(Re)leitura dos princípios dos títulos de crédito: por uma superação da visão clássica

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Sumário: 1. Introdução – 2. Natureza da obrigação cartular: uma análise das teorias da emissão e da criação – 3. Cartularidade, literalidade e autonomia: características, requisitos, elementos, atributos ou princípios dos títulos de crédito? – 4. Os princípios aplicáveis aos títulos de crédito – 5. Da tipicidade dos títulos de crédito – 6. Uma análise dos títulos de crédito no Código Civil de 2002 – 7. Conclusão – Referências bibliográficas.


1.INTRODUÇÃO


A realidade empresarial é, sem dúvida, muito complexa. A abertura das economias, o crescimento dos processos de competitividade e a inserção da empresa como núcleo básico da atividade econômica reclamam novas exigências dos agentes econômicos, assim como da Ciência.


Impressiona a dinâmica do desenvolvimento do conhecimento no âmbito do Direito Empresarial. Segundo levantamento anual do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, mais de 3.510.804 normas legais foram editadas desde 1988, entre leis ordinárias, complementares e delegadas, medidas provisórias, decretos, emendas constitucionais nos âmbitos federal, estaduais e municipais. Não obstante a fúria legiferante nacional cabe ao intérprete e ao aplicador do texto legal questionar a validade e o alcance de certas interpretações meramente positivistas, não apenas tomando-as como se fossem verdades absolutas.


Nesse contexto, o avanço tecnológico tem sido propulsor de novas realidades contratuais, envolvendo o comércio eletrônico, a tributação de software, entre outras evoluções. Contudo, o direito cambiário, baseado na cártula, ainda continua mantendo a sua importância para o desenvolvimento e segurança das relações ou situações jurídicas[1].


O sistema cambiário, fundado em princípios construídos ao longo de décadas, a partir da contribuição de renomados doutrinadores, não pode, realmente, sucumbir, principalmente em virtude da forte base principiológica que o norteia.


Os princípios do direito cambiário ainda resistem às inovações preconizadas pela informática. Tanto é assim que o Código Civil de 2002, concebido para ser um diploma moderno em sua época, positivamente incorpora os princípios cambiários ao definir título de crédito em seu artigo 887 como “documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido”.


Adverte Bezerra Filho que


“Ao contrário do que eventualmente se poderia pensar, o Código Civil, ao estabelecer regras para os títulos de crédito (títulos atípicos) em seus artigos 887 a 926, deixou ainda mais clara a individualidade do direito cambial ante o direito civil, sem embargo da aplicação subsidiária prevista no artigo 903”. (BEZERRA FILHO, 2004, p. 235).


Impõe-se, portanto, dispensar rígidos cuidados ao direito cambiário para que suas regras sejam estritamente observadas, sob pena de se condenar o título de crédito ao efetivo desaparecimento como instituto (BEZERRA FILHO, 2004, p. 235).


2.NATUREZA DA OBRIGAÇÃO CARTULAR: UMA ANÁLISE DAS TEORIAS DA EMISSÃO E DA CRIAÇÃO


Inúmeras são as teorias que procuram explicar a natureza da obrigação cartular[2], sendo matéria vastíssima e de extrema complexidade, como adverte Newton de Lucca (1979, p. 73).


Restringimo-nos, neste breve estudo, ao exame das teorias da criação e da emissão, diante da sua aplicabilidade ao direito brasileiro, sem incorrer em cansativas repetições, seguindo o conselho de Vivante:


“[…] e para escrever se tome como ponto de partida a última palavra juntada pelos estudiosos precedentes, na Itália e no Exterior, porque a literatura jurídica em matéria comercial desenvolve-se sincronicamente em todos os países que pertencem ao ciclo de nossa cultura. Começa-se por onde terminaram os precedentes escritores, porque as repetições constituem o mais penoso obstáculo que se encontra no caminho dos estudos jurídicos e não se deve aumentar esse já enorme volume.” (VIVANTE, 1934, p. 10).


Pela teoria da criação o direito deriva tão somente da criação do título, a partir do lançamento da declaração cambial originária, ou seja, a assinatura do seu emitente. Em decorrência disso, o eventual desapossamento do título por motivos alheios à vontade do seu criador, seja em virtude de furto, roubo ou perda, não faz desaparecer a obrigação do subscritor.


Esclarece Requião que “a vontade do devedor já não importa para tal efeito obrigacional: o título é que o produz. É o título que cria a dívida. A única condição que se impõe a sua eficácia é a posse pelo primeiro portador, qualquer que seja ela.” (REQUIÃO, 2003, p. 363).


Por sua vez, a teoria da emissão proclama que a simples assinatura do título não faz surgir vínculo obrigacional algum, ficando na dependência da sua colocação voluntária em circulação. “Sem emissão voluntária não se forma o vínculo. Se o título foi posto fraudulentamente em circulação não subsiste a obrigação.” (REQUIÃO, 2003, p. 363).


A doutrina[3] critica o direito brasileiro, que na pretensão de filiar-se a uma das teorias citadas, deixou a matéria confusa, não a solucionando da forma desejável. O Código Civil de 1.916, em seu artigo 1.506, adotou expressamente a teoria da criação ao estabelecer que “a obrigação do emissor subsiste, ainda que o título tenha entrado em circulação contra a sua vontade.” Na mesma trilha seguiu o Código Civil de 2.002, estabelecendo no parágrafo único, do artigo 905 que “a prestação é devida ainda que o título tenha entrado em circulação contra a vontade do emitente”.


Observa-se, inicialmente, que tais dispositivos deixam clara a opção do legislador brasileiro pela teoria da criação, porém, de forma contraditória, estabeleceu-se no artigo 521 do Código Civil de 1916 que “aquele que tiver perdido ou a quem houveram sido furtados coisa móvel ou título ao portador pode reavê-lo da pessoa que os detiver salvo a esta o direito regressivo contra quem lhos transferiu”. Igualmente, o artigo 1.509 do mesmo diploma legal previa que “a pessoa, injustamente desapossada de títulos ao portador, só mediante intervenção judicial poderá impedir que ao legítimo detentor se pague a importância do capital, ou seu interesse”.


