Possibilidade de exercício de atividades econômicas em área tombada

Consulta: Tombamento. Possibilidade de exercício de atividades econômicas em área tombada. O tombamento, por si só, não impede que a área tombada seja explorada. Não há óbice ao exercício de atividade mineradora em áreas tombadas, em princípio. Viabilidade jurídica do exercício de atividade minerária na serra da piedade.

I – INTERVENÇÃO DO ESTADO NA PROPRIEDADE

A Constituição vigente é peremptória ao garantir o direito de propriedade (art. 5º, XXII). Entretanto, o atendimento à função social poderá ocorrer por força de determinação estatal de obrigações positivas, negativas e permissivas. A ratio constitucional inicia-se pela previsão do direito de propriedade ( 5º, XXII) e de sua função social (5º, XXIII). Nessa linha, conforme disposição do novo CC, art.1.228, o proprietário pode usar, gozar e dispor da coisa, em consonância com suas finalidades sociais e de modo a preservar flora, fauna e patrimônio histórico e artístico (§1º).

Pode-se, então, conceituar intervenção do Estado na propriedade como atividade estatal que, amparada na lei, tenha por fim ajustar a propriedade aos imperativos do cumprimento de sua função social.[1] Evidencia-se, na definição apresentada, a posição superior estatal (imperatividade, poder extroverso) acompanhada da prerrogativa que é conteúdo do poder de polícia.

A intervenção na propriedade encontra limites nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, aplicando-se à hipótese o postulado geral que estabelece o dever de obter-se o fim almejado pelo meio menos gravoso possível. “A ação do controle administrativo necessariamente será exercido em nível de razoabilidade, com a adoção de medidas proporcionais à destinação específica da competência” – prerrogativa exercida por meio do ato praticado – de maneira a não prejudicar o núcleo do direito da propriedade, “com a qual deverá conciliar-se a limitação ou restrição a ela imposta.”  [2]

II – TOMBAMENTO (figura sui generis)[3]

2.1 Introdução

Tombamento é modo de intervenção na propriedade por meio do qual o Estado preserva o patrimônio cultural brasileiro, vale dizer, a memória nacional. “O vocábulo tombamento é de origem antiga e provém do verbo tombar, que no Direito português tem o sentido de inventariar, registrar ou inscrever bens. O inventário dos bens era feito no Livro do Tombo, o qual assim se denominava porque guardado na Torre do Tombo. Neste local ficam depositados os arquivos de Portugal.”[4] Foi usado pela primeira vez no Código de Processo Civil Luso de 1.876, como sinônimo de demarcação.[5]

A Constituição da República, em seu art. 216, dispõe que o patrimônio cultural se integra do conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, tomados individualmente ou em grupo, que se referem à memória do povo brasileiro, exibindo lista exemplificativa que inclui criações científicas, conjuntos urbanos e sítios de valor arqueológico, paleontológico, ecológico.

Tais bens resultam tanto da ação da natureza e da ação humana tomadas isoladamente, quanto da harmônica ação conjugada de ambos, “de reconhecidos valores vinculados aos diversos e progressivos estágios dos processos civilizatórios e culturais de grupos e povos.” Trata-se, portanto, de complexo de bens juridicamente tutelados nas três esferas da Federação.[6]

O diploma infraconstitucional que regula o tombamento é o Decreto-Lei nº 25, de 30/11/1937, que, malgrado estar desatualizado em alguns pontos, estabelece os contornos do instituto – regras básicas e fisionomia jurídica -, inclusive quanto ao registro dos bens tombados.

Os bens tombados, embora permanecendo na propriedade do particular, passam a ser protegidos pelo Poder Público, que, para esse fim, impõe algumas restrições quanto a seu uso pelo proprietário. A finalidade á qual se destina o ato de tombamento é vinculada, uma vez que a lei estabelece o dever estatal de preservar o patrimônio histórico, artístico, cultural (CR 216, §1º). Quanto ao motivo, pode-se conceber certa margem de liberdade na análise das características que tornam o bem, ou determinado aspecto deste, importante culturalmente e portanto merecedor de proteção especial.

