Resumo: O presente trabalho tem como objetivo verificar a possibilidade de as autoridades policiais aplicarem o princípio da insignificância. Pautando-se no instituto da legalidade é exposta a impossibilidade de aplicar a minimis non curat praetor para apreciar a instauração de um inquérito policial ou ratificação de um flagrante pelo delegado de polícia. Entretanto vislumbra-se demonstrar uma exegese mais pragmática, menos formalista e legalista, embasa em princípios informadores, como a ultima ratio e o princípio da intervenção mínima fazendo com que o direito penal atue no seu sentido garantista, fragmentário e mínimo, valorizando os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, bem como limitando o poder de punir estatal.
Palavras-chave: Princípio da Insignificância. Autoridade Policial. Tipicidade.
Abstract: The objective of the present paper is to check the possibility of police authorities to apply the principle of insignificance. Based at the legality institute is exposed the impossibility of applying the minimum non curat praetor to appreciate the introduction of a police investigation or ratification of a blatant by the delegate of police. Meanwhile is glimpsed an exegesis more pragmatic, less formalistic and legalistic, based in principles informers, as the ultima ratio and the principle of minimal intervention making criminal law act in its guarantees, fragmentary and minimum, valuing the fundamental rights and safeguards of the individuals, the same way that limiting the state power of punishment.
Keywords: Principle of insignificance. Police Authority. Typicality.
Sumário: 1. Introdução. 2. Princípio da Insignificância. 2.1. Origem. 2.2. Conceito. 2.3. Aplicabilidade. 3. Delitos Bagatelares. 3.1. Entendimentos Jurisprudenciais. 4. Aplicação do Princípio da Insignificância pelas Autoridades Policiais. 4.1. Ratificação de Prisões em Flagrante. 4.2. Instauração de Inquéritos Policiais. 4.3. Princípio da Eficiência da Administração Pública. 5. Considerações finais. 6. Referências.
1. Introdução
O ponto central deste artigo é demonstrar a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pelas Autoridades Policiais a fim de nos ilícitos de menor gravidade afastar a ratificação da prisão em flagrante, bem como eliminar todo o trâmite de um inquérito policial.
O Princípio da Insignificância propõe a interpretação restritiva aos tipos penais, com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais, não havendo necessidade de uma imposição de pena nas infrações de bagatela, haja vista o fato não ser materialmente punível.
A insignificância não é característica do tipo delitivo e sim um auxiliar hermenêutico seu, a fim de restringir o teor literal do tipo formal, conformando-o a condutas socialmente admissíveis, em decorrência de suas ínfimas lesões aos bens juridicamente tutelados.
Interpretando o princípio da insignificância de maneira coerente chega-se a concepção de que a sanção penal a ser aplicada deve ser proporcional à afetação do bem jurídico tutelado, deve-se buscar a relevância social do fato e o grau da lesão do injusto.
Para melhor compreensão do tema, deve-se considerar o direito penal como ultima ratio, enfocando o princípio da intervenção mínima, o qual limita o direito de punir do Estado. Diante disso, os bens mais importantes da sociedade foram selecionados para fins de proteção pelo Direito Penal, assim tais bens a serem tutelados integram uma pequena parcela que merecem invocação do jus puniendi.
A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Vê-se que o princípio da insignificância interferirá na caracterização da tipicidade da pena, entretanto, para sua aplicação deve-se verificar todas as circunstâncias que abrangem cada caso concreto.
No mesmo sentindo emerge a tipicidade conglobante, proposta por Eugênio Raúl Zaffaroni, que amplia o conceito de tipicidade, não o analisando somente como uma subsunção da conduta humana a norma penal incriminadora, sentido formal, mas somado ao enfoque material e a antinormatividade, no qual a lesividade ao bem jurídico e a determinação ou incentivo da conduta por qualquer ramo jurídico ganham espaço, também devendo ser levados em conta na caracterização da tipicidade.
Nesse contexto, o princípio da insignificância, surge com o propósito de empregar o direito penal em consonância com sua natureza subsidiária, no seu sentido garantista, fragmentário e mínimo, somente depois de esgotados outros meios de proteção, para que os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como a dignidade da pessoa humana tenham o mais amplo respeito.
