Resumo: Este artigo apresenta tentativas de definição do positivismo jurídico contemporâneo. Apresenta as dificuldades de se chegar a uma formulação geral dessa posição teórica e explica, em especial, como o novo foco em questões metodológicas permite a diferenciação de duas versões do positivismo jurídico, que não são logicamente implicadas uma pela outra. O artigo demonstra, ainda, como parte importante do debate contemporâneo se estrutura em torno do que o artigo chama de tese da neutralidade, segundo a qual a teoria do direito não envolve qualquer tipo de avaliação moral sobre seu objeto. Apresenta, então, a ideia de descritivismo, e mostra como o debate entre positivistas metodológico e não-positivistas gira em torno da tese da neutralidade.
Palavras-chave: Positivismo Jurídico; Metodologia; Descritivismo
Abstract: This paper presents attempts to define contemporary legal positivism. It presents the difficulties to arrive at a general formulation of this theory and explains how the recent attention in methodological questions allows a differentiation between two versions of legal positivism, which are not logically interconnected. The paper also demonstrates that an important part of the contemporary debate is structured around that which the paper calls neutrality thesis, according to which legal theory does not use any type of moral evaluation about its object. Then it presents the idea of descriptivism, and demonstrates that the debate between methodological positivists and anti-positivists revolves around the neutrality thesis.
Key-words: Legal positivism; Methodology; Descriptivism.
Sumário: Introdução. 1. Positivismo Jurídico: Metodológico e Substantivo.
2. A relação entre positivismo metodológico e positivismo substantivo. 3. Os debates entre positivistas e não-positivistas. 4. Descritivismo e tese da neutralidade. Conclusão. Referências.
Introdução
Não é fácil oferecer uma caracterização geral do positivismo jurídico. Essa dificuldade, é verdade, não é específica dessa posição teórica, e pode ser encontrada (e provavelmente será) na caracterização de qualquer “escola” de pensamento: dada a diversidade de autores e de teses, é difícil (e sempre questionável) identificar aquilo que pode ser razoavelmente considerado o núcleo duro comum a todos os membros de determinada “tradição” teórica (DICKSON, 2012, p. 48).
Como primeiro passo para entendermos as diversas faces dessa corrente, podemos utilizar a formulação de John Gardner daquilo que seria o núcleo central do positivismo jurídico contemporâneo. Utilizo essa formulação específica por considerá-la clara e concisa e também por ser uma formulação bem aceita entre a comunidade de teóricos do direito (o artigo no qual Gardner a apresenta é um dos mais lidos e citados a respeito do tema, sendo utilizado como referência inclusive por alguns críticos do positivismo). Para Gardner, a tese central do positivismo jurídico pode ser formulada da seguinte maneira:
"Em qualquer sistema jurídico, se uma norma é juridicamente válida, e se ela faz parte, assim, do direito daquele sistema, depende de suas fontes, não de seus méritos (onde os seus méritos, no sentido relevante, inclui os méritos de suas fontes)" (GARDNER, 2012, p. 21).
Formulações semelhantes daquilo que poderia ser considerado o núcleo do positivismo jurídico podem ser encontradas, por exemplo, em Marmor (2001, p. 71) e Raz (2011, pp. 37, 319), o que sugere que a formulação de Gardner serve de fato como uma razoável síntese do núcleo das diversas teorias positivistas. De acordo com ela, não há uma conexão necessária entre valores morais e os critérios de validade jurídica. Para sabermos se uma possível norma p faz ou não parte de determinado sistema jurídico S, devemos investigar suas fontes (caso existentes) e não seus méritos intrínsecos. A dimensão dessa tese varia, no entanto, de acordo com a versão do positivismo com a qual estamos lidando. Para os assim chamados positivistas inclusivos, valores morais podem funcionar como critérios de validade jurídica, desde que sejam incorporados como critérios relevantes por alguma fonte social específica. Para eles, é possível existir uma conexão entre direito e moral (entendida essa conexão de acordo com a fórmula de Gardner), mas ela não é necessária. Para os positivistas exclusivos, ao contrário, além de não ser necessário que valores morais figurem como critérios de validade jurídica, isso não é sequer conceitualmente possível: a separação entre direito e moral (mais uma vez, entendida essa separação de acordo com a fórmula de Gardner) é necessária e não simplesmente contingente. A conclusão de Gardner, então, é que o positivismo jurídico é “uma tese apenas sobre as condições de validade jurídica” (GARDNER, 2012, p. 49).