A defesa do patrimônio cultural é interesse geral. Para que a propriedade privada atenda a essa função social, é necessário que o particular se sujeite a algumas normas restritivas concernentes ao uso de seus bens, impostas pelo Poder Público. Sob essa proteção, a propriedade estará cumprindo o papel para o qual a destinou a Constituição.[7]

2.2 Natureza jurídica

Varia bastante o tratamento do instituto pela doutrina. Para alguns, trata-se de servidão administrativa.[8] Outros sustentam tratar-se de limitação administrativa.[9] Há quem afirme tratar-se de ato administrativo complexo, por meio do qual “se declara ou reconhece a preexistência do valor cultural do bem”.[10] Para Odete Medauar, é “ato administrativo pelo qual se declara o valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, cultural, arquitetônico de bens” que, em razão disso, “devem ser preservados, conforme as características indicadas no livro próprio.” [11]

No que tange ao grau de intensidade que o tombamento possa exprimir, Lúcia Valle Figueiredo divide sua natureza em classes diversas. Se a propriedade privada restar esvaziada em razão do tombamento, mais que simples restrição ter-se-á desapropriação indireta, a ser resolvida por indenização integral[12], pena de institucionalizar-se hipótese de enriquecimento ilícito do Estado, o que repugna ao Direito. Nesse sentido se posiciona a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

Acordão

Origem: STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Classe: RESP – RECURSO ESPECIAL – 220983
Processo: 199900576942 UF: SP Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA Data da decisão: 15/08/2000 Documento: STJ000370654

Fonte

DJ DATA:25/09/2000 PÁGINA:72 RSTJ VOL.:00140 PÁGINA:97

Relator(a)

JOSÉ DELGADO

Decisão

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Exmos. Srs. Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Votaram de acordo com o Relator os Exmos. Srs. Ministros Francisco Falcão, Humberto Gomes de Barros e Milton Luiz Pereira. Não participou do julgamento o Exmo. Sr. Ministro Garcia Vieira, ausente, justificadamente, no início do julgamento.

Ementa

ADMINISTRATIVO. TOMBAMENTO. INDENIZAÇÃO. BEM GRAVADO EM CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE, IMPENHORABILIDADE, USUFRUTO E FIDEICOMISSO.1. O proprietário de imóvel gravado com cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade, impenhorabilidade, usufruto e fideicomisso tem interesse processual para ingressar com ação de desapropriação indireta quando o referido bem é tombado.2. O pedido só é considerado juridicamente impossível quando contém pretensão proibida por lei, ex: cobrança de dívida de jogo.3. O ato administrativo de tombamento de bem imóvel, com o fim de preservar a sua expressão cultural e ambiental, esvaziar-se, economicamente, de modo total, transforma-se, por si só, de simples servidão administrativa em desapropriação, pelo que a indenização deve corresponder ao valor que o imóvel tem no mercado. Em tal caso, o Poder Público adquire o domínio sobre o bem. Imóvel situado na Av.Paulista, São Paulo.4. Em sede de ação de desapropriação indireta não cabe solucionar-se sobre a permanência ou não dos efeitos de gravames (inalienabilidade, incomunicabilidade, impenhorabilidade, usufruto e fideicomisso) incidentes sobre o imóvel. As partes devem procurar afastar os efeitos de tais gravames em ação própria.5. Reconhecido o direito de indenização, há, por força de lei (art. 31, do DL 3.365, de 21.6.41), ficarem sub-rogados no preço quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado.6. Em razão de tal dispositivo, ocorrendo o pagamento da indenização, deve o valor ficar depositado, em conta judicial, até solução da lide sobre a extensão dos gravames.7. Recurso improvido.

