Resumo: O presente trabalho tem por objetivo uma análise acerca do princípio da insignificância penal, sua aplicação no mundo fático e os limites da amplitude do aspecto subjetivo de sua valoração. Antes da análise do tema, buscou-se ponderar os conceitos que guarnecem este princípio, qual sejam, bem jurídico, o conceito analítico de crime, a conduta e a tipicidade. Após, foi apresentada brevemente a origem do princípio da insignificância, buscando a análise de sua aplicação in concreto, através da jurisprudência do STF. Acredita-se que o princípio da insignificância trata-se de importante excludente da tipicidade, serve como restrição à interpretação subsuntiva do tipo, contribuindo para a correção do Direito Penal. Contudo, há que se examinar sua aplicação, buscando o uso de critérios objetivos para evitar a distorção do seu fim, bem como afastar a insegurança advinda de sua aplicação desregrada. [1]
Palavras-chave: Princípio da Insignificância. Excludentes da tipicidade. Direito Penal. Princípio da Irrelevância Penal. Infração bagatelar.
Abstract: This paper aims a review about the principle of criminal insignificance, its application in the factual world and limits the amplitude of the subjective aspect of your opinion. Before examining the issue, it was sought to examine the concepts which line this principle, which is well legal, analytical concept of crime, the conduct and typicality. After it was briefly presented the origin of the principle of insignificance, seeking to analyze their application in concrete, through the jurisprudence of the Supreme Court. It is believed that the principle of insignificance it is important exclusionary of typicality, serves as a restriction on the type subsuntiva interpretation, contributing to the correction of the Criminal Law. However, one must examine its application, seeking the use of objective criteria to avoid distortion of your order, as well as avoid the uncertainty arising from his wild application.
Keywords: Principle of Insignificance. Exclusion of typicality. Criminal Law. Principle of Criminal Irrelevance. Bagatelle delict.
Sumário: Considerações iniciais. 1. Conceitos primordiais. 1.1. Direito penal. 1.2. Bem jurídico. 1.3. Crime. 1.4. Conduta. 1.5. Tipicidade. 1.5.1. Tipicidade formal x material. 1.5.2. Exclusão da tipicidade. 1.5.3. Adequação social. 2. Princípio da insignificância. 2.1. Surgimento. 2.2. Conceito. 2.3. Infrações bagatelares. 2.4. Críticas ao princípio da insignificância. 2.4.1. Indeterminação e insegurança jurídica. 2.4.2. Sensação de impunidade. 3. Aplicação. 3.1. Aplicabilidade aos tipos penais. 3.2. Valoração da insignificância: pequeno valor x pequeno prejuízo. 3.2.1. Estelionato: o estelionato privilegiado afasta o princípio da insignificância?. 3.3. Requisitos de aplicabilidade pelo STF. 4. Aplicação de elementos subjetivos. 4.1. Critérios objetivos e subjetivos. 4.2. Distinção entre insignificância e irrelevância penal. 4.2.1. Conceito e requisitos. 4.2.2. Efeitos. 4.3. Agente reincidente. 5. Considerações finais. referências.
Considerações iniciais
Para Guilherme de Souza Nucci, “o Direito Penal é o conjunto das normas jurídicas voltado à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como as regras atinentes à sua aplicação”[2]. É possível dizer que o sistema penal é a via punitiva institucionalizada que resolve as ações conflitivas, e por isso é considerado como um meio de controle social.
Como elucidam Zaffaroni e Pierangeli, “o delito é uma construção destinada a cumprir certas funções sobre algumas pessoas e acerca de outras, e não uma realidade social individualizável.”[3] Muitas vezes, a punição, que deveria responder a uma conduta, acaba se dirigindo a determinados grupos, mais do que às suas condutas, fato que torna o sistema penal um meio de controle social formal. Como primeira instância do controle social formal, figura o poder Legislativo, pois indica as condutas socialmente não aceitáveis. Porém, há de se considerar que as pessoas que compõem este poder e o próprio sistema político em si, fazem parte do grupo mais próximo do poder, muitas vezes indicando condutas que apenas se identificam com os setores mais marginalizados da sociedade. Esta seletividade do sistema penal traz consigo um componente de desigualdade, pois acaba punindo apenas parte da sociedade.
O operador do direito, ao aplicar uma norma jurídica ao caso concreto, depara-se com situações que abarcam uma punição que não é razoável com a conduta praticada. Se o direito penal deve ser a última ratio, há casos em que, por não trazerem grave ofensa ao bem jurídico, não devem ser considerados crime, pois não detêm a relevância para a tutela do direito penal.
A presente pesquisa visa o estudo do princípio da insignificância, que é uma causa de exclusão da tipicidade. Para tanto, foram analisados inicialmente os preceitos de bem jurídico, o conceito analítico de crime, a conduta e a tipicidade. Em seguida, foram abordados o surgimento histórico do princípio da insignificância, sua aplicação aos tipos penais, e a análise do uso de elementos subjetivos na sua aplicação.
Destarte, pretendeu-se confirmar com esta pesquisa que, em determinadas ocasiões, não pode o aplicador do direito esquivar-se da análise do caso sob o prisma do princípio da insignificância, sob pena de corroborar, através da aplicação mecânica da norma, com a irrazoabilidade da pena, contribuindo para aplicação injusta do direito, assim como não é possível a utilização afoita de elementos subjetivos, o que ocasionaria sua aplicação injusta e possível insegurança jurídica.
Conforme anteriormente mencionado, o Direito Penal é o conjunto de normas que regulam a ação punitiva do Estado, através da identificação de condutas reprováveis e sua punição. A lei penal estabelece normas de direito material, enquanto a lei processual penal o instrumentaliza e lhe dá eficácia. Constitui o Direito Penal uma forma de controle social institucionalizada, formal, cuja tarefa importa em indicar as condutas que não são aceitas naquela comunidade, aplicando sanções aos casos de sua transgressão. Contudo, se faz mister verificar que não cabe ao Direito Penal o controle social como um todo, ele se incumbe apenas daqueles conflitos mais graves, devendo ser a última ratio. Aquelas ações que são reprovadas, mas que não geram uma ofensa grave, devem ser resolvidas pelas outras instituições de controle social. Cabe salientar que a família permanece como a instituição que mais atende ao controle social, visto que desempenha suas quatro tarefas: indicar as condutas reprovadas, fiscalizar seu cumprimento, ponderar acerca de suas transgressões e aplicar sanções. É o que observou Claus Roxin:
“Comportamentos que somente infrinjam a moral, a religião ou a political correctedness, ou que levem a não mais que uma autocolocação em perigo, não devem ser punidos num estado social de direito. Afinal, o impedimento de tais condutas não pertence às tarefas do direito penal, ao qual somente incumbe impedir danos a terceiros e garantir as condições de coexistência social”.[4]
Assim, percebe-se como características do direito penal a seletividade, porque elege o bem jurídico que considera relevante e merecedor de sua tutela; a humanidade, porque sua função maior é regular as relações sociais, mantendo a paz; a subsidiariedade, porque não deve ser a primeira opção de resolução dos conflitos, pelo contrário, é secundário e só deve ser empregado quando os outros ramos do direito ou do controle social falharem; e fragmentário, pois o direito penal é parte, fragmento, de todo um sistema, assim, não serve para tutelar todo e qualquer bem jurídico, mas apenas aqueles cuja ofensa for grave, relevante.
Entende-se por bem aquilo que atende as necessidades humanas, podendo ser material ou imaterial. É possível exemplificar como bem material o patrimônio, por outro lado, pode-se identificar como bem imaterial, a honra. O bem se torna jurídico, quando o ordenamento jurídico o escolhe para ser amparado.
Nem todo bem jurídico é protegido pelo direito penal: somente aqueles que têm relevância, ou seja, aqueles que quando lesados resultam em saliente ofensa à sociedade. Assim, o direito penal elege os bens jurídicos para tutelar, e indica as condutas que ocasionam sua lesão, gerando tipos penais incriminadores para protegê-los.
Portanto, torna-se importante a análise do bem jurídico protegido em questão, a fim de avaliar se houve a sua efetiva lesão, no caso concreto, ou se na essência ele continua preservado, hipótese que dispensa a intervenção punitiva do direito penal, como ocorre no crime bagatelar, aplicando-se o princípio da insignificância.[5]
Como mencionado anteriormente, Zaffaroni elucida que o delito é uma construção, através da qual a sociedade controla as condutas proibidas. O conceito de crime pode ser analisado de três formas: material, formal e analítico.