A separação entre valores morais e critérios de validade jurídica, no entanto, não representa a única face do positivismo jurídico contemporâneo. Alguns positivistas, nos últimos anos, têm defendido não só uma das duas versões da tese da separação sintetizada na fórmula de Gardner, mas também um outro tipo de separação: a separação entre valores morais e a própria teoria do direito. De acordo com essa tese, para construirmos teorias do direito não é necessário realizar qualquer tipo de julgamento de valor moral a respeito do nosso objeto de estudo. Isso quer dizer que, no momento de nos decidirmos a respeito da verdade ou falsidade do positivismo jurídico (como sintetizado na fórmula de Gardner), ou mesmo de qualquer outra tese substantiva do campo da teoria do direito, o “valor moral” expresso na tese não entrará no conjunto de razões relevantes para sua aceitação.
1. Positivismo jurídico: metodológico e substantivo
Para diferenciar e explicar as afirmações acima, utilizarei a distinção feita por Stephen Perry (1996, p. 361, 1998, p. 467, 2004, p. 311) entre as versões (ou faces) substantiva e metodológica do positivismo jurídico. Os positivistas substantivos defendem alguma versão (inclusivista ou exclusivista) da tese da separação sintetizada na fórmula de Gardner. Para eles, para determinarmos se uma norma é ou não juridicamente válida não é necessário (para alguns, sequer é possível) recorrer a valores morais. Os positivistas metodológicos, por sua vez, sustentam que a própria teoria do direito é moralmente neutra e puramente descritiva: suas teses não dependem, para ser verdadeiras, de algum tipo de teste moral. Para sabermos, por exemplo, se a famosa tese das fontes de Joseph Raz é ou não é correta, não é nem preciso nem desejável, de acordo com um positivista metodológico, que recorramos a valores morais ou investiguemos a utilidade, justiça ou praticidade do conteúdo da tese.
Ainda que ambas as faces (substantiva e metodológica) recebam o nome de positivismo jurídico, elas afirmam proposições logicamente distintas (PERRY, 1996, p. 361). Não há, assim, nenhum tipo de inconsistência ou contradição em um positivista metodológico que defenda, por exemplo, uma versão do jusnaturalismo de acordo com a qual uma norma, a despeito de passar num teste de pedigree relevante, será juridicamente inválida se for também moralmente iníqua. H.L.A. Hart, é verdade, era tanto um positivista jurídico substantivo (pois defendia uma versão inclusivista da tese da separação (HART, 1994)) quanto um positivista jurídico metodológico (pois defendia a inércia normativa moral da teoria do direito). A relação entre essas duas faces, no entanto, não é necessária: é logicamente possível tanto um positivista metodológico defender uma forma de jusnaturalismo substantivo (como é o caso, por exemplo, de Michael S. Moore), quanto um não-positivista metodológico defender uma forma de positivismo substantivo (como é o caso, por exemplo, de Jeremy Waldron). Isso não significa que qualquer uma dessas combinações será correta, mas tão somente que não há contradição lógica num autor que defenda uma ou outra.
