Resumo: Não raras vezes a Administração Pública recebe um produto ou serviço sem cobertura contratual. Ensejando a necessidade de indenizar o particular, desde que ele não tenha contribuído para a irregularidade. Este procedimento indenizatório é denominado reconhecimento de dívida. Com ele faz nascer à obrigação de apurar responsabilidade do servidor que deu causa à ausência de contrato válido.
Palavras – Chave: Contrato. Nulidade. Reconhecimento de dívida.
Abstract: Too often public administration receives a product or service without contractual coverage. Occasioning the need to indemnify, since he did not contribute to the irregularity. This indemnity procedure is called acknowledgment of debt and make born the obligation to establish the responsibility of the server that gave rise to the absence of valid contract.
Key words: Contract. Nullity. Acknowledgment of debt.
Sumário: Introdução. 1 – Definição. 2 – Exemplos de ausência de cobertura contratual. 3 – Responsabilidade do servidor. 4 – Considerações Finais. Referências.
Introdução
Alinhada aos princípios constitucionais da impessoalidade, eficiência e supremacia do interesse público sobre o interesse particular, a Administração Pública, ordinariamente, adquire produtos ou serviços após prévia licitação, onde são escolhidas as propostas mais vantajosas ao ente público contratante, conforme expressa previsão constitucional:
“Art. 37
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.
Em algumas hipóteses autorizadas pela Lei de Licitações, os serviços ou produtos podem ser contratados diretamente dos fornecedores, sem necessidade de prévia licitação. Estas exceções estão contempladas na Lei 8666/93 como dispensa de licitação (art. 24) e inexigibilidade de licitação (art. 25).
As contratações públicas, precedidas de licitações ou oriundas de contratação direta (sem licitação), em regra, são formalizadas por contratos regulares, ou seja, celebrados de acordo com as normas pertinentes.
Entretanto, em muitos casos, a Administração Pública recebe um produto ou serviço, sem prévia contratação regular, hipótese em que dá ensejo ao procedimento de reconhecimento de dívida, tema deste artigo.
1 – Definição
De acordo com a Lei 8666/93, os contratos públicos, em regra, devem ser formalizados com a adoção do instrumento adequado, admitindo os contratos orais somente quando os valores forem de baixa monta:
“Art. 60. Os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem.
Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" desta Lei, feitas em regime de adiantamento.”
Ocorre que nem sempre a regra positiva acima transcrita é respeitada, acarretando a nulidade do contrato, após a prestação do serviço ou a entrega de um determinado produto à Administração Pública, antes do pagamento.
Como se verá neste estudo, em várias outras situações, em que ha descumprimento de alguma norma, acarretando prejuízo ao interesse público, os contratos são anulados, muitos deles, após a entrega do objeto contratado.
Neste cenário, ou seja, com a nulidade do contrato, mas com o recebimento do objeto contratado irregularmente, não haveria razoabilidade em admitir que o Poder Público enriquecesse ilicitamente, sem justa causa, com o não pagamento ao particular pelo serviço ou produto recebido.
Por essa razão, a Lei de Licitações, em caso de nulidade do contrato, admite a indenização ao particular, nestes termos:
“Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.”
Ao interpretar a norma que autoriza a referida indenização, escreveu Justen Filho (2005, p. 238):
“Configuraria absoluta infração às concepções fundamentais do Estado Democrático de Direito que a invalidade do ato administrativo fosse pretexto para a Administração Pública enriquecer-se indevidamente. Nem teria cabimento que a Administração promovesse a invalidação e. remetesse o particular a buscar os direitos de indenização perante o judiciário. A invalidação do ato apenas se aperfeiçoa validamente quando a Administração assegura ao particular a indenização correspondente.”
A necessidade de indenizar serviços e produtos recebidos pela Administração Pública já foi objeto de orientação jurídica expressa por parte da própria Advocacia-Geral da União, por meio da Orientação Normativa/AGU nº 04/2009:
“A despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento da obrigacão de indenizar nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666, de 1993, sem prejuízo da apuracão da responsabilidade de quem lhe der causa.”