Daí emerge a importância da análise da aplicação do princípio da insignificância, direcionada ao operador do direito e fundamentado na ideia de proporção que a pena deve conter em relação à gravidade do ilícito penal. Nos casos de ínfimo abalo ao bem jurídico, a substância do injusto é tão irrisória, que não subsiste nenhuma imprescindibilidade à aplicação da pena, de modo que a mínima sanção penal seria fundamentalmente desproporcional a significância material do caso.
Considerando-se a ressocialização do delinquente e que a retribuição e a prevenção do crime são finalidades da pena criminal, nos danos de pouca importância, desde que haja indícios de desvalor do dano, da ação e da culpabilidade, a excludente da tipicidade, pelo princípio da insignificância, seria levantada pela Autoridade Policial.
Cabe, dessa forma, ao Delegado de Polícia, na condição de operador do direito e valendo-se de seu poder discricionário, aplicar o enfatizado princípio para a resolução racional de conflitos humanos, a fim de evitar a privação da liberdade de infratores bagatelares e dar maior ênfase nas investigações que afetam sobremaneira a sociedade, sem o empecilho de dispêndios nos trâmites dos delitos insignificantes.
2. Princípio da insignificância
O princípio da insignificância, para a maioria dos autores formulado pelo doutrinador alemão Claus Roxin[1], propõe a interpretação restritiva aos tipos penais, com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais. Consoante define Roxin, o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas a bens jurídicos. Sustenta, outrossim, que nas infrações de bagatela não há necessidade de uma imposição de pena. Por conseguinte, o fato não é punível, lecionando:
“Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; o Direito Penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos.”[2]
Segundo Cezar Roberto Bitencourt o princípio da insignificância funciona como limitador do poder punitivo e repressivo estatal:
“A onipotência jurídico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este seria o sinal que caracteriza o Direito de um Estado pluralista e democrático”.[3]
2.1. Origem
“No tocante à origem, não se poder negar que o princípio já vigorava, no Direito Romano, onde o pretor não cuidava de modo geral, de causas e delitos de bagatela, consoante à máxima contida no brocardo minimis non curat praetor”,[4] conforme expõe Diomar Ackel Filho.
O Princípio da Insignificância tem por base a máxima minimis non curat praetor, explicitando que o magistrado não se deve preocupar com questões insignificantes. Tal instituto para a maioria dos autores introduzido no sistema penal por Claus Roxin no ano de 1964, dispõe que base para a determinação do injusto parte da máxima de que o pretor não cuida de ninharias, devendo o magistrado abster-se de casos insignificantes para se ater a questões de relevância.
Observa-se, dessa forma, a incidência do princípio da insignificância desde o direito romano, sendo fortalecido contemporaneamente por Claus Roxin, através de obras, como Problemas Fundamentais de Direito Penal e Polícia Criminal e Sistema Jurídico-Penal, que permitem sua melhor interpretação e efetiva aplicabilidade.
2.2. Conceito
O princípio da insignificância é assim definido por Abel Cornejo:
“É o que permite não processar condutas socialmente irrelevantes, assegurando não só que a Justiça esteja mais desafogada, ou bem menos assoberbada, senão permitindo também que fatos nímios não se transforme em uma sorte de estigma para seus autores. Do mesmo modo, abre a porta para uma revalorização do direito constitucional e contribui para que se imponham penas a fatos que merecem ser castigados por seu alto conteúdo criminal, facilitando a redução dos níveis de impunidade. Aplicando-se este princípio a fatos nímios se fortalece a função da Administração da Justiça, porquanto deixa de atender fatos mínimos para cumprir seu verdadeiro papel”.[5]
Difícil encontrar uma conceituação para o princípio da insignificância em razão de não estar explicitamente inserto na legislação pátria, sendo relevante a seguinte lição de Diomar Ackel Filho:
“O Princípio da Insignificância pode ser conceituado como aquele que pode infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois, como irrelevantes”.[6]
Para Ivan Luiz da Silva o princípio da insignificância no direito penal brasileiro encontra-se inserido dentre os princípio penais implícitos, isso significa, aqueles que não estão expressamente inseridos na Constituição, complementando-se entretanto por princípios fundamentais explícitos, consoante leciona:
“Seu reconhecimento pode ser realizado ao complementar-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da Legalidade no sentido de alcançar-se a justificação para a aplicação da pena criminal. Assim, a conjugação desses princípios na determinação da justificação e proporcionalidade da sanção punitiva revela o Princípio da Insignificância em matéria criminal, que vem a lume para afastar do âmbito do Direito Penal as condutas penalmente insignificantes como meio de proteger o direito de liberdade e igualdade na Constituição vigente.”[7]
Assim, infere-se que pelo Princípio da Insignificância para uma conduta ser considerada criminosa, carece-se, além de um juízo de tipicidade formal, a qual é a adequação do fato ao tipo descrito na lei, do juízo de tipicidade material, que é a verificação da ocorrência do pressuposto básico para a incidência da lei penal, ou seja, uma lesão significativa a bens jurídicos relevantes. Daí uma conduta, apesar de ser formalmente típica, mas que lesione de maneira ínfima um certo bem jurídico, isenta de tipicidade material seria, tornando a conduta atípica e indiferente ao Direito Penal. Tal conduta não deixará de ser apreciada juridicamente, porém seria incapaz de gerar uma condenação penal ou dar início à persecução penal.
