Recentíssimos episódios divulgados às escâncaras pela imprensa brasileira dão a dimensão exata de fenômeno que angustia extremamente qualquer intérprete preservador de uma dose qualquer de equilíbrio psíquico. Na verdade, separando-se tais acidentes comunitários, podem ser identificadas duas vertentes: de um lado, a maneira pela qual os organismos repressores vêm tratando a criminalidade organizada; de outra parte, o comportamento da Justiça na interpretação e contenção de extravagâncias praticadas pelo sistema no cumprimento das atribuições de manutenção da regularidade da convivência do indivíduo e de grupos diversos, ligando-se uns e outros pelos denominados interesses do cidadão ou das próprias comunidades.
Dizem as duas alternativas com a distribuição dos poderes, porque se a repressão é estruturada sobre o Poder Executivo, seus limites, além de serem estabelecidos em lei, são fiscalizados pelo Poder Judiciário. Explique-se, para bom entendimento, que entre os órgãos encarregados da denominada persecução penal, se agasalha, além da Polícia Judiciária, o próprio Ministério Público, porque essa nobre Instituição não pode ficar perdida no espaço, voejando entre a tripartição de poderes como se fosse um ser anômalo e autônomo, na medida, inclusive, em que, mesmo no mundo do Direito, não há geração espontânea.
A introdução não é arbitrária. Relaciona-se, evidentemente, com episódios que extrapolam em muito a estabilidade que deve existir entre a denominada persecução penal e seus reguladores, nisto despontando, porque é evidente, aqueles que, na expressão rotineiramente usada, dizem o Direito.
Bem fixados, instrumentalmente, os parâmetros, analise-se a preocupante conjuntura que entrelaça a criminalidade organizada, a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário, todos eles ligados intimamente, embora pareça paradoxal o casamento entre os juízes e o delinqüente. Desgraçadamente assim é, pois o relacionamento humano, nas projeções sociais, não se faz sem tais condimentos. Paradoxalmente, uns precisam dos outros para sobrevivência, na medida em que, não havendo perseguição, o crime fica indescoberto e, inexistindo sentença, inexiste punição. É, de certa forma, um bailado em que anjos e demônios se abraçam, instabilizando-se às vezes uns e outros, com vantagens eventuais para os primeiros e os últimos. Sigam exemplos com a cultura instalada, marginalmente, em favelas como a “Rocinha”, cuja população, não inferior a 800.000 criaturas, vive atrelada ao comércio de drogas proibidas. Ali, segundo consta, as regras comunitárias eram e são ditadas por um poder subjacente que sobrevive, num contágio sofisticado, cobrando forças do próprio entrechoque com o sistema instituído lá fora.
Com outro enfoque, mas dizendo respeito, já agora, à própria atividade da repressão, exemplifique-se a lenta destruição, imposta, coonestada e secundada pelo próprio Poder Judiciário, da efígie representada até pouco tempo atrás pelo juiz João Carlos da Rocha Matos, antes togado e hoje exposto algemado, em frangalhos éticos, sob os holofotes de uma única rede de televisão. Aqui, é a própria Justiça que, enquanto destrói a dignidade de um filho pródigo, se escarmenta também, rasgando o traje negro que deveria proteger toda a família. Psicanaliticamente, enquanto pensa, com isso, demonstrar a severidade na dicção do Direito, o juiz que não proíbe tal exposição exibe ao mundo o retrato da própria fragilidade de seu poder, porque não consegue – ou não quer – dizer o Direito com a discrição e o respeito exigidos de ato tão sublime. Ao permitir que um magistrado – delinqüente ou não, pouco importa – seja desnudado perante a nação, pulsos trancados nas correntes aviltantes, o Poder Judiciário dá uma triste demonstração de não ter potência suficiente para a proteção do próprio símbolo que o mantém vivo. Numa espécie de autofagia, avilta-se, enquanto admite, em relação ao magistrado trânsfuga, uma conduta que refoge dos mínimos padrões atinentes ao respeito devido ao ser humano.
Pior do que isso, não se encontra, na magistratura, uma só voz a afirmar que tal comportamento deve ser reprimido, não só por se tratar de um juiz, mas porque a exposição crua seria proibida, mesmo em se tratando de um carroceiro, de um mendigo, de um serviçal enfim. De outra parte, e ainda dentro do teor das mesmas reflexões, aqueles que mantêm uma certa porção de estabilidade na interpretação da adequação entre a norma e o fato têm o estômago revirado ao verem um cadáver sendo transportado num carrinho de mão por um policial orgulhoso do que fez, um defunto com os pés calejados, antes escória sim, enquanto vivo, mas agora venerado como se fosse o “zumbi” de um quilombo que só pode ser vencido com o traslado de cultura, saúde, carinho, e, enfim, de dedicação plena das próprias autoridades que pretendem destruir aquela porção escura plantada no meio de um ilha protegida, em tese, pelo Cristo Redentor. Resta, de tudo isso, a sensação da inutilidade do repúdio, do grito de horror, da própria demonstração da multiplicação dos efeitos do episódio sado-masoquista.
Em suma, o bandido mata e é morto, o juiz finge dizer o Direito enquanto vê, abertamente, seu próprio estatuto denegrido, a polícia carrega o “Lulu” como se fosse o resto de detrito de um lamaçal e o Ministério Público, de sua parte, se compraz em assistir ao bota-fora do magistrado que, ainda não condenado, já o foi duplamente: primeiro foi torturado, porque o envergonhamento é uma forma de mutilação espiritual; depois, é movimentado de um lado a outro, como se fora um esquálido boneco de pano, um espantalho reduzido à expressão fantasmagórica da simbologia da própria toga. No meio de tudo, a imprensa de refestela, impondo medo à Magistratura, ao Ministério Público, à Polícia e, quiçá, àqueles que representam o outro lado da contradição, voltados à defesa, sim, mas sem voz, até agora, no apontamento da enorme ferida produzida nas garantias constitucionais. Que coisa horrível!
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.
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