A divisão entre dois níveis ou faces do positivismo torna a própria pertinência do uso do termo “positivismo” questionável. Quando concebemos a possibilidade de um positivista metodológico ser um jusnaturalista substantivo, o uso do termo “positivista” ou perde a importância ou torna-se confuso: afinal, quando nos referimos simplesmente a “positivismo jurídico”, de que variante estamos tratando? Esse é um problema real, e alguns autores têm insistido que o melhor, para evitá-lo, é abrir mão, na discussão filosófica, do uso de “rótulos”. Os rótulos, no entanto, são de uso corrente no debate teórico contemporâneo, e abrir mão de todos eles pode mais dificultar do que ajudar no engajamento com a literatura especializada. Em todo o caso, a melhor solução para a questão parece ser a seguinte: em primeiro lugar, clareza – sempre deixar o mais claro possível com que tipo de positivismo estamos lidando; em segundo lugar, bom senso – não devemos dar mais peso às definições e rótulos do que eles de fato possuem. O que nos importa é saber se uma tese é ou não verdadeira, e não se podemos ou não chamá-la de positivista.
2. A relação entre positivismo metodológico e positivismo substantivo
Voltemos ao ponto central do artigo: há pelo menos duas teses distintas associadas aos autores positivistas. A primeira, e mais comum, é aquela capturada na fórmula de Gardner de acordo com a qual há uma separação (necessária ou contingente) entre valores morais e critérios de validade jurídica; a segunda é aquela que diz que para construirmos teorias do direito não é preciso (nem recomendável) utilizar argumentos morais. Uma tese não implica logicamente a outra. Ainda assim, as duas se relacionam da seguinte maneira: para um autor que subscreva ao positivismo metodológico, os argumentos que ele poderá se valer para decidir-se pela verdade de sua tese substantiva a respeito da validade jurídica não incluirão argumentos morais. Se um autor rejeita o positivismo metodológico, por sua vez, isso não significa que ele deva também subscrever a uma versão de não-positivismo substantivo: é possível que ele defenda a tese exclusivista da separação entre valores morais e critérios de validade jurídica com base em argumentos morais. Em ambos os casos, a verdade ou falsidade da tese substantiva dependerá diretamente dos argumentos permitidos pela tese metodológica. A mais importante consequência desse ponto é a seguinte: um autor poderá ser criticado ou por defender uma tese substantiva equivocada ou por subscrever a uma tese metodológica equivocada. Se conseguíssemos mostrar, por exemplo, que a análise conceitual não resiste às críticas metodológicas naturalistas, a teoria do direito de um autor que aplique essa metodologia estará errada não por conta de sua tese substantiva (que pode estar correta de acordo com outra metodologia que julguemos adequada), mas por conta de sua tese metodológica.
Diante do quadro traçado acima, é possível notar que os debates contemporâneos em teoria do direito operam em dois níveis distintos. O debate entre positivistas inclusivos e exclusivos, por exemplo, tende a operar apenas no nível substantivo: ambos os lados aderem ao positivismo metodológico (i.e., entendem a teoria do direito como um empreendimento moralmente neutro e puramente descritivo) enquanto disputam qual é a melhor explicação do direito de acordo com esse compromisso metodológico básico. Por outro lado, a crítica, por exemplo, de John Finnis (2011) ao positivismo em Natural Law and Natural Rights dirige-se não à tese positivista substantiva, e sim à tese metodológica que apoiaria essa tese substantiva: não é que, para Finnis, valores morais devam servir (ou de fato sirvam) como critérios relevantes de validade jurídica; é que, para ele, para decidirmos se isso é ou não é o caso, devemos construir uma teoria normativa que utilize avaliações morais.
