1. Introdução – finalidades da pena
A aplicação da pena ao criminoso tem vários objetivos, dentre os quais destacam-se a retribuição e a prevenção. Pela retribuição, o mal causado pelo criminoso retorna a ele, como uma maneira de afirmação da validade da norma jurídica. Porém, considera-se que a pena deve ter alguma utilidade para a sociedade e também para o criminoso.
Por isso, a maior parte dos doutrinadores justifica a pena de acordo com um critério preventivo. Assim, pune-se para evitar o cometimento de novos crimes. A punição dos criminosos é uma mensagem a todos os potenciais delinqüentes de que há conseqüências desagradáveis pelos crimes. Essa é a chamada prevenção geral, que, para funcionar adequadamente, deve haver a certeza ou, pelo menos, uma grande probabilidade de que o criminoso seja punido. A questão aqui é mais administrativa do que judicial, ou seja, a certeza da punição depende essencialmente do trabalho da polícia. É só se ver o caso do Rio de Janeiro, em que apenas 6% dos homicídios são solucionados. Não é preciso somente que a pena seja certa ou altamente provável. É necessário, também, que ela seja proporcional à gravidade do crime. Uma pena desproporcionalmente pequena para um crime grave equivale, de certa maneira, à impunidade. Exemplo disso é o crime de abuso de autoridade, previsto na Lei 4.898/65, cuja pena é de ínfimos 10 dias a 6 meses de reclusão. A possibilidade de alguém ser preso por isso é quase nula. O modo como será cumprida a pena também tem influência nisso: um regime muito brando para um crime grave praticamente equivale à impunidade. Por outro lado, uma pena demasiadamente grande para um fato não tão grave deturpa a hierarquia de valores que deve existir no sistema penal. Poderia tornar-se indiferente para a pessoa a prática de um crime mais ou menos grave, pois a pena seria a mesma. Exemplo: para a injúria qualificada pelo preconceito, prevista no art. 140, § 3°, é cominada a pena de reclusão de 1 a 3 anos, e multa. Essa pena é mais rigorosa que a do homicídio culposo (art. 121, § 3°) – detenção de 1 a 3 anos – e a do auto-aborto (art. 124) – também detenção de 1 a 3 anos. Logicamente, é um absurdo considerar que a vida de alguém (bem lesado no homicídio e no auto-aborto) é menos valiosa que a honra de determinadas categorias de pessoas (bem lesado na injúria qualificada pelo preconceito).
A finalidade preventiva da pena também refere-se ao próprio condenado. É a chamada “prevenção especial”, ou seja, pune-se para que o criminoso não volte a cometer crimes.
Pode-se impedir o criminoso de cometer crimes de duas maneiras: primeiramente, pela ressocialização, ou seja, depois de cumprida a pena, o criminoso, tendo “aprendido a lição” ou “se reeducado”, voltaria à sociedade como um “cidadão ordeiro”. Boas condições penitenciárias, como espaço adequado, provimento de serviços de saúde, de educação, acompanhamento psicológico, trabalho adequado, etc., podem contribuir para que boa parte da população carcerária consiga conduzir-se por uma vida honesta depois de saírem da prisão. O problema são os criminosos de carreira e aqueles com problemas psiquiátricos, como psicopatia. Para estes, dificilmente, haverá perspectiva de ressocialização. Na maioria dos casos, a única prevenção possível é a pura e simples segregação, ou seja, o criminoso com alto índice de periculosidade só deixará de cometer crimes se estiver totalmente separado da sociedade, inclusive dos outros presos. Aí está o sentido do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que se restringe aos condenados extremamente perigosos.
2. Regimes de cumprimento da pena
Levando esses fatores em conta, o Código Penal determina que a pena de prisão (reclusão ou detenção) pode ser cumprida em três regimes: fechado (em penitenciária); semi-aberto (em colônia agrícola ou industrial); e aberto (em casa de albergado). O regime inicial de cumprimento da pena varia de acordo com o número de anos de reclusão a que o criminoso é condenado (CP, art. 33, § 2°) e com o seu grau de periculosidade, verificado discricionariamente pelo juiz.
Ressalte-se que o Brasil adotou uma das várias possibilidades existentes no mundo, ou seja, ainda não há o mínimo consenso sobre essa divisão de regimes. Em vários países altamente democráticos, como Estados Unidos, França e Suíça, simplesmente não existe essa divisão de regimes. Assim, todos os condenados teriam que cumprir a pena de prisão na penitenciária, havendo apenas o que nós chamamos de “regime fechado”.
O livramento condicional é um período no qual o condenado cumpre, em liberdade, determinadas condições, previstas no art. 132 da Lei de Execução Penal (LEP). Exemplos: obter ocupação lícita e informá-la ao juiz e não freqüentar determinados lugares. Caso essas condições sejam descumpridas, o condenado deve retornar à prisão para cumprir o restante da pena.
3. Progressão de regimes
De acordo com o Código Penal e a LEP, a pena do condenado deve ser aplicada de forma progressiva, ou seja, o condenado que obedecer aos requisitos legais poderá passar de um regime mais rigoroso para outro menos rigoroso (do fechado para o semi-aberto e deste para o aberto). Os requisitos são dois: um objetivo e outro subjetivo.
