Prova ilícita. Sua utilização é sacramentada pela súmula do CSRF


A regra geral é a proibição de utilizar a prova ilícita como se depreende do inciso LVI, do art. 5º, da CF:


São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.


O CPC, por sua vez, prescreve em seu art. 332:


“Todos os meios legais, bem como moralmente legítimos, ainda que não especificados neste código são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.


Freqüentemente o fisco vem utilizando provas ilícitas para constituição do crédito tributário, notadamente, do imposto de renda das pessoas físicas, a pretexto de omissão de receita tributável constatada pelo exame das movimentações financeiras junto às instituições bancárias.


Antes do exame dessa questão convém distinguir prova ilícita da prova ilegítima, conforme doutrina vigorante. A distinção entre uma e outra residiria no momento de obtenção da prova.


Ilícita seria a prova obtida externamente ao processo com violação de normas constitucionais ou legais, ou seja, aquela que viola norma de natureza material. A prova ilegítima, a seu turno, seria aquela que conflita com normas de caráter processual. Diz respeito a sua colheita no processo. É o caso, por exemplo, de depoimento colhido de determinada pessoa a respeito de situações fáticas que envolvam sigilo profissional.


Parece que essa distinção – violação de lei material e violação de lei processual – não se sustenta a partir do advento da Lei nº 11.690/2008 que deu nova redação ao art. 157 do CPP:


“São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.


Como se vê, o texto não distingue a norma material da norma processual.


O certo é que as provas ilícitas ou ilegítimas não devem ser admitidas sob pena de nulidade.


Agora, já podemos examinar a matéria objeto deste estudo.


A controvérsia gira em torno da utilização dos dados bancários para fiscalização de tributos pela Receita Federal do Brasil.


Tendo em vista a extinção da CPMF, a partir de 1º/12/2008, a RFB baixou a IN nº 802, de 27/11/2007, obrigando as instituições financeiras a prestar informações semestrais acerca das movimentações financeiras dos correntistas que ultrapassarem o montante de R$ 5 mil reais para as pessoas físicas e R$ 10 mil reais para as pessoas jurídicas.


Essa IN que não tem amparo legal, é nula de pleno direito por implicar quebra do sigilo bancário. Ainda que se entenda que o sigilo bancário, fundamentado no direito à privacidade (intimidade e vida privada) de que cuida o inciso X, do art. 5º, da CF, não é absoluto e nem está sob o princípio de reserva de jurisdição, a determinação contida na indigitada IN desatende aos termos da LC nº 105/2001. O art. 6º dessa Lei Complementar condiciona a quebra do sigilo bancário à existência prévia de processo administrativo instaurado, ou procedimento fiscal em curso. E mais, é preciso que a juízo da autoridade administrativa competente seja reputada indispensável o exame de dados bancários.


Pende de julgamento pelo STF as Adins ns. 2.390, 2.386, 2.397, 2.406 e 2.389 que impugnam os dispositivos da LC nº 105/2001 que permitem a quebra do sigilo bancário pela autoridade administrativa, sem intermediação do Judiciário.


Até o presente momento a posição da jurisprudência, tanto do STJ, como do STF é contrária à tese da quebra do sigilo bancário por autoridade administrativa, inclusive, por membros do Ministério Público. No RE nº 261.278-AgR/PR de que foi Relator o Min. Carlos Velloso ficou consignado o seguinte:


“Se se nega ao Ministério Público, instituição de maior respeitabilidade, quebrar, sem interferência da autoridade judiciária, o sigilo bancário de alguém, o que dizer-se quando quem deseja efetivar essa quebra é a autoridade administrativa?”


Na eventualidade de a Corte Suprema alterar seu entendimento acerca da matéria, por coerência, há de admitir a quebra do sigilo bancário, também, pelo órgão ministerial revogando a jurisprudência firmada no bojo do RE nº 215.301/CE, Rel. Min. Carlos Velloso.


Outra questão interessante é a que diz respeito à novidade trazida pela Lei nº 10.174/2001 que facultou à RFB a utilização de dados bancários concernentes à CPMF para instauração de procedimento administrativo fiscal e conseqüente constituição do crédito tributário, observado o disposto no art. 42 da Lei nº 9.430/96:


“Art. 42 Caracterizam-se também omissão de receita ou de rendimento os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações”.


Pois bem, com base nessa Lei de nº 10.174/2001 a RFB vem utilizando as informações bancárias relativas à extinta CPMF para apurar crédito tributário do imposto de renda das pessoas físicas dos exercícios anteriores ao ano de 2001.


Ora, antes da Lei nº 10.174/2001 vigorava a redação original do § 3º, do art. 11, da Lei nº 9.311/96, que instituiu a CPMF nos seguintes termos:


“§ 3º A Secretária da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua utilização para constituição do crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos”.


Resulta com lapidar clareza que o texto legal proíbe a utilização de dados da CPMF para fiscalizar e constituir crédito tributário que não seja a própria CPMF.


