Resumo: Este artigo tem como objetivo tratar da prática do Pascu, que é comumente entendido como uma violência em que um grupo de pessoas introduzem ou aplicam pasta de dente no ânus de uma pessoa, em geral calouro de uma faculdade[G1] . O Pascu faz parte de uma cultura de violência, que se dá em um campo em que o trote universitário é exercido como poder.
Palavras-chave: Trote violento, estupro, Direitos Humanos, Bourdieu
Abstract: This article aims to address the practice of Pascu, which is commonly understood as a violence in which a group of people introduce or apply toothpaste in the anus of a person, usually fresher than a college. Pascu is part of a culture of violence, which takes place in a field where the university haze is a kind off power.
Key-words: Violent Haze[i], Rape, Human Rights, Bourdieu
Sumário: Introdução, 1)Contexto da prática: trotes universitários violentos, 2)Relatos da prática do Pascu, 3)Difícil proteção legal- Projetos de lei- coibição ao trote, 4)Pascu como um crime grave: como estupro e como tortura. 4.1 Pascu como estupro, 4.2. Pascu como tortura, 5)Trote universitário como poder, 6) O silêncio dos inocentes e dos poderosos, 7) O campo de caça- campo de trote: uma analise bourdiesiana, Considerações Finais, Bibliografia
Sumary: Introduction, 1) Context of the practice: Violent university trotters, 2) Reports of Pascu’s practice, 3) Difficult legal protection- Prohibition projects at trot, 4) Pascu as a serious crime: as rape and as torture. 4.1 Pascu as rape, 4.2. Pascu as torture, 5) University haze as power, 6) The silence of the innocent and the powerful, 7) The hunting ground- field of haze: an analysis by the Bourdieu concepts ,Final Thoughts, Bibliography
Introdução
O medicina porque estás não triste/ Mas o que foi que te aconteceu? Foi o calouro que caiu na água /Deu dois suspiros eDepois morreu
Olodum do calouro da medicina- Nada mal… Calouro nada muito mal…/Que letal…/passar na medicina pode ser fatal.. (Hinos da Bateria Faculdade de farmácia Unicamp)[ii]
O trote é um dos problemas mais graves nas universidades e faculdades brasileiras. Não são raros os casos em que as condutas de trote levaram pessoas a morte ou mesmo à graves consequências físicas e psiciológicas. Grande parte desses abusos não é apurada pelas autoridades públicas e pouquíssimas vão ao judiciário. Este texto busca tratar de uma das práticas de violência universitária que é o Pascu. Essa prática não é de fácil definição, pois há práticas mais leves e mais graves dessa violência. O que este texto busca tratar é da violência grave, que aqui é entendida como estupro e/ou tortura.
Os versos acima apontam para uma situação de violência banalizada, em que estudantes cantam o caso de um trote que teve a morte por consequência. Trata-se de um calouro de medicina que foi morto em uma piscina em uma festa. Longe de chocar, o caso é encarado por alguns como um trote que não deu certo, ao invés de se tratar como um caso de homicídio. Nos trotes há uma situação de banalidade do mal.
Arendt ficou conhecida como a filósofa que cunhou o termo “banalidade do mal” para se referir a pessoas que tem práticas que ferem a dignidade humana, sem que se apercebam disso. Para a filósofa não se tratava propriamente de pessoas ruins ou más, mas sim de pessoas que, respaldadas por um poder superior, agiam de maneira absolutamente cruel, sem se dar conta de seus atos.
Os agentes dos trotes violentos podem ser entendidos como praticantes de um mal, mas que não se apercebem da gravidade de seus atos. Trata-se de pessoas absolutamente normais e desejáveis socialmente. São amadas por seus parentes e colegas, vistas como símbolo de sucesso e objetos de conquistas amorosas. Porém, podem praticar atos cruéis, como o Pascu. Essas pessoas, tal qual o Eichmann retratado por Arendt, tinha pouca capacidade de pensar sobre seus atos, seu mal era banal.
O Pascu surge como uma prática violenta em faculdades, mais comumente nos trotes universitários, partindo sempre de veteranos e dirigido aos novatos. Algumas vezes essa prática também é feita como uma sanção a estudantes, ao longo do curso. Dificilmente essa prática é denunciada pelas vítimas, que são geralmente homens, devido ao preconceito, ao temor aos futuros colegas de profissão e a dificuldade probatória na justiça.
Vídeos da prática do Pascu viralizaram na internet, quando um estudante que era contra a prática sofreu um Pascu, na forma de uma encenação cirúrgica. A questão chegou a ser tratada na CPI da Assembleia Legislativa de São Paulo que tratou da investigação de trotes violentos e estupros em festas universitárias. A prática foi entendida como uma violação aos Direitos humanos e começou a ser coibida. Porém, ela ainda é praticada nas faculdades, especialmente nas paulistanas, das áreas de exatas e biológicas. Longe de ser uma lenda urbana, essa prática violenta é real e vem causando sequelas para as vítimas.
Este trabalho utiliza-se de relatos feitos durante a CPI dos trotes – Comissão Parlamentar de Inquérito constituída pelo Ato nº 56, de 2014, com a finalidade de “investigar as violações dos direitos humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo ocorridas nos chamados ‘trotes’, festas e no seu cotidiano acadêmico”. Esses relatos estão no Relatório final da CPI e foi publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, com mais de 2mil páginas. Esse extenso relatório, tem a taquigrafia dos depoimentos. Os nomes de todos os participantes foram retirados e apagados, mesmo estes sendo públicos em documento oficial, uma vez que o objetivo do texto não é uma acareação dos envolvidos nessas práticas.
A opção por pegar os relatos já feitos, foi a dificuldade de conseguir relatos de quem já sofreu o Pascu. Apesar de ser prática ainda comum em diversas faculdade, ela está sendo cada vez mais negada, devido a pressão social. Porém, internamente vários estudantes sabem da ocorrência da prática. Há alguns que mesmo próximos as vítimas, não sabem da ocorrência, isso porque geralmente essas práticas não ocorrem nas faculdades, mas em festas, confraternizações, trotes, etc.
1. Contexto da prática: trotes universitários violentos
Entender o que é a prática do Pascu, passa por entender o contexto dos trotes violentos, em especial nas faculdades/universidades de São Paulo, nas décadas de 90 e 2000. Adryelle Camilo destaca que o trote violento não é algo moderno, mas remete ao início da formação das universidades e faz um relato dos trotes mais violentos que resultaram em morte no Brasil:
“Em 1831, ocorreu a primeira morte de que se tem notícia, tendo como vítima o estudante Francisco Cunha e Meneses, da Faculdade de Direito do Recife. A partir de então são muitas as histórias trágicas ligadas a trotes violentos praticados nas universidades brasileiras. Foi noticiada na revista Veja, em 3 de abril de 1971, a morte, por espancamento, de um calouro de 20 anos que tentou resistir ao trote na Universidade de Mogi das Cruzes. Também na Universidade Mogi das Cruzes, em 1980, outro calouro morreu vítima de espancamento, por resistir ao corte de cabelo. Na Fundação de Ensino Superior de Rio Verde (GO), em 1990, um rapaz de 23 anos morreu de uma parada cardíaca quando tentava fugir de veteranos que iam lhe aplicar um trote. Em 1993, um estudante abandonou a vaga no curso de engenharia, que conquistou na Unesp de Guaratinguetá, depois de ter um volume de sete quilos amarrado aos seus órgãos genitais. Nessa mesma ocasião outros novatos foram compelidos a tomar banho em um líquido retirado do estômago de um boi, mastigar e engolir grama, andar só com roupas íntimas e rolar na lama misturada com estrume. Em 1998, um jovem foi internado depois de ter sido queimado durante um trote por veteranos da Faculdade de Medicina da PUC-SP. O debate sobre a violência nos trotes foi reacendido, com o caso do calouro de medicina Edson Tsung Chi Hsueh, da Universidade de São Paulo, que morreu afogado durante a realização de um trote em 1999. Um aluno da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro também morreu afogado em 2009. Em 2010, estudantes da Unicastelo, em Fernandópolis, foram obrigados a fumar, tirar as roupas íntimas, pedir dinheiro em semáforos e a beber álcool combustível. Na mesma época, na Escola Superior de Propaganda e Marketing, também em São Paulo, um estudante foi agredido e teve ossos do nariz e do rosto quebrados. Esses são apenas alguns dos inúmeros casos de trote, que trazem ainda muitas outras consequências, tais como intoxicações, perda de audição, queimaduras de terceiro grau etc.” (CAMILO, s/d)
Essas práticas de trote violento começam a se tornar conhecidas do grande público a partir da década de 90, em que foi possível a documentação em vídeo e foto, feita de maneira barata pelos próprios estudantes em seus celulares. Essas práticas, que eram antes somente conhecidas internamente, se espalhassem na internet.
Os trotes nas faculdades brasileiras estão longe de ser uma mera brincadeira de alunos. A violência ganha respaldo nas faculdades e é impetrada por um grupo de jovens, podendo ter componentes racistas, classistas, machistas, xenófobos, homofóbicos, etc. Se no início os trotes eram entre pares, e por isso havia um certo limite do que seria feito, ele se torna um meio de exclusão.
Pode-se dizer que há trotes diferentes nas práticas e no grau de violência que impetram. Há trotes especificamente contra mulheres, como o conhecido Rodeio da Gorda, em que uma mulher gorda era escolhida por um homem e este montava em suas costas, como um boi bravo em um rodeio. Havia uma competição entre os homens, que cronometravam quem ficaria mais tempo em cima da mulher. Essa prática não era avisada à mulher, que não tinha por vontade ser agredida e tratada como um animal de rodeio.
Há vários tipos de trotes universitários, que podem ser caracterizados como integradores, solidários, violentos ou mesmo leves. Segundo Camilo:
“O trote leve, aquele em que os veteranos pintam o rosto, os braços, as roupas ou raspam o cabelo do calouro, é amplamente aceito, tanto social quanto institucionalmente. Reitores, professores, pais e alunos o têm como saudável. O problema é delimitá-lo, para que, durante a sua prática, não exceda ao consentimento real do calouro. O trote mediano, aquele em que os calouros são obrigados a se molhar, chafurdar na lama ou fazer pedágio nos semáforos para pagar os valores estipulados pelos veteranos ,também é aceito. Mas, como violam direitos da personalidade, as instituições não o admitem dentro de suas dependências. O trote grave pressupõe coerção, pois, como retroexposto, viola as normas de direito natural. O novato é submetido às maiores atrocidades, como ingerir comida previamente mastigada por um veterano; correr nu em público; ingerir bebida alcoólica, ficar amarrado, tomar contato físico com excrementos ou animais em estado de putrefação, dentre tantos outros absurdos.” (CAMILO, s/d)
A escalada da violência nos trotes universitários também ganhou força na década de 2000. Há diversos relatos de alunos que foram mortos ou feridos gravemente em festas de faculdades. Centenas, se não milhares, de mulheres estudantes foram abusadas e estupradas. Inicia-se campanhas para que esses abusos e crimes sejam contidos.
Há quem entenda que há um currículo oculto nas faculdades e que a violência e o trote fazem parte dela. Marco Arkeman, na cartilha de combate ao trote irá definir o currículo oculto como:
“(…) um conjunto de tradições, valores, normas, regras, rotinas que não estão escritas em nenhum documento da escola, mas que são t r a n s m i t i d a s , c o n s c i e n t e m e n t e o u inconscientemente, entre professores e estudantes, e entre estudantes e estudantes, e que podem gerar tanto um ciclo virtuoso quanto um ciclo vicioso de atitudes e ações que podem marcar o corpo e a alma dos estudantes durante o período escolar, ou para o resto do tempo de vida fora da escola”. (FSP/USP, ARKEMAN, 2015, p.9)
O estudante receber o trote e não denunciar aprende um corporativismo, que é muito forte em algumas faculdades, em especial as de medicina e odontologia. Aguentar a dor, física e emocional, colocar o grupo acima do individual, proteger os poderosos e não contestar o poder e a ordem, parecem ser o currículo oculto e por isso estancar a prática do Pascu é tão difícil, uma vez que ele leva ao extremo esse respeito e temor.