Data Publicação

25/09/2000

Doutrina

OBRA : MANUAL DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL, V. 2, PROCESSO DE CONHECIMENTO, 7ª ED., RT, 2000. AUTOR : ARRUDA ALVIN OBRA : TRATADO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL, VOL.1, P.323 AUTOR : ARRUDA ALVIM OBRA : A PROTEÇÃO JURIDICA DOS BENS CULTURAIS, RT, CADERNOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL E CIENCIA POLITICA, Nº 2, JAN-MARÇO, 1993, P.24. AUTOR : CARLOS FREDERICO MARES OBRA : TOMBAMENTO: UMA ANALISE CONSTITUCIONAL. ASPECTOS DA DISCRICIONARIEDADE APLICAVEIS AO INSTITUTO, REVISTA DE DIREITO CONSTITUCIONAL E CIENCIA POLITICA, JAN-JUN, 1988, Nº 6, FORENSE, P. 201-203. AUTOR : MARCELO DE OLIVEIRA F. F. SANTOS OBRA : TOMBAMENTO E DEVER DO ESTADO DE INDENIZAR, RTJE, ANO 18, NOV. 1994, V. 130, P. 59-62. AUTOR : FLAVIO DE QUEIROZ B. CAVALCANTI OBRA : HERMENEUTICA E APLICAÇÃO DO DIREITO, FREITAS BASTOS, 1957, 6ª ED., P. 193. AUTOR : CARLOS MAXIMILIANO

Referência Legislativa

LD-41 LEI DE DESAPROPRIAÇÃO LEG_FED DEL_3365 ANO_1941 ART_20 ART_31 CC-16 CODIGO CIVIL LEG_FED LEI_3071 ANO_1916 ART_1676 ART_1677 ART_1773

Ainda no raciocínio esposado por Lúcia Valle Figueiredo[13], decorrendo da providência significativa mitigação do uso do bem, constituir-se-á servidão administrativa, passível de indenização, na medida da relevante perda de valor da coisa. Se assim não for, o tombamento será limitação administrativa não indenizável.

O tombamento não gera direito real, como a servidão origina. Além disso, não há prédio dominante nem serviente. Limitação administrativa também é classificação equivocada, uma vez que o tombamento tem caráter específico, incidindo sobre determinados bens, discriminados no respectivo ato.[14] Configura-se, portanto, como restrição ao uso da propriedade. Cria restrições especiais ao uso do bem. Teria natureza constitutiva, pois muda o status do bem, com efeitos ex nunc, ou seja, reflexos futuros. Acarreta, portanto, a incidência de regime especial de proteção ao bem, com a finalidade de atender o interesse público de preservação da cultura.

A intervenção do Estado na propriedade abarca tudo que afete qualquer dos caracteres do direito de propriedade, que é amplo (uso, ocupação, modificação e disponibilidade); exclusivo (somente do proprietário); perpétuo (passa a um sucessor). As limitações e o tombamento afetam a amplitude do direito; a ocupação temporária, a servidão e a requisição atingem o caráter exclusivo; desapropriação, caráter perpétuo.

No que tange ao objeto, o tombamento pode recair tanto sobre bens móveis quanto imóveis, privados e públicos. Há dois aspectos do bem protegido pelo tombamento: um público, difuso, tomado sob o prisma do valor cultural a ser resguardado e outro “privado”, que diz respeito a interesses individuais que recaem sobre o bem.

O bem cultural é público não como bem de domínio, mas como bem de fruição. Ambos, bem de domínio, propriedade titularizada por sujeitos determinados (incluindo bens pertencentes a entes públicos) e o bem de fruição, propriedade coletiva em sentido amplo, interesse difuso em terminologia juridicamente precisa, coincidem no suporte físico, mas não na tutela jurídica e na titularidade, que no primeiro caso se atribui ao proprietário e no segundo ao Estado, como exposto. “Nesse diapasão, não se deve falar em indenização ou expropriação em caso de tombamento. O vínculo atinge a fração pública da propriedade da coisa, mantendo incólume a privada. Isto origina uma obrigação para ambos, proprietário e Estado, de agirem conjuntamente em defesa do bem protegido. Destarte, o Poder Público deve também cooperar com incentivos, recursos econômicos e técnicos para auxiliar a atuação do proprietário privado, que não se confundem em absoluto com indenização. Os investimentos públicos correspondem à posição do Estado como titular do bem de fruição que encontra suporte no bem cultural.” [15]

