Sumário. 1 Introdução. 2 Quesitação do fato principal. 3 O elemento subjetivo da
ação no fato principal. 4 Quesitos sobre as teses da defesa. 5 Do excesso
culposo nas excludentes de ilicitude. 6 Prorrogação da
competência do Conselho de Sentença. 7 Conclusões
Muito
embora o tema relativo à formulação dos quesitos utilizados para os julgamentos
no Tribunal do Júri seja bastante complexo e importante, não mereceu do
legislador maior atenção. O Código de Processo Penal em vigor dedicou ao
assunto apenas um artigo, o de número 484. Diante da grandiosidade do tema e
das repercussões que os quesitos provocam no resultado dos julgamentos é
forçoso reconhecer que a deficiência legislativa contribui de maneira
significativa para o elevado número de anulações, em segundo grau de
jurisdição, das decisões proferidas em julgamentos procedidos pelo Tribunal do Júri.1
Como
se sabe, os quesitos são perguntas escritas, formuladas sobre o fato criminoso
e as circunstâncias essenciais ao julgamento, por meio das quais os jurados
decidem a causa.2
Determina o inc. VI do art. 484 do CPP que os quesitos devem ser formulados em
proposições simples e bem distintos, de maneira que cada um deles possa ser
respondido com suficiente clareza. Com essas orientações, parece que o trabalho
de formulação e apresentação dos quesitos ao Conselho de Sentença não apresenta
maiores dificuldades. No entanto, não é isso que acontece e os erros de quesitação constituem o principal motivo para a reforma das
decisões do Júri. Para melhor entender as dificuldades existentes no atual
sistema de julgamento pelo Tribunal do Júri é necessário considerar as
premissas que devem orientar a formulação dos quesitos a serem submetidos ao
Conselho de Sentença.
Em
primeiro lugar, cabe perceber que a resposta aos quesitos é a única forma de
expressão dos jurados. O jurado somente poderá responder o que lhe for
perguntado e a forma como se elabora a pergunta não pode inviabilizar opções de
respostas. É claro que as respostas possíveis são
apenas sim e não, mas a ausência de uma indagação necessária
inviabiliza a plena manifestação do jurado.
Como
o Tribunal do Júri é composto por jurados leigos, as indagações devem ser
formuladas unicamente sobre matéria de fato, não podendo conter expressões ou
termos cuja compreensão exija conhecimentos jurídicos. Reconhecidos no caso
concreto os elementos fáticos necessários ao acolhimento das teses defendidas
pelas partes, caberá ao juiz-presidente determinar as
conseqüência jurídicas pertinentes. Essa regra, a primeira vista, não
traz maiores dificuldades. Entretanto, como o art. 484 não traz disposição
expressa nesse sentido, não raro são formulados quesitos relativos à licitude
da conduta do acusado ou sobre a produção culposa do resultado.
Também
é importante notar que a decisão do Conselho de Sentença não está vinculada à
vontade das partes e essa é uma conseqüência natural da soberania dos
veredictos. Assim, mesmo tendo o acusador sustentado hipótese de absolvição,
poderá o Tribunal do Júri condenar. Diante de uma sustentação
que pleiteia condenação por um crime, pode o Tribunal do Júri
condenar por outro, mesmo que a defesa não tenha sustentado a
desclassificação. Caso contrário, haveria um simulacro
de julgamento, onde agentes não legitimados estariam decidindo a lide penal
mediante restrições às manifestações que retratam o entendimento dos jurados.
Por
fim, a quesitação somente deve submeter aos jurados
questões de sua competência, ou seja, relativas aos crimes dolosos contra a
vida e os que lhe forem conexos. Esta regra está expressa no art. 74 combinado
com o art. 81, ambos do Código de Processo Penal.
Na
prática, as dificuldades da quesitação habitualmente
se verificam em três momentos distintos: na redação do quesito feita pelo juiz‑presidente,
que deve ser suficientemente clara e não englobar dois ou mais aspectos
importantes em uma mesma indagação; na consideração do prejuízo aos quesitos
posteriores, diante das respostas oferecidas aos quesitos anteriores; e, por
fim, na compreensão do jurado aos quesitos formulados. Em decorrência do número
de acusados, dos crimes cometidos e das teses de defesa apresentadas, a quesitação pode se apresentar muito extensa e a
probabilidade de erros na formulação dos quesitos, condução do procedimento, e
compreensão das indagações aumenta consideravelmente, transformando a quesitação numa verdadeira usina de nulidades.