2. Relatos da prática do Pascu
O Pascu é uma pratica em que pasta de dente é introduzida no ânus ou na região do ânus de um estudante, em geral um aluno que é novato no curso. Como informa uma das testemunhas no relatório da CPI:
“Fui formado na Faculdade de Medicina da USP, filho de Arnaldo, por assim dizer. Não sei o que os filhos de Arnaldo acham disso, mas eu sou. Eu naturalmente, me afastei disso aí. Então eu escapei, por exemplo, de levar a pasta, que naquela época chamava só “pascu”. Como vocês podem imaginar e já sabem, é a introdução de dentifrício no orifício anal”. (CPI, 2015, p.420)
A prática do Pascu tem gradações na violência, pois há diferença entre colocar pasta na região do ânus e dentro do ânus de uma pessoa. A introdução pode levar a caracterização de estupro, pois é utilizado para isso dedo ou instrumentos. No caso da aplicação da pasta de dente na região, há ardência, mas as mucosas internas não são afetadas e não há penetração. Por isso, analisa-se aqui o Pascu como estupro e como tortura.
O Pascu é prática que ocorre como: punição e/ou humilhação. Geralmente praticada em festas e nos trotes. É feita introduzindo pasta de dente no ânus de um homem a força. É descrita desse modo por um depoente:
“O que é um “pascu”, (…)?
– “Pascu” é quando alunos seguram outro aluno à força, tiram as calças dele, abaixam calça e cueca e passam pasta de dente, dentifrício, no ânus. Essa era uma prática que eu já tinha ouvido falar, infelizmente é comum. Agora, o trote eu nunca tinha ouvido falar, e me foi contato nessa situação, por esses amigos próximos. E foi então que nós pensamos juntos “olha, nós precisamos denunciar isso aí, porque se não geração após geração pessoas vão continuar sendo submetidas a esse tipo de violência. Nós vamos ser cúmplices disso, vamos deixar isso acontecer por causa de uma ameaça que vamos ser prejudicados por denunciar aquilo que é…”, eu não sou advogado, apesar de trabalhar no Ministério da Justiça hoje, mas é uma ilegalidade evidente” (CPI, 2015, p.580-581)
Trata-se de uma prática que geralmente tem como sujeito ativo, alguns veteranos e como sujeito passivo da prática: o bixo. Trata-se portanto de uma prática que não é praticada de pessoa a pessoa, mas sim de um grupo contra uma pessoa. É muito difícil identificar quem é o responsável pelo Pascu, pois há vários envolvidos, sejam eles mentores intelectuais, até os executores:
“Presidente– Tem alguns famosos, assim, que estão na escola ou que já formaram, estão por lá? Que são adeptos dessa técnica?
R – Tem, mas assim, é difícil de apontar um indivíduo porque, assim como todas as outras violências relacionadas a trotes são violências cometidas em grupo. Então você nunca vai olhar e ver que tipo, um cara ele pega e comete um Pascu. Isso não acontece, ele tem que ter o respaldo das pessoas, em geral da turma dele, do time dele para realizar este ato. As pessoas respaldam me participam e se sujam também, né? Porque é uma estratégia de silenciamento também, porque você não pode denunciar porque você também participou. Então ninguém vai fazer isso sozinho, ninguém vai se expor a isso”. (CPI, 2015, p. 2111)
Essa prática requer um grau de violência física e psicológica considerável, geralmente impetrada com ameaças à vítima, uma vez que não é consensual. As pessoas que sofrem o Pascu, sofrem em silêncio, pois geralmente não falam mais sobre o assunto, mas sofrem suas consequências:
“É… Bom… Começou a ter o “pascu”. Eu… Naquele momento, eu não levei “pascu”, futuramente eu vou levar “pascu”, eu vou contar essa história também. Mas, bom, eu vi que estava acontecendo o “pascu”, eu virei para o meu amigo de novo, falei assim: “Vamos embora agora, não vamos ficar aqui que a gente vai levar ‘pascu’. Aí o veterano que falou pra gente ficar, ouviu e de novo: “Não, não, vocês não vão embora não”. Aí, eu falei: “Não. A gente vai embora sim”. Eu peguei e foi embora. Aí quando eu peguei e foi embora, ele virou e falou pra mim assim – vou citar então, as palavras não são minhas: “Você é um bosta, você é um filha da puta, você não merece estar aqui, você está marcado comigo, você vai se fuder nessa faculdade”. Eu não vou citar nomes por simplesmente pra me proteger, mas foi uma coisa que marcou. Esse veterano, no caso, tinha me batido… Foi um dos que me bateram na “Grande Família”. Foi uma das mesmas pessoas, foi aquele que primeiro me bateu quando me mandou buscar cerveja. Mas depois disso eu nunca mais tive…” (CPI , 2015, p.2338)
Essa prática geralmente é feita em homens, sendo muito difícil ser praticada contra mulheres. Há violências nos trotes contra as mulheres, mas em geral são práticas de estupro em que o caráter sexual não está velado, mas explicito. O pascu já foi uma prática aplicada também em mulheres, como pode ser visto no depoimento de uma pessoa na CPI:
“- Deputado: Tem pascu para meninas?
-Depoente-aluno: Falaram que tinha antigamente, mas que foi abolido. Nunca ouvi mais falar nos últimos anos. Tinha algumas modalidades que praticavam isso, mas atualmente não mais.” ( CPI, 2015, p.29)
É uma prática que ocorre em um ritual violento e muitos cargos de prestígio nos centros acadêmicos, atléticas e diretórios das faculdades, somente são alcançados por uma subserviência aos antigos veteranos, que inclui passar pelo pascu. Um dos depoentes narra o pascu como um ritual de passagem:
“Nós temos uma atlética com 200 alunos. O “Show Medicina” tem 100 alunos. Todos eles passaram por trote. Todos os diretores da Atlética tiveram que passar pelo “pascu” e aplicam o “pascu”, que é aquela prática de enfiar pasta de dente no ânus de outro aluno, como forma de humilhação. É um ritual.” (CPI, 2015 , p.505)
Sem aceitar o pascu, a pessoa não entra para a irmandade. Há um pacto de subserviência e de silêncio, entre os que passaram e os que fizeram a prática. É também uma prática que perpetua a violência, uma vez que aqueles que sofreram irão futuramente aplicar, em nome de uma tradição e de uma irmandade que se estende para além dos muros universitários e além do tempo:
“-deputado – O pascu é um castigo para um perdedor, para um cara que é mais frágil. Qual é o julgamento? Quem julga?
– depoente- O veterano. A mesma lógica. O trote, na faculdade de medicina, tem uma lógica meio carreirista. Como você não toma trote no começo, na medida em que você vai fazendo parte de novas instituições, por exemplo, (ininteligível) estava descrevendo alguns trotes específicos que eu tomei. Se você quer ser diretor da sua equipe na Atlética, para depois ser diretor da Atlética ou uma coisa assim tem que tomar esses trotes. Então você vai tomar pasta. Também tem um código disciplinar na equipe, principalmente de handball se você atrasa ou se tem alguma questão que a equipe pega você. É a mesma lógica disciplinar do show medicina. É uma lógica dos veteranos exercendo o poder disciplinar sobre um calouro ou não. Não precisa ser calouro, pode ser mais velho também. As pessoas vão ser castigadas pela equipe, sob o comando dos veteranos”. (CPI p.188-189)
As práticas de Pascu também se tornam difíceis de identificar e punir, pois são praticadas muitas vezes fora dos portões das faculdades e em horários que não são os de aula. As Atléticas que são lugar de interação entre os calouros e veteranos também são responsáveis pela prática do Pascu, seja em seus ambientes, ou em outro, mas com a participação dos integrantes:
“Deputado– Essa foi forte. Outro dia nós estamos precisando de outros, é difícil achar vídeo de Pascu na internet?
R. – Sim, eu acho que único vídeo que foi feito eu mostrei.
Deputado– As outras faculdades de Medicina fazem o Pascu?
R. – Algumas Atlética fazem sim.
Deputado– Lá, quando tem Intermed tem Pascu, não tem?
R. – Tem nos alojamentos da minha faculdade, eu não posso falar pelas outras. (CPI, 2015, p. 2111)
É muito comum a prática do Pascu em festas e nas semanas de jogos universitários. Não há participação direta das faculdades, mas há indireta, pois muitas delas liberam as aulas nesses períodos. O depoimento abaixo, narra como a prática é exercida em coletividade e fora das faculdades:
“Quase ninguém estava nos quartos e pelos boatos que o pessoal estava espalhando é que seria talvez o dia do pascu oficial, que seria dado em todo mundo, e que os mais velhos gostariam de dar. Fui voltar para o meu alojamento pegar a minha escova de dentes. Quando entrei lá, do lado do meu colchão, que era o colchão do meu amigo, colchão de casal, estava um colega meu deitado de bunda para cima, de bruços, e um conjunto de vários meninos da Atlética bem altos, em geral, fortes – conhecidos meus, inclusive -, com a pasta de dentes na mão e declamando algumas coisas do tipo: “Ah, é isso aí. Você mereceu. Agora você vai aprender” e o menino sem falar nada estava bem constrangido. Eu não vi a cena em si do pascu, mas presenciei esse final mesmo”. ( CPI, p.29)
A prática do Pascu é portanto uma prática em que várias pessoas participam. Quanto mais influência na hierarquia das irmandades nas faculdades, maior a participação em práticas de Pascu, seja como vítimas ou abusadores:
“ Eu, como integrante do time de handebol no segundo, ouvi diversas vezes de que eu deveria passar pela humilhação do Pascu, como é conhecida essa prática que vocês viram no vídeo, para ser diretor da Atlética. Eu finalmente passei por isso, pelas mãos dos meus colegas de time, no que hoje eu vejo como um teste da minha obediência, disfarçado de castigo por um suposto desvio disciplinar../ Hoje em dia, poupam-se os primeiro-anistas dessa prática, mas algumas equipes masculinas mais envolvidas com a gestão da Atlética mantém essa tradição. A prática consiste na simulação de um procedimento cirúrgico realizado por veteranos do quinto ano ou mais velhos, incluindo médicos residentes, em que se submete um aluno mais novo a tapas com graus variados de violência, dependendo da situação, terminando com a aplicação de pasta de dente perto do ânus. Justifica-se o ato como ritual de passagem ou medida punitiva”.(CPI, 2015, p. 345-346
Há casos em que a prática do Pascu se torna ainda mais violenta, com a introdução de pimenta no ânus das vítimas. Diante das denúncias das práticas, que beiram ao esdrúxulo, foi feito uma pesquisa por parte da faculdade para confirmar a prática, como aponta AKERMAN:
“(…) realizou-se reunião com todos os estudantes do 1º ano de Medicina, que confirmaram, publicamente, a denúncia de “introdução de pimenta através do ânus” em calouros. No sentido de obtermos embasamento sólido e por escrito para uma tomada de decisão com precisão e critérios, todos os estudantes do 1º ano do curso de Medicina responderam, sem se identificarem, a um questionário elaborado pela Comissão com seis perguntas: (1) Você foi vítima de introdução de pimenta no ânus? (2) Se sim, pode identificar quem realizou o ato? (3) Você já foi vítima de alguma humilhação por parte de seus colegas de Faculdade? (4) Se sim, qual? Pode dizer quem realizou o ato? (5) Você já presenciou algum colega seu sendo humilhado por outro colega? (6) Se sim qual? Pode identificar quem realizou o ato? Foram respondidos 106 questionários; 65% dos estudantes informaram terem sido vítimas de algum tipo de humilhação por parte dos veteranos; foi confirmada a denúncia de “introdução de pimenta no ânus”. (2014, p.29)
3) Difícil proteção legal- Projetos de lei- coibição ao trote
Devido à quantidade de trotes violentos e resultando morte nas décadas de 1990 e 2000 surgiram mobilizações sociais para coibi-los, entre elas: regulamentações internas de algumas faculdades para coibir a prática e projetos de lei no âmbito estadual.