Para que se cogite de indenização em razão da intervenção do Estado na propriedade, há que se tomar situação atual e concreta.[16] O que está fora da realidade palpável não pode ser objeto de apreciação para fins de ressarcimento. “Assim, o tombamento, quando atinge um cinema, por exemplo, está afetando aquela realidade e não o que poderia ser no futuro aquela casa de diversão. Cinema continuará sendo, sem qualquer restrição. O único ônus para o proprietário, nesse caso, será o de manter o prédio conservado. Não há, como se vê, dano. A casa continuará sendo explorada da mesma forma que antes.” [17]

José Eduardo Ramos Rodrigues conclui que “em qualquer lugar do mundo onde houver uma gestão pública adequada e consciente da necessidade de recuperação e valorização dos bens culturais, a proteção legal não causará nenhum prejuízo, mas, muito pelo contrário, será uma fonte de grandes lucros para os proprietários e de vantagens indiscutíveis para a população em geral.” [18]

2.3 Espécies

São espécies de tombamento o de ofício, que incide sobre bens públicos, competindo ao Presidente do IPHAN, ou do respectivo órgão encarregado da preservação do patrimônio cultural nas demais esferas, mediante notificação da entidade a quem o bem pertence, devendo obedecer-se o princípio da hierarquia federativa.

O tombamento voluntário recai sobre bem privado, nos casos em que há concordância do proprietário, pedido deste ou atendimento, pelo proprietário, de notificação estatal. O tombamento compulsório ocorre quando o proprietário recusa-se a anuir à inscrição do bem nos livros próprios.

O tombamento provisório tem cunho cautelar, evidenciado pelo escopo de evitar-se conduta lesiva ao valor cultural a ser protegido. O definitivo, a seu turno, consolida o dever estatal de preservar o bem cultural difuso.

2.4 Procedimento

O tombamento deve ser precedido de processo administrativo, é dizer, procedimento participativo visando à decisão final estatal, ex vi do art. 5º, LV, da Constituição da República. O órgão competente notifica o proprietário para manifestar-se acerca do tombamento por escrito, em 15 dias; se não houver impugnação, a autoridade determina a inscrição do bem no livro de tombo; caso contrário, a Administração Pública ou o interessado de onde proveio a iniciativa do tombamento deverá manifestar-se.

Os autos são então remetidos ao Conselho do órgão competente para decisão. Na esfera federal, efetua-se homologação (ato vinculado com fim de controle) pelo Ministro da Cultura; com possibilidade de recurso ao Presidente da República. Na esfera estadual, homologação cabe ao Secretário de Cultura e o recurso será para o Governador. Na esfera municipal, o Secretário de Cultura tem competência para homologar, cabendo recurso hierárquico para o Prefeito.

2.5 Efeitos

O principal reflexo do tombamento é a imodificabilidade do aspecto preservado do bem.  As alterações dependem de autorização do órgão competente. Se imóvel, exige-se transcrição e averbação no registro respectivo.

Quanto à alienabilidade, se pertencer ao domínio público, torna-se inalienável para particulares. Se houver alienação onerosa de bem privado tombado, União, Estado e Município têm direito de preferência.

O tombamento gera dever de vigilância para o Estado, sendo a fiscalização prerrogativa da Administração Pública que, para tanto, está autorizada a ingressar no bem ou ter acesso a este.

Há ainda possibilidade, conforme o caso, de estabelecerem-se restrições a imóveis vizinhos: proibição de construção que impeça ou reduza a visibilidade do bem tombado; vedação de afixação de anúncios e cartazes, entre outras.