Ter em vista os diversos níveis do debate nos permite distinguir os diversos tipos de disputas que ocorrem atualmente no campo da teoria do direito. Positivismo substantivo e positivismo metodológico indicam não apenas duas faces do positivismo jurídico, mas dois níveis distintos de debate na teoria do direito contemporânea. Oberdiek & Patterson (2007, p. 60) utilizam os termos primeira e segunda ordem para fazer uma distinção similar. As questões de primeira ordem seriam aquelas relativas à verdade ou falsidade da tese central do positivismo (em especial – mas não exclusivamente — àquela a respeito das condições de validade jurídica); as questões de segunda ordem, por sua vez, diriam respeito ao problema de saber “como se deve fazer teoria do direito” (Oberdiek & Patterson, 2007, p. 60). Nesse sentido, há tanto um positivismo de primeira ordem quanto um positivismo de segunda ordem, bem como um não-positivismo de primeira ordem e um não-positivismo de segunda ordem. O positivismo de primeira ordem seria equivalente ao que Perry chama de positivismo substantivo; o positivismo de segunda ordem, àquilo que ele chama de positivismo metodológico. De maneira similar, Waluchow & Sciaraffa (2013, pp. xiii–xiv) distinguem entre positivismo e não-positivismo de primeira ordem e positivismo e não-positivismo metodológico. Alguns autores preferem utilizar o termo descritivismo para referir-se ao positivismo metodológico e à tese de que a teoria do direito é puramente descritiva e normativamente inerte. Em oposição ao descritivismo, podemos chamar de normativismo a posição contrária, associada ao não-positivismo metodológico.
Percebe-se, assim, uma forte tendência na literatura de distinguir duas faces do positivismo jurídico (e, na verdade, das teorias do direito em geral): uma substantiva ou de primeira ordem, e outra metodológica ou de segunda ordem. Quando confrontados com uma proposição teórica, portanto, devemos primeiro situá-la dentro desse quadro esquemático e considerar se se trata de uma tese substantiva ou metodológica (assumindo-se que é possível distingui-las) para podermos avaliá-la de maneira adequada.
3. Os debates entre positivistas e não-positivistas
Para percebermos a utilidade e importância da distinção entre as faces do positivismo, podemos, sucintamente, considerar o debate travado entre Joseph Raz e John Finnis. Uma leitura apressada de Finnis, que se concentrasse tão somente no fato de ele ser considerado um autor jusnaturalista, poderia sugerir que ele diverge de Raz no nível dos critérios de validade jurídica. Assume-se, tradicionalmente, que o debate entre positivistas e jusnaturalistas ocorra no nível substantivo. Os positivistas defenderiam alguma versão da tese das fontes sociais, enquanto os jusnaturalistas a negariam. Para estes, lex iniusta non est lex – uma lei injusta não é uma lei. Os primeiros negam, enquanto os segundos defendem, que há uma conexão necessária entre direito e moral (ou entre direito e justiça). Ainda que essa questão permaneça viva nas atuais discussões acadêmicas, não é dela que trata o principal debate entre Finnis e Raz.
Para Finnis, o erro principal dos autores positivistas (ao menos desde Herbert Hart) está na maneira pela qual eles entendem que devem ser construídas teorias do direito ou, em outras palavras, qual é a natureza desse empreendimento teórico. A questão que preocupa Finnis, e que anima o debate entre ele e seus oponentes positivistas (especialmente Hart e Raz) é se “é mesmo possível uma teoria do direito puramente descritiva, 100 por cento normativamente inerte” (Finnis, 2011b, p. 32). Brian Bix fornece um bom resumo dessa questão:
"Finnis afirmará que o aspecto mais importante da separação entre direito e moralidade está na separação entre teoria do direito e avaliação moral. A questão que o positivismo levanta (…) é se uma teoria do direito puramente conceitual e descritiva é tanto possível quanto interessante. O pequeno desafio inicial de Finnis a respeito da melhor maneira de construir a “perspectiva interna” de um sistema jurídico pode ser visto como um desafio ao positivismo jurídico neste sentido" (BIX, 2000, p. 1621).
O alvo de Finnis é o positivismo metodológico, a ideia de que é possível uma teoria do direito livre de avaliações morais. Nesse sentido, seu debate com Raz ocorre no nível metodológico, e não substantivo, do esquema proposto por Perry.
