Resumo: A Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1988 promoveu uma ruptura no ordenamento Constitucional e no arcabouço jurídico vivido até então. A dignidade da pessoa humana passou a ser o farol hermenêutico da interpretação constitucional e como consectário lógico de todo o sistema infraconstitucional.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; Hermenêutica constitucional; Interpretação constitucional.
Sumário: 1. Introdução. 2. O surgimento da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal. 3. A modernidade Constitucional. 4. Os parâmetros da nova interpretação. 5. A dignidade da pessoa humana. 6. Conclusão
1. INTRODUÇÃO
Com a promulgação da Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988, apelidada de ‘Constituição Cidadã’ pelo então presidente do Congresso, Sr. Ulisses Guimarães, além da redemocratização do país rompendo com o sistema ‘militarizado’ instituído pelas Cartas Políticas de 1967 e 1969, estabeleceu-se novos paradigmas de Justiça e de Direito, tendo, o novo sistema, como vigas mestras e seus fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (BRASIL, 1988).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 surgiu um novo panorama estrutural do Estado Brasileiro focado no Estado Democrático de Direito. Quebrava-se com o cenário de um Estado intervencionista, inaugurando-se as possibilidades da livre iniciativa e da livre concorrência, nascia o ideário de igualdade, de proporcionalidade e razoabilidade nas ações estatais.
Estabeleceu-se a convicção do fim da época reacionária para, a partir de então, transparecer o respeito ao homem que finalmente alcançava seu lugar de mérito como razão e fim de todo Direito.
Neste novo horizonte a nova dinâmica Constitucional consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana, como norte hermenéutico que permeia e dá coesão a todo o ordenamento jurídico vigente.
Este novo cenário jurídico e político envolvido pelo signo da liberdade e do respeito ao homem, conclama o interprete do Direito a traçar novos rumos e significados na aplicação do Direito com a finalidade de tornar concretizado o ideário Constitucional e é sobre este terreno novo a ser caminhado que debruçaremos nossos esforços.
2. O SURGIMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Constituição Federal de 1988 além de elencar a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais no inciso III do art.º 1º, ainda estabelece no art. 170 que a ordem econômica deverá se fundar e ter por finalidade assegurar a todos existência digna.
Demonstra com ares de clara e indelével precisão que a dignidade da pessoa humana deverá orientar e ser o elo que dará ao sistema Constitucional uma orientação claramente antropológica.
Jacintho (2006, p. 8) propicia valiosa lição sobre esse fundamento, principalmente quando ressalta que:
“O princípio da dignidade da pessoa humana, de consagração expressa no art. 1º, III, art. 170 e art. 226, § 7º da Constituição Federal de 1988 assumiu feição claramente axiológica, eixo gravitacional sobre o qual transita não apenas o regime dos direitos fundamentais, como também, a estruturação do Estado brasileiro. A dignidade da pessoa humana atua, pois, como vetor não apenas da atividade hermenêutica dos direitos fundamentais, porém, como norma cuja concretização a ciência jurídica deve se propor a incessantemente buscar.”
Nessa linha de raciocínio, é necessário voltar a atenção ao processo por que passou o Direito Brasileiro até chegar à principiologia atual. Neste diapasão, apesar de não estabelecer a dignidade humana como um de seus pilares, a Carta Magna de 1934 (JACINTHO, 2006) foi a primeira Constituição Brasileira a fazer referência ao direito a uma existência digna.
A Carta Constitucional de 1937, em sua curta duração (CARVALHO, 1997), outorgada por Getúlio Vargas, por seu caráter autoritário tolheu qualquer efetividade aos direitos fundamentais, não repetindo sequer a tímida iniciativa da Constituição anterior (1934), tratando de cuidar da concentração do poder no âmbito do executivo, embora trouxesse alguns avanços na seara dos direitos sociais. Aliás, não poderia ser diferente, porque o respeito à dignidade só consegue germinar no solo fértil do respeito à vontade política dos cidadãos, o que não encontrou reflexo no caso da Carta Constitucional de 1937 (JACINTHO, 2006).