Em suma, “a inscrição do bem sujeita-o a regime jurídico especial de proteção, exigindo autorização do órgão competente para variações de uso que possam interferir com a permanência do valor cultural, que é causa do tombamento.” Por essa forma é assegurada a manutenção das qualidades próprias à coisa tombada, conciliando-as com a disponibilidade do bem pelo proprietário. “A vigilância da autoridade competente no sentido da continuidade dos efeitos do tombamento não é, porém, discricionária, antes se vincula à finalidade precípua de  proteção ao valor cultural, que é o substrato do tombamento.”  [19]

O tombamento pode ser revogado mediante cancelamento do ato de inscrição, de acordo com exercício de competência administrativa discricionária, e invalidado, caso haja vício em sua constituição, por força do art. 53 da Lei nº 9.784/99 (Lei geral de processo administrativo).

III POSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ECONÔMICA EM ÁREA TOMBADA

Conforme exposto, o Decreto-lei federal nº 25, de 30 de novembro de 1.937, disciplinando a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, regulou o processo do tombamento voluntário ou compulsório de bens que mereçam ser preservados em seus aspectos direta e particularmente relacionados aos valores culturais protegidos por essa forma de intervenção na propriedade.

O tombamento é ato administrativo constitutivo em razão do qual o Estado passa a exercer a prerrogativa de vigilância (poder de polícia) sobre o bem tombado, de modo a garantir a intangibilidade do motivo determinante da restrição administrativa da propriedade:

O domínio e a posse de um bem não se alteram, mas sua disponibilidade e gozo ficam alcançados pela limitação ou restrição que se estabeleça quanto à livre utilização do bem.

Condicionando o direito de propriedade, os efeitos do tombamento se vinculam, estritamente, à finalidade do ato, ou seja, ao interesse público especificamente protegido.

Não sendo afetado o valor cultural e social (sic) que o tombamento visa a resguardar, a vontade do titular do domínio opera livremente na fruição do direito de propriedade, assegurado no plano constitucional e nos termos da lei civil.” [20]

Note-se que a oração sublinhada no parágrafo anterior é subordinada adjetiva restritiva, que constitui um adjetivo em forma de oração. Considerando-se a relação que estabelecem com o termo que caracterizam, as orações subordinadas adjetivas restritivas delimitam o sentido do termo antecedente, individualizando-o. A oração “que o tombamento visa a resguardar” estabelece contornos e particulariza o sentido da expressão valor cultural: cogita-se de um valor específico, único, singular, trata-se de determinado bem (aspecto de relevância cultural) objeto de proteção jurídica, que se caracteriza, no caso, por estar salvaguardado por ato administrativo concreto cujo conteúdo é o tombamento.

Sônia Rabello de Castro esclarece que o tombamento não impõe uso determinado do bem; simplesmente impede que a superveniência de uso divorciado da razoabilidade possa acarretar mutilação ou modificação dos caracteres para os quais se volta a proteção jurídica.

Merece alusão literal o magistério da autora:

“Ainda que se tombe o imóvel, não poderá a autoridade tombar o seu uso, uma vez que o uso não é objeto móvel ou imóvel. Com relação ao aspecto do uso, o que pode acontecer é que, em função da conservação do bem, ela possa ser adequada ou inadequada. Assim se determinado imóvel acha-se tombado sua conservação se impõe; em função disto é que se pode coibir formas de utilização da coisa que, comprovadamente, lhe causam dano, gerando sua descaracterização.[   ] Nesse caso, poder-se-ia impedir o uso danoso ao bem tombado, não para determinar um uso específico, mas para impedir o uso inadequado.”[21]

No Estado de Minas Gerais, a Lei nº 5775, de 30 de setembro de 1.971, autorizou o Poder Executivo a instituir, sob forma de Fundação, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA/MG), que atua em colaboração com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), tendo por finalidade exercer a proteção, no território do Estado de Minas Gerais, aos bens móveis e imóveis, de propriedade pública ou particular, de que trata a legislação específica, a ele competindo proceder ao levantamento e tombamento dos bens considerados de excepcional valor histórico, arqueológico, etnográfico, paisagístico, bibliográfico ou artístico existentes no Estado e cuja conservação seja interesse público, classificando-os e, se for o caso, promovendo junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o respectivo processo de tombamento também em esfera federal.