O conceito material define o crime como as ações humanas que a sociedade identifica como contrárias ao direito, e, portanto, que devem ter cominadas penas pelo legislador. Assim, é o que condenado pela sociedade.
O conceito formal de crime ocorre quando, por pressão da sociedade, que definiu materialmente aquela conduta como delituosa, o legislador a tipifica, impondo uma pena. Portanto, é a conduta contrária ao direito, para a qual a legislação atribui uma sanção.
Por fim, o conceito analítico de crime, é determinado pela ciência do direito, e portanto, tem caráter técnico. Por crime, entende-se a ação humana, voluntária e consciente, típica, antijurídica e culpável. Novamente, à luz do doutrinador Nucci, verifica-se tal conceito:
“Trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuricidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito.”[6]
A conduta, importante para o presente estudo, é conceituada diferentemente pelas teorias causalistas, finalistas e teoria social.
Para a teoria finalista, a conduta é ação humana, voluntária e consciente, que pode ser positiva ou negativa (ação ou omissão) buscando uma finalidade, um resultado. A teoria causalista, por sua vez, define a conduta como a ação ou omissão humana, voluntária e consciente, porém, não abrange a finalidade, pois entende que esta faz parte da análise da culpabilidade. Para a teoria social, entretanto, a considera como ação ou omissão humana, consciente e voluntária, socialmente relevante.
Ambas concordam, contudo, que a conduta é a ação ou omissão humana, voluntária e consciente. A vontade é querer, almejar, de modo que se aja para obter um resultado. A consciência, por sua vez, é a percepção, a capacidade de distinguir o que é realidade da ficção. Logo, para uma conduta ser considerada relevante para o direito penal, o agente deve ter consciência, ter realizado uma reflexão moral, julgado o ato que estava prestes a praticar e, ainda assim, conservar a vontade, o desejo de praticar a ação visando um resultado.
Destarte, aquelas condutas que não atendem à vontade ou consciência, não são relevantes para o direito penal, excluindo a tipicidade, como nos casos de movimentos reflexos, hipnose (vontade) ou sonambulismo, narcolepsia (consciência), dentre outros.
A tipicidade é o fenômeno de amoldar o caso concreto ao tipo penal correspondente. Pode-se dizer que a tipicidade é o silogismo no direito penal: encaixa-se a situação fática em uma hipótese abstrata dada pela legislação penal, através do tipo penal incriminador. Contudo, nem sempre esta adequação ocorre de forma direta, necessitando que se complete o tipo penal com outras normas, contidas na parte geral dos códigos, como ocorre na tentativa e no concurso de agentes.[7]
1.5.1. TIPICIDADE FORMAL X MATERIAL
Há situações que, embora apresentem a tipicidade formal, ou seja, a situação fática se enquadre em um tipo penal incriminador, não estão revestidas de tipicidade material.
É condição para a tipicidade material que a conduta afete um bem jurídico relevante para a vítima, ou que a conduta seja reprovada socialmente, sendo insuficiente apenas a verificação de que o fato encontra tipo incriminador equivalente. É o que assevera Francisco Assis Toledo:
“Seria fazer com que uma pessoa que age de acordo com os padrões vigentes na sociedade em que vive tenha que se justificar acerca de uma conduta desprezada ou até aceita pelos outros. […] Assim, pode-se afirmar que o comportamento humano, para ser típico, não só deve ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito, mas também ser materialmente lesivo a bens jurídicos, ou ética e socialmente reprovável.”[8]
Portanto, reporta-se desnecessária a intervenção do direito penal nas situações que não estiverem revestidas de tipicidade material, pois são ocorrências em que a punição se reflete ineficaz ou desproporcional.
As excludentes da tipicidade são situações que afastam a tipicidade do fato. Podem ser legais, quando expressamente previstas em lei, ou supralegais, quando são implicitamente previstas em lei. Como exemplo de excludente legal, pode-se referir o crime impossível, previsto no artigo 17 do Código Penal. As excludentes supralegais podem ser identificadas nos princípios da adequação social e da insignificância, que afastam a tipicidade do fato.[9]
A adequação social é o princípio formulado por H. Welzel que exclui a tipicidade, sustentando que a conduta deve ser socialmente relevante para ser considerada típica. Assim, se a conduta é aprovada pela sociedade, não pode ser considerada uma ofensa ao bem jurídico e não merece movimentar a máquina punitiva estatal. O adultério é um exemplo de fato em que pode-se defender a exclusão da tipicidade, devido ao princípio da adequação social, tendo em vista que a sociedade não considera a ofensa ao bem jurídico relevante a ponto da necessidade de intervenção penal.
2. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Há controvérsias quanto à origem do princípio da insignificância. Para alguns autores, o surgimento do princípio da insignificância se deu com o Direito Romano, tempo em que o pretor cuidava da criminalidade de bagatela, para outros foram os humanistas que o criaram, através da máxima De minimis non curat praetor (o pretor não se preocupa com coisas insignificantes).[10] Contudo, há críticas quanto à origem romana, pois se sabe que o alicerce do Direito Romano estava no direito privado, havendo pouco conhecimento acerca do direito penal.
A origem mais próxima do princípio se deu na Europa, após a Segunda Guerra Mundial. Devido às dificuldades econômicas enfrentadas, houve o aumento da criminalidade de bagatela, surgindo a expressão alemã bagatelledelikte. Assim, inicialmente o princípio da insignificância estava ligado aos delitos patrimoniais.
A sistematização do princípio foi elaborada por Claus Roxin, com a publicação de artigo em 1964, no qual que pregou o princípio da insignificância como causa excludente de tipicidade. Para Roxin, o princípio permite excluir a tipicidade da maioria dos tipos cujo dano seja de pouca importância, não apenas os patrimoniais, como exemplifica: “maus tratos, portanto, não é qualquer tipo de dano à integridade corporal, senão somente o relevante; […] injuriosa é só a lesão grave à pretensão social de respeito”.[11] O autor buscou esclarecer que, tanto a adequação social, quanto o princípio da insignificância devem ser usados como auxiliares interpretativos para restringir o teor literal da lei, trazendo nova interpretação, que seria uma melhor interpretação.
O princípio da insignificância é uma das causas de exclusão da tipicidade material. Sustenta que, no caso das infrações bagatelares, cuja definição será esmiunçada posteriormente, apesar da conduta estar prevista em um tipo penal incriminador, não merece a intervenção do direito penal, devido ao ínfimo prejuízo que causam ao bem jurídico tutelado. Destarte, pretende-se desconsiderar delituosa aquela ação que em nada fere um terceiro, pela ofensividade mínima, seja da ação ou do resultado. Assim, embora o crime de furto esteja previsto na legislação, a conduta de furtar uma bala em um mercado não merece a punição do direito penal, posto que o dano causado ao patrimônio seria uma ninharia.
Sua justificação pode se dar por dois argumentos: a desproporção entre o crime e a pena, e a pretensão de desafogar o poder judiciário, bem assim compreendido o sistema carcerário. A punição de uma conduta cujo prejuízo é praticamente inexistente não colabora em nada para o caráter preventivo da pena, pelo contrário, permite que haja um equilíbrio entre a punição imposta a uma conduta mais ofensiva e a uma menos ofensiva, de forma que a coação exercida será igual para condutas distintas, de forma que não faça diferença praticar um crime menos grave com o intuito de livrar-se de uma pena rígida, o que ensejaria o aumento dos delitos mais gravosos, como já advertira BECCARIA:
“Se uma mesma pena se destina a dois crimes que ofendem desigualmente a sociedade, os homens não encontrarão um obstáculo mais sério para a prática do crime mais grave, se a esse procedimento tiverem unido uma vantagem maior. Quem ver imposta a pena de morte, por exemplo, a quem mate um faisão e ao assassino de um homem ou a um falsificador de documento importante, não fará qualquer distinção entre esses crimes […].”[12]
O princípio da insignificância vem, nesta esteira, para adequar a desproporção de qualquer punição à uma conduta que apenas formalmente é considerada crime, porém, não apresenta significativa ofensa ao bem jurídico. Se há uma proporção da pena, sendo mais branda à conduta que ofenda menos o bem, e mais rígida à conduta mais ofensiva, há de haver um ajustamento à conduta que, de tão irrisória na prática, não ofenda em nada o bem jurídico, logo, não merece punição alguma.