O requisito objetivo consiste no cumprimento de determinada parcela da pena no regime anterior para possibilitar a progressão. Regra geral: é necessário o cumprimento de um sexto da pena (LEP, art. 112). No caso de crime hediondo ou equiparado, o condenado primário deve cumprir dois quintos da pena, enquanto que o reincidente deve cumprir três quintos (Lei 8.072/90, art. 2°, § 2°, com a redação dada pela Lei 11.464/2007).
O requisito subjetivo diz respeito ao mérito do condenado, ou seja, à sua capacidade de se adequar a um regime menos rigoroso. Na redação original do art. 112 da LEP, eram necessários o exame criminológico e o parecer da Comissão Técnica de Classificação para a progressão de regime. A decisão do juiz não estava vinculada a eles, mas era, com grande freqüência, baseada na palavra dos especialistas. Porém, como poucos estabelecimentos prisionais contavam com corpo técnico adequado, a análise do candidato à progressão era feita de maneira bastante precária. Por isso, a Lei 10.792/2003 aboliu esses requisitos, exigindo apenas bom comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento. Alguns juízes ainda requerem o exame criminológico, mas o entendimento predominante na jurisprudência é de que, agora, apenas pode-se exigir o atestado de bom comportamento.
Depois de cumpridos todos esses regimes, o condenado pode obter o livramento condicional, desde que estejam preenchidos os requisitos legais (CP, art. 83). Objetivamente, é necessário o cumprimento de um terço da pena para primários, e o cumprimento da metade, para reincidentes em crimes dolosos. Para os crimes hediondos e equiparados, o livramento condicional é obtido depois de cumpridos dois terços da pena.
4. Problemas na disciplina da progressão de regime e possíveis soluções
4.1 A questão do prazo de cumprimento da pena em cada regime
A regra atual determina que deve ser cumprido um sexto da pena para que seja possível a progressão de regime. Assim, um condenado a 30 anos de reclusão no regime fechado precisa de 5 anos para progredir ao regime semi-aberto. Com relação à progressão do regime semi-aberto para o aberto, há duas correntes na doutrina: a primeira diz que deve ser considerado todo o tempo de pena determinado na sentença. Assim, no exemplo citado, o condenado cumpriria mais 5 anos no regime semi-aberto. A segunda corrente entende que deve ser considerado, para o cálculo, o tempo restante da pena. Assim, o condenado mencionado no exemplo cumpriria um sexto de 25 anos no regime semi-aberto, ou seja, quatro anos e dois meses. Sugestão: para evitar esse tipo de interpretação, inserir na lei a expressão “pena imposta na sentença ou no acórdão”.
Além da progressão de regime, é importante ressaltar que o condenado tem direito à remissão, ou seja, a cada três dias trabalhados, é descontado um dia de pena (LEP, art. 126).
Considerando os dois institutos (progressão de regime e remição), o tempo de pena efetivamente cumprido em penitenciária torna-se desproporcionalmente pequeno, quando comparado à pena total aplicada na sentença.
A esse respeito, vide a lição de Mirabete (2007, p. 417):
“Em interessante e muito bem elaborado trabalho, Maurício Kuehne demonstra a extrema liberalidade da lei quanto ao regime de penas. Explica que um condenado a qualquer pena de reclusão superior a 4 (quatro anos), poderá cumprir a reprimenda, computando-se o tempo remido pelo trabalho, na seguinte proporção, por regimes: em fechado, 16,66%; em semi-aberto, 13,89%; em aberto, 69,45%. Considerando-se que, no regime aberto, em virtude da falta de estabelecimentos adequados, e, no livramento condicional, por falta de fiscalização, não há, na realidade, execução da pena, o condenado cumprirá somente 30,58% da pena aplicada, o que demonstra a falência do direito repressivo a função nula da pena como elemento de prevenção.” (grifou-se)
Esse percentual é uma das causas do descrédito do sistema penitenciário, pois, em quase todos os casos concretos, a pena imposta na sentença torna-se simplesmente um mito. Sua função de prevenção geral dos crimes torna-se bem enfraquecida quando a pena efetivamente aplicada é bem menor do que aquela imposta na sentença.
Para se ter noção da benevolência de nossa legislação, é interessante realizar a comparação entre o Brasil e alguns países desenvolvidos em relação à pena máxima aplicada ao crime de homicídio premeditado (aquele anteriormente planejado). Ressalte-se que aqui a pena máxima a ser cumprida é de 30 anos, mesmo que a sentença condenatória preveja pena bem maior (CP, art. 75). Assim, temos: no Reino Unido, prisão perpétua (sem dados quanto à progressão de pena); no Canadá, prisão perpétua (progressão de pena para regimes mais brandos somente após 25 anos de cadeia); nos Estados Unidos, prisão perpétua ou pena de morte, dependendo do estado (no caso de prisão perpétua, usualmente não há progressão da pena); na Alemanha, prisão perpétua (possibilidade de progressão de pena após 15 anos de reclusão – em alguns casos o juiz pode determinar que não haja progressão); na Suíça, prisão perpétua (sem dados quanto à progressão de pena); na Holanda, prisão perpétua (sem dados quanto à progressão de pena); na Finlândia, prisão perpétua (revisão judicial de todos os casos após 12 anos de reclusão, com possibilidade de progressão de pena ou perdão presidencial a partir desse momento); em Israel, prisão perpétua (a pena pode ser comutada após 30 anos de prisão). Ressalte-se: não se trata de países ditatoriais e periféricos. Pelo contrário, são países desenvolvidos e com longa tradição de respeito aos direitos humanos. Seus índices de criminalidade são substancialmente menores que os nossos. Em todos eles, a pena máxima é superior à prevista no Brasil. Em todos eles, a progressão de regime, quando há, requer um tempo bem mais dilatado que no Brasil.