2.
Quesitação do fato principal
Neste contexto, a questão
relativa ao desdobramento dos quesitos deve merecer redobrada atenção dos
operadores do Direito que militam nos Tribunais do Júri. Na legislação
processual em vigor, adotou-se o princípio da complexidade dos quesitos, que
propugna necessária à formulação do questionário a ser apresentado aos jurados
o seu desdobramento por várias indagações. A complexidade do questionário que
reside em seus vários quesitos, na realidade, não significa complexidade do
julgamento, já que os quesitos devem ser formulados em proposições simples e
bem distintos, de maneira que cada um deles possa ser respondido com suficiente
clareza. No entanto, o princípio da simplificação do questionário, que propugna
por uma elaboração com o mínimo possível de quesitos, é defendido por alguns
doutrinadores. Resta saber, se a simplificação do questionário implica na
simplificação do julgamento.
Um
questionário com multiplicidade de quesitos proporciona maior facilidade para o
julgamento justo, na medida em que identifica com mais clareza as diversas
teses sustentadas no Plenário, fazendo com que os jurados se manifestem
especificamente sobre cada uma delas. A maneira como o juiz-presidente desdobra
as idéias em quesitos e a ordem em que os apresenta aos jurados, contudo, tem
sido causa de inúmeras nulidades.
O
art. 484 do CPP, em seu primeiro inciso, dispõe que o primeiro quesito
versará sobre o fato principal, de conformidade com o libelo. Por fato
principal deve entender-se o fato criminoso3, pois a acusação não se refere aos
fatos penalmente irrelevantes, mas apenas a parte principal do fato
criminoso, ou seja à figura típica fundamental.4
A seguir, o segundo
inciso determina que “se entender que alguma circunstância, exposta no libelo,
não tem conexão com o fato ou é dele separável, de maneira que este possa
existir ou subsistir sem ela, o juiz desdobrará o quesito em tantos quantos
forem necessários”.
Pode-se
perceber que o dispositivo legal não foi nada feliz ao esclarecer as hipóteses
que autorizam o desdobramento dos quesitos. É evidente que as circunstâncias
que não tenham conexão com o fato criminoso não devem ser objeto de quesitação e, nesse caso, o dispositivo mais confunde do
que esclarece. Ao se referir à circunstância que é separável do fato principal,
de modo que este (fato principal) possa existir ou subsistir sem ela, o
dispositivo parece indicar a necessidade do desdobramento quando tratar-se de
crime qualificado. Os demais incisos do art. 484, bem como de seu parágrafo
único, não se referem às qualificadoras. Embora a redação do dispositivo
utilize da expressão circunstância, que significa estar ao redor e não
serve para definir o ato que integra como elemento essencial o tipo
qualificado, consagrou-se a prática de que às qualificadoras deve
corresponder quesitos distintos. Fazendo um quesito para o fato descrito no
modelo de comportamento proibido fundamental e outro para cada fato
qualificador, o juiz possibilitará ao Conselho de Sentença decidir se o crime
foi simples ou qualificado e, na última hipótese, quais qualificadoras devem
ser reconhecidas. Embora a questão não seja pacífica5, a doutrina e jurisprudência
majoritária entendem que os quesitos relativos às qualificadoras devem ser
formulados após os quesitos relativos às teses da defesa.6 O art. 484 não se refere
expressamente às qualificadoras e, considerando que o crime qualificado importa
em mudança qualitativa do fato-crime, parece mais correto entender que os
quesitos desdobrados do fato principal devem tratar das qualificadoras. Note-se
que existem qualificadoras no homicídio que dizem respeito ao
meio de execução do fato principal, como o emprego de fogo, asfixia ou
explosivo. Destarte, não é possível desconsiderar que a qualificadora
diz respeito ao próprio fato principal. Por outro lado, importa notar que o
inc. IV do art. 484 do CPP não se refere às qualificadoras, mas sim às
circunstâncias que determinam aumento de pena. A causa de aumento de pena não
pode ser confundida com a qualificadora. Na causa de aumento, o fato-crime é o
mesmo e a circunstância determina modificação da pena a ser aplicada, que
ocorre no terceiro momento da dosimetria da
reprimenda (art. 68 do Código Penal). Na hipótese de crime qualificado, a
essência do fato-crime é outra e, por isso, outra é a cominação de pena que irá
circunscrever a possibilidade de definição da pena-base.