2.3. Aplicabilidade
A aplicação do princípio da insignificância terá como conseqüência a interpretação restritiva dos tipos penais, bem como a exclusão da tipicidade material. Afastando a responsabilidade penal dos fatos ofensivos de pouco relevância e lesividade, tornando-os fatos materialmente atípicos. A conduta insignificante é formalmente típica, mas não materialmente. Considerando a tipicidade penal em seu aspecto conglobante, sendo material e formal, infere-se claramente que o fato de ínfimo valor pode ser valorado como atípico.
Aplica-se o Princípio da Insignificância ou bagatela, por exemplo, nos casos de lesão corporal, quando a ofensa provocada na vítima não é suficientemente grave a ponto de não haver necessidade de punir o agente nem de se recorrer aos meios judiciais, por exemplo, um leve beliscão, ou uma palmada, bem como nos furtos de objetos de ínfimo valor e nos crimes ambientais de pequeno impacto.
Neste mesmo sentido, com propriedade, preleciona Francisco de Assis Toledo:
“Segundo o Princípio da Insignificância, que se revela por inteiro pela própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.”[8]
"Segundo tal preceito, não cabe ao Direito Penal preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o bem jurídico,"[9] diz Fernando Capez. Ainda segundo o autor, o princípio não pode ser considerado em termos abstratos e exemplifica: "Desse modo, o referido preceito deverá ser verificado em cada caso concreto, de acordo com as suas especificidades. O furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser."[10]
3. Delitos bagatelares
Delito bagatelar também pode ser denominado como infração bagatelar ou crime insignificante, expressando um fato de pouco relevância, de ninharia. É um ataque a um bem jurídico tão irrelevante que não requer a intervenção penal. A intervenção penal nesse caso seria desproporcional.
O delito bagatelar já nasce sem nenhuma relevância penal em razão de um desvalor da ação ou do resultado, assim não há uma ofensa relevante ou significativa ao bem jurídico. Luiz Flávio Gomes define tal falta de ofensividade como a inexistência de idoneidade ofensiva relevante.[11]
Exemplo seria o de quem subtrai uma laranja pratica conduta desvalorada, furto, entretanto o resultado jurídico é ínfimo, falta o desvalor pelo resultado, um ataque intolerável ao bem jurídico.
Assim para situações de delitos bagatelares propõe-se a aplicação do princípio da insignificância o qual possui o efeito de excluir a tipicidade penal, considerada a tipicidade material. Dessa forma, diante de uma infração bagatelar o fato seria atípico e o Direito Penal não incidiria.
Questão que se levanta é se o autor do fato insignificante ficaria impune. Logicamente que não, pois apesar de o fato insignificante não constituir um ilícito penal, permanece sendo um ilícito, devendo recair sobre o autor as sanções pertinentes, sejam essas civis, trabalhistas, administrativas, sociais.