O Código Civil de 2002, embora não tenha previsto dispositivo correspondente ao artigo 521 do Código de 1.916, estabeleceu em seu artigo 909 que “o proprietário, que perder ou extraviar título, ou for injustamente desapossado dele, poderá obter novo título em juízo, bem como impedir sejam pagos a outrem capital e rendimentos”.


Segundo Requião, “a conclusão a tirar é que o Código de 1916 não se filiou puramente a nenhuma das teorias, temperando os rigores da teoria da criação com nuanças da teoria da emissão, Tal ecletismo foi mantido no Código de 2002.” (REQUIÃO, 2003, p. 365).


Contudo, deve-se atentar para o disposto nos artigos 16 e 17 da Lei Uniforme de Genebra (Dec. 57.663/66), da qual o Brasil é signatário, os quais devem prevalecer frente aos comandos insertos no Código Civil de 2002, mesmo porque este se trata de lei geral, não revogando lei especial, sendo que a convenção genebrina enquanto não denunciada deve ser amplamente cumprida.


Os artigos 16 e 17 da LUG[4] protegem o terceiro de boa-fé, o que deve prevalecer frente à proteção ditada pela lei civil para o que foi injustamente desapossado, tornando, assim, forte a inclinação do direito brasileiro pela teoria da criação, que representa o melhor estágio do pensamento jurídico universal a respeito da matéria (DE LUCCA, 1979, p. 94).


No mesmo passo alinha-se a Lei do Cheque (Lei n. 7.357/85), em seu artigo 24, ao dispor que “desapossado alguém de um cheque, em virtude de qualquer evento, novo portador legitimado não está obrigado a restituí-lo, se não o adquiriu de má-fé”.


O que mais importa é que a obrigação cartular tem natureza de declaração unilateral de vontade, atendendo ao plano da existência, da validade e da eficácia, devendo ser observada a teoria da criação. Nesse sentido, pertinente a seguinte passagem de Pontes de Miranda:


“O subscritor, subscrevendo, cria o título, porque perfaz o negócio jurídico unilateral (plano da existência). Se o título existe e vale, ou se não vale, é outro problema (plano da validade). Desde o momento em que, após a assinatura, ou simultaneamente à assinatura, pelo subscritor (sacador ou subscritor), ou pelo sacado, ou pelo endossante, ou pelo avalista, ou pelo interveniente, o título está na posse do alter de boa-fé, começa a sua eficácia: nasce a dívida”. (MIRANDA, 2001, p. 151).


3.CARTULARIDADE, LITERALIDADE E AUTONOMIA: CARACTERÍSTICAS, REQUISITOS, ELEMENTOS, ATRIBUTOS OU PRINCÍPIOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO?


Na busca de um enquadramento sistemático da matéria, a doutrina não se mostra consente, designando indistintamente a cartularidade, a literalidade e a autonomia dos títulos de crédito como características[5], elementos essenciais[6], atributos[7], requisitos essenciais[8] ou princípios[9].


A cartularidade, a literalidade e a autonomia não podem ser tratadas meramente como elementos de qualificação dos títulos de crédito (característica, atributos, elementos e requisitos), mas, sim, como postulados principiológicos do direito cambiário, “com o que se enrijece o seu sistema e se lhe permite ser disciplina inconfundivelmente separada das outras.” (MIRANDA, 2001, p. 179).  


Apropriando-se da palavra característica, Rizzardo (2006, p. 13) menciona que se refere a literalidade, autonomia, abstração e cartularidade, mas adverte que tão importantes essas qualidades que mais se constituem em princípios, reconhecidos universalmente. Tal discrepância doutrinária, contudo, não se arreda do conceito de título de crédito ditado por Vivante.


Silva diz serem os princípios, “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são (como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira) ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais.” (SILVA, 1996, p. 94).


Freitas esclarece que


“Por princípio ou objetivo fundamental, entende-se o critério ou a diretriz basilar de um sistema jurídico, que se traduz numa disposição hierarquicamente superior, do ponto de vista axiológico, em relação às normas e aos próprios valores, sendo linhas mestras de acordo com as quais se deverá guiar o intérprete quando se defrontar com antinomias jurídicas”. (FREITAS, 1995, p. 41).


Bandeira de Mello define o princípio jurídico como sendo o


“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. (BANDEIRA DE MELLO, 1998, p. 450-451).


Observa-se, contudo, em todos esses conceitos de princípios defeitos capitais: a omissão de sua normatividade e a sua análise no plano axiológico. Não podemos, de fato, confundir princípios com valores, como sugere a teoria alexyana. Princípios são normas, inseridos no âmbito deontológico, não podendo ser hierarquizados.


Em que pese haja, hoje, respeitáveis vozes que considerem princípios como sendo valores, admitindo, inclusive, a metodologia da ponderação de valores para a solução de conflitos entre princípios, acreditamos não ser essa a melhor solução, pois princípios são normas e não valores, conceitos que não se confundem, pois são categorias diferentes. Conforme anota Habermas,


“(…) normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da codificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar, através de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. Por se distinguirem segundo essas qualidades lógicas, eles não podem ser aplicados da mesma maneira”. (HABERMAS, 1998, 2003, p. 317).


Bonavides (2006, p. 253-266) descreve as três fases distintas pelas quais passa a juridicidade dos princípios: a jusnaturalista, a juspositivista e a pós-positivista. Para a jusnaturalista os princípios são concebidos como axiomas jurídicos, de caráter universal, constitutivos de um Direito ideal. Na fase juspositivista os princípios são erigidos à categoria de fonte normativa subsidiária. Já na fase pós-positivista os princípios passam a ser tratados como direito, tendo como destacado precursor Ronald Dworkin, para quem tanto uma regra positivamente estabelecida como uma constelação de princípios podem impor obrigação legal (DWORKIN, 2002, p. 46-47).


Buscando luzes à questão, recorre-se à obra O Império do Direito, de autoria de Ronald Dworkin, o qual é bastante elucidativo para se compreender uma (re) leitura sobre os princípios[10].