Não foram poucos os projetos que buscaram tratar do trote universitário, entre eles: Projeto de Lei da Câmara nº 9, de 2009, oriundo do Projeto de Lei nº 1.023/95 e Projeto de Lei nº 104, de 2009 da senadora Marisa Serrano. O Projeto de lei 117/2015 do senador Humberto Costa é um dos que trata dos trotes universitários nas faculdades, buscando a introdução dessa figura do trote como contravenção penal. Diz o projeto:
“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre as atividades de recepção a novos alunos em instituições de ensino superior. Art. 2º São proibidas as atividades de recepção de novos alunos em instituições de ensino superior, de qualquer natureza, que: I – atentem contra sua integridade física, moral ou psicológica; II – imponham-lhes constrangimento; III – obriguem a prática de atos vexatórios ou humilhantes; IV – impliquem pedido de doação de bens, dinheiro ou prestação de serviços pelos novos alunos. § 1º Verificada a ocorrência de qualquer das hipóteses previstas no caput, ainda que fora das suas dependências, a instituição de ensino superior instaurará processo disciplinar, bem como representará ao Delegado de Polícia competente para instauração do inquérito policial.§ 2º O processo disciplinar será regido por regras de procedimento da instituição de ensino superior, assegurados o contraditório e a ampla defesa. § 3º Poderão ser aplicadas as seguintes sanções disciplinares: I – suspensão de um a seis meses; II – expulsão. Art. 3º Antes do início do período letivo, a instituição de ensino superior constituirá comissão integrada por professores e estudantes, que estabelecerá um calendário de atividades e eventos destinados à recepção de novos alunos. Parágrafo único. As atividades visarão à integração na vida universitária, bem como ao conhecimento das instalações, do funcionamento dos equipamentos coletivos e dos serviços sociais disponíveis na instituição de ensino. Art. 4º As instituições de ensino superior farão campanhas de divulgação e esclarecimento quanto ao disposto nesta Lei. Art. 5º O Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 – Lei das Contravenções Penais, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 65-A: “Art. 65-A. Constranger estudante, a título de recepção em universidade, faculdade, academia, ou outro estabelecimento de ensino, de qualquer natureza, inclusive militar, a praticar ato humilhante, vexatório, contrário aos bons costumes ou prejudicial à sua saúde: Pena – prisão simples, de vinte dias a dois meses, ou multa de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 10.000,00 (dez mil reais).” Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.”
Este projeto de lei não foi até o presente votado. Somente há lei para regulamentar a questão do trote no âmbito estadual: Lei Estadual n. 10454 de 1999 de São Paulo, Lei Estadual n.15431/2010 de Santa Catarina, Lei estadual 2929/2004 de Mato Grosso do Sul e Lei Estadual 6436/2015 do Rio de Janeiro. Diz a lei paulista:
“Artigo1- É vedada a realização de trote de calouros de escolas superiores e de universidades estaduais, quando promovido sob coação, agressão física, moral ou qualquer outra forma de constrangimento que possa acarretar risco à saúde ou à integridade física dos alunos/ Artigo 2- Compete à direção das instituições públicas de ensino superior: I-adotar iniciativas preventivas para impedir a prática de trote aos novos alunos, segundo disposto no artigo 1; II-aplicar penalidades administrativas aos universitários que infringirem a presente lei, incluindo expulsão da escola, sem prejuízo das sanções penais e civis cabíveis”
Ao tratar somente das faculdades e universidades estaduais, a lei parece não contemplar as universidades federais e as faculdades particulares. Assim, a lei que poderia ser aplicada em todo o Estado de São Paulo fica restrita apenas a algumas instituições de ensino, e por esse aspecto parece muito mais uma lei administrativa das universidades do que propriamente uma lei para o Estado de São Paulo.
Existe também a Lei n. 15.892/2015 do deputado Rafael Silva que trata da coibição do trote para todos os estudantes de São Paulo. Essa lei foi fruto de pressões sociais ocorridas depois da CPI dos trotes, como aponta ALMEIDA JUNIOR:
“Não tardou para que as questões levantadas pela “CPI Sobre as Violações de Direitos Humanos nas Faculdades Paulistas”, realizada no início de 2015, produzissem frutos legislativos. Derrubando o veto do governador José Serra de 18 de janeiro de 2007, os deputados da ALESP aprovaram uma lei (…) O veto do Governador José Serra reproduzia argumentos longamente utilizados para não estabelecer uma legislação mais forte contra o trote. A invocação da autonomia universitária, de que o trote deve ser tratado apenas pelo código disciplinar das instituições de ensino, e das leis já existentes como garantias dos direitos dos estudantes eram amplamente utilizados na justificação utilizada para vetar a lei proibindo o trote. Ao derrubar o veto do Governador Serra, a ALESP reafirma que estes argumentos não são mais válidos no Estado de São Paulo. A lei aprofunda as determinações contidas na lei 10.454/99, exigindo “expulsão imediata” do aluno e “exoneração” do servidor público que estiverem envolvidos em atividades relacionadas ao trote. Esta explicitação das penas e dos prazos para que elas sejam aplicadas revela a intenção do legislador de efetivamente coibir o trote em todas as suas expressões, “excetuado o de caráter assistencial ou cultural”. Ela representa, portanto, uma conquista na luta contra o trote em geral e contra o trote universitário em particular, apesar de admitir o trote cultural e assistencial. (ALMEIDA JUNIOR, 2015, p.20-21)
A lei representa um avanço para a coibição do trote, porém ainda trata as condutas do trote de maneira geral não especificando as suas gravidades, seus graus de violência e não há uma criminalização no âmbito penal, somente no âmbito das escolas. Diz a lei:
“LEI Nº 15.892, DE 15 DE SETEMBRO DE 2015 – Proíbe o trote nas escolas da rede pública em qualquer nível de ensino O PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA: Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu promulgo, nos termos do artigo 28, § 8º, da Constituição do Estado, a seguinte lei: Artigo 1º – Fica proibido o trote nas escolas da rede pública em qualquer nível de ensino, inclusive nas faculdades, institutos e universidades, excetuado o de caráter assistencial ou cultural. Artigo 2º – Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, ficam os responsáveis pelo ato sujeitos às seguintes sanções: I – se aluno, expulsão imediata da unidade escolar; II – se servidor público, exoneração da função. Artigo 3º – O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 90 (noventa) dias. Artigo 4º – As despesas decorrentes da aplicação desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias, consignadas no orçamento vigente. Artigo 5º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, aos 15 de setembro de 2015”.
Essas leis e projetos de leis não tratam de condutas graves como a do Pascu, mas condutas menos grave. No caso de trotes com resultado final como homicídio, lesões corporais e estupros, considera-se que ocorreu esses crimes decorrentes do trote e não somente trote. Por isso, no caso do Pascu analisa-se duas hipóteses que essa conduta poderia ser entendida.
4. Pascu como um crime grave: como estupro e como tortura
Quanto mais grave um crime é mais grave é sua pena e também maior o valor que a sociedade dá àquele bem tutelado. O pascu revela uma conduta grave, porém tem sido encarado, inclusive por aqueles que o sofreram, como uma conduta de menor importância. Há uma grande negação das vítimas em entenderem que o que passaram foi grave, pois há um tabu na prática.
Há várias possibilidades de se enquadrar juridicamente um trote e ele depende do grau de violência e das suas consequências. Geralmente os trotes com violência moderada são entendidos como contravenções penais ou como constrangimentos ilegais. A previsão de constrangimento ilegal está no artigo 146-A do Código Penal:
“Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. Aumento de pena- § 1º – As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas. § 2º – Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.”
Os trotes com violência dita como moderada, que não levavam a morte ou lesões corporais graves eram e ainda são, quando chegam ao âmbito do judiciário, entendidos como contravenções penais e enquadrados nos artigos:
“Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
“Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”. (Lei das Contravenções penais – DECRETO-LEI Nº 3.688, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941)
As contravenções penais têm um caráter de menor padrão ofensivo, em comparação aos crimes. Devido as suas sanções mais brandas e a sua fiscalização fraca por parte do poder público, dificilmente chegam a ser investigadas e julgadas. Não raro a população interpreta a condenação em contravenção penal como um abrandamento da pena ou mesmo como uma situação de injustiça.
Há também o entendimento que as práticas de trote podem ser enquadradas como bullying. Porém, a prática do Pascu é bem grave para poder entender como uma mera prática de desrespeitos entre alunos. O bullying não está definido como crime, mas há uma lei que trata do tema: (LEI Nº 13.185, DE 6 DE NOVEMBRO DE 2015), que diz:
“Art. 2o Caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying) quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda: I – ataques físicos; II – insultos pessoais; III – comentários sistemáticos e apelidos pejorativos; IV – ameaças por quaisquer meios; V – grafites depreciativos; VI – expressões preconceituosas; VII – isolamento social consciente e premeditado; VIII – pilhérias. Parágrafo único. Há intimidação sistemática na rede mundial de computadores (cyberbullying), quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.
Art. 3o A intimidação sistemática (bullying) pode ser classificada, conforme as ações praticadas, como: I – verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente; II – moral: difamar, caluniar, disseminar rumores; III – sexual: assediar, induzir e/ou abusar; IV – social: ignorar, isolar e excluir; V – psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar; VI – físico: socar, chutar, bater; VII – material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem; VIII – virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social”.
Este artigo entende que o Pascu não pode ser entendido como contravenção penal e nem mesmo como constrangimento ilegal devido a gravidade do ato, que causa danos físicos e psicológicos graves às vítimas, além de levar a toda a comunidade acadêmica medo diante de uma cultura de violência.
Devida a definição do Pascu, pode-se caracterizar o Pascu como uma prática de humilhação em que o corpo de uma pessoa, geralmente um homem, é tocado no ânus para introdução de pastas de dente. Porém, o Pascu pode ser entendido em um contexto mais amplo, em que vários atos de humilhação são perpetrados por um grupo, podendo-se caracterizar como uma prática de tortura. Nesse entendimento a ação no tempo das humilhações é observada, podendo ocorrer diversas práticas de pascu. Essas duas possibilidades serão discutidas abaixo. O que fica claro é que a prática, tem variações na forma e na intensidade da violência.
4.1. Pascu como estupro
O pascu pode ser caracterizado como estupro, se ele ocorre mediante a introdução de dedos, canos, paus, com pasta de dente no ânus de uma pessoa, mediante violência ou grave ameaça, como é definida a prática de estupro no Código Penal:
“Artigo 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Esse tipo penal foi recentemente alterado (Lei 12013/2009), pois antes somente era considerado estupro, a conjunção carnal. O pascu não é uma prática de conjunção carnal, mas sim um ato libidinoso praticado com grave ameaça ou violência. Antes da alteração esse tipo de ato libidinoso estava previsto no artigo 214, no crime de atentado violento ao pudor.
“Ato libidinoso diverso, por seu turno, é qualquer ato de cunho sexual, diverso da penetração do pênis na vagina, tendente à satisfação da lascívia, como sexo anal, fellatio in ore (sexo oral), coito vestibular (em que o agente encosta e/ou roça a glande do pênis na vulva ou nos lábios vaginais; é o coitus inter femora), apalpação nas partes íntimas da vítima, penetração dos dedos ou com objetos, entre outros, a configurar o injusto do atentado violento ao pudor”. (então previsto no revogado artigo 214 do Código Penal). . (CAVICHIOLI, 2008)
É um crime que se dá por prática de violência física ou psíquica. No caso do pascu as práticas são cometidas com os dois tipos de violência. Geralmente ameaça-se a vítima, para um mal pior e quase sempre ela sofre outros tipos de violências físicas, mas que dificilmente chegam ao caso de morte. Ferreira irá definir violência no estupro como:
“A violência consiste no emprego de força física (conhecida como vis corporalis ou vis absoluta) para obtenção da satisfação sexual. Ocorre quando a vítima é efetivamente agredida, amarrada, ou de qualquer modo tolhida em sua capacidade de resistir através da aplicação de força física./A grave ameaça consiste na violência moral (vis compulsiva). No caso do estupro, a mesma interfere no plano psíquico da vítima, fazendo-a ceder, por intimidação, aos desejos do criminoso. O mal prometido pode ser contra a própria vítima (ameaçá-la de morte, por exemplo) ou contra terceiros a ela ligados (dizer, p. ex., que vai matar o seu genitor se ela não ceder). Não é necessário que esse mal seja injusto, podendo até ser justo (por exemplo: sujeito que força a vítima a manter relações sexuais com ele, ameaçando-a de denunciá-la por um crime que ela efetivamente praticou)”. (FERREIRA, 2009)
A violência do ato do Pascu não é somente psicológica, mas física, uma vez que pasta é introduzida no ânus da vítima e há manipulação das nádegas da vítima. Em uma entrevista a um jornal, um estudante relata a violência da prática, que é praticada em grupo:
“— Dói. É realmente uma agressão física, mas dói só no momento. Rola uma tortura psicológica, porque você está de costas e não sabe o que está acontecendo, não sabe quando vai acabar […] A sensação que você tem depois é de humilhação completa. Segundo ele, alguns estudantes precisam ser contidos, mas grande parte aceita o castigo resignada”. (Jornal R7 13-11-2014)
A doutrina costuma classificar o crime de estupro em diversas categorias para melhor entender a prática. Há algumas características nessas classificações que são interessantes para se analisar o pascu como estupro:
“O crime passa a ser comum (pode ser cometido por qualquer pessoa) e de forma livre (pode ser cometido tanto por conjunção carnal como por qualquer outro ato libidinoso). Continua a ser material (demanda resultado naturalístico, consistente no efetivo tolhimento à liberdade sexual); comissivo (os verbos do tipo indicam ação); instantâneo (o resultado se dá de maneira definida no tempo); de dano (a consumação demanda lesão ao bem tutelado); unissubjetivo (pode ser cometido por uma só pessoa); plurissubsistente (é praticado em vários atos)”. (NUCCI, 2009, p. 17)
O crime de estupro tem forma livre, ou seja, o legislador não identificou como ele irá ocorrer, nem quais atos tem de fazer parte do estupro. O legislador também não falou que o ato tem como objetivo o gozo sexual ou a expressão de um poder, que leva satisfação da pessoa que o impetra. Há algumas pessoas que tem um desejo particular por praticar o Pascu, como fica claro na fala de um dos depoentes no relatório da CPI dos trotes:
“PRESIDENTE– Tem alunos que são especializados na técnica do Pascu?