Porém, a viabilidade da referida indenização depende da constatação de que o particular não deu causa a referida nulidade, ao prever no parágrafo único da art. 59 da Lei 8.666/93 a seguinte expressão: “contanto que não lhe seja imputável”.
A doutrina tem interpretado o comportamento do particular, passível de indenização, em caso de nulidade de contratos públicos, quando presente a boa-fé, como bem destacou Clarissa Sampaio Silva (2001, p. 118):
“O mandamento da proteção à boa-fé dos administrados constitui inelutavelmente uma forma de equacionar a relação entre eles e a Administração. O princípio geral da boa-fé não apenas tem aplicação no Direito Administrativo, mas neste âmbito adquire especial relevância. (…)Da mesma forma, consoante o art. 59 da lei 8.666/93, a declaração de nulidade de contrato administrativo opera retroativamente, impedindo a produção dos efeitos que lhe seriam consectários, ressalvando-se entretanto a obrigação de a Administração indenizar o contratado pelo que tiver executado até então, e por outros prejuízos regularmente comprovados contando que não seja imputável. Com semelhante procedimento protege-se o contratado que, obrando de boa-fé, não pode ser apenado por declaração de nulidade de contrato administrativo.”
A boa–fé como requisito indispensável à indenização por serviços prestados à Administração Pública, sem cobertura contratual válida, também foi observada por Justen Filho (2005, p. 719/720):
“Outro ângulo da questão relaciona-se com a situação subjetiva do particular que participou da contratação inválida com a Administração. Afigura-se irrebatível que a indenização a favor do particular, cujo o patrimônio seja afetado por atuação indevida da Administração pública, depende de sua boa-fé. (…) Nesse sentido é que se afirma que a boa -fé do terceiro caracteriza-se quando não concorreu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha condições de conhecer) sua existência. O particular tem o dever de manifestar-se acerca da prática de irregularidade. Verificando o defeito, ainda que para ele não tenha concorrido, o particular deve manifestar-se. Se não o fizer, atuará culposamente. Não poderá invocar boa-fé para o fim de obter indenização ampla.”
O próprio Tribunal de Contas da União – TCU rejeita a viabilidade de qualquer indenização ao particular, que tenha agido de má-fé durante a execução do serviço ou fornecimento do produto (Acórdão 148/2006):
“Ademais, na hipótese de confirmar-se a inexequibilidade dos preços ofertados, não poderá a contratada pleitear indenização em face de eventual anulação do contrato, pois, segundo o bom direito, ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Caso tenham sido ofertados preços impraticáveis com o fito de ganhar a licitação e, posteriormente, intentar a revisão contratual, fica comprovada a má-fé da licitante, o que lhe retira o direito a qualquer indenização, em conformidade com as disposições do parágrafo único do art. 59 da Lei nº 8.666/1993”.
A má-fé ou a concorrência do particular com a nulidade do contrato são também apresentadas pelo Superior Tribunal de Justiça como impeditivo à indenização via procedimento de reconhecimento de dívida:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO SEM PRÉVIA LICITAÇÃO. EFETIVA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CONSTATADA PELO TRIBUNAL A QUO. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS REDUÇÃO. SÚMULA 7/STJ.
1. Segundo jurisprudência pacífica desta Corte, ainda que o contrato realizado com a Administração Pública seja nulo, por ausência de prévia licitação, o ente público não poderá deixar de efetuar o pagamento pelos serviços prestados ou pelos prejuízos decorrentes da administração, desde que comprovados, ressalvada a hipótese de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade.
2. Não há como alterar as conclusões obtidas pelo Tribunal de origem que, com base nas provas dos autos, entendeu ter havido a efetiva prestação do serviço por parte da autora. Incidência da Súmula 7/STJ.
3. Não sendo o caso de valor exorbitante, ante o arbitramento dos honorários em 10% (dez por cento) do valor da causa, não cabe a esta Corte modificar o decisório sem incursionar no substrato fático-probatório dos autos. Súmula 7/STJ.