Em 1977, Dworkin começa a sistematizar sua idéia de Direito, lançando o livro Levando os Direitos a Sério (Taking Rights Seriously), publicado no Brasil em 2002. Inicialmente, Dworkin insurge-se contra a idéia de Hart[11] sobre o fato de que, em algumas situações, o juiz possuiria uma margem de liberdade para escolher a melhor decisão, pois o direito não apresentaria uma solução para o caso.


Das palavras de Hart extrai-se a sua principal divergência à tese dworkiana:


“O conflito directo mais agudo entre a teoria jurídica deste livro e a teoria de Dworkin é suscitado pela minha afirmação de que, em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente para a decisão do órgão legislativo, então deve exercer o seu poder discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o direito estabelecido preexistente. Assim, em tais casos juridicamente não previstos ou não regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe, os seus poderes de criação do direito”. (HART, 2005, p. 335).


Para Dworkin, o juiz não possui discricionariedade judicial exatamente porque o ordenamento jurídico não é formado apenas por regras jurídicas, como acreditava Hart, mas também por princípios.


A tese dworkiana parte da premissa da existência de uma única resposta correta para os chamados casos controversos, sendo, pois, atacado por defender a tese da única decisão correta e por lançar mão de um juiz Hércules para resolver todos os problemas jurídicos, de maneira isolada.


Para responder tais críticas, Dworkin formula a idéia de integridade no Direito, propondo a inserção dos princípios, ao lado das regras, como fonte do Direito, pressupondo, ainda, uma espécie de personificação de uma determinada comunidade. Cada decisão deve ser integrada em um sistema coerente que atente para a legislação e para os precedentes jurisprudenciais sobre o tema, procurando discernir um princípio que os haja norteado.


Nesse contexto, a análise da estrutura das normas jurídicas revela que estas são de duas espécies: princípios e regras jurídicas. Reportando-se à obra O Império do Direito, Heloisa Helena Nascimento Rocha afirma que o Direito não é concebido como um sistema fechado de regras, como no positivismo preconizado por Hart, ao contrário:


“Regras e princípios são diferentes, mas ambos são normas de caráter vinculante e deontológico. Contudo, existem diferenças que precisam ser esclarecidas. Regras apresentam em sua estrutura uma hipótese e uma conseqüência determinadas, ou seja, descrevem situações e imputam resultados específicos. Ora, se duas regras colidem, a solução de tal conflito só poder ser a eliminação de uma delas ou o estabelecimento de uma cláusula de exceção. Regras funcionam na base do tudo ou nada. Os princípios tratam de questões de justiça e apresentam um caráter aberto por não pretenderem estabelecer sua condição de aplicação. Ademais, princípios possuem uma dimensão de importância ou peso, de modo que em caso de colisão não há perda de validade, mas aplicação do princípio adequado ao caso.


No entanto, o Direito não deve ser compreendido como um conjunto de princípios e regras fixos. Dworkin deixa claro que regras e princípios não são facilmente distinguíveis. Muitas vezes se torna difícil estabelecer, a priori, se uma norma é um princípio ou uma regra. Isto porque princípios podem desempenhar em um caso específico o papel de uma regra e vice-versa”. (ROCHA, 2004, p. 248-249).


Para Calsamiglia


“O esquema utilizado por Dworkin para explicar a tese dos direitos está centrado na análise das controvérsias judiciais. Poderia ser sintetizada do seguinte modo: A) Em todo processo judicial existe um juiz que tem a função de decidir o conflito; B) Existe um direito a vencer no conflito e o juiz deve indagar a quem cabe vencer; C) Este direito a vencer existe sempre, ainda que não exista norma exatamente aplicável; D) Nos casos difíceis o juiz deve conceder vitória a uma parte baseando-se em princípios que lhe garantem o direito; E) Os objetivos sociais estão subordinados aos direitos e aos princípios que o fundamentam; F) O juiz – ao fundamentar sua decisão em um princípio preexistente – não inventa um direito nem aplica legislação retroativa: se limita a garanti-lo”. (CALSAMIGLIA, prefácio, 1984).


Para o direito cambiário, portanto, a cartularidade, a literalidade e a autonomia[12] não são meras características, requisitos, elementos ou atributos, mas verdadeiramente princípios, ou seja, normas voltadas, sobretudo para uma comunidade personificada[13], como sugere a tese dworkiana.


Referir-se, assim, à cartularidade, literalidade e autonomia como “princípios” é mais adequado, levando-se em consideração que se constituem verdadeiros comandos normativos da teoria geral dos títulos de crédito, servindo como alicerce de todo o instituto.


4.OS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS AOS TÍTULOS DE CRÉDITO


São os princípios que norteiam os títulos de crédito que realmente trazem a certeza e a segurança esperadas por aqueles que deles se valem em seus negócios. Tais princípios, sem dúvida alguma, são frutos do esforço da doutrina que culminou numa das melhores demonstrações da capacidade criadora de ciência jurídica nos últimos séculos (ASCARELLI, 1999, p. 25).


Segundo Newton de Lucca, o Direito apresenta-se como um ordenamento, ou seja, como um sistema complexo de normas que estejam em coerência umas com as outras, parecendo “razoável concluir-se, assim, que a teoria geral dos títulos de crédito refere-se ao sistema de princípios próprios aplicáveis a tais instrumentos.” (DE LUCCA, 1979, p. 4).


Na abordagem de tais princípios, coube a Cesare Vivante o mérito da construção de uma teoria unitária para os títulos de crédito, definindo o título de crédito como o “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado.” (VIVANTE, 1934, p. 63 e 164).


Explica Vivante que


“o direito contido no título é um direito literal, porque seu conteúdo e os seus limites são determinados nos precisos termos do título; é um direito autônomo, porque todo o possuidor o pode exercer como se fosse um direito originário, nascido nele pela primeira vez, porque sobre esse direito não recaem as exceções, que diminuiriam o seu valor nas mãos dos possuidores precedentes”. (VIVANTE, 2003, p. 152).


Nos dizeres de Borges, o “título de crédito é, antes de tudo, um documento. O documento, no qual se materializa, se incorpora a promessa da prestação futura a ser realizada pelo devedor, em pagamento da prestação atual realizada pelo credor.” (BORGES, 1976, p. 8).