O
desdobramento em quesitos do fato principal é comumente utilizado para
estabelecer o nexo de causalidade existente entre a conduta e o resultado.7
Dessa forma, convencionou-se identificar o primeiro quesito como sendo o
relativo a autoria e materialidade, e, na hipótese de homicídio, a pergunta
diria respeito ao fato de ser o acusado o autor dos golpes que lesionaram a
vítima. Em um segundo quesito, é indagado aos jurados se as lesões produzidas
foram a causa de sua morte. É o quesito relativo ao
nexo causal ou à letalidade das lesões.8 Certamente, reconhecido o primeiro
fato e não reconhecido o segundo, o Conselho de Sentença terá decidido no
sentido de que causa superveniente, por si só, determinou o resultado. Para que
o agente responda por tentativa, nos moldes do art. 13, § 1º, do Código Penal,
é necessário reconhecer no autor a intenção de matar a vítima. Esta sistemática
de desdobramento não está prevista no art. 484 do CPP, pois, a caracterização
do crime de homicídio pressupõe uma unidade que engloba tanto a ação como o
resultado, sendo que ambos estão ligados pelo nexo de causalidade. Não poderão
subsistir isoladamente como fatos puníveis, mas deverão ser indagados em
quesitos distintos. A solução encontrada não encontra previsão legal, mas o
desdobramento dos quesitos atende ao fim prático de não cercear a decisão dos
jurados.
3.
O elemento subjetivo da ação no fato principal
Não
cercear a manifestação dos jurados é preocupação importante, vez que o quesito
é o único meio pelo qual o Conselho de Sentença expressa seu entendimento.
Assim, o juiz-presidente não pode inviabilizar as opções dos jurados quanto ao
exame da causa que lhe é submetida. Entretanto, este é um cuidado que não tem
sido adequadamente observado.
Nesse
sentido, importa perceber a necessidade de se fazer quesitos especialmente
voltados ao o exame do elemento subjetivo do autor.9 Mesmo não tendo a defesa levantado
tese de produção culposa do resultado, os jurados podem entender, e são livres
para tanto, que o agente não obrou com dolo. Não se trata de formular quesitos
sobre a caracterização da culpa stricto sensu, que ordinariamente não é matéria da competência
do Conselho de Sentença, mas em quesitos distintos dos que indagam sobre o
movimento corpóreo e a produção do resultado, perquirir sobre o animus necandi, no
homicídio.
Formulado
após os quesitos relativos a autoria/materialidade e a
letalidade, os quesitos sobre o elemento subjetivo possibilitarão ao Conselho
de Sentença manifestar-se por desclassificação até mesmo não pleiteada nos
debates. Se o Conselho de Sentença reconhecer que o acusado produziu as lesões
corporais que causaram a morte da vítima sem a intenção de produzir esse
resultado e sem assumir o risco de produzi-lo, o julgamento deverá ser
transferido ao juiz-presidente que julgará se o fato caracteriza uma lesão
corporal seguida de morte, havendo o necessário dolo de lesão; um homicídio
culposo ou mesmo um fato penalmente irrelevante, diante da ausência de qualquer
dos requisitos do fato culposo, como a previsibilidade do agente, por exemplo.