R. – Não é uma técnica muito complexa assim, mas tem pessoas que tem um gosto especial por realizar essa violência, se observa isso ”. (CPI, 2015, p. 2111)
Os sujeitos ativos desse crime são geralmente os integrantes mais velhos das faculdades e muitas vezes alunos recém formados, o que impede a faculdade de aplicar sanções disciplinares contra eles. Trata-se de um crime que é cometido coletivamente e cada um faz uma parte do ato, impedindo que se identifique um sujeito só como o autor do ato:
”Ele contou que os mais velhos ligados à Atlética são obrigados a participar do ritual. — Geralmente, participam o quinto e o sexto ano, que são os internos, parte mais alta da hierarquia. Eles são obrigados a participar porque, no fim das contas, é um grande risco que estão assumindo, e eles querem que todo mundo esteja sujo para que não haja dissidentes dessa prática. Os diretores da Atlética são os que mais sofrem, conforme o relato de Z., porque são considerados referência, têm que dar o exemplo e “prezar pela vitória e glória da Atlética sempre”. (Jornal R7, 13-11-2004)
Mesmo a dor das vítimas gera um acolhimento e um grau de pertencimento a uma confraria da violência, como destaca um estudante entrevistado por um jornal, sobre o Pascu:
“Para ele, muitos relativizam a agressão. — Vem alguém depois falar com você e te acolher. Você se sente realmente parte do grupo quando isso acontece. Tenho um colega que chegou a falar, quando estava no segundo ano, que ele queria levar uma “pasta” para se sentir incluído no time”. (Jornal R7, 13-11-2014)
A lei mudança da lei causa uma mudança de percepção na prática do Pascu. Estupro, na forma como era juridicamente caracterizado, era algo que só acontecia com a mulher. Quando ocorre a unificação dos crimes (estupro e ato libidinoso), o crime de estupro passa a ser também aplicável tendo homens como vítima. O pascu, que pode ser caracterizado como atentado violento ao pudor, pode passar a ser designado de estupro, com uma carga simbólica muito maior de violência.
Não há nos relatos da CPI a referência ao Pascu como estupro. Mas há muitos relatos de estupro, que parecem se diferenciar do que é o Pascu, uma vez que este geralmente tem como sujeito ativo do crime um coletivo de homens e um sujeito passivo do crime, um único homem. Um dos relatos encontrados na CPI dos trotes, aponta para um número assombroso de estupros nas faculdades:
“(…) o NAVIS coordenado pela professora Ivete Boulos tem 112 casos de estupros nas dependências da Faculdade de Medicina nos últimos 10 anos. Ou seja, são11 casos por ano”. (CPI, 2015, p.935)
Esse número seria muito maior se fossem considerados os casos de Pascu e obviamente, se todos os estupros fossem reportados, o que se sabe que não acontece.
Algumas das vítimas do Pascu demonstram extrema vergonha social por terem se submetido a esse tipo de prática. Muitos negam a sua existência nas faculdades, dizendo que não conhecem, não sabem o que é, nunca viram, etc., mesmo quando é sabido que conheciam e sofreram a prática. Até aqueles que se dizem vítimas, não revelam o nome dos seus algozes.
Deve-se aqui salientar que o crime de estupro não se confunde com sexo. O estupro é uma forma de humilhação e de se exercer o poder. Não tem relação com o prazer sexual, que pode existir ou não. Porém, ao se dizer que um homem foi estuprado, marca-se uma humilhação, além da violência, pois frente à sociedade o homem vítima do estupro toma papel social de mulher. A visão machista da sociedade, também é vista nos crimes, como aponta Renata Sousa, no trecho abaixo:
“Considerar o comportamento predatório do agressor sexual vai muito além de classificá-lo através do crime previsto no código penal ou como o portador de qualquer doença, transtorno ou anomalia prevista na medicina psiquiátrica vigente. Isso porque os estupradores encontram- se em todos os lugares e classes da sociedade. Eles reproduzem, por meio de atos, a submissão da vítima à sua vontade, transgredindo os direitos humanos mais básicos de integridade física e psicológica do outro. Os estupradores agem assim apoiados em discursos machistas que são transmitidos até eles, e por eles, das mais variadas formas”. (SOUSA, 2017, p.11)
O caráter sexual e de violência está presente não somente nas condutas, nas festas, como nos próprios hinos das Atléticas das faculdades. Há um principal destaque para a prática do sexo violento anal e mesmo do estupro:
“No cuzinhoooo! No cuzinho ou na boceta o meu pau eu vou meter. É a MED UNICID que chegou pra te foder! Foder! Foder! Foder até morrer! Se você está cansada, é melhor se preparar. Aí vem a UNICID, ela vai te arrombar. Deitada ou em pé, você é quem decide. Quem manda nessa porra é a MED UNICID. Pode vir todo mundo, eu não temo ninguém! Sou MEDICINA UNICID, eu quebro um quebro cem!”
“Buceta!/Buceta eu como a seco!/No cu eu passo cuspe!/Medicina é só na USP!”
“Pisca o cu, balança o saco… Pau no cu, pau no buraco! Pisca o cu, balança as teta… Pau no cu, pau na buceta! Pisca o cu, balança a bunda… MEDICINA CATANDUVA!!!”
“Tô vijando na onda desta maconha, E a galera da FAMECA fuma, bebe, cheira e trepa. Eu vou vender lança perfume e a galera vai comprar, Vê se arreganha por favor, Que a FAMECA vai entrar, Se for cabaço não importa de vagar vou penetrar, E quando gozo não é pouco: 20 litros vão jorrar…E o que que essa galera tá querendo me dizer??? EU amo a Fameca e o resto vai se fuder”.
“Ai que loucura, ai que legal, escorregar na cabeça do meu pau. Eu como cu, eu chupo teta, vou enfiar o meu pau na sua buceta. sua buceta é a casinha do meu pau, eu te fodo te arregaço e te faço passar mal. vai se foder, seus cururú, se eu enjoo da buceta eu enfio no seu cu. vou arrombar as suas pregas, você vai enlouquecer, agora vai abrindo as pernas… porque eu vou te foder!! é foda pra caralho, é puta de um tesão, é Med, É Med Unaerp Ribeirão”.
“A porcada tá feliz, ta feliz! A porcada quer gozar, quer gozar! Quer enfiar na bucetinha. Dessa porra de escolinha. Que não para de chupar! Mais um! Mais um! A pica entra, o índio grita: aaaaiii. Só tem cuzão nessa bosta de Paulista. Eu vou fuder, fuder você! Na intermed o porco bota pra fuder!”
“Chupar uma xana gostosa me faz feliz. Trepar e trepar e trepar. É o resumo da vida que eu sempre quis. Ah! Mas como é bom. A morena gostosa. Abrindo as pernas, querendo me dar. Aquela bucetinha que suplica. Quero pica, quero pica e quero pica. Ah! Como é bom. A loirinha bundudinha. Que só me ver começa a gozar. Mostrando o cuzinho fechadinho. Que meu pau. Sempre encontra no caminho. Tem a preta imunda. Que me vira a bunda e começa a peidar. Crioula da buceta fedorenta. Que eu não como nem lavada em água benta”. (hino da medicina Ribeirão)
“Se no fundo eu não relo, As borda eu arregaço, Med santa marcelina, Arrancando seu cabaço. Minha Bixete é exemplo. No boquete engole as bolas. Dá o c sem vaselina. Ela é Santa Marcelina. Se no cu minha piroca, Na buceta ou nas teta. Entra porra e sai sangue. Tu gritando igual capeta. Minha quebrada é Zona Leste. Eu não deixo pra depois. Se mexer com a med santa. Vou comer seu cu a dois (…)”
Os exemplos de hinos de faculdades com conotações sexuais, de apologia ao crime são inúmeros. É possível recolher milhares de canções e hinos das faculdades com conotações sexuais e que se referem ao sexo anal como forma de última subordinação e de poder. Apologia as drogas, machismo, racismo também são práticas exaltadas em nome de uma suposta tradição. A exaltação do estudante como um predador sexual está presente em vários desses hinos, deixando totalmente de lado que a prática aludida é caracterizada como estupro.
Antes os homens não corriam o perigo de se envergonhar de serem estuprados, porque a lei impedia que práticas sexuais forçadas contra homens fossem estupros. Assim, pode-se dizer que enquanto o estupro de mulheres tem também um caráter sexual e de poder, os estupros de homens, são entendidos socialmente como demonstrações de poder, mesmo que o caráter sexual esteja presente. Os depoimentos não chegam a falar em nenhum momento de um desejo sublimado dos agressores. A agressão é tão violenta e falar dela é tão doloroso, que ou se nega a prática ou se nega que é estupro.
4.2. Pascu como tortura
É possível também entender o pascu como uma prática que faça parte do crime de tortura. Isso porque não se trata de uma prática isolada, mas de todo um contexto em que a pessoa sofreria pressões psicológicas. Quando se considera o pascu como crime de tortura não há o ato libidinoso para satisfação da lascívia, como requer o artigo 213 do Código Penal.
Na ditadura civil-militar da década de 60 foi comum casos de tortura com a introdução de instrumentos no ânus das vítimas. A intenção não era satisfazer a lascívia, na maioria das vezes, mas sim de submeter. Também é conhecida a prática do empalamento, em que há introdução de instrumentos e objetos no ânus de pessoas, sem o consentimento e com grave violência ou ameaça.
Porém, não se pode negar, que apesar de ser inafiançável e com cumprimento em regime fechado, esse crime sozinho poderia levar a uma pena menor que a do crime de estupro. Mas também seria possível conjugar os crimes. Diz a lei 9455/1997:
“Art. 1º Constitui crime de tortura: II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de dois a oito anos. § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado”.