A Constituição estadual, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) /1989, no art. 84, declarou monumentos naturais e instituiu o tombamento, para o fim de conservação, dos picos do Itabirito ou do Itabira, do Ibituruna e do Itambé e das serras do Caraça, da Piedade, de Ibitipoca, do Cabral e, no planalto de Poços de Caldas, a de São Domingos.

O parágrafo primeiro estabeleceu que o Estado providenciará, no prazo de trezentos e sessenta dias contados da promulgação de sua Constituição, a demarcação das unidades de conservação de que trata este artigo e cujos limites serão definidos em lei. Tal parágrafo foi regulamentado pela Lei nº 15178, de 16 de junho de 2004, que, em seu art. 1º, define os limites da área de conservação da serra da Piedade, descritos graficamente, em coordenadas UTM, nos termos do Anexo da Lei.

O art. 2º autoriza o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico – IEPHA-MG –a inscrever em seu Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, previsto no art. 4º da Lei nº5.775, de 30 de setembro de l971, e no art. 4º, inciso I, do Decreto nº 14.374, de 10 de março de l972, a serra da Piedade, situada nos Municípios de Caeté e Sabará, observados os limites de que trata o art. 1º.

No art. 3º, o legislador estadual enuncia que “o responsável pela degradação ambiental da serra da Piedade, nos limites geográficos estabelecidos nesta Lei, obriga-se a submeter à apreciação do órgão ambiental competente Plano de Recuperação de Área Degradada e a executá-lo conforme aprovado, nos termos da legislação em vigor” , sob pena de a multa de até 10.000 UFEMGs (dez mil Unidades Fiscais do Estado de Minas Gerais), sem prejuízo de outras cominações legais cabíveis.”

É importante lembrar que, “a teor do que dispõe o art. 20, IX, da Constituição, que os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens da União, e que a pesquisa e a lavra destes recursos só poderão ser feitas por sua autorização ou concessão (art. 176, § 1º).” Sobre a atividade de extração mineral, dispõe o Código de Mineração (Decreto-Lei 227/67) que o minerador deve evitar danos ao meio ambiente, respondendo por eles na forma da lei (art. 47, VIII e XI).[22]

Em se tratando de atividade de ingerência na esfera jurídica do particular, deve ser a decisão final precedida de processo administrativo ou judicial, no qual o destinatário da restrição terá oportunidade de discutir o atendimento, pela providência, dos imperativos consagrados no ordenamento jurídico. Como se trata de decisão contrária ao interesse privado, deve ser interpretada restritivamente, no sentido de que tudo o que não for expressamente proibido em razão da intervenção presume-se permitido, uma vez que os sujeitos privados podem fazer tudo aquilo que a lei ou ato estatal que a aplique não lhes vede, partindo-se do pressuposto que a vedação seja legal.

Considerando-se que o ato legislativo supracitado não determina uso específico do bem; simplesmente repelindo a efetivação de práticas que configurem degradação ambiental, inexiste qualquer impedimento, a princípio, da realização de pesquisa e lavra na área tombada. O que a legislação visa a coibir é a superveniência de uso incompatível com a manutenção dos caracteres para os quais se volta a proteção jurídica.

Como já dito, embora seja tombado o monumento natural, não poderá a autoridade tombar o seu uso, uma vez que o uso não é objeto móvel ou imóvel. Com relação ao aspecto do uso, o que pode acontecer é que, em função da conservação do bem, a exploração deva atender a determinados parâmetros de natureza ambiental, por exemplo. Assim, se o monumento natural encontra-se tombado, sua conservação se impõe. Em função disto é que o Poder Público pode coibir formas de utilização da coisa que, comprovadamente, lhe causam dano, gerando sua descaracterização. Então, se não houver dano ou modificação nociva, a atividade é permitida. Poder-se-ia impedir o uso danoso do bem tombado, não para determinar um uso específico, mas para impedir outros usos.