Nesse sentido, sugere-se a fixação de prazos mais dilatados para a progressão de regime. Assim, a fração da pena a ser cumprida em cada regime deve ser maior que um sexto para se reforçar o efeito dissuasório da pena. A determinação dessa fração é decisão relativamente arbitrária e de conveniência política. A título de recomendação, poder-se-ia fixar o prazo de cada regime em um quarto da pena. Assim, somente após cumprido um quarto da pena no regime fechado, seria possível a progressão ao regime semi-aberto; cumprida metade da pena nesses regimes, seria possível a progressão ao regime aberto; e, por fim, cumpridos três quartos da pena, seria possível a livramento condicional. No caso de criminosos reincidentes, torna-se necessário regime mais rigoroso, por apresentarem maior periculosidade. Nessas situações, a progressão só poderia ocorrer depois de cumprido um terço da pena no regime anterior e sem direito ao livramento condicional.
4.2 A questão do mérito do condenado para a progressão de regime
A alteração promovida no art. 112 da LEP pela Lei 10.792/2003 foi especialmente infeliz. Bom comportamento não é, nem longinquamente, um critério seguro para se aferir a capacidade do condenado para progredir de regime. Uma pessoa pode adequar-se à realidade do cárcere apenas para conseguir determinados benefícios. De modo algum, pode ser afirmado que ela se comportará de maneira adequada no regime mais brando.
Extinguir-se a exigibilidade de exame criminológico pelo motivo de que era feito de maneira precária é tão absurdo quanto se querer extinguir o Sistema Único de Saúde (SUS) porque o atendimento à população é precário. A solução, nesse caso, é mais do que legal, é administrativa: além de prever novamente o exame na lei, é necessário fortalecê-lo, integrando em cada estabelecimento penitenciário um corpo de especialistas (psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, etc.) em número suficiente para fazê-lo. Atualmente, os exames de personalidade atingiram um grau de precisão muito grande. É possível a realizar de prognósticos bastante confiáveis a respeito da periculosidade do condenado. Ressalte-se que esses exames já são usados há tempos em determinados concursos públicos. Além do mais, a jurisprudência já se pronunciou no sentido de que sua utilização é lícita, bastando haver critérios objetivos que permitam ao concursado exercer seu direito à ampla defesa.
Caso que requer atenção especial é o do psicopata. Esse distúrbio de personalidade faz com que o indivíduo pratique os crimes sem sentir emoção alguma, como remorso, culpa ou vergonha. Trata-se da categoria mais perigosa de criminosos, sendo que as pesquisas indicam que cerca de 20% dos internos no sistema penitenciário são portadores de alguma forma de psicopatia. Para eles, a psiquiatria moderna ainda não descobriu a cura. É altamente recomendável que cumpram a pena integralmente no regime fechado, sem direito a livramento condicional.
Alguns fatores objetivos podem ser agregados ao mérito: por exemplo, a freqüência a trabalho e a estudo, se forem disponibilizados pela instituição carcerária. Estando presentes esses dois fatores, a chance de o egresso do sistema prisional ingressar no mercado de trabalho aumenta drasticamente. Para que isso seja efetivo, são indispensáveis medidas administrativas que possibilitem o acesso do preso ao trabalho e ao estudo.
5. Conclusão
O Brasil sofre com o fenômeno do “laxismo penal”, que é a “tendência a propor a) solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta ou b) punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do condenado, tudo sob o pretexto de que, vítima do fatalismo sócio-econômico, o delinqüente sujeita-se, quando muito, a uma reprimenda simbólica” (Dip e Moraes Jr, 2002).
Ora, o delinqüente, como qualquer ser humano, mesmo influenciado por incontáveis fatores, mantém seu livre-arbítrio, e deve ser responsabilizado proporcionalmente ao dano causado por seu crime. Proporcionalidade é a palavra-chave nesse campo. Deve-se punir o criminoso na estrita medida necessária para a proteção dos bens essenciais à sociedade, como vida, liberdade e propriedade. Nem mais, nem menos. O excesso de proteção transforma-se em arbítrio do Estado contra o indivíduo, enquanto a insuficiência de proteção deixa a sociedade à mercê dos criminosos. Temos de encontrar o meio termo entre esses dois extremos, e a baliza para isso pode muito bem ser encontradas nas experiências bem-sucedidas ao redor do mundo.
Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista
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