Nos tribunais não foi possível encontrar casos de julgados da prática do pascu, porém, pode-se fazer analogia com outros casos. Para associar o pascu ao crime de tortura é possível recorrer ao caso de um menino que morreu, em decorrência de ferimentos quando lhe injetaram uma mangueira de ar comprimido no ânus. (jornal CGN-15/02/2017)
Ao tratar da prática do Pascu no relatório da CPI, um dos estudantes que foi vítima, relata uma prática, que perdura no tempo e que não se restringe a introdução da pasta no ânus, mas é uma prática de tortura:
“É basicamente assim: falar para o aluno empurrar o jipe, aí aluno vai se inclinar na parede e abaixar as calças. Aí o veterano, ou com uma luva, ou pedaço de pau, ou até mesmo os veteranos fazem com a mão, pegam a pasta de dente e aplicam no seu ânus, né. Aí, depois disso, eles fazem você fazer polichinelo e você não pode se limpar porque você se limpa você vai levar outro. Tem que ficar com isso durante a festa e queima, praticamente queima, fica extremamente desagradável, obviamente, queima”. (CPI, 2015, p.2341)
Enquanto há uma negação do Pascu como estupro, há uma afirmação do Pascu como tortura, nos relatórios da CPI. Ao ouvir os relatos da prática do Pascu, um dos ouvintes declara:
“Olha, o que eu acho é o seguinte, esse relato que eu tive do trote e os relatos frequentes de “pascu” acho que são atos de tortura”. (CPI, 2015, p.589)
O entendimento do Pascu como crime de tortura pode se pautar também na Declaração dos Direitos do Homem da ONU de 1948, artigo 5 que afirma que: ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Além desse documento o Pacto de São José da Costa Rica prevê, em seu art.5º, I – Toda pessoa tem direito que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
Não há o que se falar sobre a concordância da prática do Pascu, isso porque se trata de uma ação em que há violência. Mesmo em casos de trotes que não chegam a uma violência extremada há de se discutir a questão da vontade da pessoa em receber o trote, isso porque a vontade não é livre, mas está sob coação, grave ou leve. O depoimento de uma vítima de trote, que não do Pascu, revela a perversão da prática que subtrai a vontade livre:
“Eles fizeram a gente andar até a Atlética de ‘elefantinho’, o que é ‘superdesagradável’, porque nessa posição a mão de alguém fica roçando no seu genital. Quando cheguei à Atlética, falei que não queria, mas eles abriram minha boca para jogar bebida – ‘tem de beber’. Uma invasão absurda”, indiga-se a estudante. O abuso não parou por ai: um veterano do 6 ano foi beijando cada uma das calouras. Quando chegou a vez de Renata, ela se recusou a beijá-lo, mas não adiantou. “Ele segurou meu rosto, roubou um beijo e continuou andando. Minha semana de recepção acabou ai, e já frui meio que me blindando”, recorda. A pressão feita pelos veteranos para que os ingressantes treinem para a Calomed, competição universitária anual entre alunos iniciantes de algumas faculdades de medicina, tornou-se outro grande incomodo para Renata. “Eles começaram a colocar essa mentalidade corporativista em você desde o primeiro momento que pisa aqui”, critica ela. “Eles vêm com um discurso louco de que, se você não treinar para a Calomed, não vai fazer amigos, se não tiver amigos, não vai ser panela no internato; se não tiver panela no internato, vai ter uma formação ruim; se tiver uma formação ruim, não vai passar na residência, enfim. As pessoas são muito coagidas a treinar”. A estudante chegou a participar de dois treinos, mas não gostou do ambiente e, desde então, adotou uma atitude que a levou ao ostracismo na faculdade: não frequentar competições nem mesmo para torcer. “Não quero compactuar com as violências que acontecem lá”, explica ela, hoje ativista do Coletivo Feminista Geni”. (SANSÃO, 2016)
É recorrente o caso de estudantes ao não concordar com um trote, dito mais leve, acabar sendo vítimas de trotes violentos, inclusive resultando em morte. Assim, a vontade em um trote não é livre, como destaca Mônica Ribeiro, no artigo “O trote na perspectiva dos Direitos humanos”:
“Algumas situações são questionadas pelos veteranos, sob a alegação de que os calouros “concordam” com a atividade. Ora, como pode um jovem sozinho, distante, muitas vezes, da proteção da família e envergonhado, por não querer parecer infantil, discordar das atitudes de seus veteranos? Eles acabam concordando por medo de sofrerem danos maiores. Ficou famoso o caso do estudante de medicina que abandonou o curso, após sofrer abusos durante o trote da Famerp, Faculdade de Medicina de Rio Preto. Humilhado e ameaçado, ele resolveu abandonar o curso e retornar para a casa dos pais.” (RIBEIRO, s/d)
Seja como crime de estupro ou como crime de tortura, o Pascu não é quase nunca denunciado e não é assunto do judiciário. Uma das poucas vezes que o Pascu caminhou para ser tratado fora do âmbito das faculdades, parece não ter ido além de um Boletim de ocorrência, como aponta a fala de uma testemunha no relatório da CPI:
“O José (…) sofreu um “pascu”. E ele fez um boletim de ocorrência e foi aberta uma sindicância. Esse é um caso mais velho, 1997. Mas o interessante desse caso do José (…), a sindicância consta lá nos arquivos da Esalq mas a página onde está a conclusão da sindicância, quer dizer, quais foram as punições ou quais foram as resoluções tomadas pela direção não constam do arquivo”. (CPI, 2015, p.652)
Tanto como estupro, quanto como tortura as vítimas das práticas do Pascu são sempre as mais vulneráveis e que devem prestar sua submissão e lealdade aos estudantes veteranos. O Pascu não recai somente em uma população dita como minoria política, mas talvez seja sobre ela que essas práticas de violência sejam mais fortes e repetitivas. Diz-se talvez, pois é isso que se pode inferir pelos depoimentos da CPI do trote, mas não há estatística sobre as vítimas, uma vez que dificilmente há denúncias e muitos depoimentos são anônimos. A carta da ONU sobre os trotes identifica a violência dos trotes direcionada para vítimas específicas e impetrado maioritariamente por homens, brancos e de classe média, que perpetuam uma cultura do estupro, da violência e asseguram um elitismo:
“Ano após ano, esse grupo é submetido a atividades agressivas definidas por veteranos, nas festas das faculdades e dentro das residências estudantis. A violação parte, na maior parte das vezes, de um grupo formado por homens, brancos e de classe média alta, que reproduz dentro das Universidades modelos de dominação sociais e de masculinidades que são estruturantes da violência de gênero e que levam muitos homens a associarem valores como virilidade à violência. Muitas vezes colocado em papeis humilhantes, calouras e calouros são induzidos a ficarem nus durante os trotes e a participarem de uma série de atividades de cunho sexual. Uma situação que se repete é a de mulheres abusadas por colegas após consumirem bebidas alcoólicas. E as histórias têm ainda um agravante: muitas relatam que, além de serem abusadas, sofrem com a estigmatização de colegas que as culpam moralmente pelos próprios assédios que sofreram, o que evidencia a falta de compreensão do princípio do consenso nas relações por boa parte das e dos estudantes. Observamos que a maior parte das vítimas dessa violência simbólica e física são mulheres, trans, lésbicas, gays, bissexuais, mulheres negras e homens negros, os quais, nos rituais de recepção de calouras e calouros, são empurrados para os papeis simbólicos de “escravas e escravos sexuais” e “objetos sexuais”. (ONU- 2015)
5. Trote universitário como poder
O trote universitário vem sendo coibido por algumas faculdades e universidades com políticas para inclusão dos novos alunos, sem que haja violência. Esse tipo de trote ocorre quando a instituição ou seus alunos organizados, estabelecem atividades de trabalho à comunidade, doação de alimentos, sangue, cabelos, etc. A ideia de transformar uma integração violenta feita pelos alunos, em algo mais institucionalizado, visa coibir uma violência desenfreada que levou vários estudantes à morte. Para algumas faculdades particulares foi inclusive um modo de angariar alunos.
Há alunos que significam o Pascu e os trotes com uma extrema violência, enquanto outros encaram como parte de uma tradição das faculdades, que deve ser aturada como um ritual de passagem. Devido as diversas gradações do Pascu na violência, ela também é significada de maneira diferente. Assim, para alguns alunos é uma prática violenta enquanto para outros não. Isso não quer dizer que o Pascu não seja uma prática de poder e humilhação, mas não é encarado por alguns como violento, como pode se ver na fala de um aluno na CPI dos trotes:
“Deputado – Ah, bom, aí é outro papo. Mas, por favor, você ia descrever qual é a sua versão do “pascu”, que você sabe o que é?
Depoente – A versão que eu tenho conhecimento é parecida com a que o Dr. L. descreveu. De fato, é uma brincadeira de mau gosto que eu acho que assemelha-se a levar ovada de aniversário, quando você fazia aniversário tinha essa brincadeira no colégio, ou então um cuecão no colégio. Essas coisas, brincadeiras idiotas e ocorria de passar pasta de dente, não sei se eu posso falar…
Deputado– Pode.
Depoente – Na bunda do indivíduo. E depois aplicava-se e fechava..”. (CPI, 2015, p.618)
A significação do Pascu como prática violenta ainda é negada por grande parte dos estudantes que a passam, buscando negar o poder que é sobre ele exercido e também a discussão de uma masculinidade dominante.
Alguns admitem que os trotes fazem parte da tradição das escolas e não deveriam ser questões a serem discutidas na esfera do judiciário, nem mesmo quando fossem crimes.
Para estudiosos o trote não é tradição:
“Não tem nada a ver com tradição, a questão do trote é relação de poder. Um grupo político disputa o controle da situação. O menino que vai para a rua pedir dinheiro [nas brincadeiras de pedágio] é o soldado raso em uma hierarquia que tem general”, afirma Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura (Esalq)”. (Jornal G1- 24/03/2013)
Outros admitem ser um rito de passagem, pautados na tradição, mas nem por isso deixam de ser violentos, como aponta ZUIN:
“(…) um rito de passagem cujas violências física e psíquica são justificadas como uma tradição que deve ser perpetuada durante o processo de integração entre os calouros e os veteranos das universidades. ( 2002, p. 245)
As violências aos calouros não terminam nos trotes, mas muitas se alongam por um grande período. Assim, não se pode falar que a violência está somente nos estágios iniciais das faculdades como um rito de passagem. Muitas vezes para evitar que o Pascu seja caracterizado como um trote, os veteranos adiam a prática para os segundos anos, causando em alguns a enorme tensão de quando serão pegos. Em entrevista a um jornal, um estudante aponta essa prática de se adiar o Pascu, mas nunca suprimir:
“Z. disse que, até 1999, todos os calouros que se colocassem para participar da Atlética sofriam o “pascu”, de acordo com relatos que teria ouvido dos mais velhos. A prática era uma parte do trote, mas de forma velada. Com a morte do calouro Edison Tsung Chi Hsueh em fevereiro daquele ano, a situação mudou. Segundo Z., a USP passou a ter uma ação importante para combater o trote. — Mas essa atitude não foi completa. Evita-se o trote só no primeiro ano. Depois, no segundo ano, já existe a expectativa de que a pessoa vai sofrer essa violência […] Não é porque não acontece no primeiro ano que deixa de ser trote. Existe até o argumento de que as pessoas estão sendo integradas ao grupo com esse ritual. Só que é uma coisa que não é inclusiva. Ela veste esta máscara, mas não é inclusivo”. (R7, 13-11-2014)
O que parece ser claro é que a violência nos trotes tem aumentado na sua quantidade e na gravidade. A questão da quantidade é facilmente observada, quando se nota que o ensino superior passa a ter mais vagas, especialmente a partir da década de 70, a partir de uma democratização do ensino. Cursos que costumavam ter poucos alunos, passam a ter milhares deles, espalhados em todo o país. Essa democratização não foi completa, pois a expansão das faculdades foi feita principalmente na rede particular.
A questão da gravidade dos trotes, parece ser possível de explicar pela sua mudança de ritual de passagem de cunho social e político, para uma versão despolitizada e fortemente fundada no status e hierarquia. A despolitização das faculdades, com a extinção dos centros acadêmicos durante a ditadura militar de 60 parece ser fundamental para a escalada da violência nas faculdades, como aponta VASCONCELOS:
“No Brasil, há um dado interessante. Com a decretação, em 1968 do AI-5, que fechou o Congresso instalando o arbítrio político, acirrou-se o controle sobre as atividades universitárias, que constituem-se em espaço privilegiado para a contestação. Nesta conjuntura, as calouradas estudantis não podiam mais manifestar-se na sua expressão política-cultural de crítica social. Isso reforçou a degeneração dos trotes para a sua versão despolitizada e bruta, cuja herança é ainda hoje sentida”. (1993, p.15)
Destruir os Diretórios e Centros acadêmicos gerou o aumento de poder das Atléticas, que passaram a pautar sua hierarquia pela força, poder e violência, especialmente nos cursos de elite. Kobayashi aponta para o crescimento das Atléticas na época da ditadura militar e como seu funcionamento colaborou com a ditadura militar e o aumento da violência:
“Assessor da CPI, Ricardo Kobayashi destaca o fortalecimento das associações atléticas nas faculdades tradicionais se deu no período da Ditadura Militar (1964-1985) como um mecanismo de despolitização dos jovens universitários. “As atléticas são um traço característico das faculdades de Medicina. Todas elas cumprem um papel que é, ao mesmo tempo político e alienante. E de violência, de um ufanismo cego pela instituição. Elas se fortaleceram a partir de 1965 como uma forma de contraposição política aos então grêmios estudantis, ou seja: uma anulação daquilo que é político de fato. Nesses cursos que tem uma inserção social muito forte e são altamente elitizados e tradicionais, como engenharia, direito e medicina, as atléticas passaram a ter um papel preponderante”, explica Kobayashi, cujo trabalho serviu de fator motivador da CPI (…)”. (SANSÃO, 2016)
São várias as humilhações que os calouros e os alunos sofrem ao longo da sua estada, nas faculdades de elite, como a Medicina, Odontologia, Direito, Engenharias. Nem todas as faculdades há trotes violentos, nem uma hierarquia forte entre os estudantes. Essa total subserviência e o medo de descumprir as ordens do veterano, levam os calouros a sofrerem humilhações constantes e inclusive cometerem crimes. Eles são obrigados a humilhar outros estudantes, cometer Pascu, estupros e roubos, como relata uma estudante na CPI do trote:
“Uma vivência que ratifica o quanto nós, ao chegarmos à universidade, somos colocamos numa posição de sermos mandados a todo tempo, mesmo que tenhamos medo de fazer alguma coisa, temos que fazer. Por exemplo, “os bixos” do primeiro ano. Pra que a “Intermed” aconteça, precisa haver treinos e a Atlética precisa de alguns materiais (gaze, esparadrapo…) para os times. Eles usam para colocar na mão, se tiver um acidente. E todo esse material é roubado do hospital e quem é obrigado a fazer esse roubo são os “bixos”. Então, eles têm que… O nosso hospital, por vezes, a gente vê interno reclamando de algum material faltando, mas os “bixos” todos os anos roubam esparadrapo, roubam gaze, algum tipo de medicamento..”. (CPI, 2015, p.2159)
O Pascu é um lado violento dessa política das faculdades em que o corporativismo está entranhado e não raras vezes fala mais alto do que a meritocracia. O silencio das vítimas é também conseguido com a distribuição de privilégios. Para outras vítimas do Pascu que resolvem-se rebelar, mesmo que discretamente, os privilégios não são distribuídos. Esse é o caso do Mocó, que que aqui explicado por uma testemunha da CPI do trote, nas seguintes palavras:
“O Centro Acadêmico estava mais ativo. O presidente do Centro Acadêmico naquela época era o Maurício Lucchesi – que, infelizmente, não está presente. E houve, naturalmente, um movimento de se criticar as chamadas tradições. A gente não usava a palavra “opressiva” na época, mas eu colocaria hoje as tradições opressivas da faculdade de medicina. Uma delas, por exemplo, o “pascu”, outra delas é o chamado “mocó”. O mocó é um animal roedor do nordeste do Brasil que fica entocado em pedras. O mocó na Faculdade de Medicina da USP era a tradição de você ter alguma oportunidade de abrir alguma monitoria ou algum estágio e você ou simplesmente indicar o interessado, não abrindo um concurso público para isso, ou até de, por exemplo, quando havia presente uma chamada para alguma monitoria, alguma coisa, arrancar o cartaz para garantir que pouquíssimas pessoas tivessem acesso. Resumidamente, essa era a cultura do mocó. O Leon Garcia escreveu um artigo muito bom no “Bisturi” sobre a cultura do “mocó””. (CPI, 2015, p.422-423)
A prática do mocó é também uma violência, porém não é contra o corpo do calouro/estudante. O mocó é um privilégio que só se bode obter pertencendo à hierarquia que difunde as práticas de violência, como destacado no depoimento de um aluno:
“Deputado – O que é mocó?