Já a Constituição de 1946, embora promulgada no período do pós-Segunda Guerra Mundial, que marcou o período em que se buscava a retomada do rumo democrático e pode ser definida como um dos principais motivadores da inserção da garantia da Dignidade Humana nas Constituições Européias, seguiu este movimento inovador com timidez, tomando a estrutura da Constituição de 1891 e introduzindo os direitos econômicos, sociais e culturais dispostos na Constituição de 1934, criando uma tentativa de relacionamento consentâneo entre os direitos de primeira e segunda geração (JACINTHO, 2006).
A despeito de não haver explicitado diretamente o princípio da dignidade humana, a Constituição de 1946 privilegiou o regime das liberdades individuais e fundou o princípio da Justiça, do trabalho digno e da educação baseada na idéia de solidariedade humana.
Os avanços da Constituição de 1946 foram significativos, principalmente se levarmos em conta o período em que foi promulgada, com o país internamente saindo de um regime totalitário e o mundo tentando sarar as feridas do pós-guerra.
Após o golpe militar de 1964, em 24/01/1967, foi outorgada a Carta Constitucional de 1967 que alterou o regime de liberalidade buscado pela Constituição de 1946 e instalou o regime totalitário que a ‘doutrina da segurança nacional’ conclamava. Em 1969, foi outorgada a Emenda Constitucional 1, por alguns tomada como uma nova Carta Constitucional (CARVALHO, 1997) que, cuidando de preservar o regime totalitário, relegou as garantias fundamentais ao segundo plano.
No período compreendido entre o golpe militar de 1964 e a outorga da Carta Constitucional de 1967, o povo brasileiro teve sua vida marcada pelo Ato Institucional n.º 5 (JACINTHO, 2006) – AI 5 -, principal marco do desrespeito às liberdades políticas, sociais e individuais dos brasileiros.
A inefetividade das Constituições anteriores a 1988, aliada a falta de vontade política de sua aplicação acabaram por criar uma situação de relativo desuso daquelas Constituições vistas, então, como um cardápio de promessas de Direitos e eventuais atuações do Estado que nunca saiam do papel, postergando entre nós o que foi vivido na Europa na primeira metade do século 20 (SILVA, 2007).
Com a Constituição de 1988, vem a lume uma nova teoria sobre os direitos fundamentais; com alicerces claramente fundados na valorização do homem. Segundo análise de Jacintho (2006, p. 75):
“No panorama constitucional pátrio, a dignidade humana não apenas se firma como um dos seus princípios fundamentais, como também é um dos elementos que compõem o conceito de Estado de Direito Democrático, o qual apenas se legitima na medida em que materializa os direitos fundamentais, assegurando a sua observância através de mecanismos plenamente exercitáveis pelo cidadão.”
A Constituição Federal de 1988 nasce de um processo novo, até então não vivido em nosso País, marcado por golpes militares e não raras vezes pela ausência de legitimidade no exercício do Poder (SILVA, 2007). Como reflexo dessa revolução na teoria Constitucional, a dignidade da pessoa humana passou a ser o eixo norteador de toda essa nova teoria, privilegiando sobremaneira os Direitos Fundamentais.
3. A MODERNIDADE CONSTITUCIONAL
A questão que se apresenta posta na atual fase de concretização dos preceitos Constitucionais passa pela forma como o Judiciário e os atores do Direito entenderão e aplicarão a nova sistemática Constitucional.
As regras de interpretação da norma em sua evolução, quase que dogmática, passou pela superação do jusnaturalismo moderno, que foi considerado metafísico e anticientifico, (embora não se possa negar a contribuição do jusnaturalismo para a conquista das liberdades civis e políticas do Estado moderno(CAPELLETTI, 1992)), pelo positivismo no século XIX, que, por sua vez, acabou por perder terreno após a segunda grande guerra.
A superação do movimento positivista, em grande parte justificada pelo declínio do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha (SILVA, 2007), foi o ponto de partida para a inauguração da dignidade da pessoa humana nas Constituições Européias, conforme dito anteriormente. Com este fenômeno buscou-se reaproximar o Direito da ética e da moral, reavaliando a interpretação das normas no arcabouço jurídico da sociedade.
Inaugura-se a época do chamado ‘pós-positivismo’ fundamento que busca estabelecer e definir a relação entre valores, princípios e regras. O pós-positivismo privilegia de forma nunca antes vista a doutrina dos princípios, que passam então a ter forte influência na forma de entender a norma.