Entretanto, submetida essa questão ao crivo do Judiciário, em sede de habeas corpus, foi proclamada a possibilidade de retroação de Lei nº 10.174/2001, fundada na sua natureza procedimental, a viabilizar aplicação imediata para alcançar fatos pretéritos, conforme se depreende da Ementa abaixo:


“EMENTA PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PLEITO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE. LEGALIDADE DAS PROVAS OBTIDAS COM A UTILIZAÇÃO DE DADOS DA CPMF DO ANO DE 1998. RETROAÇÃO DA LEI 10.174/01, QUE ALTEROU O § 3º DO ART. 11 DA LEI 9.311/96. NORMA MERAMENTE PROCEDIMENTAL. APLICAÇÃO IMEDIATA. ALCANCE DE FATOS PRETÉRITOS. ORDEM DENEGADA. 1. É possível a retroação da Lei 10.174/01, que alterou o § 3º do art. 11 da Lei 9.311/96, para englobar fatos geradores ocorridos em momento anterior à sua vigência. 2. Conforme entendimento do STJ, referido dispositivo legal tem natureza procedimental; portanto, com aplicação imediata, e passível de alcançar fatos pretéritos. 3. Assim, não há constrangimento ilegal na investigação da suposta prática, no ano de 1998, de crime contra a ordem tributária, pois decorrente de atividade legalmente autorizada à fiscalização tributária; logo, lícita a prova produzida. 4. Ordem denegada”. (HC nº 31448/SC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 01/07/2007, p. 301).

Ora, aplicação imediata não significa aplicação retroativa. É a primeira observação que se faz. Ao depois, não se trata de aplicação de novo critério de apuração ou processo de fiscalização ampliando os poderes administrativos, o que teria pleno amparo no § 1º, do art. 144 do CTN.


Trata-se, isto sim, de utilização de prova ilícita, porque proibida pela legislação então vigente. A lei peremptoriamente vedou a utilização de dados da CPMF para fiscalizar e lançar outros tributos (impostos ou contribuições sociais) que não seja a própria CPMF.


No caso do HC nº 31.448/SC o v. acórdão violou o art. 157 do CPP que não admite provas obtidas em violação de normas constitucionais e legais.


Como a legalidade das provas tem matriz constitucional no art. 5º, LVI, da CF a prova ilícita ou ilegítima não poderá ser utilizada em qualquer processo judicial ou administrativo, nem em procedimento fiscal.


É verdade que o princípio inserto no inciso LVI, do art. 5º, da CF não é absoluto. Aliás, nenhum direito é absoluto.


Esse princípio deve ceder ante o exame de cada caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade. Não se deve, por exemplo, determinar o desentranhamento de uma prova suficiente para inocentar determinado acusado, sob alegação de que a prova foi obtida com violação de preceito legal. É que essa prova ilícita deve ser sopesada com o princípio da liberdade dos indivíduos. Cabe ao juiz decidir à luz do princípio da proporcionalidade se deve condenar um inocente determinando o desentranhamento da prova, ou se deve absolvê-lo mediante utilização de prova obtida ilicitamente.


No caso de utilização de dados bancários com efeito retroativo não há que se falar em sua flexibilização à luz do princípio da proporcionalidade para fortalecer o poder fiscalizatório. A retroação, se admitida, deve ser apenas aquela benéfica à luz do art. 5º, XL, da CF.


Outrossim, em relação à pessoa física, não obrigada a manter escrituração de sua movimentação bancária, impossível se torna ao respectivo correntista explicar ao fisco cada um dos lançamentos de crédito e débito em sua conta corrente depois de passados vários anos. A questão é simples e até intuitiva. É só colocar-se na situação de alguém obrigado a esclarecer a origem e o destino de valores lançados em sua conta corrente nos últimos cinco anos. Tenho a convicção que nenhum agente do fisco seria capaz de detalhar a origem e o destino de suas movimentações financeiras ao longo dos cinco últimos anos.


Entretanto, animados pela jurisprudência do STJ o Pleno do CSRF, com base na Portaria nº 69, de 15-7-2009, do CARF editou na data de ontem, por 17 votos contra 8 uma súmula dispondo sobre a possibilidade de utilização das informações bancárias dos contribuintes obtidas durante todo o período de vigência da CPMF.


Ora, isso equivale à anulação com efeito retroativo da eficácia daquele § 3º, do art. 11, da Lei nº 9.311/96 que proibia a utilização de dados da CPMF para fiscalizar outros tributos. Isso viola os mais elementares princípios de direito. Nem o legislador poderia fazer isso sem afrontar a regra geral de direito levada à categoria de direito fundamental protegido por cláusula pétrea (art. 5º, XXXVI, da CF).


Concluindo, a utilização de dados da CPMF com efeito retroativo, não só é ilegal por ferir o § 3º, do art. 11, da Lei nº 9.311/1996 então vigente, como também é de manifesta inconstitucionalidade em face do inciso XL, do art. 5º, da CF. Sua utilização no processo cível fere o art. 332 do CPC, ao passo que, sua utilização no processo criminal fere o art. 157 do CPP.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


Equipe Âmbito Jurídico

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