Depoente 1- Mocó é uma facilitação por você pertencer a certos grupos.
Depoente 2- É o favorecimento.
Depoente 1- É o favorecimento nas relações hierárquicas. Então, o professor que é do Show facilita as coisas para o aluno que é do Show. Se você foi do Show, você tem um mocó na residência, na entrevista, se você está entrando numa residência, e quem vai te entrevistar foi do Show, esses são os mocós. Vamos supor, você vai fazer uma iniciação científica e você é amigo do professor que está dando essa iniciação científica, ele vai falar só para você sobre essa vaga. Isso é mocó também, é favorecimento pelas relações pessoais”. (CPI, 2015, p.226)
Além do mocó há ainda outras práticas que são associadas à violência, porém como privilégio para aqueles que concordam e difundem a violência. No relato de um estudante na CPI do trote há a denúncia de favorecimento em provas para aqueles que silenciam e fazem trotes violentos:
“Lembro que no meu sexto ano, o episódio mais absurdo que aconteceu, vieram me perguntar se eu soubesse do esquema de residência, se eu fosse convidada a participar da residência, que era de acordo com que tipo de status você tem na faculdade, você receber algumas questões das provas, em locais escusos, que são escolhidos, e que as pessoas são levadas até lá, e aí elas recebem algumas questões das provas, o que eu faria. Eu falei: Denunciaria para a televisão, para o Ministério Público, denunciaria e tentaria acabar com esse esquema, porque isso é um absurdo. Isso é um concurso público, isso é fraude de concurso público. E aí uma parte da minha turma se colocou contra isso, altos casos de problemas emocionais das pessoas. Imagina você ver seu melhor amigo aceitando receber a prova. Você vê pessoas deprimidas, tomando remédio, porque não aguentavam ver os amigos participando daquilo. Era um clima totalmente absurdo e hostil, em que, na maioria das vezes as pessoas que são as que mais perpetuam o trote, a violência, a opressão, ganham grandes questões das provas. Isso é uma coisa reconhecida”. (CPI, 2015, p.1166)
O trote e as práticas de violência que o envolvem são práticas de poder e humilhação. Elas são percebidas por diferentes indivíduos de formas diferentes e há gradação nas práticas de violência, principalmente a do Pascu.
A luta pela contra a violência nas faculdades está sendo realizada pelos coletivos. Os coletivos são principalmente reunidos em lutas e sujeitos que eram até pouco tempo apagados, silenciados e impedidos de frequentar as faculdades, como mulheres, negros, gays, lésbicas, etc. Os que impetram as violências institucionalizadas vão combater a atuação dos coletivos, e essa posição é denunciada por um deputado na CPI do trote:
“Deputado– Grupo de Facebook, de alunos e ex-alunos da Faculdade de Medicina. “No post expressou o seu repúdio à manifestação contra o machismo e homofobia nas festas da Atlética. Insultou os coletivos em favor dos direitos humanos. Falou que até concorda com a causa, mas não com os métodos, e ameaçou de perseguição. No fim do seu manifesto pregou a expulsão dos alunos dos coletivos de diversidade da Faculdade de Medicina por conta de suas manifestações “petizentas”, “petizentas” não fundamentadas na opinião dele”. Vamos lá. “Na Festa dos Carecas no Bosque em 31 de maio de 2014 realizada pela Associação Atlética Oswaldo Cruz, homossexuais foram impedidos de entrar na festa, no bosque”. (CPI, 2015, p. 916)
A atuação dos coletivos contra o poder da violência instituída é realizada por uma minoria que tem suas atuações extremamente combatidas. Porém, a força desses coletivos é que impulsionou as denúncias da CPI dos trotes. Dentro das faculdades, inclusive por membros da direção e professores, os coletivos perturbam a ordem da violência. O papel desses grupos e coletivos ao invés de serem considerados positivos são vistos como negativos, em uma inversão da ordem completa, como aponta o depoimento de um aluno pertencente a um desses grupos de luta:
“Vamos lá, a piada é essa, quais seriam os sujeitos da faculdade que pediriam para que essas piadas não fossem mais reproduzidas por ferirem direitos humanos? Só existem pouquíssimos sujeitos políticos na faculdade que fazem isso e muito bem delimitados, que são os coletivos, tanto NEGSS, Núcleo de Estudo em Gênero, Saúde e Sexualidade, Coletivo Construção, que estuda políticas de saúde e o Coletivo Feminista Geni. São as únicas entidades que se opõem a piadas que ferem direitos humanos, e isso é visto como um tipo de ditadura, como um tipo de censura. E aí se mostra a inversão ideológica do que significa a liberdade de expressão para uma instituição como o Show Medicina. E é por isso que ela fere direitos humanos radicalmente, porque ela nega o direito dos grupos oprimidos de protestarem contra a opressão”. ( CPI, 2015, p.1369)
O que os críticos ao trote entendem é que o trote deixou de ser positivo, pois há uma carga de violência muito grande. Em muitos dos trotes há humilhações, lesões corporais leves e graves, quando não a morte. Akerman irá entender que é um ritural de opressão:
“O trote é um ritual de opressão! É um ritual de assimetria de poder. De imposição pela força física e pela humilhação de um conjunto de regras em que os mais novos devem deferência e submissão, a todo custo, aos mais velhos”. (AKERMAN , 2014, p.12)
6) O silêncio dos inocentes, dos cumplices e dos poderosos
O Pascu não é uma prática de todas as faculdades nos trotes universitários, porém em quase todas as principais faculdades de elite”” há práticas de trote e geralmente violentos. Em geral essas práticas não ficam conhecidas do grande público devido a um pacto de silêncio entre os participantes. Muitos sofrem das consequências, mas pouquíssimos falam. A quantidade de pessoas que se estima que tenham passado pelo Pascu é bem grande, como aponta um dos depoentes da CPI do trote:
“Nós temos uma atlética com 200 alunos. O “Show Medicina” tem 100 alunos. Todos eles passaram por trote. Todos os diretores da Atlética tiveram que passar pelo “pascu” e aplicam o “pascu”, que é aquela prática de enfiar pasta de dente no ânus de outro aluno, como forma de humilhação. É um ritual.” (CPI, 2015, p.505)
O silenciamento sobre a questão do Pascu é que permite que a prática seja realizada sem que ocorram sanções administrativas e jurídicas. Esse silenciamento impede que o Pascu seja conhecido fora dos âmbitos acadêmicos e reforça uma espécie de irmandade. Nem depois de anos, esse silêncio é quebrado, como pode-se ver no relato de uma vítima no relatório da CPI:
“Presidente- Ah, deixa eu falar uma coisa: você tem um compromisso comigo de que você não vai falar nome, tá?
R. – Sim. Não vou falar nomes, não mesmo.
Presidente – Não vai falar nomes, mas então você vai contar as coisas mais detalhadas. Né? (…..)
Presidente- (….) Vocês não vão falar o nome de nenhum desses bandidos, desses delinquentes aí? O cara tem estar preso, gente. Vão proteger os criminosos, mas tudo bem. É um direito de vocês. Só de vocês estarem aqui já é um ato de coragem”.” (CPI, 2015, p.2345-2346)
Muitas das vítimas foram a CPI prestar depoimentos, mas não revelaram os nomes. Mesmo para denunciar uma prática que se entendia entre os estudantes que estava longe de ser adequada, foi feito outro pacto de silêncio:
“ Deputado– É. Essa é uma postura que a gente combinou de assumir, de não comentar os nomes porque a gente acha que o… é… Uma outra publicação é: “Bixarada, vocês que foram criados na geração de mertiolate não arde ainda reclamam da vida estão prestes a conhecer o pascu e o saquinho ardente e aí sim vocês vão chorar com razão”.
Depoente– Provavelmente passar pimenta no escroto dos meninos
Deputado– No escroto… É no saco escrotal do “bixo”.”.(CPI, 2015, p.2433)
Os depoimentos ficaram portanto truncados e muito do que se poderia saber entrevistando os praticantes, não foi feito, pois não houve acusados. Os nomes não foram fornecidos, isso porque a prática estava tão disseminada em várias faculdades, que poderiam implicar não apenas os veteranos, mas profissionais. Ao mesmo tempo que muitos sofreram, ninguém fala:
“Presidente – São muitas as vítimas de Pascu? Seria, nós podíamos fazer assim um dia uma audiência sobre Pascu e trazer várias pessoas que foram submetidas e que se proporiam a depor.
R – Acho que seria passar uma tarde ouvindo as pessoas negarem, mas eu vejo modalidades em que o Pascu é uma prática tão disseminada que hoje em dia você olha, todos os veteranos já passaram por isso”. (CPI, 2015, p. 2112)
O pacto de silêncio é tão grande que permite que mesmo que violações à direitos e crimes graves fiquem sem serem denunciados. Um dos depoentes da CPI dos trotes, busca esclarecer os deputados apontando para a prática de violências que não são exceções, mas sim atuações corriqueiras e impetradas por muitas pessoas. Assim, não se trata de identificar um culpado ou uma prática isolada, mas sim de combater uma cultura de violência e de silêncio:
“Isso é uma centena de alunos fazendo, não são um ou dois, entendeu? Acho que deve ter o direito ao contraditório, mas por que ninguém denuncia? Por que quando você abre uma sindicância todo mundo se protege, não chega no agressor final? Existe um pacto, é um corpo. Então assim, a gente não está falando de um crime prescrito que tem uma pessoa desviante de um coletivo. A gente está falando de um coletivo com harmonia em si mesmo, e cuja prática acaba sendo destoante e questionável. É um problema cultural.”