Vivante não poupou críticas aos que afirmaram estar o direito incorporado no título de crédito, preferindo, de acordo com a sua definição, a expressão estar o “direito mencionado no documento.” Para o autor italiano a perda do título não ocasiona o desaparecimento do direito, ele torna-se suspenso até que o título seja substituído por outro equivalente.


Newton De Lucca esclarece que


“o direito, embora guardando profunda conexão com o documento e daí resultando o fenômeno da cartularidade, não tem a sua existência estritamente condicionada à cártula. O direito é algo imaterial e, como tal, não desaparece com o documento, como afirmou VIVANTE, porque sua conexão – mesmo íntima com o documento – não pode destruir sua imaterialidade que extrapola os limites da cártula”. (DE LUCCA, 1979, p. 13).


Aliás, a Lei de Duplicatas n. 5.474/68, em seu artigo 23, nos dá mostra de que a destruição do título não faz, necessariamente, desaparecer o direito cartular, em virtude da possibilidade de obtenção de uma triplicata. Assim, conforme preleciona Ascarelli, “sob esses aspectos se descobre o que há de exagero na imagem da incorporação.” (ASCARELLI, 1943, p. 266).


Ademais, o Código Civil de 2002, em seu artigo 888, demonstra ter sido este o entendimento adotado pelo legislador brasileiro, ao estabelecer que “a omissão de qualquer requisito legal, que tire ao escrito a sua validade como título de crédito, não implica a invalidade do negócio jurídico que lhe deu origem.” O direito, pois, não desaparece com o desaparecimento do título de crédito.


Tal discussão, conquanto de rigor científico, na prática não tem tanta relevância, pois falar-se que o direito está “mencionado”, ou “incorporado” ou “contido” no documento, tem os mesmos efeitos jurídicos, principalmente pelo fato de que é a lei que erige determinado documento à categoria de título de crédito, estabelecendo os requisitos indispensáveis à sua validade (DE LUCCA, 1979, p. 15-16).


A clareza com que Vivante definiu o título de crédito traz o conforto para poder elencar como seus princípios a cartularidade, a literalidade e a autonomia.


Para se constituir o título de crédito deve a declaração obrigacional estar exteriorizada em um documento escrito, corpóreo, em geral uma coisa móvel (MARTINS, 1998, p. 5). Tal documento é necessário ao exercício dos direitos nele mencionados. Trata-se do princípio da cartularidade.


Nos dizeres de Newton De Lucca:


“O fenômeno da cartularidade decorre da literalidade e da autonomia. É em razão de ser o direito mencionado no título literal e autônomo que a apresentação da cártula torna-se necessária para o exercício desse direito. Cartularidade é, para nós, portanto, a necessidade de apresentação do documento para o exercício do direito”. (DE LUCCA, 1979, p. 57).


A cartularidade, portanto, está intimamente ligada ao documento para que possa ser considerado um título de crédito, sendo essencial à sua existência, como expresso na definição de Vivante.


A literalidade, por sua vez, reside no fato de que só vale o que se encontra escrito no título, ou seja, somente pode ser exigido o conteúdo da cártula; o direito nele mencionado. O que não está expressamente consignado no título de crédito não produz conseqüência nas relações jurídico-cambiais (COELHO, 1994, p. 208).


Mas por que é decisivo, em relação ao direito nele mencionado, o teor do título? A resposta encontra-se nas palavras do festejado autor italiano Túlio Ascarelli:


A explicação da literalidade, que a doutrina eleva a característica essencial do título de crédito, está na autonomia da declaração mencionada no mesmo título (declaração cartular) e na função constitutiva que, a respeito da declaração cartular e de qualquer das suas modalidades, exerce a redação do título; essa declaração está, pois, submetida exclusivamente à disciplina que decorre das cláusulas do próprio título.


Se a nossa explicação não fosse exata, se o documento tivesse apenas uma eficácia probatória da declaração documentada, o portador do título – ao contrário do que antes lembramos – poderia gozar de direitos diversos dos decorrentes do título, mesmo sem recorrer a qualquer convenção extra-cartular”. (ASCARELLI, 2003, p. 68).


Não se deve, porém, confundir literalidade com formalismo. “O formalismo estabelecido pela lei define o ‘teor específico’ do documento e é pertinente à existência da declaração cartular ‘como tal’. Já a literalidade visa à subordinação dos direitos cartulares unicamente ao ‘teor da escritura’, atribuindo relevância jurídica somente aos elementos expressos na cártula.” (DE LUCCA, 1979, p. 52).


Por último, a autonomia do título de crédito determina que cada pessoa que a ele se vincula assume obrigação autônoma relativa ao título, não se vinculando uma à outra, de tal forma que uma obrigação nula não afeta as demais obrigações válidas no título, a teor do artigo 7º do Decreto n. 57663/66 (Lei Uniforme de Genebra – LUG)[14].


É também em razão da autonomia do título de crédito que o possuidor de boa-fé não tem o seu direito restringido em decorrência de negócio subjacente entre os primitivos possuidores e o devedor. Surge aqui o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais, consagrado pelos artigos 17 da Lei Uniforme de Genebra[15], 25 da Lei de Cheque (Lei n. 7.357/85)[16] e 916 do Código Civil de 2002.[17]


Aliás, não se pode falar de autonomia dos títulos de crédito sem que se faça, ainda que rapidamente, uma abordagem sobre a abstração, outro princípio característico de tais documentos.


A autonomia dos títulos de crédito compreende dois aspectos: autonomia do título (abstração) e autonomia das obrigações nele assumidas (independência das obrigações cambiais).


Pela abstração temos que os direitos decorrentes dos títulos são abstratos, independentes do negócio que deu lugar ao seu surgimento (MARTINS, 1998, p. 9). A abstração não se confunde com a autonomia das obrigações cambiais (princípio da independência das obrigações cambiais). Aquela traz a regra de que uma vez emitido o título este se libera de sua causa; esta disciplina que as obrigações assumidas no título são independentes umas das outras.


Segundo Fran Martins,


“a abstração do direito emergente do título significa que esse direito, ao ser formalizado o título, se desprende de sua causa, dela ficando inteiramente separado. Se o título é um documento, portanto, concreto, real, o direito que ele encerra é considerado abstrato, tendo validade, assim, independentemente de sua causa”. (MARTINS, 1998, p. 9).