4. Agravo regimental não-provido.” (AgRg no Ag 1056922 / RS – Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES – DJe 11/03/2009).
A presença da boa fé está em sintonia com o Princípio Geral de Direito, que impede o infrator de se beneficiar de sua própria torpeza.
Pelo que, pode-se definir o reconhecimento de dívida como o procedimento administrativo instaurado com o fim de indenizar o contratante de boa fé, por serviços ou produtos entregues à Administração Pública, sem a regular cobertura contratual e sem o efetivo pagamento.
2 – Exemplos de ausência de cobertura contratual
A não cobertura contratual, que origina a necessidade do reconhecimento de dívida, decorre da ausência de qualquer instrumento contratual válido, independentemente do momento em que a referida nulidade contratual é reconhecida.
Para melhor compreensão dos leitores, apresenta-se a título exemplificativo algumas hipóteses de inexistência de cobertura contratual, que pode acarretar a necessidade do procedimento de reconhecimento de dívida:
a) Contratação direta, por inexigibilidade ou por dispensa de licitação, em situação diversa daquelas autorizadas pela Lei 8.666/93;
b) Escolha da inadequada modalidade licitatória, de forma a restringir a competição;
c) Fornecimento de serviço ou produto, após a extinção do prazo de vigência do contrato;
d) Termo aditivo de prorrogação, assinado intempestivamente, ou seja, após o término do prazo de vigência do contrato;
e) Entrega de produto ou serviço não previsto no contrato;
f) Entrega de produto ou serviço, em quantidade superior ao previsto no contrato, antes da alteração contratual, via termo aditivo, ou diante de acréscimo contratual em desobediência aos limites previstos na legislação;
g) Ausência de instrumento contratual adequado ao objeto contratado.
3 – Responsabilidade do servidor:
Cabe destacar ainda, que a mesma norma que autoriza o reconhecimento de dívida, também exige que a Administração Pública apure a responsabilidade do servidor que deu causa a nulidade do contrato, com a consequente prestação de serviço ou fornecimento de produto, sem cobertura contratual, haja vista que o dispositivo legal sob análise, parágrafo único do art. 59 da lei 8666/93, é expresso neste sentido: “promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa”.
Isso porque, os servidores públicos estão obrigados a seguir a legislação. Ora, se houve a nulidade de algum contrato, houve o descumprimento de alguma norma por parte do agente administrativo, com prejuízo ao interesse público, sendo necessária apurar a responsabilidade e, se for o caso, aplicar alguma sanção administrativa ao referido infrator.
A ausência da apuração não impede o pagamento da indenização, pois representaria enriquecimento ilícito à Fazenda Pública. Porém, acarretará responsabilização administrativa da autoridade competente pela autorização do pagamento, por omissão do dever legal de comunicar a irregularidade à autoridade competente pela apuração, conforme expressa previsão no art. 116 da Lei 8112/91, aplicáveis aos servidores públicos federais:
“Art. 116. São deveres do servidor:
VI – levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração; (Redação dada pela Lei nº 12.527, de 2011)”
4 – Considerações Finais
Portanto, o reconhecimento de dívida se apresenta como um procedimento administrativo que viabiliza o pagamento de indenização, com fulcro no parágrafo único do art. 59 da lei 8666/93, desde que:
a)comprovada prestação de serviço ou fornecimento de produto à Administração Pública;
b)ausência de coberta contratual válida, para o serviço ou produto entregue à Administração Pública;’
c)boa-fé do particular, representada pela sua não concorrência à nulidade contratual;
d)ausência de pagamento, pelo produto ou serviço, fornecido sem cobertura contratual.
Por fim, para evitar qualquer responsabilidade administrativa ao ordenador da despesa, deve ser apurada ainda, a responsabilidade do servidor que deu causa à ausência de cobertura contratual, seja para a entrega de produto ou para a prestação de serviço.
Procurador Federal em Uberlândia-MG. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia-MG. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB).
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