(CPI, 2015 p.506)
A prática não era muito conhecida fora dos portões das faculdades em que existia o Pascu. Com a possibilidade de fotos e filmes nos celulares em baixo custo, essas práticas começam a ser filmadas pelos agressores, até como forma de documentar seus “grandes feitos”. É dessa forma que vídeos de Pascu começam a inundar a internet e acabam identificando vítimas e agressores:
“PRESIDENTE – Nenhum. Obrigado, professora, obrigado mesmo. Aline, por favor. Vinicius, por favor. Está sendo solicitado que nós digamos no microfone que o vídeo aqui exposto sobre a pasta, o pascu, é da Medicina da USP. Então, falando sujeito, predicado e complemento. Esse vídeo, aqui recuperado, esse exemplo, é da Faculdade de Medicina de Pinheiros, da USP. Isso não quer dizer que a pasta ou o pascu não seja praticado em outras universidades, em outros trotes. É um rito permanente. Isso havia centenas na internet. Com o início da CPI, evidentemente, como outros vídeos, eles sumiram. Agora, esse é o mais emblemático porque se sabe quem fez a pasta, quem deu a pasta, quem sofreu a pasta, esse é o mais emblemático, que atravessou o mundo inteiro. Mas, era uma coisa fartamente distribuída na internet como exemplo a ser cumprido”. ( CPI, p.1762-1763)
O vídeo que ficou mais famoso e ainda hoje está disponível na internet, exatamente por causa da Comissão da CPI é o de um Pascu de um diretor da atlética, que simulava um ato cirúrgico, como é narrado por uma testemunha:
“No caso desse vídeo, tratava-se de um então diretor da Atlética que afirmou ser contra essa prática./ A certeza da impunidade é tanta que um veterano já formado exigiu do quinto e sexto ano do time que realizassem a pasta nesse diretor com um pedaço de pizza, filmassem e mandassem para o seu e-mail. No fim, o vídeo acabou circulando. Eu não presenciei a gravação desse vídeo, porque a pessoa, no caso, era mais velha do que eu. Eu recebi o vídeo por e-mail, assim como o restante da lista de contatos desse colega”.” (CPI, 2015, p. 345-346)
Mesmo quando surgem denúncias em massa, como é o caso da CPI do trote, os grupos de poder dentro das faculdades buscam silenciar e desqualificar os depoimentos e as pessoas que denunciaram a prática, como destaca um depoente:
“Convido o senhor a assistir esse depoimento na íntegra antes de pensar no que está acontecendo com os estudantes de medicina da faculdade. Ali o senhor sabe que têm muitas tradições. O senhor sabe que quanto mais antigas as instituições mais as tradições… O senhor sabe que tem um ufanismo muito grande, que existe um fanatismo dos estudantes a partir de quando eles entram. Você sabe como funciona o espírito da atlética e você sabe que as principais violações aos direitos humanos que existem ali são negar a verdade, negar o direito ao protesto, negar o direito a questionar. E isso partindo dos próprios estudantes. O que nos fez vir à esfera pública buscar ajuda foi porque nós estávamos sendo perseguidos internamente na faculdade e não sabíamos o que fazer. Nós fizemos uma análise documental aqui, em que nós mostramos “prints” da internet com 600 curtidas de alunos. São 1080. Então assim, quando você tenta… Eu compreendo a sua ponderação, acho que ela compete ao cargo, mas cuidado para não incorrer em uma coisa que nós estávamos questionando aqui. Da maneira como a estrutura universitária ou a estrutura do estado está, ela acaba privilegiando o grupo que está na hegemonia, e não os grupos que são mais oprimidos, que têm mais dificuldade de ir para a frente, cujas pautas costumam ser questionadas, costumam ser taxadas de mentira”. ( CPI, 2015, p.505)
Vera Siqueira e Glória Rocha apontam em um artigo denominado Gênero e relações de poder no trote universitário: implicações para a cidadania, que há pouca mobilização dos alunos e das faculdades para coibir os trotes violentos. A pesquisa empírica foi realizada com alunos de uma faculdade federal do Rio de Janeiro, e teve como foco a violência contra a mulher. Porém, pode se dizer que a análise caberia também para uma violência além do gênero, como a do Pascu. Assim dizem as autoras:
“Os/as alunos/as comentam entre eles, muitos/as criticam as situações a que são submetidos/as, mas não estão preparados e não encontram suporte por parte da instituição para encaminhar uma resistência efetiva. A instituição não assume seu papel, se furta até mesmo a fazer uma repreensão aos estudantes, em parte porque os alunos da chamada “turma da bagunça” correspondem às expectativas dos cursos de medicina, à medida que auferem boas notas nos estudos, não infringindo a cultura de excelência solidamente implantada”. (SIQUEIRA & ROCHA, 2008)
O silêncio chega ao extremo mesmo nos casos mais problemáticos, como na morte de um estudante na piscina na festa da faculdade de medicina, como narra uma depoente na CPI dos trotes:
“E a turma recebeu esse nome Pacto 87, hoje em dia não se sabe se é uma brincadeira ou se é verdade, mas é porque teria tido um pacto de silêncio. Assim, teria tido não, teve um pacto de silêncio, porque uma pessoa morreu afogada na piscina e ninguém viu nada, e era uma festa em que estava todo mundo lá, a turma inteira estava na festa e ninguém viu nada”. (CPI, 2015, p.232)
O silêncio pressupõe um respeito a uma hierarquia, que fazem parte os estudantes e também os professores e diretores. Essa hierarquia não pode ser em momento algum desrespeitada sem sanções. Quando isso acontece há punições severas, e nesses casos o Pascu é realizado não como elemento de integração, mas de humilhação.
“E aí a sensação é de que existe a hierarquia dentro da Faculdade de Medicina, e depois ela supera, muitas vezes, a Faculdade de Medicina. O aluno do primeiro ano está ali para ser bagunçado. A função dele é ser motivo de chacota durante um ano. No segundo ano ele organiza a chacota do pessoal do primeiro. Ele é o organizador. No terceiro ele já pode bagunçar com o do segundo e com o do primeiro, porque ele já passou por isso. Então, existe um jogo, uma ascensão, uma escadinha que você vai subindo e você vai mudando de papel, e no sexto ano você é o centro das atenções, você está se formando e você ocupa esse outro papel”. (CPI, 2015, p, 2458)
Porém, para alguns alunos não há ascensão. Esse é o caso de muitos alunos excluídos das principais atividades. Essa exclusão leva em conta também o gênero, a raça, a classe e o status dos alunos participantes.
Os trotes não podem ser realizados sem a conivência das faculdades e de seus diretores, pois é notório o que acontece durante os períodos de ingresso nas faculdades e principalmente nas festas. Casos de humilhações, violências psicológicas, racismo, homofobia, violências físicas são retratados todos os anos nos jornais. Estudantes desfilam quase nus nas ruas, todos pintados e muito alcoolizados, aos olhos de todos. Muitos desses atos são cometidos sem o consentimento dos estudantes e mesmo que houvesse consentimento, não se pode consentir na prática de um crime, mesmo contra a sua pessoa. É nesse sentido que alguns críticos apontam para a omissão das faculdades e de sua responsabilidade conjunta dos atos ocorridos:
“O grito de guerra infame integra uma das primeiras atividades do trote na faculdade. A barbárie evolui para a apalpação, a forçação de barra por um beijo, dedos e línguas, calcinhas arrancadas, chegando aos estupros e violações. Tudo isso tendo como combustível hectolitros de álcool, energizantes e drogas de todos os tipos, consumidos abertamente em “festas tradicionais” promovidas por entidades igualmente tradicionais da USP, como a Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz. A situação só veio a público graças à coragem de um grupo de jovens que ousou romper o medíocre, covarde e criminoso pacto de silêncio. Na quarta-feira (12/11), como se tivesse sido colhida de surpresa pelas denúncias, a direção da Faculdade de Medicina anunciou a criação de um centro de direitos humanos para dar assistência jurídica e psicológica às “vítimas de agressões sexuais, machismo, racismo e homofobia”. E prometeu que o centro “estará atuando em até 40 dias”. Como se o desespero e a sede de Justiça das vítimas pudesse esperar! Falemos às claras: a faculdade está jogando para a torcida. Todas as vítimas contaram que denunciaram as violências sofridas aos diversos órgãos da faculdade. Todas relataram que esta esteve sempre mais preocupada em abafar os casos do que em apurá-los e punir os responsáveis”. (YAHOONOTICIAS, 2014)
Almeida Júnior, que estuda a questão do trote durante muitos anos, aponta para a responsabilidade das faculdades na efetiva fiscalização das práticas violentas. Isso porque para o pesquisador as faculdades são coniventes com essas práticas:
“Então é sempre assim: a universidade não expulsa, a universidade não suspende, a universidade não passa esses documentos à promotoria pública nem à polícia e quando o escândalo acontece vem e diz “alunos podem ser expulsos, vamos abrir uma sindicância e tal” e as coisas continuam. Isso não só em São Paulo mas no Brasil todo”. (CPI, 2015, p.659)
Em outros casos o pesquisador chega a afirmar que há um incentivo aos praticantes de violência como o Pascu, pois se acoberta os criminosos e os premia. Esse é o caso de um aluno que é acusado de praticar pascu:
“ALMEIDA JÚNIOR – Mas o interessante desse caso do J., a sindicância consta lá nos arquivos da Esalq mas a página onde está a conclusão da sindicância, quer dizer, quais foram as punições ou quais foram as resoluções tomadas pela direção não constam do arquivo.
deputada – Elas sumiram?
ALMEIDA JÚNIOR – Não sei, não vi. Elas não se encontram no arquivo. Aliás, nesse arquivo, na numeração das páginas falta algumas. Esse aqui é interessante porque um dos agressores, que era um menino chamado G., dois anos depois, ele organiza… Ele é o presidente do centro acadêmico, ele organiza uma semana de recepção e recebe da Universidade de São Paulo uma menção honrosa por melhor semana de recepção. Essa menção honrosa é entregue, tem a foto, vou mostrar a foto … Se eu puder mostrar a foto já, está bem no final da apresentação… Aqui está a foto. Então está o vice-reitor da USP entregando uma menção honrosa pra esse menino, que dois anos antes constou de uma sindicância e tinha um boletim de ocorrência contra ele. Então está aqui o vice-reitor da USP à época, não me recordo o nome, acredito que seja a pró-reitora de graduação, e o diretor da escola.
deputado– É esse que a sindicância está faltando folha?
ALMEIDA JÚNIOR – É.
deputada – Parece que a amnésia é institucionalizada, né?”
7) O campo de caça- campo de trote: uma análise bourdiesiana
O campo das faculdades já foi assemelhado a um campo de caças, quando se trata de estupro de mulheres e essa dura analogia também pode ser feita com os calouros de algumas faculdades em que o trote violento é amplamente disseminado.
Bourdieu é um dos autores que trata da questão do poder no âmbito da sociologia. Utiliza-se aqui os conceitos que Bourdieu desenvolveu para explicar as relações de poder, para entender alguns dos aspectos do trote violento nas faculdades. Assim, a faculdade é entendida como um campo, seus alunos como agentes, que lutam por capitais. No dizer de PEREIRA, assim podem ser descritos os conceitos de Bourdieu:
“Campo é um microcosmo social dotado de certa autonomia, com leis e regras específicas, ao mesmo tempo em que influenciado e relacionado a um espaço social mais amplo. É um lugar de luta entre os agentes que o integram e que buscam manter ou alcançar determinadas posições. Essas posições são obtidas pela disputa de capitais específicos, valorizados de acordo com as características de cada campo. Os capitais são possuídos em maior ou menor grau pelos agentes que compõem os campos, diferenças essas responsáveis pelas posições hierárquicas que tais agentes ocupam.” (PEREIRA, 2015, p.341)
Nas faculdades em que ocorrem os trotes violentos estão em disputas diversos capitais, como o capital cultural, o econômico e o social. Os estudantes não entram na faculdade com o mesmo capital cultural, que é adquirido nas escolas que frequentam, nos grupos que interagem. Esse capital social é tão maior, quanto maior ele está adequado ao capital exigido pelos membros da faculdade- colegas e professores. É esse capital cultural que irá virar moeda de troca para um status mais elevado nos grupos de poder da faculdade. Inclui-se nesse capital cultural a reprodução dos padrões sociais ditos dominantes, como: ser uma mulher submissa, heterossexual, branco e com certo capital econômico.