5.DA TIPICIDADE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO


Ponto que merece destaque em relação aos títulos de crédito é que estes devem ser criados por regramento legal especifico. Em outros termos: deve existir uma lei que atribua a determinado “documento” creditício a natureza de um título de crédito, com todos os princípios, características e atributos a ele inerentes.


O Código Civil de 2002, em seu artigo 887, dispõe que o título de crédito somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei, reforçando, pois, a legalidade ou tipicidade para a sua emissão. “A legalidade ou tipicidade consiste na impossibilidade estabelecida pela Lei, de se emitirem títulos de crédito que não estejam previamente definidos e disciplinados por lei (numerus clausus).” (BULGARELLI, 2000, P. 71).


Para Newton de Lucca, o Código Civil de 2002 teve como escopo a subsidiariedade das normas específicas dos títulos de crédito e não a regulamentação dos chamados títulos atípicos. Esclarece ainda que “Título atípico é aquele que não possui um modelo legal. Se existisse uma lei especial que o regulasse ele não seria um título atípico. Com que sentido, portanto, ficariam as expressões ‘salvo disposição diversa em lei especial’?” (DE LUCCA, 1979, p. 124).


O título de crédito, portanto, deve obedecer ao critério da tipicidade, sendo regulado por lei específica que lhe dite os requisitos essenciais para a sua existência e validade jurídica, observando os princípios que o regem, a fim de resguardar e dar eficácia aos ajustes entre as pessoas que com ele transacionam.


A observância da tipicidade dos títulos de crédito para o seu ingresso no mundo jurídico é condição basilar presente no direito brasileiro, sendo este o critério adotado pelo nosso legislador. Exemplo disso é a recente regulação da cédula de crédito bancário, por meio da Lei n. 10.931, de 02 de agosto de 2004.


6.UMA ANÁLISE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002


O novo Código Civil brasileiro – Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – entrou em vigência em 11 de janeiro de 2003, dedicando o seu Título VIII, artigos 887 a 926, à disciplina “Dos Títulos de Crédito”, dividindo-o em quatro capítulos: Disposições gerais; Do título ao portador; Do título à ordem; Do título nominativo.


O novo Código Civil veio regular “papéis outros” diversos dos títulos de crédito hoje existentes, e que continuaram a existir com a sua entrada em vigor, constituindo impropriedade técnica designar o seu Título VIII como “Dos Títulos de Crédito”.


O professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutor Wille Duarte Costa, já alertara que o novo Código Civil apenas repetiu inúmeros preceitos contidos em leis especiais, servindo apenas para confundir o intérprete e beneficiar expedientes protelatórios de devedores, concluindo que “aquela parte intitulada títulos de crédito deve ser excluída do novo Código, pois ela é de uma inutilidade a toda prova.” (COSTA, 2001, p. 106).


Mas o que realmente sofreu alteração com a entrada em vigor do novo Código Civil? Quais os pontos polêmicos que foram instaurados? Como resolver a controvérsia?


Tais questionamentos fazem, desde já, com que a doutrina mergulhe na análise do tema, buscando uma melhor adequação da realidade jurídica que envolve os títulos de crédito e as novas regras dispostas pelo Código Civil em vigor.


Relembre-se que o novo Código Civil também definiu títulos de crédito. E o fez em seu artigo 887, nos seguintes termos: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.”.


Sabe-se não ser função do legislador ministrar definições, as quais devem ser evitadas, porque de nada adiantam num texto e fogem à missão simplesmente normativa deste (MONTEIRO, 1998, p. 7). Muitas vezes, as definições feitas pelo legislador obstam a evolução de determinados institutos jurídicos, uma vez que, embora a doutrina e a jurisprudência os atualizem, o texto legal impede o seu aprimoramento, o que dependeria de uma burocrática e morosa alteração legislativa.


Afora tal consideração, o dispositivo legal citado apenas arreda as dúvidas acerca da aplicação do novo Código Civil aos títulos de crédito hoje existentes, os quais, somente produzirão efeitos quando preenchidos os requisitos dispostos nas leis especiais que os regulam.


Nesse contexto, o art. 903 do Código afasta a possível controvérsia que poderia se instaurar no tocante à aplicação das novas regras aos títulos regulados por leis especiais, dispondo expressamente que “salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código”.


Assim, os dispositivos do novo Código Civil, no tocante aos títulos de crédito tratam de regras gerais, tal como a natureza do estatuto no qual estão inseridos, curvando-se às regras especiais, mormente à Lei Uniforme de Genebra, Lei do Cheque, Lei de Duplicata, entre outros diplomas que regulam os títulos de crédito.


Por sua vez, o artigo 889 do novo Código Civil elenca os requisitos essenciais e não-essenciais a todo título de crédito, cuja aplicação ressalva os títulos regulados por leis especiais, as quais possuem dispositivos específicos sobre a matéria. [18]


O Código Civil destaca como requisitos essenciais: data de emissão; indicação precisa dos direitos que confere; assinatura do emitente. Por sua vez, os requisitos não–essenciais são tratados pelos parágrafos 1º e 2º do mesmo art. 889: data de vencimento (na falta, considera-se à vista); lugar de emissão (na falta, considera-se o domicílio do emitente); lugar de pagamento (na falta, considera-se o domicílio do emitente).


Ressalte-se que, de acordo com o art. 887 do diploma civil, os escritos somente produzirão efeitos como títulos de crédito quando preencham os requisitos da lei, os quais, mesmo sendo desatendidos, não importarão na invalidade do negócio jurídico subjacente, a teor do art. 888 do estatuto civil.


O parágrafo 3º do art. 889 do Código Civil procurou inovar ao permitir a criação de títulos de crédito a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente, condicionando, porém, à prévia escrituração junto ao emitente e a observância dos requisitos mínimos previstos no caput do dispositivo.


Não se cuida aqui da criação do chamado “título virtual”, arredando a euforia de pequena parte da doutrina, mas, apenas a possibilidade de se criar um título a partir dos dados colhidos nos meios informatizados, sendo certo que o exercício do direito pelo portador do título não dispensará a emissão do documento, como determina o art. 887 do Código Civil, muito menos a assinatura do emitente, requisitos essencial disposto no art. 889 do mesmo diploma legal.