Por outro lado, é notável que o poder judiciário encontre, na prática, milhares de ações versando sobre crimes que, dada a irrelevância, não padeciam da intervenção estatal, de cuja movimentação depende elevados gastos. Carlos Vicos Mañas enumera, de sua vivência na Procuradoria-Geral do Estado, casos de pequenos furtos de mercadorias expostas, pequenas apropriações praticadas por empregados de estabelecimentos industriais ou comerciais, lesões corporais consistentes em levíssimas escoriações.[13] Destarte, se não há relevância na matéria penal, sendo o direito penal a última solução para os conflitos sociais, deve-se excluir de sua tutela os crimes bagatelares, de forma a atenuar o atravancado processo dos tribunais, permitindo com que se ocupe apenas das questões de importância relevante, cujo prejuízo não seja composto por outro ramo do direito ou do controle social. Não é admissível que o julgamento de feita como um homicídio demore demasiadamente, porquanto o judiciário esteja abarrotado de processos versando sobre questões ínfimas como o furto de uma maçã. Assim, sustenta-se que o crime bagatelar deve ter sua tipicidade afastada, resultando de sua aplicação a não aceitação da ação, o arquivamento do processo ou a absolvição.
Como mencionado anteriormente, a tarefa do legislador é indicar as condutas reprovadas pela sociedade. Tal previsão é feita para uma hipótese abstrata, ou seja, por não estar no plano fático, pretende abarcar situações gerais. Ao aplicar-se a norma ao caso concreto, acaba o operador do direito se deparando com situações fáticas que estão previstas pela norma, então, revestidas de tipicidade formal, dado o alcance muito generalizado da norma. Contudo, esta aplicação subsuntiva da norma ao fato, acaba por punir condutas que geram uma ofensa mínima ao bem jurídico.
O princípio da insignificância visa excluir a tipicidade material do fato, posto que não se pode pretender punir uma conduta cujo resultado seja ínfimo, o que contrariaria princípios basilares do direito penal: a subsidiariedade e a fragmentariedade, tendo em vista que apenas os conflitos não resolvidos por outros ramos do direito são abarcados pelo direito penal, que é um fragmento de um sistema, devendo sua aplicação ser a última ratio. Ainda há que se observar o princípio da intervenção mínima, que neste caso, pela mínima ofensividade não merece a intervenção da máquina estatal.
Assim, o tipo penal deve ser interpretado sistematicamente, levando em conta o todo do ordenamento jurídico, e não apenas a formalidade do tipo penal, especialmente por tratar a punição da disposição de um bem jurídico relevantíssimo: a liberdade. A aplicação da pena, nestes casos, revela-se desproporcional: a ofensa ao bem jurídico é ínfima, enquanto a punição afetará bem jurídico relevante, desproporção que causaria injustiça.
Em suma, o princípio da insignificância afasta a tipicidade material do fato, desconstituindo o crime, pois ao afastar o fato típico, não atende a concepção material de crime (fato típico, antijurídico e culpável), portanto, permite o arquivamento, o não recebimento da ação, ou a absolvição. Serve como uma interpretação restritiva do tipo penal, pois restringe sua interpretação àquelas condutas que geram ofensa grave ao bem jurídico, obedecendo, assim, à subsidiariedade, fragmentariedade e à intervenção mínima, conquanto, resumidamente, atende ao objetivo maior do direito penal, que é regular as relações sociais, mantendo a paz.
O crime de bagatela, ou infração bagatelar é aquela conduta cuja ofensa ao bem jurídico é mínima, ínfima, insignificante para o direito penal. Para compreender os aspectos que envolvem o princípio da insignificância, se faz mister analisar as espécies de infrações bagatelares. Luis Flávio Gomes explicita que elas podem ser subdivididas em infração bagatelar própria e imprópria.
“A infração bagatelar própria é a que já nasce sem nenhuma relevância penal, porque não há (um relevante) desvalor da ação (ausência de periculosidade na conduta, falta de reprovabilidade da conduta, mínima ofensividade ou idoneidade) ou um relevante o desvalor do resultado jurídico (não se trata de ataque grave ou significativo ao bem jurídico, que mereça a incidência do Direito penal) ou ambos.”[14]
Assim, às infrações bagatelares próprias se aplica o princípio da insignificância, porque a conduta, o resultado, ou ambos, não apresentam relevante desvalor.
Desvalor da conduta: no caso de incêndio que já atinge boa parte de uma plantação, uma pessoa que se desfaz de um toco de cigarro, dolosamente, não pode ser punida: embora o resultado ofenda significativamente o patrimônio do dono da plantação (há desvalor do resultado, se trata de ataque grave ao bem), a ação do agente foi ínfima (não há desvalor da conduta, pela mínima ofensividade), configurando uma infração bagatelar própria.
Desvalor do resultado: a pessoa que subtrai uma caneta de um colega (há desvalor na conduta, que é reprovada), tampouco pode ser punida: há uma reprovação na ação, porém, o resultado, dano ao patrimônio, é insignificante (não há desvalor do resultado, pois não se trata de ataque significativo ao bem jurídico), novamente, configurando uma infração bagatelar própria.
Pode-se observar o exposto na jurisprudência, através do habeas corpus (HC) 115.046, versando sobre exercício ilegal de profissão, conforme ementa:
“Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS. IMPUTAÇÃO AOS PACIENTES DA PRÁTICA DO DELITO DE EXERCÍCIO ILEGAL DE PROFISSÃO. “FLANELINHAS”. BEM JURÍDICO TUTELADO. LESÃO. INEXPRESSIVIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. CRITÉRIOS OBJETIVOS. PRESENÇA. APURAÇÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. I – A profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores está regulamentada pela Lei 6.242/1975, que determina, em seu art. 1º, que o seu exercício “depende de registro na Delegacia Regional do Trabalho competente”. II – Entretanto, a não observância dessa disposição legal pelos pacientes não gerou lesão relevante ao bem jurídico tutelado pela norma, bem como não revelou elevado grau de reprovabilidade, razão pela qual é aplicável, à hipótese dos autos, o princípio da insignificância. III – A aplicação do princípio da insignificância deve observar alguns vetores objetivos: (i) conduta minimamente ofensiva do agente; (ii) ausência de risco social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) inexpressividade da lesão jurídica. IV – Critérios que se fazem presentes na espécie, levando ao reconhecimento do denominado crime de bagatela. V – Como é cediço, o Direito Penal deve ocupar-se apenas de lesões relevantes aos bens jurídicos que lhe são caros, devendo atuar sempre como última medida na prevenção e repressão de delitos, ou seja, de forma subsidiária a outros instrumentos repressivos. In casu, a questão pode ser facilmente resolvida na esfera administrativa. VI – Ordem concedida, para restabelecer a decisão que rejeitou a denúncia.” (HC 115046, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 19/03/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-160 DIVULG 15-08-2013 PUBLIC 16-08-2013)[15]
Fica evidenciada a configuração de infração bagatelar própria, ensejando a exclusão da tipicidade penal, pois embora a situação esteja revestida de tipicidade formal (Lei 6.242/1975), não apresenta tipicidade material, tendo em vista a falta de reprovabilidade da conduta. No acórdão, o aplicador do direito verifica que o fato, além de insignificante para o direito penal, pode ser resolvido em âmbito administrativo. Destarte, o aplicador faz valer o caráter subsidiário do direito penal, demonstrando que se deve recorrer a este apenas como última ratio na resolução de conflitos.
“Infração bagatelar imprópia: é a que nasce relevante para o direito penal (porque há o desvalor da conduta, bem como o desvalor do resultado), mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjugado com o princípio da irrelevância penal do fato).”[16]
Há a identificação de infração bagatelar imprópria no crime de peculato culposo, desde que haja reparação dos danos: há desvalor da conduta e do resultado, mas a aplicação de pena se mostra desnecessária. Outro caso seria o roubo, com uso de arma de fogo, de um litro de leite. Além do desvalor da conduta, devido ao fato de estarem ameaçados outros bens jurídicos importantes, mesmo que o resultado patrimonial seja mínimo, há de se considerar o desvalor do resultado, pois há ameaça aos bens jurídicos como a integridade física, liberdade individual. Contudo, posteriormente, se verifica que a aplicação da pena é desproporcional.