Voltemos à distinção. Tanto no nível substantivo quanto no nível metodológico usa-se o rótulo “positivismo” para qualificar ou caracterizar um determinado conjunto específico de teses. Ocorre que, como já afirmei, não há uma relação de implicação lógica entre os dois níveis, de maneira que é possível aderir ao positivismo em um deles e rejeitá-lo no outro. Isso cria uma dificuldade para o estudo da teoria do direito: identificar a que nível estamos nos referindo quando tratamos de determinada tese. Essa dificuldade é ainda mais acentuada se levarmos em conta que a própria distinção entre os níveis substantivo e metodológico (bem como o lugar preciso em que devemos traçar a linha que “divide” os dois níveis) não é unânime: Macedo Júnior, por exemplo, parece situar a tese das fontes sociais entre os compromissos teóricos do positivismo metodológico, enquanto Perry a coloca como parte do positivismo substantivo. Como, então, definir em que nível estamos debatendo quando debatemos uma determinada tese de teoria do direito?
4. Descritivismo e tese da neutralidade
Afirmei anteriormente que clareza e bom senso bastariam para nos permitir distinguir quando estamos lidando com uma ou outra das duas faces do positivismo jurídico apresentadas acima. No entanto, é possível tornar essa distinção ainda mais clara se adotarmos uma terminologia um tanto específica que nos permita diferenciar mais facilmente as teses pertencentes ao positivismo substantivo e metodológico.
Uma alternativa possível é chamar de descritivismo a posição segundo a qual para construirmos teorias do direito não é necessário (nem recomendável) recorrermos a argumentos morais – o que Perry chamou de positivismo metodológico. De acordo com o descritivismo, uma tese substantiva de teoria do direito (por exemplo, a tese das fontes sociais) será verdadeira se descrever (em um sentido de “descrever” que deveremos ainda explorar) adequadamente seu objeto. Argumentos morais estão, desta forma, excluídos do conjunto de razões relevantes que um teórico do direito deve levar em conta para avaliar uma tese substantiva.
Em oposição ao descritivismo, os defensores do que se poderia chamar normativismo rejeitam que a teoria do direito seja um empreendimento teórico moralmente neutro. Para eles, as teses substantivas da teoria do direito devem estar (e de fato estão) respaldadas em argumentos morais: a teoria do direito é, portanto, normativa. Se a tese das fontes for verdadeira, por exemplo, ela o será porque coloca o direito em “sua melhor luz” ou descreve adequadamente o caso central do conceito de direito (construído a partir de avaliações diretamente morais). Tanto num caso como no outro, não há neutralidade moral.
O termo normativismo aplicar-se-ia à teoria de autores jusnaturalistas como John Finnis. No entanto, ele é melhor (porque mais abrangente) do que um termo como, por exemplo, jusnaturalismo metodológico. A razão disso é que não só autores autodeclarados jusnaturalistas endossam a ideia de que a teoria do direito não é um empreendimento teórico separado de valores morais, o que sugere que o normativismo não é uma tese tipicamente jusnaturalista. O caso mais exemplar disso é Ronald Dworkin, um dos principais críticos normativistas do positivismo, cuja teoria é frequentemente descrita como interpretativista e não propriamente jusnaturalista. Se é verdade que, ao considerarmos Finnis um autor representativo da tradição de teorias da lei natural, é possível reconhecer no jusnaturalismo duas faces (uma substantiva e outra metodológica), também é verdade que a tese metodológica de Finnis não é, contemporaneamente, tipicamente jusnaturalista, razão pela qual seria preferível utilizarmos o termo normativismo para nos referirmos a ela.
Contudo, como todo termo genérico utilizado para fazer referência a um conjunto bastante variado e por vezes heterogêneo de autores e teorias, “descritivismo” e “normativismo” também têm um caráter bastante esquemático. Isso quer dizer que muitas diferenças específicas entre autores são deixadas de lado quando nos referimos a eles, genericamente, como descritivistas e normativistas. A melhor maneira de superar esse problema é estabelecer, de maneira clara, que características o termo inclui e que características ele não inclui dentro dos critérios relevantes para sua aplicação. A disputa entre descritivistas e normativistas pode ser descrita como uma disputa a respeito do que chamarei de tese da neutralidade. Ela pode ser expressa da seguinte forma:
TN: A teoria do direito não deve realizar avaliações morais a respeito do seu objeto.
