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Projeto de Lei n.º 6.804/2002: Casuísmo x Direito Penal e Processual Penal

Sumário: 1. Introdução; 2. O Projeto de Lei que define,
para fins processuais, “o crime político”; 3. Conclusão.

1. Introdução

Na precisa e sempre atual lição de Hart[1]:
“Poucas questões respeitantes à sociedade humana têm sido postas com tanta
persistência e têm obtido respostas, por parte de pensadores sérios, de formas
tão numerosas, variadas, estranhas e até paradoxais como a questão: ‘O que é o
direito?’”.

Evidentemente os limites do presente
trabalho não nos permitem discorrer sobre o tema filosoficamente, e também não
é o desejo estabelecer um conceito ou apresentar uma resposta à secular
inquietação.

Conforme asseverou Gilissen[2],
a história do direito visa fazer compreender como é que o direito atual
se formulou e desenvolveu, bem como de que maneira evoluiu no decurso dos
séculos.

Impressiona e entristece, ver o que
se tem feito com o Direito no Brasil, notadamente com o Direito Penal e
Processual Penal, hoje a mercê do casuísmo e da reinante/dominante ausência de
técnica legislativa. Sua história, pautada por grandes nomes, permeada de
grandes juristas, hoje se vê à deriva, sem perspectivas, lançada em um pântano,
desnorteada, verdadeiramente desorientada.

É certo, e tenho sustentado desde
outros escritos[3], que o
Direito Penal brasileiro[4]
carece de orientação filosófica e cultural. Não segue exatamente qualquer tendência penal, nenhum modelo em
prática no Velho ou no Novo Continente. Não estrutura suas formulações sobre as
bases de uma determinada Escola Penal, enveredando ora pelo caminho do Direito
Penal de intervenção mínima, ora por orientações ditadas pelo modelo de Lei e
Ordem, e na grande maioria das vezes por um terceiro gênero, fruto exclusivo de
sua ausência de capacitação técnica.

Se a questão relacionada à ausência
de uma filosofia penal já é por demais preocupante, há um problema ainda maior
e que pode levar, como de fato tem levado ao caos, o Direito Penal brasileiro.[5]

Sem dúvida, o que mais nos preocupa
no momento é a legislação casuísta.

2. O Projeto
de Lei que define, para fins processuais, “o crime político”

É certo que levando em conta os
acontecimentos do cotidiano; o surgimento e o avanço de novas técnicas das
ciências modernas, que nos levam a questionamentos éticos e jurídicos os mais
variados, notadamente no campo do biodireito e da informática; o crime
organizado em escala mundial; as recentes manipulações contábeis no macrocosmo
da economia globalizada; a legislação penal deve atualizar-se o quanto
possível.

Todavia, na mesma, ou em maior
proporção, o legislador deve procurar a boa técnica (na verdade a melhor
técnica) e também abandonar as proposições decorrentes de certos e determinados casos.

O legislador precisa se convencer de
que a Lei deve ser a expressão da vontade do Povo, da vontade Geral. Deve
atender às necessidades e aos anseios da coletividade, do corpo social. Deve
saber, ainda, que não legisla para si ou para seus pares tão-somente, e que a
Lei deve integrar, harmonicamente, o
Sistema a que se destina.

A produção legislativa da última
década tem sido caótica, catastrófica no mais das vezes, como é exemplo mais
recente a Lei n.º 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos)[6],
que até agora permanece inalterada por falta de pulso e conhecimento dos que
foram eleitos para representar “os interesses do Povo”, na “tal” democracia representativa,
quando o Projeto que a ela deu origem nem deveria ter vingado.

Como marco inicial, entretanto, da
“nova era dos equívocos e casuísmos” tivemos a Lei 8.072/90, a denominada Lei
dos Crimes Hediondos, que além de ser fonte de infindáveis recursos a todas as
Instâncias Judiciais Superiores, mercê de suas impropriedades técnicas, não
contemplou em seu rol o crime de homicídio qualificado.

Com o seu advento, estupro, atentado
violento ao pudor e outros crimes, conforme especificados em seu primeiro
artigo, passaram a receber o tratamento legal decorrente da hediondez (não
concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança; regime integralmente
fechado etc).

Somente após o homicídio qualificado
de que fora vítima uma atriz contratada por conhecida emissora de televisão é
que tal crime passou a ser considerado hediondo, em decorrência da Lei
8.930/94.

Nem se pense que nossa posição é
contrária à inclusão de tal crime no rol dos hediondos. A crítica refere-se ao
casuísmo, pois antes de tal homicídio, várias centenas de outros homicídios
ainda mais graves ocorreram em todos os cantos do país, sem que tal despertasse
a preocupação do legislador penal brasileiro.

De lá para cá a prática casuísta não
se modificou, e poderíamos citar outros tantos exemplos. Todavia, apontaremos o
caminhar recente do Congresso Nacional dentro do tema em comento, com apenas um
outro exemplo, que se refere à pretendida definição, para fins processuais, de
crime político.

Recebendo o Informativo IBCCrim n.º
47, do dia 16 de agosto de 2002, encontramos referência ao Projeto de Lei n.º
6.804/2002, “que define, para fins processuais, o crime político como crime
hediondo cuja vítima seja detentora de mandato eletivo ou integrante de órgão
nacional de direção partidária”.