3.1. Entendimentos Jurisprudenciais
No endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal, encontra-se definição o verbete Princípio da Insignificância – Crime de Bagatela, nos seguintes termos:
“Descrição do Verbete: o princípio da insignificância tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como um crime, por isso, sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição e substituição da pena ou não sua não aplicação. Para ser utilizado, faz-se necessária a presença de certos requisitos, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada (exemplo: o furto de algo de baixo valor). Sua aplicação decorre no sentido de que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social”.[12]
Decisões jurisprudências ressaltam a importância do princípio da insignificância e sua posição atual no pensamento jurídico nacional, conforme se observa nos seguintes excertos jurisprudências:
“Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”.[13]
“O princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. Precedentes: HC 104403/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ªTurma, DJ de 1/2/2011; HC 104117/MT, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJ de 26/10/2010; HC 96757/RS, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, DJ de 4/12/2009; RHC 96813/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/4/2009.”[14]
“A tipicidade penal não pode ser percebida como o trivial exercício de adequação do fato concreto à norma abstrata. Além da correspondência formal, para a configuração da tipicidade, é necessária uma análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado. 2. O princípio da insignificância reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato na seara penal, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal. 3. Para a incidência do princípio da insignificância, além de serem relevados o valor do objeto do crime e os aspectos objetivos do fato – tais como a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica causada -, devem ser analisados, em cada caso, de forma cautelar e rigorosa, a realidade sócio-econômica do País e o conjunto de valores éticos juridicamente aproveitados pelo sistema penal para determinar se a conduta pode ou não ser considerada típica para a configuração do delito. Precedentes.”[15]
4. Aplicação do princípio da insignificância pelas autoridades policiais
Após as concisas considerações sobre o instituto do Princípio da Insignificância chega-se ao ponto crucial deste trabalho e passa-se a analisar a possibilidade de aplicação do instituto no seara da atividade policial.
Tema intrigante que surge nos estudiosos do Direito e nos operadores jurídicos é se o Delegado de Polícia pode reconhecer excludentes de ilicitude, bem como aplicar o instituto do princípio da insignificância e não proceder a lavratura de um Auto de Prisão em Flagrante Delito ou a instauração de um Inquérito Policial. Cuida-se de questão que não possui expressa previsão normativa e que ainda não chegou a ser objeto de analise por parte dos Colendos Tribunais Superiores.
Dessa forma, a resposta a indagação sobre a possibilidade de os Delegados de Polícia aplicarem o princípio da insignificância carece de uma exegese em sede de doutrina. Todavia, trata-se de um tema controverso, mas neste estudo defende-se o entendimento no sentido da possibilidade. Doutrina mais abalizada considera que o instituto da prisão em flagrante delito pode ser subdividido em cinco etapas. Captura, condução, apresentação do conduzido, lavratura do auto de prisão e judicialização.
A primeira fase é o momento da captura, que pode ser facultativa, por qualquer pessoa do povo e obrigatória para as Autoridades Policiais, bem como para seus agentes. A segunda fase é o momento da condução. Em que o agente que efetuou a prisão conduz o investigado até a presença do Delegado. A terceira fase é o momento da apresentação do conduzido ao Delegado de Policia.
Neste momento, terceira fase, defende-se ser cabível, por parte da autoridade da policial, a análise da tipicidade penal quanto aos aspectos material e formal, não sendo suficiente um mero juízo de subsunção entre a conduta e o estabelecido pela norma. Possível, outrossim, a observação quanto a ilicitude da conduta, juntamente das causas justificantes e eximentes, legais ou supralegais.
A atividade desempenhada pelas autoridades de polícia judiciária não se trata de procedimento meramente administrativo. Corroborando tal posicionamento, a novel legislação estabelecida pela Lei n.º 12.830/2013, que explicita serem as funções de policia judiciaria de natureza jurídica. Via de consequência, os elementos constitutivos do fato típico, conduta, resultado, nexo causal, previsão normativa, elemento subjetivo, relevância jurídica-social, bem como sua ilicitude, devem e carecem ser observados pela Autoridade Policial.
Os Tribunais Superiores possuem entendimento consolidado que a manifestação do princípio da insignificância produz o reconhecimento da atipicidade material da conduta. Assim sendo, caso sejam verificados os requisitos da mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade da social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada, inexistirá infração penal.