Como deve estar claro, descritivistas endossam TN, enquanto normativistas a rejeitam. O critério para aplicação do termo, portanto, é apenas a posição dos autores a respeito de TN. Isso implica que autores com concepções metodológicas distintas poderão estar juntos sob o mesmo manto descritivista – tudo o que é necessário é que ambos endossem TN. Um exemplo deve bastar para ilustrar esse ponto.
Brian Leiter, de acordo com a caracterização do descritivismo apresentada acima, seria um teórico descritivista. Para ele, a filosofia em geral, e a teoria do direito em particular, não seriam nada mais do que a “parte abstrata” das teorias científicas de sucesso e, como tal, deveriam guiar-se apenas por valores epistêmicos aplicados a essas teorias. Como não aplicamos valores morais na elaboração de teorias científicas, também não deveríamos aplicá-los na avaliação de teorias jurídicas (e filosóficas). Portanto, TN é verdadeira.
Jules Coleman é outro autor que podemos considerar descritivista. Segundo Coleman, a teoria do direito é uma teoria do conceito de direito que não precisa (sob o risco de petição de princípio) garantir uma inferência de legitimidade moral a partir da simples legalidade. A teoria do direito seria normativa apenas num sentido banal de ser “responsiva às normas que governam a construção de teorias” – e essas normas não são morais (COLEMAN, 2001, p.178). Para Coleman, portanto, TN é verdadeira.
Temos aqui, então, dois autores que defendem TN e que, de acordo com a caracterização apresentada, seriam considerados descritivistas (ou positivistas metodológicos). Não obstante esse fato, é um erro considerar que ambos têm uma mesma concepção a respeito da natureza da teoria do direito. Leiter é um dos principais (senão o principal) proponente de uma versão “naturalizada” da teoria do direito. Essa teoria do direito naturalizada, no entanto, é extensamente criticada por Coleman, que defende o uso do método de análise conceitual, expressamente rejeitado por Leiter e pelos assim chamados “naturalistas”. Não podemos assumir, portanto, que, por estarem os dois no lado descritivista da disputa, tanto Leiter quanto Coleman entendem o projeto da teoria do direito (e os métodos apropriados a ela) da mesma forma. Na verdade, não entendem.
O caráter esquemático a que fiz referência deve-se, então, à existência de teóricos que mantém divergências fundamentais a respeito dos métodos da teoria do direito no mesmo campo da disputa (descritivista ou normativista, ou, ainda, no campo do positivismo e anti-positivismo metodológico). Isso não é surpresa, mas é importante fazer o esclarecimento de forma expressa para que se evite qualquer tipo de leitura que tente ver nos autores descritivistas algum compromisso maior do que a defesa de TN. É claro que pode haver outro compromisso amplamente partilhado entre os autores que identifico como descritivistas, mas, ao usar o termo, quero me referir, prioritariamente (senão exclusivamente) à posição dos autores em relação a TN.
Isso nos leva a um segundo ponto. Os termos descritivista, descritivo e descrição, no contexto do debate metodológico, são ambíguos. Para que possamos utilizá-los de maneira proveitosa, é necessário delimitar de maneira precisa em que sentido eles estão sendo utilizados.
O termo “descritivo” (e os correlatos “descritivista” e “descrição”) pode ter o sentido dado por Hart no pós-escrito a The Concept of Law. Para Hart, sua teoria seria “descritiva” no sentido de ser moralmente neutra e não ter nenhum objetivo justificatório. Isso significa, na explicação de Hart, que a teoria do direito “não procura justificar ou recomendar com base em fundamentos morais ou de outro tipo as formas e estruturas que aparecem na [sua] explicação geral do direito” (HART, 1994, p.240).