No
caso de tentativa os modelos de quesitos estimulam o acerto dos operadores do
Direito, uma vez que tem – se sugerido para ser apresentado logo após o quesito
referente letalidade da conduta um quesito formulado do seguinte modo: assim
agindo, iniciou a execução de crime de homicídio somente não consumado por
circunstâncias alheias à sua vontade?”.10 Tal estímulo é insuficiente para
garantir a plenitude da manifestação dos jurados. É verdade que o fato da
indagação envolver duas questões importantes não traz prejuízos à manifestação
dos jurados, pois no quesito anterior já se indagou sobre o nexo de causalidade
entre a ação e o resultado. Este quesito parece servir para apurar o elemento
subjetivo do agente. No entanto, tal formulação revela pecados graves que não
podem passar despercebido. Inicialmente, cabe notar que indagar ao jurado se o
réu deu início a um crime de homicídio significa que o juiz leigo estará
decidindo sobre uma questão de Direito. Homicídio é conceito técnico que não
deve ser apreciado pelo jurado. O correto é indagar se o réu agiu com a
intenção de matar a vítima. Mas, ainda existe outra impropriedade. A apuração
sobre o elemento subjetivo não pode se realizar num único quesito. É que,
segundo a legislação repressiva nacional, dolo é querer produzir o resultado ou
assumir o risco de que tal resultado se produza. Assim, devem ser formulados
dois quesitos: o primeiro indagando se o réu tinha a intenção de matar a vítima
e o segundo indagando se o réu assumiu o risco de matar a vítima. Reunir as
duas questões em quesito único é igualmente impróprio, pois é possível que as
respostas sim ou não que venham a formar a maioria necessária ao
deslinde da questão pode se formar em atenção a perguntas diferentes.
No
caso de consumação, a situação é muito pior: os modelos de questionário sugerem
para o fato principal quesitar somente se o réu foi o
autor das lesões corporais e se tais lesões foram a
causa da morte. Ora, um questionário que não apresente quesitos específicos
sobre o elemento subjetivo do agente acaba por presumir sua intenção. Se
qualquer jurado entender que o réu foi o autor das lesões que causaram a morte
da vítima, mas que sua conduta não foi dolosa, não terá como manifestar tal
entendimento.
Por
outro lado, vale notar que não é correto formular quesitos sobre a produção
culposa do resultado. Como o Tribunal do Júri é competente apenas para o
julgamento dos crimes dolosos contra a vida e os que lhe são conexos, a
indagação deve restringir-se a existência do dolo.11 Não havendo o elemento subjetivo
caracterizador da competência do Tribunal Popular, conforme o art. 492, § 2º,
do CPP, ao juiz de Direito caberá a análise do fato à luz dos critérios
jurídicos estabelecidos para o julgamento monocrático.12 Assim, não reconhecido o dolo na
conduta do agente, ao juiz caberá julgar o fato e decidir se os critérios
necessários à caracterização do crime culposo se apresentam. Indagar dos
jurados sobre a produção culposa do resultado significa invadir competência
privativa do juiz-presidente e possibilitar a ocorrência de julgamento injusto.
Como única exceção, tem-se as hipóteses de conexão ou continência com um crime
doloso contra a vida. Nos termos do art. 81 do Código de Processo Penal,
julgado um crime doloso contra a vida (com a procedência ou improcedência da
acusação) é possível ao Conselho de Sentença julgar
crimes culposos conexos ao doloso.
Considerando
que os quesitos sobre o fato principal devem ser formulados de conformidade com
o libelo (art. 484, I, do CPP), é conveniente que o quesito sobre o elemento
subjetivo da conduta seja articulado já na oportunidade do libelo.
4.
Quesitos sobre as teses da defesa
Após quesitar
sobre o fato principal e seus desdobramentos, o julgador deve formular quesitos
relativos às teses defensivas. Conforme o art. 484, III, do CPP, “se o réu
apresentar, na sua defesa, ou alegar, nos debates, qualquer
fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou o
desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes, imediatamente
depois dos relativos ao fato principal, inclusive os relativos ao excesso
doloso ou culposo quando reconhecida qualquer excludente de ilicitude”.
A
análise de cada tese defensiva através do desdobramento do questionário em
vários quesitos poderá torná-lo muito extenso, já que é possível a apresentação
de várias teses defensivas, até mesmo conflitantes.13 No entanto, o questionário
constituirá um guia preciso ao trabalho do jurado, uma vez que estabelece os
requisitos fáticos a serem observados para o reconhecimento de cada uma das
teses apresentadas. Também é importante notar que a indagação distinta sobre
cada tese permite perceber a posição do grupo em relação a cada uma das
argumentações.
O
questionário, efetivamente, poderá alcançar uma dimensão que aumente a
possibilidade de erros, já que, conforme o inc. V, do art. 484 do CPP, “se
forem dois ou mais réus, o juiz formulará tantas séries de quesitos quantos
forem eles. Também serão formuladas séries distintas, quando diversos os pontos
de acusação”.