Em suma, o interesse público na proteção do patrimônio cultural deve harmonizar-se com o interesse –  público e privado, ao mesmo tempo – na exploração econômica do subsolo da área tombada. Um e outro são valores igualmente amparados em princípios respeitáveis da Constituição (art. 5º, XXII e art. 170, III, combinados com art. 176, caput e § 1º e arts. 23, III e 24, VII, além do art. 216).

Pelo exposto, conclui-se que a exploração a ser realizada na área tombada é legal e válida, compatível com o ato do tombamento, em face da observância da autorização prévia pelos órgãos competentes.

 

Notas:
[1] CARVALHO FILHO. 2.004. p. 627.
[2] TÁCITO, Caio. “Tombamento. Concessão real de uso.” Temas de Direito Público: (estudos e pareceres). 2º volume. Rio de Janeiro: Renovar, 1.997. p.1830.
[3] Não é servidão nem limitação administrativa.
[4] CARVALHO FILHO. 2.004. p. 649.
[5] BORGES, Marco Antônio. “O tombamento como instrumento jurídico para a proteção do patrimônio cultural”. Revista de Direito Ambiental. nº 22, abril/junho 2.001. p.259-263.
[6] CUSTÓDIO, Helita Barreira. “Normas de proteção ao patrimônio cultural brasileiro em face da Constituição Federal e das normas ambientais.” Revista de Direito Ambiental. nº 06, abril/junho 1.997. p.17-39.
[7] CARVALHO FILHO. 2.004. p. 651.
[8] Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso…2004. p. 799. Lúcia Valle Figueiredo. Curso… 1995. p.200. Marco Antônio Borges.2.001. p.260.
[9] Cretella Júnior (RDA 112/55); Themístocles Brandão Cavalcanti (“Curso…”. RJ: Freitas Bastos, 1.964. p.149)
[10] BORGES, Marco Antônio. “O tombamento como instrumento jurídico para a proteção do patrimônio cultural”. Revista de Direito Ambiental. nº 22, abril/junho 2.001. p.260.
[11] Direito Administrativo moderno. São Paulo: RT, 2.003. p.369.
[12] Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: RT, 1.980. p.18,19.
[13] Op.cit.
[14] Veja CARVALHO FILHO. 2.004. p. 652, nota nº 63.
[15] RODRIGUES, José Eduardo Ramos. “Patrimônio cultural: análise de alguns aspectos polêmicos”. Revista de Direito Ambiental. nº 21. jan/mar 2001. p.188.
[16] FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1.997. p. 434,435.
[17] RODRIGUES, José Eduardo Ramos. “Patrimônio cultural: análise de alguns aspectos polêmicos”. Revista de Direito Ambiental. nº 21. jan/mar 2001. p. 189.
[18] RODRIGUES, José Eduardo Ramos. “Patrimônio cultural: análise de alguns aspectos polêmicos”. Revista de Direito Ambiental. nº 21. jan/mar 2001. p. 189. Ver ITALIA, Salvatore. La tutela dei beni culturali nell´ambito internazionale. Udine: Del Bianco, 1.988.
[19] TÁCITO, Caio. “Tombamento. Concessão real de uso.” Temas de Direito Público: (estudos e pareceres). 2º volume. Rio de Janeiro: Renovar, 1.997. p.1830.
[20] TÁCITO, Caio. “Tombamento. Concessão real de uso.” Temas de Direito Público: (estudos e pareceres). 2º volume. Rio de Janeiro: Renovar, 1.997. p.1828.
[21] CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação dos bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1.991, p.108.
[22] VAZ, Paulo Afonso Brum e MENDES, Murilo. “Meio ambiente e mineração”. Revista de Direito Ambiental. nº 07, julho/set 1.997. p.14 -26.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Shirlei Silmara de Freitas Mello

 

Doutora em Direito pela UFMG. Professora Adjunta na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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