Esse sentido de descritivo foi formalizado anteriormente como uma posição tomada em relação à uma tese em específica: a tese da neutralidade. Endossar TN é o mesmo que sustentar que a teoria do direito deva ser moralmente neutra e, nesse sentido, o conceito de descritivismo tem uma clara influência hartiana.
O uso do termo “descritivo” (e “descritivista”) para caracterizar a teoria de Hart (e de outros autores com compromissos teóricos similares), contudo, foi considerado por alguns teóricos como um equívoco. Segundo Coleman (2001, p.173), o termo “teoria do direito descritiva” (descriptive jurisprudence) utilizado por Hart é um rótulo “infeliz”. Para John Gardner (2012, p.275), a caracterização do trabalho de Hart como sendo uma espécie de empreitada “descritiva” é “enganadora” e Hart teria feito melhor se a tivesse abandonado.
Para esses autores, o epíteto “descritivo” usado para referir-se às teorias do direito transmite a falsa ideia de que o que os teóricos “descritivos” estão fazendo é algum tipo de descrição empírica do fenômeno concreto conhecido como direito. Isto é, suas explicações do que seja o direito seriam resultado de observações, medições e comparações do que acontece num conjunto determinado de sistemas jurídicos (ou mesmo, na totalidade dos sistemas jurídicos) existentes. O problema do uso do termo descritivo, segundo eles, é que descritivo pode bem significar “empírico”, e é um erro caracterizar a teoria de Hart (e, nesse sentido, de Coleman, Raz e outros) como empírica. Ao dizer que Hart é um teórico descritivo poderíamos passar a (supostamente) falsa imagem de Hart como um teórico que fornece explicações empíricas a respeito do fenômeno jurídico – o que não se ajustaria, segundo eles, aos objetivos e métodos do autor de The Concept of Law.
Não é necessário insistir muito nesse ponto. O problema apontando por Coleman e Gardner em relação ao termo descritivo é que ele pode significar “empírico” e autores como Hart e Raz não estão engajados em um empreendimento empírico. Mas entender “descritivo” como “empírico” é só uma das possibilidades disponíveis: como o próprio Gardner reconhece, podemos entender o termo “descritivo” como significando, simplesmente, “não-avaliativo”. Nesse sentido, e somente nesse, a teoria de Hart seria descritiva. É questionável, portanto, se Hart pode ser criticado por auto-caracterizar sua teoria como descritiva, já que ele próprio faz questão de especificar o sentido preciso em que devemos entender essa caracterização. Descritivo, para ele, é nada mais do que “moralmente neutro”. É possível entendermos o termo descritivo de outra forma, mas não faz sentido fazê-lo quando o autor que popularizou o termo apressou-se em adiantar em que sentido o estava utilizando.
Conclusão
É importante perceber que o debate entre descritivistas e normativistas gira em torno de TN, que é, ao fim e ao cabo, o núcleo da divergência do debate entre positivistas e não-positivistas no nível metodológico. Este artigo mostrou como a distinção entre esses dois níveis teóricos tem marcado as discussões contemporâneas de teoria do direito, o que nos obriga a ter atenção redobrada na identificação do nível em que determinado argumento está sendo proposto. Apresentei uma alternativa para se evitar a ambiguidade que o uso do termo positivista, em ambos os níveis, pode gerar. Vimos, contudo, que o termo descritivismo não está, ele próprio, isento de suas próprias ambiguidades. Ainda assim, seja por uso de um termo mais preciso, seja por uma maior atenção na análise e exposição teóricas, é fundamental que o estudante e o pesquisador levem em conta as várias faces do positivismo jurídico – e do debate contemporâneo de teoria do direito.
Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí; Professor do Centro Universitário UNINOVAFAPI; Pesquisador do Grupo de Pesquisa do República vinculado à UFPI. Advogado.
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