Com propriedade, alerta Costa que


“[…] se a pretensão foi a de criar um título completo, incluindo a assinatura do emitente, faltou regulamentar ‘assinatura criptografada’, ‘chave privada’, ‘chave pública’ e outros elementos necessários para segurança do emitente do título eletrônico. De qualquer forma, o legislador autorizou um tipo de emissão do qual não demonstrou o menor conhecimento. Quis ser moderno apenas”. (COSTA, 2001).


Embora a legislação conduza a um primeiro entendimento permissivo de criação do título por meio eletrônico, não prescindiu da inserção nele da assinatura do emitente, o que somente pode se aperfeiçoar pelo punho subscritor deste, não existindo atualmente leis em vigor que autorizem a adoção de forma diversa. [19]


No novo Código Civil merece ainda particular destaque o disposto no art. 914, o restante trata-se apenas de mera repetição de dispositivos da Lei Uniforme de Genebra.


Com efeito, o Código Civil dispôs em seu art. 914 que “ressalvada cláusula expressa em contrário, constante do endosso, não responde o endossante pelo cumprimento da prestação constante do título”.


 Considera-se endosso a declaração cambial aposta no título de crédito à ordem pelo seu proprietário, com o escopo de transferi-lo a terceiro e garantir-lhe o pagamento.


A transferência da propriedade do título pelo endosso não deixa dúvidas, destacando-se apenas que o endosso dos títulos não à ordem opera-se com os efeitos de cessão civil.


No que concerne à garantia de pagamento do título pelo endossante, o art. 15 do Decreto n. 57.663/66, regulador da letra de câmbio e nota promissória, bem como o art. 21 da Lei n. 7.357/85 (Lei do Cheque) refletem a clássica posição legislativa, ou seja, “salvo disposição em contrário, o endossante garante o pagamento do título”.


Assim, o endosso transfere a propriedade do título e obriga o endossante ao seu pagamento, salvo se este fizer expressa ressalva no título (ex.: “transfiro o título, mas não me responsabilizo pelo seu pagamento”).


Relembre-se que o endosso implica na transferência do título e de todos os direitos a ele inerentes (endosso translativo), ou apenas a outorga ao endossatário de direitos específicos sem a ele atribuir a propriedade do título (endosso mandato para realização de simples cobrança).


A disposição do art. 914 do Código Civil inverte a norma prevista na Lei Uniforme de Genebra, uma vez que é essência do endosso ficar o endossante como garantidor do pagamento do título, salvo se, de forma diversa e expressa, se exonerou (“endosso sem garantia”).


Contudo, o art. 914 do novo Código não se aplica aos títulos regulados por leis especiais, como ressalva o art. 903 do mesmo diploma legal.


Resta aguardar e torcer para que os “menos avisados” não queiram argüir tal norma para se livrarem do pagamento de todos os títulos de crédito indistintamente, em detrimento dos legítimos credores, com o que não podem, de forma alguma, contar com o beneplácito do Poder Judiciário.


Destaca-se ainda que o novo Código, em seu art. 912, parágrafo único, repete a regra de ser o endosso parcial nulo, o que faz com que relembremos a lição do eminente João Eunápio Borges, no sentido de que “não seria nulo o endosso parcial, apenas ineficaz – considerada cambialmente não escrita – a limitação ou parcelamento da soma constante do referido endosso.” (BORGES, 1976, P. 76). Entendimento diverso, importaria na quebra da cadeia de endosso, tornando-se injustificável a posse do título pelo endossatário e eventuais portadores que lhe sucederem, em desconformidade com o art. 16 da LUG.


Por fim, o novo Código Civil tratou do instituto do aval nos artigos 897 a 900, ressaltando, dentre outros aspectos, a vedação ao aval parcial, a aposição deste no verso ou anverso do próprio título, prevendo ainda o chamado aval em preto e em branco.


Não se pretende, nos limites do presente trabalho, uma análise aprofundada do aval, cujas arestas foram muito bem aparadas por João Eunápio Borges (1975). Cumpre destacar, porém, que o aval exerce importante papel na teoria geral dos títulos de créditos. Trata-se de uma obrigação cambial ou cambiariforme, que visa garantir o título regularmente emitido.


Do novo texto legal sobressai a regra concernente aos efeitos do aval dado posteriormente ao vencimento do título, não os diferenciado do aval dado anteriormente a tal fato, como dispõe o art. 900. Trata-se de inovação que arreda a divergência que ainda existia em pequena parte da doutrina, que considerava que o aval dado posteriormente ao vencimento do título tinha efeitos de fiança. Como inexiste dispositivo neste sentido nas leis especiais, prevalece agora a regra geral traçada pelo novo Código Civil.


Igualmente, destaca-se, como novidade, a limitação do aval à outorga uxória ou marital, exceto se o regime do casamento for o da separação absoluta (art. 1647 e seu inciso II), de aplicação imediata a todos os títulos de crédito, em razão de inexistir nas leis especiais disposição em sentido contrário.


Releva-se ainda importante a disposição do novo Código Civil, no sentido de que a “invalidade” do aval praticado sem outorga somente poderá ser levada a efeito pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros (art. 1650), podendo a outorga ser suprida pelo juiz nas hipóteses previstas no art. 1648 do codex civil.


Uma melhor exegese do referido dispositivo leva-nos à conclusão de que falta de outorga não invalidará o aval, mas configurará sua ineficácia parcial no tocante ao cônjuge que não participou do ato, em conformidade com o princípio da independência das obrigações cambais e art. 7º do Decreto n. 57663/66. Portanto, a conseqüência da ausência de outorga no aval será decidida no plano da eficácia do ato jurídico e não no da sua invalidade.


7.CONCLUSÃO


A importância dos títulos de crédito na vida econômica moderna autoriza a criação e articulação de um sistema eficiente, fundado em forte base principiológica, para assegurar garantia e satisfação dos direitos das pessoas que deles se valem em seus negócios jurídicos.


Sabe-se que os títulos de crédito representam uma enorme contribuição do Direito Comercial[20] para a evolução da economia moderna, embora atualmente venham sofrendo críticas em função dos avanços tecnológicos, que procuram, principalmente, afastar a sua existência física, enquanto cártula.