Nele encontramos a seguinte
justificação, que transcrevemos em parte: “Episódios recentes, como os
ocorridos com Toninho do PT e com Celso Daniel, Prefeitos respectivamente dos
municípios paulistas de Campinas e de Santo André, deixaram claro que o crime
hediondo cometido contra um detentor de mandato eletivo possui forte
repercussão política. Seja porque a opinião pública entenda assim, seja porque
acaba mesmo refletindo no ambiente político local, estadual ou federal. Ou
seja, diretamente influi na ‘democracia construída pelo voto’”.

Data
vênia
da Douta opinião esposada
pelo Ilustre proponente do Projeto, as razões invocadas não se prestam a
definir crime político; não há razão
justificadora (de direito) para a definição de crime político para fins processuais, e também a
definição apresentada, conforme o art. 1º do Projeto, não fora moldada com a
técnica que se espera do Órgão Legiferante, pois, como se vê na proposta
legislativa: “Art. 1.º – Para fins processuais, é crime político o crime hediondo cuja vítima seja detentora de
mandato eletivo ou integrante de órgão nacional de direção partidária”
(negritei).

Acolhida a visão do Nobre
Legislador, o que me parece não vá ser a visão da maioria da população que
refletir sobre o assunto, ou pelo menos dos Juristas; a partir de então, se uma
Ilustre Senhora “detentora de mandato eletivo ou integrante de órgão nacional
de direção partidária” for estuprada, o crime será sempre político, para fins
processuais.

Se um Ilustre Senhor “detentor de
mandato eletivo ou integrante de órgão nacional de direção partidária” for
vítima de crime de atentado violento ao pudor, o crime será sempre político,
para fins processuais.

Há razão jurídica para tal
definição?

Se para o legislador for considerado
crime político “o crime hediondo
cuja vítima seja detentora de mandato eletivo ou integrante de órgão nacional
de direção partidária” (negritei), é forçoso concluir que no rol da definição
se encontrará todo e qualquer crime hediondo, dentre eles, por assim dizer, os
acima citados.

A notoriedade dada pela imprensa aos
fatos citados na justificação do Projeto não justifica a definição pretendida,
ou, do contrário, será preciso definir crimes
contra publicitários
, crimes contra
empresários
(embora sem previsão constitucional), com o casuísmo dispensado,
considerando a veiculação constante de casos de seqüestros como o de conhecido
publicitário paulista e de tantos outros empresários, casos que inquietaram e
inquietam todos os dias, de igual maneira, a sempre atenta e preocupada opinião
pública.

Acrescente-se que o autor do Projeto
menciona em sua justificação a ausência de definição legal sobre o que venha a
ser “crime político”,[7]
e mesmo sem enfrentar o problema busca definir, isoladamente, para fins processuais, “o crime
político”.

Se convertido em lei dito Projeto,
além da desnecessária e inoportuna previsão (que também é equivocada
juridicamente), é bem possível que no futuro, havendo uma outra lei definindo
“crime político”, teremos discrepâncias as mais variadas, a ponto de um crime
ser considerado político para fins
processuais
sem ser, na essência, crime
político
.

Quer nos parecer que a Legislação
penal (e processual penal) não pode continuar a trilhar o fúnebre caminho em
que se encontra.

Por certo tal proposição legislativa
não está por merecer outras linhas ou letras de reflexão.

3. Conclusão

Se depender do legislador
brasileiro, ficará cada vez mais difícil definir
o que é o Direito
.

E a história do Direito?

Bem! Diria o político: esta é uma outra história.


Notas:

[1] HART,
Herbert L.A., O conceito de Direito. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª
ed., Tradução de A. Ribeiro Mendes, 1944, p. 5.

[2] GILISSEN,
John, Introdução histórica ao Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed.,
Tradução de A. M. Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros, 2001, p. 13.

[3]
MARCÃO, Renato Flávio, e MARCON, Bruno. Direito Penal brasileiro: do idealismo
normativo à realidade prática. RT 781/484-96.

[4] E também o
processual penal

[5] Idem.

[6]
MARCÃO, Renato Flávio. Outras Considerações sobre a nova legislação antitóxicos
(Lei 10.409/2002 e Projeto 6.108/2002), RT 800/500; MARCÃO, Renato Flávio. Legislação
Antitóxicos – Novos problemas iminentes (Projeto de Lei 6.108/2002, que altera
a Lei 10.409/2002).
Disponível na internet:
http://www.ibccrim.org.br,
03.05.2002; www.mp.sp.gov.br; www.direitopenal.adv.br; www.saraivajur.com.br; www.jurídica.com.br; www.jusnavigandi.com.br; www.direitonet.com.br; www.emporiodosaber.com.br; www.bpdir.adv.br; www.suigeneris.pro.br; www.apoena.adv.br; ww.teiajuridica.com.br.

[7] Consta,
ainda, da justificação: “Entretanto, não há lei que defina o que é crime
político
”.


Informações Sobre o Autor

Renato Flávio Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).


Equipe Âmbito Jurídico

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