Visto isso, não é crível retirar do Delegado de Policia a possibilidade de reconhecer a manifestação da insignificância de uma infração penal. Impingir a lavratura de Auto de Prisão em Flagrante Delito ou instauração de Inquérito Policial em desfavor de alguém com base em fatos que notoriamente caracterizam-se como materialmente atípicos é contrário ao ordenamento jurídico. Além do mais, colide com as atribuições dos Delegados de Policia que são os primeiros operadores jurídicos a iniciarem a persecução penal.
Os Delegados de Policia atuam como o primeiro filtro da aplicação concreta do direito a pretensa infração penal. Assim, sua atuação deve se pautar na observação de todos os critérios, princípios e premissas norteadoras do ordenamento jurídico no Estado Democrático de Direito.
Alinhando-se que não cabe imputar condenação ao indivíduo que agiu amparado por uma excludente de ilicitude, ou qualquer outro elemento justificante ou descriminante, também não tem lugar exigir que a Autoridade da Polícial submeta um indivíduo, em situações análogas, a lavratura de Auto de Prisão em Flagrante Delito ou a investigado e indiciado no bojo de Inquérito Policial.
Da defendida atribuição das Autoridades Policiais, não se afastará os controles judicial e ministerial, devendo sempre as ações em sede de polícia judiciária serem submetidas ao crivo do poder do judiciário e do Ministério Público.
4.1. Ratificação de Prisões em Flagrante
A Constituição Federal tutela o direito à liberdade dentre os direitos fundamentais expostos no artigo 5.º caput, ainda prevê no inciso VII do mencionado dispositivo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O direito à liberdade é tratado como inviolável pela Constituição e encontra respaldo na orientação internacional quanto aos direitos do homem, como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que estabelece de a lei penal ter alcance somente em casos de graves ataques à sociedade, deixando evidenciado o caráter fragmentário do direito penal. Assim, a privação da liberdade da pessoa humana é uma medida extrema.
Considerando que o sistema jurídico nacional é pautado em regras legais postas aos operadores a fim de serem interpretadas em sintonia umas com as outras e com princípios para a solução mais justa dos conflitos, tem-se como inócuo que a polícia leve ao judiciário atos sem um mínimo de relevância jurídica.
Muitas vezes a insignificância da ofensividade ao bem jurídico não justifica uma ordem condenatória, menos ainda a prisão em flagrante, que se dá antes mesmo do início da ação penal, isso se a ação penal for proposta pelo Ministério Público.
Em delitos bagatelares, como o furto de itens de pequeno valor em hipermercados, furtos famélicos, não se justifica a prisão do autor, a não ser que reiteradas de maneira intolerável. Há de ser observada em cada caso concreto a individualização da conduta para que se enfatize os valores do regime democrático de direito, como a proporcionalidade entre a conduta e a intensidade da sanção.
A prisão visa a retirar de circulação indivíduos que oferecem risco à sociedade, seja em razão da intensidade da ofensa ou pela reiteração de tais danos a ordem pública. Sendo a igualdade compreendida como tratar igualmente os desiguais na medida de suas desigualdades, o encarceramento por meio da prisão em flagrante do autor de um homicídio ou latrocínio será atitude proporcional a gravidade de mencionadas condutas, diversa do cárcere impingido ao autor do furto de um sabonete numa grande rede de hipermercados.
Praticamente de modo inexorável em infrações materialmente atípicas, em razão da insignificância da ofensa ao bem jurídico protegido, o relaxamento da prisão será concedido. Assim, a prisão levada a efeito pela Autoridade Policial de maneira indistinta tanto em crimes graves, como em relação aos materialmente insignificantes e atípicos é tratar de formal igual hipóteses claramente distintas.
Desse modo, sustenta-se que a Autoridade Policial baseando em sua discricionariedade e no conjunto de leis e princípios que sob os ditames da constituição formam o sistema jurídico nacional possa não ratificar e não lavrar autos de prisão em flagrante versando sobre delitos que são, em tese, atípicos materialmente.
Bastará que o despacho do Delegado de Polícia tenha fundamentos razoáveis, fulcrados em princípios norteadores do direito penal e administrativo, como a persuasão racional, ultima ratio, insignificância e eficiência.