Na
hipótese de vários réus, a separação dos quesitos relativos às suas condutas
possibilita aos jurados a opção da condenação de um e absolvição de outro. No
que diz respeito ao concurso de crimes, de mesma forma, a quesitação
distinta possibilita ao Conselho de Sentença se manifestar no sentido da condenação
em relação a um crime e absolvição em relação aos demais. Conforme Frederico
Marques é de praxe desdobrarem-se os quesitos
sobre a legitima defesa, o estado de necessidade e o erro de fato, embora, a
rigor, prescindível fosse tal desdobramento.14 Diante da imprecisão da norma
jurídica relativa ao desdobramento dos quesitos, a I Conferência dos
Desembargadores, realizada no Rio de Janeiro, em julho de 1943, em sua
conclusão XXXV, aprovada por unanimidade, sugeriu aos juizes de Direito
que a legitima defesa deve ser submetida ao Júri desdobrada em quesitos
contendo os seus elementos constitutivos, inclusive um quesito relativo ao
excesso culposo.15
Seguindo essa linha de raciocínio, a Lei n. 9.113, de 16 de outubro de 1995,
alterou o inc. III do art. 484 do Código de Processo Penal acrescentando
expressa previsão para a quesitação do excesso doloso
ou culposo quando reconhecida qualquer excludente de ilicitude. Entretanto,
fica a dúvida: como quesitar sobre o excesso culposo
se o Conselho de Sentença ordinariamente não possui competência para julgar
crimes culposos?
5.
Do excesso culposo nas excludentes de ilicitude
Não
é correto o entendimento de que o excesso culposo nas excludentes de ilicitude
caracterize um crime doloso, sendo apenado como se fosse culposo por motivos de
política criminal.16
Na verdade, quando o agente excede os limites da justificação por erro
plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que,
se existisse, tornaria a ação legítima. Nesse caso, verifica-se especial
modalidade de erro de tipo que, conforme o art. 20, e seu § 1º, do Código
Penal, exclui o dolo mas permite o reconhecimento da
culpa strictu sensu,
em sendo o erro vencível e o fato tipificado como crime culposo.
Certamente, a lei não considerou de mesma forma a intenção de quem age motivado
pela necessidade de defesa com a intenção de quem pretende ilicitamente atacar
o bem jurídico. Na legislação nacional, apenas essa última intenção recebeu a
qualificação de dolo.
Não
se pode esquecer que a finalidade da ação não se confunde como o dolo. A
vontade finalista que orienta a ação é verificada no sentido natural, sem a
necessária incidência da valoração jurídica. O dolo, por sua vez, é conceito
jurídico relacionado com o tipo legal, e retrata valoração do legislador sobre
a vontade natural. Neste sentido, perceba-se que, nos crimes dolosos, a vontade
da ação fundamenta o dolo do tipo, mas não é correto identificar o dolo com a
vontade, pois, quando o autor age em erro de tipo, apresenta-se a vontade na
ação mas não o dolo.17 O dolo é conceito que possui o conteúdo que o
legislador quiser lhe emprestar. No caso brasileiro, o legislador entendeu por
valorar mais severamente e reconhecer o dolo quando agente quer produzir o
resultado ou assume o risco de produzi-lo. Poderia ter identificado o dolo
apenas na situação de querer produzir o resultado, reservando à hipótese da
assunção do risco de produzi-lo o título da culpa. Poderia, mas não o fez. A
definição do conteúdo dos conceitos normativos envolve, evidentemente, uma
opção política. Não se pode negar, dolo é o que o legislador disser que seja.
Se
a prova fizer reconhecer que o agente produziu o resultado morte em situação de
excesso não intencional de legitima defesa, por exemplo, a condenação dirá respeito
ao crime de homicídio culposo. Considerando que o art. 74, § 1º, do Código de
Processo Penal, dispõe que o Tribunal do Júri não é competente para o
julgamento do homicídio culposo, a indagação sobre o elemento subjetivo do
excesso também deve restringir-se a existência da intenção de matar ou de
assumir o risco de causar a morte.18 Não havendo o elemento subjetivo
caracterizador da competência do Tribunal Popular, conforme o art. 492,
§ 2º, do CPP, ao juiz de Direito caberá a análise do fato à luz dos
critérios jurídicos estabelecidos para o julgamento monocrático. Não
reconhecido o dolo na conduta do agente, ao juiz caberá julgar o fato e decidir
se os critérios necessários à caracterização do crime culposo se apresentam.