Ascarelli (1999, p. 25 e 27) destaca que graças aos títulos de crédito pôde o mundo moderno mobilizar riquezas, vencendo o tempo e o espaço, satisfazendo a exigência de certeza e segurança; certeza na existência do direito; segurança na sua realização.


Não podemos olvidar que a criação dos títulos de crédito trouxe novos contornos às práticas comerciais, na medida em que valorizou a figura do crédito, dando-lhe posição de destaque no fomento das atividades desenvolvidas pelos comerciantes e os modernos empresários.


De fato, em dado momento, as operações comerciais, hoje empresariais, necessitaram tornar-se mais rápidas e mais amplas. Para isso, o crédito ocupou ponto de destaque, pois possibilitou que uma pessoa pudesse gozar de imediato da mercadoria ou serviços oferecidos no momento da transação, relegando o respectivo pagamento para o futuro.


O crédito traz implícitos os elementos confiança e tempo. Confiança de quem aceita, em troca de sua mercadoria, a promessa de pagamento futuro; tempo entre a prestação presente e atual e a prestação futura.


A modernização das práticas comerciais, impulsionadas pela figura do crédito, necessitou ainda de que a obrigação futura em troca de um valor ou mercadoria atual fosse exteriorizada em um documento[21] – o título de crédito – com o escopo de incorporá-la e dar garantia ao credor.


Ao lado da multiplicação das atividades comerciais, o título surgiu como um mecanismo perfeito e eficaz da mobilização da riqueza e da circulação do crédito, influenciando todos os negócios jurídicos, principalmente os de natureza econômica (COSTA, 1997, p. 145-167).


Borges (1976, p. 9) destaca o entusiasmo de economistas e comercialistas[22] que chegaram a afirmar que os títulos de crédito “têm contribuído mais que todas as minas do mundo para o enriquecimento das nações. Por meio deles, o direito consegue vencer tempo e espaço, transportando com facilidade bens distantes e materializando no presente – atualizando-as – as possíveis riquezas futuras”.


No direito brasileiro, leis especiais regulam os títulos de crédito, alguns usados em larga escala, outros sem grande utilização nas práticas empresariais. Podem ser mencionados: a letra de câmbio; a nota promissória; o cheque; a duplicata; as cédulas de crédito rural, industrial e comercial; o conhecimento de depósito e o warrant, inclusive destinados ao fomento do agronegócio (Lei n. 11.076/2005); o conhecimento de transporte; cédula de crédito bancário, entre outros.


Os títulos de crédito são formais e abstratos, munidos de valor documental, somente podendo ser atacados por provas claras, terminantes e concludentes, exercendo papel de primeira ordem no mundo dos negócios (MIRANDA, 2001, p. 48).


Observa-se que o novo Código Civil pouco inovou quanto aos títulos de crédito, justificando, pois, a opinião da doutrina no sentido da inutilidade de tais disposições, que, na sua grande maioria, revelam-se apenas como repetição de dispositivos da Lei Uniforme de Genebra. [23]


Continuarão, portanto, os títulos de crédito existentes (letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata e outros) regulados pelas leis especiais, sofrendo a ingerência do novo Código Civil apenas no tocante à eficácia do aval, que fica agora condicionada à outorga do outro cônjuge, quando a pessoa que o prestar for casada em regime diverso da separação absoluta de bens.


O Código Civil de 2002, contudo, em nada modifica a teoria geral dos títulos de crédito[24]; não altera os efeitos do endosso nos títulos regidos por leis especiais (endosso sem garantia); não invalida o aval por falta de outorga; muito menos cria ou possibilita a criação de títulos virtuais, desprovidos de cartularidade. Lado outro, agasalha em seu art. 887 os princípios da cartularidade (documento necessário), a literalidade e a autonomia (exercício de direito literal e autônomo nele mencionado), que constituem base essencial para a existência, validade e eficácia dos atos (negócios) jurídicos celebrados no âmbito do direito cambiário.


 


Referências bibliográficas

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Notas:

[1] Segundo César Fiuza, “Situação jurídica e relação jurídica confundem-se um pouco, na medida em que a situação é composta pela relação. Situação jurídica seria, então, um conjunto dinâmico de circunstâncias em que se acham relacionadas duas ou mais pessoas.” E, adverte: “É fundamental compreender bem o que seja uma relação, uma situação jurídica e entender seu dinamismo para melhor compreensão do fenômeno dos negócios jurídicos.” (FIÚZA, 2008, p. 198).

[2] “São tantas as teorias existentes em torno de tão delicado problema que a simples tarefa de enumerá-las ou de classificá-las importa em considerável sacrifício por parte do estudioso.” (LUCCA, 1979, p. 73). Para estudo mais aprofundado, sugerimos consultar a obra de Newton De Lucca, Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, São Paulo: Livraria Pioneira, 1979, que apresenta as seguintes teorias, de acordo com o lado ativo ou passivo da obrigação cartular: teoria dos créditos sucessivos, teorias contratualistas (teoria da delegação e teoria da novação), teoria da sucessão particular do crédito, teoria da cessão do crédito, teoria da personificação do título de crédito, teoria do crédito alternativo, teoria da emissão abstrata, teoria da aparência, teoria da promessa à generalidade, teoria da propriedade, teorias negociais, teorias legais, teorias mistas, teoria da emissão e teoria da criação.

[3] Para Newton de Lucca, “Infelizmente, o que nos parece razoável afirmar é que, no Brasil, não chegou a ser formar uma consciência em torno do que seja um título de crédito. Tanto na doutrina, como na legislação e na jurisprudência, nota-se que há um conflito interno de convicções não exaurido até as últimas conseqüências, pelo tratadista, pelo legislador ou pelo juiz. Tem-se mesmo a impressão de que os problemas em matéria de títulos de crédito são resolvidos por intuição” (Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979, p. 91).

[4] “Art. 16. O detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma serie ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. Os endossos riscados consideram-se, para este efeito, como não escritos. Quando um endosso em branco é seguido de um outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a letra pelo endosso em branco. Se uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de uma letra, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente, não é obrigado a restituí-la, salvo se a adquiriu de má-fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave.” “Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.”