Suprimida a possibilidade de flagrante delito acerca de um delito bagatelar, com a consequente aplicação de penas alternativas, bem como a suspensão condicional do processo é coerente expor que todo o trâmite nascente com a instauração de inquérito policial através de um auto de prisão em flagrante é moroso e prejudicial as demais questões a cargo da Autoridade Policial, alusivas a crimes de expressiva relevância, como homicídios, tráfico de drogas, roubos, latrocínios.
4.2. Instauração de Inquéritos Policiais
As notitias criminis em praticamente totalidade são direcionadas primeiramente à Polícia Judiciária. Os demais órgãos públicos, em suma, tomam conhecimento das infrações penais através dos procedimentos instaurados em sede das atividades policiais investigativas.
Percebe-se que os crimes são levados aos julgadores, na grande maioria das vezes, pelos órgãos policiais. As policias investigativas ficam incumbidas por receber a notitia crimini, elaborar os procedimentos apuratórios e remetê-los ao Judiciário. Decorre, então, uma vultuosa quantidade de ocorrências policiais que sequer têm algum ato investigativo concreto realizado e acabam tendo as penas dos crimes ali noticiados prescrevendo nas próprias delegacias.
Hodiernamente as Autoridades Policiais são forçadas a selecionar dentre a enorme demanda de ocorrências a seu cargo aquelas que urgem de maior atenção e celeridade, pautando na gravidade dos fatos. Dentro dessa conjectura, vislumbra-se um critério que concedesse legitimidade aos Delegados de Polícia, para que com razoabilidade selecionassem o que mereceria o afinco policial em detrimento daqueles fatos que certamente ficariam a par de investigações.
Não se está defendendo uma possível faculdade de arquivamento de inquéritos policiais pelas policiais judiciárias. Como encontra-se assento no artigo 17 do Código de Processo Penal, a Autoridade Policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. Propõe-se é a possibilidade de em prol das investigações de crimes mais graves os procedimentos alusivos a fatos aparentemente atípicos, no aspecto material, não carecessem de instauração de inquéritos. Sendo, entretanto, os seus registros de ocorrência remetidos à apreciação do Ministério Público e na hipótese de discordância da análise feita pelo Delegado de Polícia restituiriam os autos à Autoridade Policial a fim de instaurar-se o procedimento policial pertinente.
Absolutamente coerente seria e o trâmite das apurações dos crimes relevantes teria sensível aumento na celeridade e quantidade. Ocorre na atualidade uma inexorável seleção por parte do Delegado de Polícia sobre aquilo que será instaurado e a praticamente certeza do que será prescrito nas próprias delegacias. O que se propõe é evitar um trabalho investigativo policial sem razão de ser em procedimentos acerca de fatos que, em tese, são materialmente atípicos.
Pelo Poder Judiciário, nem sempre um delito bagatelar será considerado atípico materialmente. Isso não quer dizer que a sua pequena ofensividade mereça um ato extremo por parte do Estado quanto ao autor, seja por meio de sua prisão em flagrante delito ou pela instauração de um caderno investigatório.
Assim, em delitos de menor gravidade é razoável afastar a possibilidade de uma prisão em flagrante, bem como o trâmite de todo um inquérito policial, sendo apenas registrado o fato, apreendidos os objetos, qualificadas as partes e remetidos os autos ao Ministério Público, para apreciação.
4.3. Princípio da Eficiência da Administração Pública
Consoante dispõe o caput do artigo 37 da Constituição Federal, a eficiência é um dos princípios norteadores da Administração Pública.
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”[16]
Exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição, rendimento, qualidade e economicidade. O princípio da eficiência possui o fulcro de buscar a produtividade e a economicidade, impondo a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional.
Conforme a norma constante no inciso LXXVIII do art. 5.º da Lei Maior, “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Assim, leciona André Luiz Nicolitt:
“A norma constitucional não se cinge aos processos judiciais, mas também àqueles que tramitam na via administrativa, muitos destes, da mesma forma, objeto de irritante lentidão. Não basta, porém, a inclusão do novo mandamento; urge que outras medidas sejam adotadas, em leis e regulamentos, para que a disposição possa vir a ter densa efetividade”.[17]
Entende-se que o princípio da eficiência possui o objetivo de desburocratizar a administração, desta forma a atividade administrativa é orientada a alcançar os melhores resultados a menor custo, utilizando os meios que dispõe.