Não se aplica às infrações bagatelares impróprias o princípio da insignificância, tendo em vista que há o desvalor do resultado e da conduta, para tal, é aplicado o princípio da irrelevância penal. A sutil diferença destes princípios demanda estudo para que se delimite a sua extensão, bem como os requisitos aplicáveis a cada um deles, evitando conflitos em sua aplicação.
2.4. CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Apesar da aceitação doutrinária do princípio da insignificância, apresentam-se críticas ao seu uso. A dificuldade em determinar-se o que é insignificante, implica na tese de que sua aplicação geraria insegurança jurídica, bem como a sensação de que há impunidade são sustentados como limitações.
2.4.1. INDETERMINAÇÃO E INSEGURANÇA JURÍDICA
A dificuldade de determinar-se, objetivamente, o sentido a ser atribuído ao termo insignificante na aplicação prática, provoca críticas ao princípio da insignificância. A determinação de que a ação é insignificante depende de um juízo de valor do operador do direito, que deve analisar no caso concreto o grau de ofensividade da conduta. Decorre deste fato a crítica de que o princípio poderia abrir espaço para a arbitrariedade do intérprete: a valoração do grau de insignificância estaria submetida à subjetividade de cada operador do direito, assim, sujeito à instauração da insegurança jurídica.
Os autores que refutam esta crítica apoiam-se no conceito de nocividade social, introduzido por Roxin.
“A dificuldade de fixação de limites precisos para a caracterização do crime de bagatela é facilmente superada pela adoção do conceito de nocividade social, dotado de caráter normativo, acrescido dos critérios do desvalor da ação, do resultado e do grau de lesividade do bem jurídico.”[17]
Além, disso, afirmam que a dogmática e a jurisprudência têm limitado a valoração sobre a insignificância nos critérios hermenêuticos, assim como nos princípios da subsidiariedade, fragmentariedade, proporcionalidade e intervenção mínima. Para Zaffaroni, a admissão da insignificância não importa em insegurança jurídica, pois não se pode considerar como segurança jurídica a aplicação mecânica e exegética da norma, sem questionar o sentido da norma.[18]
Destarte, verifica-se que, apoiado em critérios interpretativos limitadores na aplicação da norma abstrata ao caso concreto para aferição valorativa da insignificância, como a interpretação sistemática da norma, não há que se falar em insegurança jurídica. Especialmente por servir o princípio da insignificância como ferramenta restritiva do tipo, atuando com a pretensão de correção do direito, o princípio, não obstante tratar-se de excludente de tipicidade supralegal, atende ao princípio da legalidade (nullum crimen sine lege) enquanto restringe o delito apenas à conduta gravemente ofensiva, tendo em vista que um tipo incriminador deve descrever uma conduta desvalorada pela sociedade.
Adversa ao princípio da insignificância, está a crítica de que a aplicação provocaria uma sensação de impunidade, acarretando em aumento da criminalidade. Algumas decisões, ao denegar o emprego do princípio devido à reincidentes, referem que o acolhimento nesses casos resguardaria ou legitimaria a conduta desviada.[19]
No que se refere à sensação de impunidade, se faz mister esclarecer que não pretende o princípio da insignificância legitimar as condutas, que não deixam de ter o caráter de ilícitas. Não obstante a falta de necessidade de intervenção penal, tais conflitos devem ser resolvidos por outras vias, quais sejam, outros ramos do direito ou mesmo do controle social. Devem ser aplicadas as sanções cabíveis, fora da esfera penal, nas palavras de Luiz Flávio Gomes:
“Devem recair sobre seu autor todas as sanções cabíveis: civis (indenizações), trabalhistas (despedida do empregado, quando o caso), sociais (admoestação), administrativas, etc. O que não se justifica é a aplicação do Direito penal (em fatos absolutamente destituídos de significado penal).”[20]
Empregar a insignificância não retira a reprovação da conduta socialmente. É dizer que, penalmente, não há relevância, contudo, a sanção deve ser provida por outras vias, reprimindo sua reincidência. Pode-se imaginar um funcionário público que pratique peculato por subtrair uma caneta de um órgão público. Não há necessidade de processá-lo penalmente, pois a ofensa ao patrimônio público é tão pequena que não interessa ao direito penal. Entretanto, o funcionário será alvo de processo administrativo disciplinar: receberá a punição no âmbito administrativo, resguardados o contraditório e a ampla defesa.
3.1. APLICABILIDADE AOS TIPOS PENAIS
A aplicação do princípio da insignificância é aceita na maioria dos tipos penais atualmente, contudo, desde que causem danos ínfimos. Na doutrina há ampla aceitação do princípio, como instrumento político-criminal, atendendo o movimento de descriminalização. Mirabete exemplifica a admissibilidade nos delitos como dano, furto, estelionato, contrabando ou descaminho, lesão corporal, crimes contra o meio ambiente.[21] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), contudo, exige requisitos para sua aplicação, os quais serão aclarados no próximo item.
O primeiro caso que pode ser analisado é de uma lesão corporal leve, no âmbito da justiça militar, conforme ementa:
“HC 95445 / DF – DISTRITO FEDERAL. EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. LESÃO CORPORAL LEVE [ARTIGO 209, § 4º, DO CPM]. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. 1. O princípio da insignificância é aplicável no âmbito da Justiça Militar de forma criteriosa e casuística. Precedentes. 2. Lesão corporal leve, consistente em único soco desferido pelo paciente contra outro militar, após injusta provocação deste. O direito penal não há de estar voltado à punição de condutas que não provoquem lesão significativa a bens jurídicos relevantes, prejuízos relevantes ao titular do bem tutelado ou, ainda, à integridade da ordem social. Ordem deferida”. (HC 95445, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 02/12/2008, DJe-152 DIVULG 13-08-2009 PUBLIC 14-08-2009 EMENT VOL -02369-05 PP-00929).[22]
No caso em tela, estão presentes todos os requisitos para aplicação da insignificância: a conduta e o resultado são tão ínfimos, que não há seu desvalor, restando indubitável a aplicabilidade da insignificância. O juízo de valor acerca da insignificância da conduta é de fácil estabelecimento, tendo em vista que o autor desferiu apenas um soco, resultando em lesão nímia, além da sustentação de que a agressão teria sido desferida em razão de injusta provocação da vítima, o que caracteriza a conduta como insignificante. Não há motivos para mover a máquina estatal e considerar crime uma situação que pode ser identificada como bagatela, revelando entendimento pacífico sobre o tema. O egrégio tribunal aceitou a argumentação com base na insignificância e, por decisão unânime, absolveu o paciente da imputação por lesão corporal leve.
No HC 102.940, verifica-se o não reconhecimento do princípio em casos versando sobre o porte de drogas.
“EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 28 DA LEI 11.343/2006. PORTE ILEGAL DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. ÍNFIMA QUANTIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PERICULOSIDADE SOCIAL DA AÇÃO. EXISTÊNCIA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO OU PRESUMIDO. PRECEDENTES. WRIT PREJUDICADO. I – Com o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal, não mais subsiste o alegado constrangimento ilegal suportado pelo paciente. II – A aplicação do princípio da insignificância de modo a tornar a conduta atípica exige sejam preenchidos, de forma concomitante, os seguintes requisitos: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) relativa inexpressividade da lesão jurídica. III – No caso sob exame, não há falar em ausência de periculosidade social da ação, uma vez que o delito de porte de entorpecente é crime de perigo presumido. IV – É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância aos delitos relacionados a entorpecentes. V – A Lei 11.343/2006, no que se refere ao usuário, optou por abrandar as penas e impor medidas de caráter educativo, tendo em vista os objetivos visados, quais sejam: a prevenção do uso indevido de drogas, a atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. VI – Nesse contexto, mesmo que se trate de porte de quantidade ínfima de droga, convém que se reconheça a tipicidade material do delito para o fim de reeducar o usuário e evitar o incremento do uso indevido de substância entorpecente. VII – Habeas corpus prejudicado.” (HC 102940, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 15/02/2011, DJe-065 DIVULG 05-04-2011 PUBLIC 06-04-2011 EMENT VOL-02497-01 PP-00109)[23]
O porte de substância entorpecente traz à tona o que foi evidenciado no presente trabalho: para o juízo de valor do que é ou não insignificante, mister se faz a análise da periculosidade social da ação. Acertadamente, o julgador não reconhece o princípio da insignificância, pois, ainda que presentes os demais requisitos objetivos, a periculosidade é incontestável: a rigor, trata-se de crime de perigo abstrato; além disso, em certa medida, o consumo de entorpecentes promove o financiamento do narcotráfico, que traz prejuízos relevantes para a sociedade como um todo, merecendo a tutela do direito penal. A jurisprudência recebe como pacificado o tema sobre drogas, não reconhecendo a insignificância, que é afastada de pronto quando se verifica a periculosidade da conduta. Neste sentido, é apropriada a exposição do Ministro Luiz Fux, no Agravo Regimental 728.688, em que se traz o argumento de que o consumidor é responsável pelos delitos, também, pois é consciente da trajetória da droga: ilícita e marcada por crimes.