[5] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 2, p. 359.

[6] DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito. São Paulo: Livraria Pioneira, 1979, p. 45.

[7] BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 12; COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 70.

[8] BULGARELLI, Waldírio. Títulos de crédito. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 62.

[9] MARTINS, Fran. Títulos de crédito. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 7; COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 1, p. 371; ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio F. da. Títulos de crédito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 59.

[10] Ronald Dworkin ainda nos oferece uma (re)leitura dos conceitos de interpretação. Interpretação da conversação: interpreta-se os sons ou sinais que determinada pessoa faz; interpretação científica: o cientista começa por coletar dados, para depois interpretá-los; Interpretação artística: os críticos interpretam poemas, peças e pinturas a fim de justificar ponto de vista acerca de seu significado; interpretação de uma prática social: assemelha-se à interpretação artística – interpreta-se algo criado pelas pessoas como uma entidade distintas delas (formas de interpretação criativa); interpretação intencional: analisa a intenção do orador ao dizer o que disse; interpretação causal: pretende explicar, por exemplo, os sons que uma pessoa emite. A interpretação da conversação é intencional, pois atribui significados a partir de supostos motivos, intenções e preocupações do orador, e apresentam suas conclusões como afirmações sobre a “intenção” deste ao dizer o que disse. A solução doworkiana é de que a interpretação criativa não é conversacional, mas construtiva. Preocupa-se essencialmente com os propósitos (propósitos do intérprete e não do autor) e não com a causa. A interpretação criativa é um caso de interação entre propósito (do intérprete) e objeto, observada sob o pondo de vista construtivo. A interpretação é, por natureza, o relato de um propósito; ela propõe uma forma de ver o que é interpretado. Um cientista social deve participar de uma prática social se pretende compreende-la, o que é diferente de compreender seus adeptos. (O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 55-108).

[11] Trata-se do jusfilósofo inglês Herbert L. A. Hart, para quem os juízes devem usar a discricionariedade para escolher a interpretação que consideram a mais apropriada. Para Hart, quando a regra aplicada é imprecisa, o juiz não tem outra saída a não ser escolher, prudentemente, a opção que considerar mais adequada. Nestas circunstâncias excepcionais, o juiz não está aplicando o direito, eis que as regras não lhe indicam uma ou outra direção, senão criando o direito para caso concreto. (FERNANDES, Jean Carlos. Direito empresarial aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007).

[12] No princípio da autonomia insere-se a independências das obrigações cambiais, a abstração e a inoponibilidade das exceções pessoais.

[13] Segundo Ronald Dworkin, ”O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada -, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade.” (O Império do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 271).

[14] “Art. 7º. Se a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas.”

[15] “Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

[16] “Art. 25. Quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor.”

[17] “Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.”

[18] Letra de câmbio: artigos 1º e 2º do Decreto n. 57.663/66; nota promissória, artigo 76 do Decreto n. 57.663/66; duplicata, artigo 2º da Lei n. 5.474/68; cheque, artigo 2º da Lei n. 7.357/85.

[19] Na realidade, uma exegese diferente do dispositivo conduzirá à instauração de fraudes, como as já detectadas com a utilização dos boletos bancários de cobrança, tratado em obra de nossa autoria. Pode-se conceituar o boleto bancário como o documento confeccionado pelas instituições financeiras, a partir de dados transmitidos pelos credores (comerciantes), para fins de cobrança junto ao sacado, permitindo o seu pagamento em banco distinto do depositário. É um formulário padronizado pelo Banco Central, por intermédio do Manual de Normas e Instruções (MNI). É utilizado pelos bancos e por seus clientes, para recebimento de valores quando existe uma compra e venda a prazo. Os boletos bancários, portanto, como comumente são conhecidos, não passam de simples papéis de cobrança, criados unilateralmente, sem assinaturas de qualquer espécie, não caracterizados como títulos de crédito pela legislação vigente. (FERNANDES, Jean Carlos. Ilegitimidade do boleto bancário: protesto, execução e falência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003).

[20] Hodiernamente designado como Direito Empresarial ou Direito de Empresa, em razão da adoção da teoria da empresa pelo Código Civil de 2002, inspirado no Código Civil italiano de 1942.

[21] A propósito, registre-se aqui a observação de João Eunápio Borges (Títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 8) que “nem todo documento será título de crédito; mas, todo título de crédito é, antes de tudo, um documento no qual se consigna a prestação futura prometida pelo devedor”.

[22] Com a edição do Código Civil de 2002, abandonou-se a figura do comerciante, substituindo-a pelo empresário (artigo 966), como sendo aquele que exerce atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens ou serviços. Filiou-se, portanto, o direito brasileiro à teoria da empresa (modelo italiano), deixando de lado a teoria dos atos de comércio (modelo francês).

[23] Nesse contexto, adverte Costa que “a repetição de preceitos já existentes em leis especiais só pode confundir o leitor, que fica sem saber a que título aplicar o preceito”. (Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v 8, 2001). Na realidade, o legislador criou normas gerais para os títulos de crédito, não fugindo, é certo, da repetição dos preceitos contidos em leis especiais, que deverão prevalecer quando conflitantes com os novos dispositivos do estatuto civil vigente.

[24] O Código Civil de 2002 não altera os efeitos do endosso nos títulos regidos por leis especiais (endosso sem garantia), muito menos cria ou possibilita a criação de títulos virtuais, desprovidos de cartularidade.

Informações Sobre o Autor

Jean Carlos Fernandes

Advogado. Doutorando em Direito Privado (PUC/MG). Mestre em Direito Comercial (UFMG). Coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor de Direito Empresarial nos cursos de pós-graduação da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, Faculdade de Direito Milton Campos, Centro de Atualização em Direito em convênio com a Universidade Gama Filho, Centro de Estudos da Área Jurídica Federal e Praetorium em convênio com a Universidade Cândido Mendes. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial e da Associação Brasileira de Ensino do Direito. Autor dos livros Ilegitimidade do boleto bancário, Direito empresarial aplicado e co-autor de Direito societário na atualidade, editados pela Del Rey.


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Equipe Âmbito Jurídico

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