Em seu artigo O princípio da Eficiência na Administração Pública, Cristiane Forte Nunes Martins, defende que:
“A eficiência como princípio assume duas vertentes: a primeira é organizar e estruturar a máquina estatal para torná-la mais racional para que as necessidades da sociedade sejam alcançadas de forma mais satisfatória e a segunda, é regular a atuação dos agentes públicos buscando que esses tenham um melhor desempenho possível a fim de atingirem os melhores resultados”.[18]
Desse modo, hodiernamente não se exige que o agente público atue apenas de acordo com a lei, impinge-lhe mais. Deve agir com moralidade e eficiência, obtendo os melhores resultados com a melhor relação custo-benefício.
Há de se considerar o princípio da eficiência em sede do serviço policial, devendo com os recursos existentes buscar por melhores resultados. Assim, é plausível que o Delegado de Polícia foque o seu labor e o de seus subordinados a infrações realmente relevantes.
5. Considerações finais
O princípio da insignificância é um tema que se mostra atual e de grande importância para o mundo jurídico, mormente em um Estado Democrático de Direito e na esfera penal, incluindo-se a administrativa, haja vista que alcança a liberdade da pessoa humana e uma esperada prestação de justiça à sociedade, mais célere, ágil e justa. Pelo princípio minimis non curat praetor, o magistrado não deve se preocupar com questões insignificantes.
Trata-se de tema novel na doutrina nacional, entretanto sendo a polícia judiciária a primeira responsável pela resposta penal à sociedade é tangível a aplicação de vanguarda do princípio da insignificância na atividade penal de persecução investigativa policial.
Para a polícia judiciária valer-se do instituto em voga nesta pesquisa, a interpretação do direito carece ser de maneira problemática, e não sistemática-dedutiva, puramente legalista, de forma a buscar valores, como o da justiça, visando a soluções justas em cada caso concreto. Bem como considerar o princípio da intervenção mínima como basilar do direito de punir estatal a fim de valorar a liberdade humana e o trabalho investigativo criminal.
A aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial apresenta manifesta relevância jurídica visto que a sua pragmaticidade colaborará não só para o melhor serviço da polícia investigativa à sociedade, mas também tornará mais eficiente a função do Ministério Público e a do Poder Judiciário.
A fim de uma prestação mais efetiva de justiça deve o princípio da insignificância ser utilizado por todos os operadores do direito penal, ou seja, autoridades policiais, promotores de justiça e juízes de direito, limitados, evidentemente, a suas competências funcionais.
Demonstrado está ser pouco inteligente todo o labor alusivo à confecção de um auto de prisão em flagrante, juntamente com seus demais encargos e o estigma da prisão trazido ao autor, que indubitavelmente será posto em liberdade tão logo seja o fato comunicado ao juízo. Ressaltando, outrossim, os cadernos investigatórios que não ensejarão ações penais e terão fatalmente pedidos de arquivamento quando de suas vistas pelo parquet, ficando a Polícia Judiciária desvirtuada de sua função ao ater-se com condutas atípicas e irrelevantes para o direito penal, bem como para a ordem pública.
Dessa forma, embora não previsto formalmente na legislação é amplamente aceito pela jurisprudência e exposto pela doutrina a aplicação do princípio da insignificância. Sendo mister sua legitimação para uso pela polícia investigativa naquelas situações em que a Autoridade Policial depara com fatos moldados na norma penal que entretanto são materialmente atípicos.
Buscou-se assim, despertar a consciência sobre um tema bastante relevante sobre o direito de liberdade do cidadão, bem como em relação a uma resposta mais célere nas investigações criminais a cargo da polícia judiciária quanto aos crimes de maior ofensividade social. Tema este evidente perante os operadores do direito, doutrinadores e legisladores e que legitimado a uso em sede da polícia investigativa traria benefícios à sociedade como um todo, valorando as bases do Estado Democrático de Direito.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Pós-graduado em Direito Penal e Processo pela Estácio de SÃ Aprovado no XIV Exame da OAB Escrivão de Polícia Civil PCMG
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