“Não há que falar em atipicidade do delito, por haver pouca quantidade da substância entorpecente, já que o crime descrito no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 é de perigo abstrato para a saúde pública por ser capaz de gerar dependência físico-química, […] "Quem consome é tão responsável por crimes quanto quem vende. Ao cheirar uma carreira de cocaína, o nariz do cafungador está cheirando automaticamente uma carreira de mortes, consciente da trajetória do pó. Para chegar ao nariz, a droga passou antes pelas mãos de criminosos. Foi regada a sangue" (citando FILHO, ANTÔNIO GONÇALVES. A PALAVRA NÁUFRAGA – ENSAIOS SOBRE CINEMA. SÃO PAULO: COSAC SC NAIFY, 2001. P. 259-60 – NÃO GRIFADO NO ORIGINAL).”[24]
3.2. VALORAÇÃO DA INSIGNIFICÂNCIA: pequeno valor x pequeno prejuízo
O emprego da insignificância deve observar, ainda, o valor do bem jurídico para a vítima, assim como a ofensividade da conduta para a sociedade. É dizer que o importante para valoração da insignificância não é o valor econômico do bem jurídico, mas a lesão causada, analisando o dano para a vítima e o perigo que a conduta traz para a sociedade, sendo assim, há distinção entre pequeno valor e pequeno prejuízo. Para o furto de uma caixa de leite cuja vítima possui filhos pequenos e é carente, o prejuízo causado não pode ser considerado ínfimo, diferente seria se a vítima fosse um mercado, cujo prejuízo frente ao patrimônio seria mínimo.
Em referência ao juízo de valor produzido em relação à insignificância, verificou-se na jurisprudência que há certa subjetividade pelo intérprete, contudo, esta não afasta a racionalidade da decisão se bem fundamentada: o caso concreto deve mostrar a periculosidade da conduta ou do resultado, bem como o prejuízo causado, revelando-se impossível a não aplicação do princípio. É o que se percebe no Recurso Ordinário em Habeas Corpus 86813: o caso concreto trata de furto de R$ 40,00 de um carro de lanches. Acertadamente, a ministra relatora decide pela não aplicação da insignificância, por analisar não somente a quantificação do valor econômico do bem jurídico, mas o valor do bem para a vítima, ou seja, na circunstância fática, qual foi o real prejuízo causado pela conduta para a vítima. Assim, por tratar-se do fruto de trabalho de uma noite inteira, que seria utilizado para o sustento da vítima, não se pode considerar a lesão inexpressiva. Neste sentido, não se mostra abstruso asseverar, mesmo através de juízo de valor pelo magistrado, que não houve insignificância: a fundamentação abduz qualquer dúvida acerca da afastabilidade da aplicação do princípio. Em seu voto, o ministro Eros Grau elucida a questão:
“12. O juiz, ao aferir se o bem juridicamente protegido é ou não de pequeno valor, há de mensurar a capacidade econômica da vítima. A quantia furtada não pode ser tida, no caso, como de pequeno valor; consubstancia valor necessário ao suprimento das necessidades básicas da vítima.” (HC 96.813-9, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 31/03/2009).[25]
Situação oposta ocorre no HC 84412-0: o caso trata-se de furto de fitas de vídeo-game, avaliadas no valor de R$ 25,00, cujo autor era um jovem de 19 anos, à época dos fatos. Novamente, deve ser analisado o caso em concreto, além do valor material do bem. No relatório, o ministro Celso de Mello, relator do julgado, observa que uma testemunha relatou que o autor teria subtraído o bem com o intuito de devolvê-lo, e, ademais, a vítima teria a intenção de retirar a queixa, o que não ocorreu pelo caráter indisponível da ação penal.
“EMENTA: Princípio da insignificância – identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal – consequente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material – delito de furto – condenação imposta a jovem desempregado, com apenas 19 anos de idade – “Res furtiva no valor de R$ 25,00 (equivalente a 9,61% do salário mínimo atualmente em vigor) – doutrina – considerações em torno da jurisprudência do STF – pedido deferido. […] O direito penal não seve se ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não umportar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.” (HC 84.412-0, Relator(a): Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004).[26]
Portanto, pode-se aduzir que, em seu juízo de valor, corretamente, o magistrado não considerou apenas o pequeno valor do bem, mas ao analisar o contexto do caso concreto, observou o prejuízo, pois a lesão provocada pelo autor revela-se ínfima, de tal sorte que não seria necessária a intervenção penal, o que soaria desproporcional. Assim, apesar da decisão adversa apresentada em ambos os casos, o raciocínio dos juristas foi análogo: para a aplicação da insignificância deve ser observado, antes do valor econômico, o grau de lesividade provocado pela conduta.
3.2.1. ESTELIONATO: o estelionato privilegiado afasta o princípio da insignificância?
Em relação à valoração do pequeno prejuízo e pequeno valor, pode-se remeter ao estelionato privilegiado, situação em que se obtém vantagem ilícita, que causa prejuízo alheio, mediante indução ou manutenção de alguém em erro; em que, sendo o réu primário, e o prejuízo de pequeno valor, o juiz tem a possibilidade de substituir a pena de reclusão por detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente pena de multa (art. 171,§ 2, CP). Neste caso, ficou convencionado pela jurisprudência, como pequeno valor o que é igual ou inferior ao salário mínimo. Neste sentido, pode-se questionar a aplicabilidade do princípio da insignificância, posto que o dispositivo trata de pequeno prejuízo, afastando-se sua aplicação.
Entendemos que não há óbice para a aplicação do princípio da insignificância nos casos de estelionato privilegiado, contudo, há que se analisar o prejuízo causado pela conduta: é considerado insignificante aquele que é mínimo, ou seja, mesmo que encontre-se dentro do que é estipulado como pequeno valor, é possível que ocorram circunstâncias em que, por ser tão diminuto, mesmo que seja inferior ao salário mínimo, não deve ser analisado como causador de prejuízo de pequeno valor, tendo em vista que o prejuízo causado foi ínfimo. Deve-se perceber aqui, a distinção entre prejuízo pequeno e ínfimo: o primeiro, aduz-se que trata de valor inferior ao salário mínimo; o segundo, pode ser entendido como quase inexistente. Ainda assim, como mencionado no item anterior, devem ser levadas em consideração as condições da vítima: o que se analisa não é apenas o valor econômico, mas o prejuízo gerado para o paciente. Destarte, quanto ao resultado, desde que seja ínfimo, não há que se falar no afastamento da insignificância.
Por outro lado, é preciso analisar a conduta, que igualmente deve ser insignificante. Embora haja a premeditação para a prática do estelionato, não configura motivo para considerá-lo mais gravoso: é que nem sempre o fato de raciocinar antes torna a conduta mais reprovável, pois delitos mais gravosos poderiam ter sido cometidos, não fosse o uso da razão. Pode-se considerar analogamente o homicídio, em que a premeditação não é qualificadora, mas apenas é levada em conta para fins de determinação da pena, conforme o art. 59,CP. Há, igualmente, que se analisar se a conduta é reiterada, afim de considerá-la cumulativamente, como um único delito, o que agravaria sua reprovabilidade, por tratar de crime continuado, quando não pode-se insurgir a insignificância. Portanto, novamente, nada obsta a aplicação da insignificância em casos de estelionato, desde que seja considerado insignificante, que seja possível a distinção de que não é pequeno, mas mínimo, quase inexistente.