A Constituição Federal de 1988, fortemente influenciada pela dignidade da pessoa humana, dá lugar a um novo sistema interpretativo fincado em normas de sentido aberto e em fundamentos principiologicos dependentes do caso concreto em exame.
A teoria dos princípios (STRECK ‘apud’ WEBER, 2006) passou de elemento meramente inspirador de aplicação de regras para a sua efetivação como norma posta no caso concreto.
4. OS PARÂMETROS DA NOVA INTERPRETAÇÃO.
Com o fenômeno Constitucional influenciado pelo pós-positivismo, que por sua vez privilegia a teoria dos princípios, as Constituições modernas passam a ter normas de caráter aberto e abstrato, com sentido amplo e tendente ao exercício de interpretação de seu aplicador ao caso concreto.
Diante deste novo ‘status’ atribuído aos princípios o método de interpretação clássica no formato subsuntivo – fundada no processo soligístico onde a premissa maior é a lei, premissa menor é o fato e a conclusão a sentença -, bem como a hermenêutica tradicional inspirada por Savigny, principalmente para o direito privado, se mostram insuficientes para o alcance da pretensão Constitucional.
A despeito dessa nova hermenêutica Constitucional não é o caso de uma ruptura ou de se abandonar a interpretação clássica subsuntiva ou de negar a hermenêutica tradicional, que continuam com aplicação no terreno das regras (VIEIRA, 1999), mas de se pensar em uma nova forma interpretacionista da Constituição Federal.
Normas constitucionais tem sentido aberto fundado na principiologia e dependente do exame da norma frente a realidade examinada. Isto não quer dizer que as normas Constitucionais não possam ser aplicadas pelo método subsuntivo, de fato existem no texto Constitucional normas (regras) perfeitamente aplicáveis por tal método, dado o seu baixo teor interpretativo. Não se trata, portanto de negar os métodos clássicos, mas sim de um processo evolutivo.
Essa evolução do sistema normativo busca mesclar as regras com os princípios de forma que os primeiros sirvam de medida de certa segurança jurídica e que os segundos possam perseguir os ideais morais, éticos e justos no Direito.
Esta evolução do sistema interpretativo encontra especial relevância nas doutrinas de Dworkin(VIEIRA, 1999) e Alexy (SILVA, 2007). Este último dá especial ênfase no que cognominou de ‘colisão de direitos fundamentais’ estabelecendo um sistema interpretativo baseado na ponderação(ALEXY, 1998) que busca relacionar os princípios em debate com o caso concreto de maneira a encontrar a forma mais justa de aplicação dos princípios ao fato.
Por tal acepção a aplicabilidade dos princípios seria realizável mediante a ponderação dos princípios ao caso concreto.
Entretanto, inobstante a valiosa e inquestionável decisão pela ponderação como meio de solução da colisão de direitos fundamentais, me parece que esta perderá em sentido quando se tratar do princípio da dignidade da pessoa humana. Isto porque, a Constituição Federal de 1988 elevou o dito princípio como norte hermenêutico e princípio fundamental (art. 1º, III, CF/88) que dá coesão e sistematiza todo o ordenamento Constitucional. A Constituição Federal de 1988 concedeu um ‘plus’ a dignidade da pessoa humana, criando um ‘superprincípio’, segundo o qual deve ser visto todo o texto normativo Constitucional.
Elevado dessa forma, a princípio superior e de imperativa interferência no sistema valorativo das normas Constitucionais, soa controverso que uma possível colisão entre este princípio e outro qualquer, colocado a teste pela referência da ponderação possa resultar na contrariedade ou prevalência deste sobre aquele.
Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana atua como elemento norteador no novo sistema hermenêutico Constitucional.
5. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana visto como princípio guia do sistema Constitucional, mas de conteúdo axiológico amplo, clama pelo estabelecimento de mínimos elementares para sua configuração. Tal análise acredita-se passa obrigatóriamente pela definição de sua delimitação e alcance, estabelecendo-se o que poderíamos chamar de núcleo essencial (BARCELLOS, 2005) que comporia os elementos configurativos de sua área mínima de atuação.
