiente – exsurge, portanto, o denominado “dirigismo contratual”.


Devemos identificar os novos princípios e modelos que regem a conformação contratual hodierna. Ao código passado incorporaram-se ou tipificaram-se determinados contratos como, por exemplo, contrato de transporte, comissão, corretagem, preliminar, estimatório, dentre outros. Ressalte-se, entretanto, que isso representou mais uma atualização que uma inovação. De fora ainda permaneceram outras modalidades tais como o leasing e o contrato de franquia ou franchising.


Junqueira de Azevedo, por seu turno, reconhece na nova codificação civil outros princípios contratuais não considerados (ou pelo menos de forma expressa) pelo legislador passado. Ele destaca, sobretudo, o principio da boa-fé objetiva e o princípio da função social do contrato.


Consoante o mesmo autor, é bom que se ressalte, os novos princípios não excluíram os princípios clássicos do direito contratual. É dizer: permanecem vigentes o principio da liberdade de contratar – segundo o qual o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda) – e o principio da relatividade dos efeitos contratuais (res alios acta allis nec nocet prodest nec). São princípios ou realidades que convivem; que desenham na contemporaneidade adaptação e coerência com um modelo de pessoa mais ética; com a preocupação da repercussão social do pacto: traços epistemológicos do direito atual.


Se antes o proveito contratual cingia-se à sua repercussão sinalagmática – agora possui também vertente de compromisso público ou geral.


A boa-fé objetiva representa uma correlação de coerência entre os atos e as palavras com a vida ou pensamento interno – representa respeito às convicções exteriorizadas, embora não possam valer como certezas ou verdades já que ela exclui a simulação ou a mentira, mas não o erro. Nela se embutem os deveres de informação, de colaboração e de cuidado ou zelo com o pactuado – ou noutras palavras: promovendo sentido ético, tendência socializante e garantia de dignidade – marcas de renovação do novo direito.


Essa inovação provoca incidência direta do ordenamento sobre certos “hábitos contratuais” renitentes e prejudiciais aos contratantes e à sociedade. Podemos citar o caso, por exemplo, da gloriosa equipe Ferrari que numa das etapas de corridas de Fórmula 1 no ano de 2005 ordenou a um de seus pilotos que deixasse o outro vencer. Ou o caso do espirituoso cantor Zeca Pagodinho que, numa oportunidade, fez campanha publicitária para uma cervejaria e, em seguida, para uma outra (em sentido contrário) àquilo antes exteriorizado. Percebe-se uma nítida tendência de vinculação e veracidade àquilo que se representa, se vende ou se exterioriza sob pena de responsabilização. Aliás, esse direcionamento também ocorre em diversos países como na Alemanha ou na Itália.


De há muito dissera o saudoso Orlando Gomes que o direito obrigacional dirige-se a realizar melhor o equilíbrio social, não somente através de preocupação moral de impedir a exploração do fraco pelo forte, mas de sobrepor a perspectiva do interesse coletivo.


A funcionalidade contratual não se instala na vontade (liberdade) de contratação, porém, restringe o conteúdo do contrato – coisas completamente diversas. Isto é, liberdade de contratar exprime a faculdade das pessoas realizarem ou não suas avenças de acordo com seus interesses e necessidades. Já a liberdade contratual enfoca o conteúdo do contrato, sua consistência interna – e, aqui sim, ocorre limitação à liberdade porque existem, por exemplo, normas cogentes que conformam determinadas exigências ou padrões, criando molduras a certos aspectos contratuais que se entende nocivo e prejudicial às partes e à sociedade. O fato é que a liberdade contratual deve ser exercida nos limites da função social do contrato.


Isso, sobre a perspectiva do direito do consumidor, significou espécie de ratificação ou concretização das diretrizes por ele – Código de Proteção e Defesa do Consumidor/90 – delineadas na década passada. Há época, vislumbrado como inovador; hoje, verdadeiro reflexo dos novos paradigmas e matrizes sobre os quais se funde o direito civil. Vantagens de cunho processual são entendidas como concretizadoras do ordenamento, particularmente, do direito material ínsito e por que não da própria Constituição Federal. A necessidade de tutela nas relações de massa realizou-se através de um modelo que propugnou por uma reequiparação de partes (consumidor e fornecedor), inovando a facilitação procedimental, instituindo tutelas coletivas, criando inversões que permitissem realizar o direito material, dentre outros.


Essa ratificação ou aproximação entre código civil e de consumo pode ser vista pelo art. 421 do NCC – que cuida dos limites sociais da liberdade de contratar – e pela introdução no NCC da Teoria da Imprevisão, consagradora da cláusula “rebus sic stantibus“, que atenua o “pacta sunt servanda“, como se pode ver nos arts. 478/480, ao tratarem da resolução do contrato por onerosidade excessiva.


No contrato de adesão, preocupou-se a nova codificação com a presumível condição mais fraca do aderente, tratando-se de protegê-lo, portanto, como se lê nos arts. 422/423. Por esses pontos, dentre outros, já se pode afirmar que a “visão do contrato no novo Código Civil é a mesma do Código de Defesa do Consumidor”.


Bem se pronunciou Frederico de Castro Y Banule (apud José Luciano de Castilho Pereira in Liberdade de Contratar – Limites Impostos pela Função Social do Contrato) na Espanha, ao dizer:


o senhor pode fazer o que quiser, mas tem de acomodar-se à sociedade; o senhor não vive em uma ilha, não é Robson Cruzoé, o senhor é um homem da comunidade, pense na ressonância que sua atuação possa ter para os demais, trate de não fazer um contrato usuário, porque prejudica a todos. Existe uma função social “.


O novo Código Civil junto ao Código Consumerista, desta forma, estão dando conseqüência ao art. 170 da Constituição Federal, que afirma que ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo, para tanto, ser observados vários princípios, sendo que um deles, como está no inciso III do mesmo artigo, é o da função social da propriedade.


Lembrado seja Norberto Bobbio, para quem, no Estado de Direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. “O Estado de Direito é o Estado dos Cidadãos!”


Por derradeiro, tanto a boa-fé objetiva como a função social do contrato abrangem ou imiscuem-se em todas as fases do pacto: na negociação (pré-contratação), no contrato propriamente dito e na pós-contratação – e representam verdadeiras cláusulas contratuais gerais.


 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

– AZEVEDO, Antonio Junqueira. A boa-fé na formação dos contratos. Revista de Direito do Consumidor – vol. 03. São Paulo: Revista dos Tribunais, set./dez. de 1992.

– HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Contrato: Estrutura milenar de fundação do direito privado. Artigo disponível em http://www.diex.com.br/portal/artigos.asp.

– PEREIRA, José Luciano de Castilho. Liberdade de Contratar – Limites Impostos pela função social do contrato. Artigo disponível em http:// www.tst.gov.br/ArtigosJuridicos/ GMLCP/LIBERDADEDECONTRATAR.pdf.

– TARTUCE, Flávio. Função Social do Contrato do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Método, 2002.

– TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

Informações Sobre o Autor

Luciano Marinho de Barros e Souza Filho

Procurador Federal, pós-graduado em direito processo civil, professor da Faculdade de Direito de Recife (UFPE) e da Faculdade Escritor Osman Lins (FACOL).


Equipe Âmbito Jurídico

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