Na jurisprudência, pode-se verificar que a maior parte das decisões indefere o uso da insignificância. Tal ocorrência, pode se dever ao fato que, provavelmente, é pequena a quantidade de estelionatos em que o prejuízo seja insignificante, levando-se em conta que a intenção do agente, o empenho, é para obter vantagem e tal trabalho não seria tomado para obter um valor insignificante. Pode-se tomar por base o HC 100937, caso de estelionato cujo réu havia obtido vantagem ilícita no montante de R$ 125,97, em que o Relator Min. Joaquim Barbosa, concedeu a ordem, por considerar, que a lesão patrimonial foi inexpressiva e o grau da conduta reduzido.
“EMENTA : Habeas Corpus. Estelionato. Lesão patrimonial de valor insignificante. Incidência do princípio da insignificância. Atipicidade da conduta. Precedentes. Ordem concedida. Constatada a irrelevância penal do ato tido por delituoso, principalmente em decorrência da inexpressividade da lesão patrimonial e do reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, é de se reconhecer a atipicidade da conduta praticada ante a aplicação do princípio da insignificância. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal. Incidência dos princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. Precedentes. Ordem concedida para o reconhecimento da atipicidade da conduta.” (HC 100937, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 07/12/2010, DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-03 PP-00550 RB v. 23, n. 568, 2011, p. 40-42)[27]
Portanto, vale dizer que não se exclui de plano a insignificância para os casos de estelionato, conquanto o prejuízo seja de valor ínfimo, é aplicável o princípio, do contrário, se o prejuízo é de pequeno valor, aplica-se o estelionato privilegiado.
3.3. REQUISITOS DE APLICABILIDADE PELO STF
A jurisprudência tem reconhecido em diversos julgados o princípio da insignificância, conforme o caso amolde-se nos seguintes requisitos objetivos:
1. Conduta minimamente ofensiva do agente;
2. Ausência de risco social da ação;
3.Reduzido grau de reprovabilidade do comportamento;
4. Inexpressividade da lesão jurídica.
Há o reconhecimento de critérios subjetivos que descaracterizam a insignificância do delito: réu reincidente e a habitualidade (ou reiteração) na conduta.
4. APLICAÇÃO DE ELEMENTOS SUBJETIVOS
4.1. CRITÉRIOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS
O uso de critérios subjetivos no princípio da insignificância remete à críticas e dissenso doutrinário: alguns autores concordam com a descaracterização do crime bagatelar em caso de reincidência do réu ou reiteração da conduta; outros, discordam da aplicação de critérios subjetivos, referentes ao sujeito do acusado, tendo em vista a insignificância tratar-se de uma excludente da tipicidade, não cabendo a análise dos requisitos subjetivos apresentados pelo STF, conquanto referem-se à culpabilidade do agente.
Pode-se dizer que dentre os critérios objetivos estão a ofensividade da ação, ou do resultado ou de ambos. Admite-se que há um juízo de valor na aferição desta ofensividade, contudo, é fundamentada em critérios objetivos: o que é valorado é a conduta, se causa ou não grave prejuízo, seja por não haver desvalor da conduta ou do resultado.
Através desta reflexão, percebe-se a necessidade dogmática de se aclarar que, quaisquer que sejam os juízos de valor no caso do princípio da insignificância, estes devem recair sobre a conduta e o resultado, pois sendo um princípio excludente da tipicidade, permite apenas a análise do fato típico e, portanto, da conduta e do resultado. Não é coerente justificar a descaracterização da infração bagatelar própria através da análise do sujeito que a pratica: é punir o sujeito e não a conduta, punir por quem se é e não pelo que se praticou.
Neste tópico, buscou-se fundamentar tal posição, que considera dúbia a interpretação praticada pelos tribunais brasileiros ao referir critério subjetivo na valoração da insignificância penal.
4.2. DISTINÇÃO ENTRE INSIGNIFICÂNCIA E IRRELEVÂNCIA PENAL
Como aludido no item 2.3, há uma distinção entre a infração bagatelar própria e imprópria. Tal preceito é importante para o entendimento de que o princípio da insignificância e a irrelevância tratam-se de princípios distintos, cuja aplicação deve ser feita corretamente: não cabe aplicar os requisitos de um princípio para o outro. A confusão entre ambos tem gerado a aplicação obscura por parte dos tribunais, que deixam de aplicar a insignificância, fundamentando tal decisão pelo uso de requisitos estritos da irrelevância penal. Neste tópico, serão apresentados, resumidamente, a distinção entre os princípios, os requisitos e os efeitos de ambos os princípios.
O princípio da insignificância trata-se de excludente da tipicidade penal, através da análise da conduta e do resultado, que, quando gerar lesão ínfima, deve ser afastada. A insignificância tem por requisito não haver relevante desvalor da conduta ou do resultado, caracterizando-se por uma infração bagatelar própria, que é insignificante para o direito penal. Por analisar o injusto penal, é um princípio regido pela teoria do delito, afastando a tipicidade, exclui o delito. A análise da insignificância deve prever critérios objetivos: apenas são examinados os critérios objetivos da conduta e do resultado: se provocam grave ofensa ao bem jurídico. O STF apresenta requisitos para seu reconhecimento, que versam os critérios objetivos mencionados: conduta minimamente ofensiva do agente, ausência de risco social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica.
O princípio da irrelevância penal, por sua vez, analisa a culpabilidade, através do exame da necessidade da punição penal. A irrelevância penal tem por requisito o desvalor da conduta e do resultado, e posterior constatação da desnecessidade de aplicação da pena, caracterizando uma infração bagatelar imprópria. Por analisar a necessidade da pena, utilizando os critérios da culpabilidade, é um princípio regido pela teoria da pena, deixando de aplicar a sanção penal. Não há o amplo reconhecimento da jurisprudência sobre o princípio, quiçá ser este o motivo da aplicação confusa de seus requisitos aos casos em que se analisa a insignificância. A irrelevância penal presume a análise da desproporção entre o prejuízo causado pela conduta e a punição, vale dizer, se a ofensividade da ação merece punição, ou se a punição é proporcional ao dano causado. Assim, para a irrelevância cabem os critérios subjetivos previstos no artigo 59 do Código Penal (culpabilidade, antecedentes, personalidade do agente, motivos, etc), pois o delito está configurado, o que se analisa é se a aplicação da pena é indispensável.
Do mesmo modo que os conceitos e requisitos de aplicabilidade dos princípios são diversos, assim os efeitos decorrentes de sua aplicação também o são. A aplicação do princípio da insignificância enseja a absolvição, a não aceitação da ação ou o arquivamento desta. De outro lado, para a irrelevância o processo é aberto, sendo reconhecida a irrelevância no momento da aplicação da pena, escusando sua aplicação. Novamente à luz das palavras de GOMES, que distingue claramente a diferença dos efeitos da aplicação de ambos princípios:
“O primeiro (insignificância) conduz inevitavelmente ao arquivamento das investigações preliminares, porque se trata de fato atípico (falta tipicidade material) (caso não haja arquivamento, cabe ao juiz absolver o réu sumariamente, nos termos do art. 397, II, do CPP); o segundo (da irrelevância penal do fato) implica a abertura e desenvolvimento do processo (porque o fato não é bagatelar em princípio, há desvalor da ação e desvalor do resultado), podendo o juiz, no final, no momento da aplicação da pena, dispensá-la fundamentadamente (tendo por base o disposto no art. 59 do CP) porque se tornou desnecessária.”[28]
Destarte, apresenta-se relevante diferença entre ambos os princípios: o objeto analisado não é o mesmo. Embora ambos tenham por objeto infrações bagatelares, é clara a diferença entre a própria, regida pelo princípio da insignificância; e a imprópria, regida pelo princípio da irrelevância. Enquanto aquela exclui o delito, esta afasta a necessidade de punir. Enquanto aquela é supralegal e avalia a tipicidade e se vale apenas de critérios objetivos, esta é legal e avalia a culpabilidade, valendo-se de critérios subjetivos do réu. Enquanto uma deve absolver, arquivar ou não aceitar a ação; a outra enseja o rito processual, até o momento da aplicação da pena, quando excluirá a necessidade de aplicação. Não há que se utilizar os critérios de uma para outra: se configura uma incoerência absurda, que resulta em aplicação (ou falta de) arbitrária ou injustificada e que promove injustiças, não atendendo as funções da pena, nem ao objetivo do direito penal: sendo o direito penal a última razão a se recorrer, nos casos mais graves, por que punir penalmente alguém por uma conduta irrisória? Ou, ainda, por que deixar de aplicar o princípio da insignificância a alguém que praticou conduta cuja ofensa foi tão ínfima fundamentando-se apenas no passado do acusado? Merece maior atenção a diferença de tais princípios, para que não se aplique equivocadamente os preceitos de um para outro, de modo que não se insurja de injustos efeitos decorrentes de tal confusão: para casos de infração bagatelar própria, que se analise sob os requisitos da insignificância; para casos de infração bagatelar imprópria, que se utilize os critérios da irrelevância penal.