“No interior dos campos existem disputas por controle e legitimação dos bens produzidos, assim como também são estabelecidas diferentes relações e assumidas variadas posturas pelos agentes que os compõem. Uma das atitudes possíveis caracteriza-se pela aceitação das normas, pela boa vontade em relação à cultura e às regras legitimadas; outra é a que Bourdieu denomina “herética”, qual seja a de contestação às regras e posições. Atitudes híbridas entre ambas as posturas também podem ser observadas nos variados campos.” (PEREIRA, 2015, p.342)
A explicação de Bourdieu de como funciona um campo vai além da explicação econômica, como faz, por exemplo, Marx. Sua explicação também vai além de estruturas de poder como o racismo, machismo e lgbtfobia, mas inter-relaciona diversas esferas. Os agentes no campo das faculdades, ao lutar pelos capitais estabelecem uma luta entre eles, que nos graus mais acentuados pode se resultar em violências graves:
“Um campo é um campo de forças, e um campo de lutas para transformar as relações de forças. Em um campo como o campo político ou o campo religioso, ou qualquer outro campo, as condutas dos agentes são determinadas por sua posição na estrutura da relação de forças característica desse campo no momento considerado. Isso coloca uma questão: qual é a definição da força? Em que consiste ela e como é possível transformar essas relações de forças?” (BOURDIEU, 2011,p.9)
Os poderes dos agentes não são iguais, uma vez que levam em conta o capital social trazido anteriormente, e um desejo de lutarem pelos capitais específicos daquele campo. Isso pode explicar porque há faculdades em que não há trotes e outras em que ele existe e é violento. A luta pelos capitais somente será acirrada naqueles campos em que há uma disputa por prestígios, cargos e dinheiro. Nesse sentido diz Bourdieu:
“As lutas pelo monopólio do princípio legítimo de visão e de divisão do mundo social opõem pessoas dotadas de poderes desiguais. Pode-se dizer que em cada campo opera um tipo de poder. Entre os matemáticos, trata-se do capital matemático: há pessoas que, em virtude de suas realizações anteriores, de suas invenções (inventaram teoremas que levam seus nomes), têm um capital específico que não seria operante na Assembleia Nacional ou na Bolsa de Valores, mas que é muito poderoso em uma assembleia de matemáticos. Cada espécie particular de capital está ligada a um campo e tem os mesmos limites de validade e de eficácia que o campo no interior do qual tem curso”. (BOURDIEU, 2011, p.11)
A teoria dos campos de Bourdieu leva a um entendimento maior das estruturas de poder e as práticas do trote universitário e das consequentes violências, isso porque Bourdieu busca entender os mecanismos de atuação do campo. Cada faculdade irá ter lógicas e regras específicas, em que as violências irão atuar de maneira diversa. Bourdieu tenta evitar a explicação somente econômica do poder, como aponta:
“A teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir a forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital, investimento, ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, a começar pelo economismo, que nada mais conhece além do interesse material e a busca da maximização do lucro monetário. Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair o absurdo do arbitrário e do não motivado dos atos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como se julga, reduzir ou destruir.” (BOURDIEU, 1989, p.69)
Os capitais podem mudar da faculdade de medicina para a de direito ou para a de engenharia. Porém, em todas elas o capital cultural conseguido ao longo da faculdade, pode influenciar os postos de trabalhos que poderão ser ofertados. O diploma será um capital cultural que propicia a conquista de um capital social maior, com mais conhecidos de status elevado e isso pode levar a uma conquista de maior capital financeiro. O depoimento de um professor de uma das faculdades em que ocorrem os trotes violentos, afirma essa conjunção de capitais:
“A lógica do trote, estudando a genealogia da hierarquia médica, conspira contra um cuidado integral, na medida em que a gente não consegue construir equipes de saúde horizontais. Essa é a primeira questão. A segunda é a construção de redes de poder, porque o trote não inclui alunos, mas os exclui, e vai criando lógicas de produção de poder. Por exemplo, na Faculdade de Medicina do ABC, que existe há 45 anos, a gente até construiu uma curva de Gauss e identificou que 15 alunos – são 100 alunos por ano – normalmente não se submetem ao trote, porque são mais velhos ou porque estão na segunda carreira, ou são às vezes religiosos. E esses alunos infelizmente são excluídos da vida acadêmica. O termo até não é muito simpático: eles passam a ser “pau no cu”. Outros 15 alunos – aí é uma lógica darwinista – são homens, bonitos, ricos, jovens, esportistas. Eles se tornam, de alguma forma, a lógica de condição do trote. E 70 alunos sofrem muito, porque não querem ser excluídos da vida acadêmica nem querem ser trotistas. Aí é que há mais atendimento, mais depressão, mais problemas de saúde mental. Esses 15 alunos então se relacionam com os 15 do ano anterior, do anterior, e isso forma um ciclo e uma rede de poder que tem influência na residência médica, no credenciamento dos planos de saúde, na distribuição dos empregos na região onde a faculdade está. Então, o trote, nas nossas escolas, tem uma lógica de formação de redes de poder.” (CPI, 2015, p.474)
O trote não é algo fácil de se desmantelar nas faculdades com grandes disputas por capital cultural, pois eles representam a luta simbólica entre os agentes. Não se trata de uma disfunção da sociedade, mas é uma das maneiras como o campo atua. Observar as regras de violência, para resguardar o status social e os sujeitos hegemônicos. A regra do silêncio também é necessária, pois é ela que irá definir quem está fora e quem está dentro desse campo. As pessoas que não compactuam com as ideias dominantes serão expulsas ou deixadas a margem, com quase nenhuma possibilidade de conseguir capitais sociais e econômicos. O segredo é necessário para formar essa irmandade do poder, como aponta a antropóloga convidada a falar na CPI do trote:
“Fazendo esses rituais, estão se vendo todos em situações frágeis. Na antropologia, falamos em rituais de passagem. Nas sociedades tradicionais e igualitárias de índios – igualitárias, pois não têm hierarquia, não têm classe social, rico e pobre -, os ritos normalmente têm duas funções: uma função é o rito de passagem, quando a pessoa passa da adolescência para a idade adulta. São rituais que incluem até tortura corporal e tal, mas têm outra função que é a de criar o grupo dos homens e o das mulheres: quem passa pelo ritual e quem não passa. Caçador tem que passar; se uma mulher passa pelo ritual, se torna caçadora homem. O ritual da Faculdade de Medicina separa quem participa daquele grupo e quem não participa. No entanto, parece que não por isso o grupo se torna igualitário. Estamos numa sociedade desigual, não somos índios. Aqui, esse ritual vai recriar outras hierarquias internas ao grupo, que parecem, pelos relatos dos alunos, ter correlações depois com a carreira, com as possibilidades de residência e de trabalho. Me parece que o ritual cria novas hierarquias, cria uma comunidade de segredos: “eu vi você passar mal, vomitar, lamber vômito; você também me viu fazendo isso”. É uma espécie de maçonaria: você cria um segredo. Esses rituais foram inventados na época em que essas universidades eram não só de elite, mas muito masculinas, com pouquíssimas alunas do sexo feminino. Você cria uma comunidade de segredo: “nós sabemos o que passamos juntos; eu não vou te denunciar porque você não vai me denunciar”. Isso explica também certos corporativismos posteriores na carreira profissional dessas pessoas. Não estou dizendo que quando há corporativismo, houve necessariamente trote. Não saberia ter certeza dessa correlação. Estou falando sobre o que a gente observa pelos relatos, não só essas denúncias de agora, mas aquilo que conversei com muita gente que já passou por essas faculdades.” (Relato profa. Heloisa Buarque de Almeida- CPI, 2015, p.401)
O segredo é uma das regras mais fortes nesse campo das faculdades em que o trote violento é disseminado. Nos termos bourdiesianos pode se falar nas regras do campo. Assim, quando se visa quebrar esse silêncio para entender as práticas e detectar os criminosos, não se consegue. Essas barreiras foram enfrentadas pelos deputados na CPI do trote. Não se conseguiu punir os alunos, pois eles estavam munidos de todos os capitais possíveis. Um dos deputados quer levantar os capitais culturais dos alunos, pois entende que é lá que há uma grande blindagem para a investigação:
“Deputado 1 – Alguém tem como levantar para mim quem são os pertencentes da turma 87?
Deputado 2 – Tem. Tem onde está o C., é ortopedista.
Deputado1 – Só quero olhar a árvore genealógica, quem é filho de promotor, quem é filho de advogado, quem é filho de outro médico. (….)
Deputado1 – Na 87 é importante dar uma olhada, porque quando você olha a genealogia, no sentido de saber qual foi a proteção, porque para um cara peitar assim é porque ele tem alguém bancando.” (CPI, 2015, 235-236)
Considerações Finais
Os trotes violentos, dentre ele o Pascu, trazem consequências físicas e psicológicas graves às pessoas que são vítimas e as pessoas entorno. A cultura de violência e do estupro colocam centenas de estudantes em estado de alerta constante, quanto não de ansiedade. Assim, essas práticas não são nefastas apenas para as vítimas. Elas tem influência na saúde mental dos estudantes e futuros profissionais, mas também na qualidade do serviço que esses profissionais irão prestar à população.
A desqualificação dos sofrimentos dos estudantes, inclusive em relação às práticas violentas nas faculdades, que vão além do trote, levam a um estado mental preocupante. Há alguns estudos sobre os suicídios entre os alunos de medicina, porém poucos unem essa prática a questões do trote e da cultura da violência nas escolas, em que o Pascu e estupros são recorrentes.
Em 2017 ocorreu um surto de suicídios entre os alunos de medicina. Ainda há muito a ser estudado sobre as causas, que podem ser um conjunto de fatores. Mas não se pode deixar de lado que a violência sofrida internamente pelos alunos, podem ser um dos muitos gatilhos para essa prática. Um dos alunos, indica a disputa entre os alunos como um fator de stress, que pode levar ao suicídio:
“Estamos mais próximos da formatura e já não há mais aquela idealização da profissão que existia quando entramos na faculdade”, diz um estudante, que pediu para não ser identificado. “Não temos tempo para nada, além de disputas tolas para ver quem se sai melhor dentro de nosso próprio ambiente”. (GAZETA DO POVO, 14-07-2017)
A cultura de violência nas faculdades está longe de se restringir aos trotes, que por vezes são prolongados até os últimos anos do curso. Esta cultura é nefasta aos alunos, aos professores e as pessoas que esses alunos formados irão atender. O desrespeito tem de ser combatido não somente com a tipificação das práticas violentas em crimes, mas é necessária toda uma política que inclui alunos, professores, funcionários e diretores. É interessante o depoimento de um aluno na CPI dos trotes, que destaca essa cultura de violência:
“Por fim, queria só acrescentar que a violência não existe só no âmbito da relação entre estudantes. A violência existe também durante a formação médica, seja pela carga horária, seja pelo currículo oculto de medicina, que é os que professores colocam na hora que vão discutir casos. Então, é muito comum, quando a gente vai discutir casos, o professor fazer piadas sobre a obesidade do paciente, sobre a orientação sexual do paciente, sobre, enfim, são diversas minorias dentro da nossa sociedade”. (CPI,2015, p.1146)
Um outro depoimento aponta como a cultura da violência, em que está inserido o Pascu, o estupro e tantas outras humilhações, faz com que as pessoas se transformem em agressores. Há uma perda da sensibilização para os atos violentos, que afeta como os futuros profissionais irão tratar seus clientes/pacientes:
“Acho que essa violência que acontece dentro da faculdade contribui para esse tipo de formação que a gente faz, e aí você sai para o médico e o cara acha que pode te tratar de qualquer jeito, ele acha que pode mandar em você. Ele foi tão mandado dentro da faculdade dele que ele acha que pode mandar em tudo o que você faz. Eu vi pessoas fantásticas da minha turma, que eram pessoas boníssimas, que entraram na faculdade para fazer medicina por amor, aquela coisa bem mística do estudante do primeiro ano, saindo de lá totalmente deformados, com conceitos éticos extremamente duvidosos, para não falar impraticáveis, e agredindo as pessoas, ou verbalmente ou coagindo”. (CPI, 2015, p.1169)
As faculdades e universidades tem de tomar mais cuidado com as questões de violência, como também as autoridades públicas. Porém, para isso o silêncio tem de ser quebrado. Não são poucas vezes que as práticas de violência são reproduzidas inclusive internamente, entre os professores e funcionários das faculdades. Como relata uma aluna na CPI sobre a reprodução da cultura da violência:
“Então, no meu internato eu fui humilhada muitas vezes, por professor, durante visita inclusive, que é um momento que a gente passa em grupo nos pacientes. Professor cobrando coisas absurdas da gente, cobrando exame laboratorial, quanto estava tal coisa. Cobrando sempre o que a gente não sabia. Se a gente sabia, se a gente sabia um tanto, eles cobravam, cobravam, cobravam, até eles encontrarem uma coisa que a gente não sabia, e aí eles faziam uma humilhação na frente dos pacientes. (…) Era um inferno, todo dia ia ter humilhação na visita. A única dúvida era quem ia ser humilhado do grupo. Ou qual paciente, porque às vezes o paciente era humilhado”. (CPI, 2015, p,1195)
A cultura da violência em que o Pascu está inserido é uma cultura arraigada nas universidades brasileiras e presente com mais força em algumas faculdades, em especial as faculdades em que se encontra maciçamente representantes de elite econômica brasileira. .O pascu é somente uma ponta de um iceberg da violência, que tem consequências para além das vítimas.
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056
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