Indagar dos jurados sobre a produção culposa do resultado significa invadir
competência privativa do juiz-presidente, salvo no caso de crimes conexos a um
crime doloso contra a vida. Afinal, nos termos do art. 81 do Código de Processo
Penal, julgado um crime doloso contra a vida é possível
ao Conselho de Sentença julgar crimes culposos conexos ao doloso.
6.
Prorrogação da competência do conselho de sentença
A
previsão do art. 74, § 1º, do CPP, que define a competência do Tribunal do Júri
pela natureza da infração não exclui na apreciação de outros crimes. É que a
competência do Tribunal do Júri pode ser prorrogada, nos casos de conexão ou
continência, segundo a regra do art. 81 do CPP.
A
prorrogação da competência do Conselho de Sentença para julgamento dos crimes
conexos ao doloso contra a vida é pacífica quando a imputação desse crime é
considerada procedente ou improcedente. Em ambos os casos, o Conselho de
Sentença apreciou o mérito de imputação relativa ao crime de sua competência
privativa e, portanto, tem sua competência prorrogada para julgar os crimes
conexos. No entanto, quando trata-se de apenas um
crime doloso contra a vida e o Conselho de Sentença entender por
desclassificá-lo para crime da competência do juiz singular, surge importante
divergência doutrinária.
Os
festejados profs. Tourinho Filho19
e Damásio de Jesus20
sustentam que mesmo diante da desclassificação do crime que provocou a atração
dos demais para julgamento pelo Tribunal do Júri, o Conselho de Sentença tem
sua competência prorrogada para julgar os demais crimes. Entendem os
professores paulistas que a regra do art. 81 é específica para os casos de
conexão ou continência, sendo que o disposto no art. 492, § 2º, somente tem
aplicação no julgamento de fato único.
José
Frederico Marques, por sua vez, entende que o art. 81 do CPP
não se aplica ao julgamento pelo Tribunal do Júri e o caso é regulado pela
regra do art. 492, § 2º. Desse modo, ao juiz-presidente caberá o julgamento do
crime desclassificado e também dos crimes conexos.21 Esta também é a interpretação que Júlio
Mirabete confere à questão.22
Posição
singular é defendida por Walter P. Acosta, que confere outra interpretação
aos arts. 81 e 492 do CPP. Segundo esse autor, o
juiz-presidente deve julgar o crime desclassificado e os jurados os crimes conexos.23
Sobre
o tema, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já se manifestou tanto no
sentido da aplicação da regra do art. 81 (RT 467/452 e RTJ
67/828) quanto pela aplicação da regra do art. 492, §2º, do CPP (RTJ
101/997 e 102/599).
Esta
divergência doutrinária, contudo, não é o alvo das atenções deste trabalho. O
que ora se pretende ressaltar é que a possibilidade de quesitação
quanto ao elemento subjetivo culposo está sempre condicionada à prorrogação da
competência do Conselho de Sentença. Somente entendendo que ocorre prorrogação
de competência pode-se admitir quesito sobre o excesso culposo.
Conclusões
De
tudo o que foi exposto, pretende-se extrair as seguintes conclusões:
1.
No julgamento pelo Tribunal do Júri, é necessário formular quesitos específicos
sobre o elemento subjetivo da ação, para que o Conselho de Sentença possa
manifestar livremente seu entendimento sobre os fatos que lhe são apresentados,
independentemente das colocações feitas nos debates.
2.
Os quesitos relativos ao elemento subjetivo, quando do julgamento de fato
único, somente devem indagar sobre a existência de intenção compatível com o
conceito de dolo. Não reconhecida a existência de
dolo, o julgamento é transferido ao juiz-presidente.
3.
Para apurar o dolo é necessário formular dois quesitos: um sobre a vontade de
produzir o resultado morte e outro sobre a assunção do risco de produzi-lo.
4.
Somente é possível submeter ao conselho de sentença quesito sobre a produção
culposa do resultado no caso de prorrogação de competência, face à conexão ou
continência com crime doloso contra a vida.