Na análise da reincidência na conduta insignificante é necessário distinguir a conduta isolada de réu reincidente, conduta reincidente cumulativa e a reiteração na conduta isoladamente, pois estas devem ter tratamento diferente.
Para o réu possuidor de antecedentes criminais, que pratica uma infração bagatelar própria, aplica-se o princípio da insignificância: não cabe a análise do critério subjetivo, atinente ao sujeito, que possui antecedentes criminais. Reconhecendo a insignificância de sua ação ou do resultado provocado, afasta-se a tipicidade penal do fato. Assim, não há motivos racionais para a aplicação de critérios referentes à culpabilidade do agente, pois o delito foi afastado. É o caso de um furto de pequena monta, praticado por sujeito que já fora condenado por outro crime. Não reconhecer o princípio, fundamentando a decisão com base nos antecedentes do réu, seria punir o agente pelo que ele é, e não pela conduta desviada. Nesta esteira, elucida Zaffaroni:
“Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o direito penal de autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma "forma de ser" do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso, seria a personalidade e não o ato. Dentro desta concepção não se condena tanto o furto, como o "ser ladrão", não se condena tanto o homicídio como o ser homicida, o estupro, como o ser delinquente sexual etc.”[29]
Apresentar-se-ão, a seguir, dois casos julgados adversamente: no primeiro, o pedido de habeas corpus foi indeferido; no segundo, foi concedido. Para ambas as decisões, foi utilizado o mesmo argumento: a reincidência do réu: é que a jurisprudência, hoje, apresenta duas correntes, as quais uma adota a afastabilidade da insignificância quando o réu for reincidente; a outra, adota a insignificância mesmo que de réu reincidente, observando apenas o caráter objetivo da conduta.
“Habeas corpus. Penal. Furto qualificado. Artigo 155, § 4º, inciso IV, do Código Penal. Alegada incidência do postulado da insignificância penal. Inaplicabilidade. Pacientes reincidentes em práticas delituosas. Precedentes. Ordem denegada. 1. Embora seja reduzida a expressividade financeira do bem subtraído (um aparelho celular no valor de R$ 50,00), entendo não ser possível acatar a tese de irrelevância material da conduta por eles praticadas, tendo em vista ambos serem reincidentes em delitos contra o patrimônio. 2. Segundo a jurisprudência desta Corte, “o reconhecimento da insignificância material da conduta increpada ao paciente serviria muito mais como um deletério incentivo ao cometimento de novos delitos do que propriamente uma injustificada mobilização do Poder Judiciário” (HC nº 96.202/RS, Primeira Turma, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 28/5/10). 3. Essas circunstâncias inibem a aplicabilidade do postulado da insignificância ao caso concreto. 4. Ordem denegada”. (HC 117.615, Relator(a): Min. Dias Tofoli, Primeira Turma, julgado em 01/10/2013).[30]
No HC 117.615, tratando de um furto qualificado de um celular, avaliado em R$ 50,00, o magistrado decidiu afastar a insignificância, não obstante o valor reduzido do bem e a inexpressividade da lesão: deliberou que o fato dos réus possuírem antecedentes é um argumento mais forte do que a insignificância deste caso. O ministro relata, ainda, conhecer os precedentes da Corte que sustentam que a insignificância deva ser aferida através de critérios objetivos, mas assevera adotar o entendimento da ministra Cármen Lúcia:
“o princípio da insignificância não pode ser acolhido para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto”.[31]
Diante do acima relatado, é imprescindível observar que, conforme o entendimento apresentado no tópico 4, para valoração da insignificância, devem ser utilizados os critérios objetivos que ponderem a presença de desvalor da conduta ou do resultado no caso concreto. No julgado, o magistrado reconhece a inexpressividade do resultado oriundo da ação, contudo, faz uma confusão entre os princípios da insignificância e da irrelevância penal. Ao utilizar critérios subjetivos, relativos ao sujeito do autor, o ministro deixa de avaliar a conduta ou o resultado provocado pelo réu, atinentes à tipicidade do fato, e passa a analisar a sua culpabilidade, apresentando argumentos referentes aos seus antecedentes. Resulta tal ação em uma aplicação contraditória e incoerente do direito: se o magistrado demonstra aferir como inexpressiva a lesão, por que analisar os elementos da culpabilidade? Sendo o resultado jurídico ínfimo, não há que falar em elementos subjetivos, pois deixa de configurar-se o crime, pela revogação da tipicidade material. Novamente, observa-se a diferença entre insignificância e irrelevância penal: como exposto no tópico 4.2, a insignificância deve ser aplicada aos casos em que não há relevante desvalor da conduta ou do resultado, sendo avaliados os elementos objetivos; de outro lado, a irrelevância penal reflete os casos em que há desvalor na ação e no resultado, mas no momento da aplicação da pena, entende-se que esta é desproporcional. Neste sentido, o julgado ficou prejudicado, pois foram utilizados elementos da irrelevância penal a um caso claro de insignificância, reconhecida a falta de desvalor no resultado pelo ministro relator. Ainda, em referência à citação do relator à fala da ministra Cármen Lúcia, que refere a utilização dos elementos subjetivos, em caso de reincidência, proporcionar o justo do caso concreto, pergunta-se, ao caso em questão, ser justo restringir o direito à liberdade aos autores, em virtude de um furto de bem avaliado em R$ 50,00, apenas pelo fato de possuírem antecedentes criminais? Reporta-se absurdo o argumento utilizado, tendo em vista o caráter subsidiário do direito, além de refletir um punitivismo exacerbado: deixa-se de lado a conduta, tomando por mais importante quem é o sujeito delinquente, punindo-se pelo que é e não pelo que fez. Destarte, compreende-se que, para considerar a fundamentação do presente julgado coerente, para que fossem considerados os elementos subjetivos, o magistrado deveria considerar que há desvalor no resultado, ou seja, que a vítima sofreu grave lesão ao bem jurídico patrimônio, pelo furto de R$ 50,00, ou ainda, que a conduta dos acusados interfira relevantemente na ordem pública, de tal sorte que, se não forem punidos, instaurar-se-ia uma desordem social, considerando o caráter preventivo da pena. Contudo, não se verificam tais considerações no caso concreto, de tal forma que não apresentou-se argumento suficiente para deixar de aplicar o princípio da insignificância: a conduta é desvalorada, mas o resultado jurídico não apresenta relevante desvalor, pois não representa ofensa grave ao patrimônio.
Em juízo oposto ao caso ilustrado acima, deferiu-se o pedido de habeas corpus, aceitando-se a tese da insignificância no relato que se segue:
“Ementa: Habeas corpus. 2. Ato infracional análogo ao crime de furto tentado. Bem de pequeno valor (R$ 80,00). Mínimo grau de lesividade da conduta. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. 4. Reincidência. Irrelevância de considerações de ordem subjetiva. 5. Ordem concedida.” (HC 112.400, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 22/05/2012).[32]
Neste julgado, argumentou-se pela prevalência dos critérios objetivos quando da análise da insignificância. O caso versa sobre a tentativa de furto de uma niqueleira na qual haviam, aproximadamente R$ 80,00, praticada por usuário de crack que possuía antecedentes criminais. O ministro relator observou a presença dos elementos objetivos para aplicação do princípio da insignificância, e asseverou sua posição de que, o efeito da sua aplicação é a exclusão da tipicidade, sendo equivocado não aplicá-lo somente pela reincidência do agente. Consoante é o entendimento de que a aplicação neste julgado reflete melhor os requisitos de incidência do princípio da insignificância, pois analisar os elementos subjetivos, além de ser incoerente por valorar aspectos da culpabilidade, quando o desvalor da ação ou do resultado afastam a tipicidade penal, inexistindo o crime, e, portanto, não há que se imputar algo a alguém quando o delito foi afastado, seria como “punir o agente por uma conduta atípica, devido a sua culpabilidade”. Ademais, pode-se considerar, ainda, a dupla punição, tendo em vista que os critérios que levam à condenação são os anteriormente punidos, ou seja, os antecedentes criminais. Cabe ressaltar, ainda, a manifestação do douto ministro em seu voto:
“Dessarte, insta asseverar, ainda, que, para chegar à tipicidade material, há que se pôr em prática juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que lhe será imposta como consequência da intervenção penal do Estado. […] Levando-se em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente ser reincidente. […] para a incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, o fato em si, e não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultrapassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato.”