Analisando o Princípio da Dignidade Humana Jussara Maria Moreno Jacintho (2006) define o seu núcleo essencial como sendo:
“… temos que a dignidade humana como direito material apresenta um núcleo essencial cujos elementos integradores são – sem exclusão de outros que possam ser assim apresentados – a liberdade de crença, e os direitos à saúde, educação, moradia e alimentação.”
Nesta acepção o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana repousa na liberdade de crença e nos direitos à saúde, educação, moradia e alimentação, pode-se inferir que o desatendimento a qualquer deles constitui violação ao princípio da dignidade humana, e portanto, não haveria, ao menos em tese, possibilidade de ponderação que obtivesse como resultado a sua inaplicabilidade .
O Supremo Tribunal Federal, analisando a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 319-4, que trata de pedido da CONFENEM para declarar inconstitucional a Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades escolares e dá outras providências, acabou por analisar a ordem constitucional econômica, conferindo-lhe forte traço sociais, realçando o respeito aos direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana. Como exemplo, é pertinente refletir sobre o voto do Ministro Moreira Alves, expresso nos seguintes termos:
“Ora, sendo a justiça social a justiça distributiva – e por isso mesmo é que chega à finalidade da ordem econômica (assegurar a todos existência digna) por meio dos ditames dela -, e havendo a possibilidade de incompatibilidade entre alguns dos princípios constantes dos incisos desse art. 170, se tomados em sentido absoluto, mister se faz, de que, em conformidade com os ditames da justiça distributiva, seja assegurado a todos – e, portanto, aos elementos de produção e distribuição de bens e serviços e aos elementos de consumo deles – existência digna.(…)
Ademais, entre os novos princípios que estabelece para serem observados pela ordem econômica, coloca o da defesa do consumidor (que ainda está, como direito fundamental, no art. 5º, inciso XXXII) e o da redução das desigualdades sociais.”
O Acórdão aqui mencionado demonstra a necessidade de nova abordagem hermenêutica das questões que envolvam direitos sociais como a educação e a saúde, reforçando o entendimento esboçado anteriormente sobre a questão do núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesta dinâmica dos fatos vale lembrar a lição do Prof. Ingo Sarlet (SARLET ‘apud’ WEBER):.
“Os direitos fundamentais, que o art. 5º da Constituição Federal de 1988 considera invioláveis, são inerentes à dignidade da pessoa humana, neles se traduzem a concretizam as faculdades que são exigidas pela dignidade, assim como circunscrevem o âmbito que se deve garantir à pessoa para que aquela se torne possível…
A dignidade da pessoa humana foi pela Constituição concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais. E, como tal, lança seu véu por toda a tessitura condicionando a ordem econômica, a fim de assegurar a todos existência digna (art. 170).”
E é sob este enfoque Constitucional e principiológico que a Dignidade da Pessoa Humana é alçada a princípio fundamental que permeia todo o ordenamento jurídico, como forma de garantia e proteção à efetividade dos direitos fundamentais.
6. CONCLUSÃO
Como finalização deste trabalho podemos concluir o seguinte:
i. A promulgação da Constituição Federal de 1988 rompeu com um período de descrédito Constitucional, onde a Lei Maior era vista como um catalogo de promessas não cumpridas e de metas do desinteresse político dos governantes;
ii. A Constituição Federal de 1988 elegeu como seu norte o princípio da dignidade humana e o respeito pelos direitos fundamentais, que passam a constar de forma em seu texto;
iii. A moderna interpretação Constitucional focada no teoria do princípios inaugura a fase do chamado pós-positivismo, buscando na equalização e na relação entre valores, princípios e regras a reaproximação do Direito com a moral e com a ética;
iv. Os parâmetros da moderna interpretação Constitucional contam com o sistema subsuntivo e a hermenêutica tradicional do Direito privado, mas também conta com novos instrumentos interpretativos a exemplo da ponderação;
v. O princípio da dignidade da pessoa humana uma vez esclarecido o seu núcleo essencial e por sua característica de norte hermenêutico do sistema Constitucional, goza de prevalência e portando não esta afeto ao método da ponderação.
Doutorando em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito pela UNESA, Professor Assistente da Universidade Federal de Alfenas – Campus Varginha UNIFAL-MG
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