5. A
formulação de quesitos sobre o excesso culposo, nas excludentes de ilicitude,
somente poderá ser apresentada ao Conselho de Sentença para julgamento no caso
de prorrogação de competência, face à conexão ou continência com crime doloso
contra a vida.
Bibliografia
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São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
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v. 3 e 4, 1990.
TUBENCHLAK, James. Tribunal do Júri –
contradições e soluções. São Paulo: Saraiva, 1994.
Notas
1. TUBENCHLAK, James. Tribunal
do Júri – contradições e soluções. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 124.
2. FRANCO,
Ari Azevedo. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Ed. A
Noite, v. II, 4 ed., p. 113.
3. MARQUES, José
Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro:
Forense, v. III, 1962, p. 242.
4. PORTO, Hermínio A. M.
Júri. Procedimento e aspectos do julgamento. Questionário. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 98.
5. NORONHA, Edgard
Magalhães. Curso de Direito Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 275.
6. Nesse sentido: TOURINHO
FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva,
v. 1990, p. 80; MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo
Penal. São Paulo: Atlas, 1992, p. 506; PORTO, Hermínio A. M. Op.
cit. p. 174; MARQUES,
José Frederico. Op. cit. p. 245 e TUBENCHLAK, James.
Op. cit. p. 140.
7. TUBENCHLAK, James. Op. cit. p. 126.
Considerando
que todos os crimes dolosos contra a vida são materiais, Tubenchlak
afirma a inviabilidade de quesito único para a análise do fato principal.
8. NOGUEIRA, Paulo
Lúcio. Curso completo de Processo Penal. São Paulo: Saraiva,
1991, p. 319; e PORTO, Hermínio A. M. Op. cit.
p. 154.
9. MARQUES, José
Frederico. Op. cit. p. 244. Embora o autor filie-se
ao entendimento de Firminio Whitaker, segundo o qual a lei reuniu em um só quesito
o fato e a intenção, reconhece a divergência doutrinária levantada por Moraes
Melo Júnior, já em obra de 1908.
10. PORTO, Hermínio A.
M. Op. cit. p.
154. No mesmo sentido: MIRABETE, Júlio Fabbrini. Op. cit. p. 7.
11. TUBENCHLAK, James. Op. cit. p. 145.
Embora o
autor entenda impossível formular quesito sobre a produção culposa do
resultado, admite a formulação de quesito sobre o excesso culposo. Tal
posicionamento não parece ser o mais correto. Reconhecido o excesso culposo, o
Tribunal do Júri condena por crime culposo, o que não é matéria de sua
competência.
12. Nesse sentido: O
STJ, por sua 6ª Turma, decidiu que “desclassificação pelo Tribunal do Júri, o
homicídio, mas atribuída outra classificação de competência do juiz singular,
ao juiz-presidente do mesmo Tribunal do Júri é afeta a proferição
da sentença adequada ao novo tipo penal”. DJU 30/11/92, p. 22636.
13. TUBENCHLAK, James. Op.
Cit., p. 139. Esclarece
o autor que, diante da apresentação de teses conflitante, o que não poderá
ocorrer é a resposta conflitante dos jurados.
14. MARQUES, José
Frederico. Op. cit. p. 244.
15. ESPÍNOLA FILHO,
Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, v. 9, p. 237.
16. Nesse sentido:
PORTO, Hermínio A. M. Op. cit. p. 236-237 e TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit.
p. 87.
17. TAVARES, Juarez. Teorias
do Delito. São Paulo: Rev. Tribunais, 1980, p. 61.
18. Em sentido
contrário: TUBENCHLAK, James. Op. Cit., p. 145. Sem qualquer restrição, o autor admite a formulação de quesito sobre o
excesso culposo.
19. TOURINHO FILHO,
Fernando da Costa. Op. cit., p. 75.
20. JESUS, Damásio
Evangelista de. Código de Processo Penal anotado. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 92. Este autor indica a existência de
jurisprudência do Supremo Tribunal nesse sentido: RTJ 67/829.
21. MARQUES, José
Frederico. Op. cit., v. I, p. 296.
22. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado. São
Paulo: Atlas, 1997, p. 630.
23.
ACOSTA, Walter P.O Processo Penal. Rio
de Janeiro: Ed. do Autor, 1957, p. 60/61.
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