Assim, conclui-se que para a correta aplicação da insignificância, há de se observar tão somente o desvalor da ação ou do resultado, sempre valorando, no caso concreto, quanto ao prejuízo provocado ao bem jurídico da vítima, assim como à ordem social. É imperioso não confundir insignificância com irrelevância penal, o que têm refletido em aplicação injusta do direito pelos tribunais, assim como uma intervenção exacerbada do Estado, punindo condutas insignificantes. Não há, portanto, argumentos fortes o suficiente para afastar a insignificância somente em face aos antecedentes do agente.
De outro lado, encontram-se ações que, isoladamente, seriam insignificantes, mas consideradas cumulativamente, são elevadas ao grau de relevantes para o direito penal. Nesta hipótese, não há que se aplicar a insignificância, pois há desvalor no resultado, ou na ação, estando a situação amparada pelo direito penal, pois há relevante lesão ao bem jurídico. É o que se dá ao agente que, reiteradamente, furta bens de pequeno valor de uma mercearia: se analisado isoladamente, seria insignificante, mas examinado o conjunto, reporta-se relevante para o direito penal, merecendo sua tutela e, consequente punição do delito. Neste sentido, pode-se verificar justamente o julgado do ministro Gilmar Mendes, que tem apresentado posição favorável à aplicação da insignificância, mesmo em casos cujo agente possui antecedentes criminais. É que, novamente, tal magistrado nos parece razoável em sua fundamentação, utilizando os critérios enunciados anteriormente.
“EMENTA: Habeas corpus. 2. Furto a estabelecimentos comerciais de forma sucessiva. Bens de pequeno valor não avaliados. 3. Ausência de um dos vetores considerados para aplicação do princípio da insignificância: o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento. 4. Maior desvalor da conduta aliado à personalidade do agente, voltada ao cometimento de delitos patrimoniais (reincidência específica). 5. Ordem denegada.” (HC 118.400, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 2208/10/2013). [33]
O caso em tela versa sobre conduta cumulativa reincidente, ou seja, o agente furta estabelecimentos comerciais de forma que repete a conduta diversas vezes. Assim, há que se verificar o grau de reprovabilidade da conduta, pois ao analisar um furto, isoladamente, não há desvalor, contudo, pela reincidência específica, não se pode aplicar a insignificância devido à reprovabilidade da ação, que merece a tutela do direito penal. Conforme se aduz do relatório, o agente foi preso em flagrante, após ingressar em quatro estabelecimentos comerciais, no mesmo dia, furtando “8 escovas de dentes (da marca Colgate), 2 termômetros digitais, 6 pares de meias, 1 protetor eletrônico, 1 kit de soquetes (contendo 40 peças), 6 cuecas, 2 pistolas de cola plástica, 22 CD de jogos piratas e 1 boné”. Na circunstância concreta, não há como refutar a reprovabilidade da conduta: revela-se diferente dos casos acima, em que havia apenas a falta de desvalor no resultado e o antecedente criminal; no caso em tela, há o desvalor da conduta, pois o agente furta reincidentemente, impondo a análise cumulativa de sua ação, o que a caracteriza como significante ao direito penal. É o que elucida em seu voto, o ministro relator:
“[…] levando em conta as circunstâncias peculiares do caso concreto, entendo que um dos vetores enumerados acima não se encontra presente: o reduzido grau de reprovabilidade da conduta. Bem analisados os autos, não há como não chegar à conclusão de que o comportamento do paciente é reprovável, merecendo pronta atuação do direito penal. Ademais a circunstância do caso, ou seja, a continuidade delitiva, também indica a incompatibilidade com o princípio da insignificância.”
Destarte, trata-se de caso diverso dos anteriores, merecendo a intervenção estatal, devido à reprovabilidade da ação, considerando sua relevância ao analisar cumulativamente a sua reincidência. Aqui, apesar de analisar a reincidência, estão presentes os elementos objetivos da conduta e não o sujeito do agente.
Há, ainda, o caso em que o agente pratica condutas insignificantes reiteradas, porém, independentes entre si. Neste caso, há a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, contudo, é uma situação em que há espaço maior para a subjetividade do aplicador do direito. Acredita-se que, nestes casos, devam ter primazia prima-facie, os critérios objetivos de análise da insignificância: depende principalmente do grau de ofensividade da conduta, sua periculosidade. Não se pode, a título de prevenir a reincidência, aplicar a pena a uma conduta que gera prejuízo ínfimo. Nesta esteira, caso a conduta ou o resultado sejam relevantemente ofensivos, descarta-se a sua insignificância, contudo, analisada a periculosidade da ação e não os antecedentes do acusado, ou sua personalidade, critérios subjetivos que apenas devem ser aplicados no exame de sua culpabilidade.
Deste modo, observa-se que, para a aferição da aplicabilidade do princípio da insignificância em casos de reiteração da conduta ou de agente reincidente criminalmente, o que deve ter prevalência no juízo de valor da insignificância da conduta ou do resultado são os critérios objetivos: se a conduta é ofensiva, o grau desta ofensividade deve ser materialmente relevante. Não se deve rejeitar de plano o princípio simplesmente porque o réu possui antecedentes criminais ou é reincidente na conduta insignificante: é preciso apurar se esta conduta, isolada ou cumulativamente, produz um prejuízo significativo a ponto de se justificar a intervenção penal. Por exemplo, não parece razoável a pena privativa de liberdade a um agente que praticou, certa feita, um furto de uma caixa de leite e, posteriormente, reincidiu na infração bagatelar por furtar um quilo de arroz de uma mercearia: é desproporcional aplicar uma sanção à conduta que gerou prejuízo insignificante, ainda que tenha o agente reiterado na conduta. Há a necessidade de ponderação: a interferência da aplicação da pena, portanto o direito de punir do Estado, no direito à liberdade do agente é elevada. De outro lado, a conduta do agente causa interferência de grau ínfimo no direito ao patrimônio tutelado à vítima. Considerando o princípio da proporcionalidade de Alexy, quanto maior o grau de interferência na realização de um direito, maior deve ser a importância do outro; assim, não é proporcional privar a liberdade de alguém, em virtude de ofensa mínima ao patrimônio de outrém.
No decorrer da pesquisa, restou claro que não cabe a utilização de critérios subjetivos para a incidência da insignificância, o que deve ser analisado são os elementos objetivos: a ofensividade da conduta ou do resultado praticado. Assim, infere-se que o uso de meios subjetivos caracteriza uma confusão hermenêutica, frente ao princípio da irrelevância penal, para o qual há o emprego de critérios relativos ao agente, pois sua valoração se dá no momento da aplicação da pena. De outro lado, ao utilizar elementos da culpabilidade, antes de verificada a tipicidade penal, se abarca em uma arbitrariedade que não tem sido suficientemente fundamentada nas decisões judiciais: não há clara resposta do motivo da punição de um delito que revela-se atípico, pela falta de desvalor da conduta ou do resultado. Não se pode utilizar o direito penal para resolução de todos os conflitos da sociedade: a sua valoração deve ser proporcional, pois o bem jurídico que se coloca à disposição, qual seja, a liberdade, é deveras importante para sofrer tamanha interferência em seu direito frente a uma ação que não gerou grave lesão à bem jurídico de terceiro, como referencia o famoso brocado “não se deve usar balas de canhão para matar passarinhos”. Destarte, o aplicador do direito deve trazer a norma à realidade, não a aplicando mecanicamente, porém, sem transgredir ao que se espera do direito penal: a pretensão de correção não pode, sob prisma punitivista, ir além do texto da norma, analisando a personalidade do agente na aferição da punição: punir o agente é um regresso ao direito penal do autor.
Acadêmica de Direito pela Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Técnica em Contabilidade pelo Instituto Federal do RS. Servidora Pública Federal pela UFRGS
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