Concentra-se este ensaio na análise da posição do credor titular da propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis na recuperação judicial da empresa, mais especificamente o crédito garantido por cessão fiduciária de títulos de crédito. Estaria ele sujeito ou não aos efeitos da recuperação judicial do devedor-fiduciante?
Na recuperação de empresas os credores têm por objetivo salvar alguma parte do seu direito creditório sem risco, ao passo que o devedor deseja, em seu favor, a aprovação de um plano recuperacional, obtendo fôlego para saldar os seus compromissos. A recuperação deve ser fruto da boa-fé do devedor. Esta boa-fé é o seu alicerce que poderá manter o devedor à frente do seu estabelecimento e evitar a sua falência. A recuperação judicial ou extrajudicial não podem ser portas abertas a fraudes e oportunidades para o devedor enriquecer-se à custa alheia.
Não se trata de uma segunda oportunidade ao empresário, pretendendo, a todo custo, dar continuidade a seus negócios em detrimento dos interesses de seus credores. Trata-se, sim, de equilibrar os interesses do devedor com os de seus credores, inclusive os trabalhistas, em um cenário de escolha racional.
O instituto da recuperação está baseado na constatação de que a reorganização eficaz dos negócios de uma empresa em dificuldade representa uma das principais formas de maximização do valor dos ativos e de proteção aos credores.
Na feliz expressão de Gordon W. Johnson, “O crédito é a vida dos negócios”, e a sua acessibilidade demanda que os direitos das partes, notadamente da concedente, estejam claramente estabelecidos e assegurados por lei, o que possibilita a redução dos juros praticados, a medição dos riscos e o seu gerenciamento nas respectivas operações, principalmente quando possui um mecanismo de cumprimento eficiente como a cessão fiduciária.
Impõe-se, assim, um estudo da Lei n. 11.101, de 2005 de forma a equilibrar a preservação da empresa, a eficiência econômica e autonomia privada centrada nos interesses dos credores.
A cessão fiduciária de direitos creditórios (recebíveis) e de títulos de crédito é modalidade de garantia preferível pelas instituições financeiras que atuam principalmente no middle market, em razão da sua liquidez e da sua exclusão do alcance da Lei n. 11.101, de 2005. Não se cuida, obviamente, de penhor mercantil de créditos, como alguns pretendem fazer crer, mas, sim, de modalidade de propriedade resolúvel.
Não obstante a previsão de que todos os créditos existentes na data do pedido sujeitam-se à recuperação judicial, existem alguns credores que, em razão do principio da redução do custo do crédito voltado para preservação das garantias, receberam tratamento diverso pelo legislador, em conformidade com o artigo 49, § 3º da Lei n. 11.101, de 2005, entre eles, o proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis.
Tais créditos, portanto, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre o bem e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão de cento e oitenta dias, previsto no § 4º do artigo 6º da Lei n. 11.101/2005, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Ao término do prazo de cento e oitenta dias, contudo, restabelece-se o direito de os credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial. Segundo Marzagão,
“Diante dos efeitos gravosos resultantes da retirada antecipada de bens do estabelecimento empresarial, louvável a preocupação do legislador na tentativa de manter a empresa em funcionamento, protegendo as instalações, maquinário e equipamentos do devedor em recuperação judicial, pelo menos nos primeiros seis meses em que o mesmo se encontra em fase inicial de recuperação judicial, sem prejuízo das garantias contratuais.
Encerrado o período de suspensão, todos os direitos relativos à propriedade serão restituídos plenamente aos seus titulares e não estando eles sujeitos à recuperação judicial recomenda-se que o plano aprovado preveja o pagamento negociado com esses credores em condições satisfatórias, sob pena de submeter o devedor à execução específica dos contratos, exercendo o direito de retirada dos bens e inviabilizando a empresa.”[1]
A inspiração do legislador para a exclusão de tais credores específicos do âmbito da recuperação judicial decorreu do disposto no artigo 170 da Constituição Federal, que tutela, como princípios da ordem econômica, o direito de propriedade e a sua função social[2], além, é claro, da redução dos spreads, resultando na diminuição dos juros e fomento do crédito. Como diz Andrey,
“Em todos os negócios mencionados no artigo (sic) 3º, todavia, os respectivos credores são proprietários do bem que os garante, razão pela qual a lei optou por excluí-los da sujeição ao plano sob pena de enfraquecimento da garantia e, conseqüentemente, do aumento do risco do negócio com inevitável influência nas taxas de juros (spreads).”[3]
Destaca-se que os credores cujos créditos tenham sido constituídos posteriormente ao ingresso do devedor com o pedido de recuperação judicial estão excluídos dos efeitos desta, tendo o legislador apenas os reclassificados, para considerá-los extraconcursais na eventual falência do devedor, caso os credores tenham dado continuado às relações contratuais, conforme previsto no artigo 67 da Lei n. 11.101/2005. Trata-se de um incentivo criado pelo legislador. “Se assim não fosse, o devedor não conseguiria mais acesso nenhum a crédito comercial ou bancário, inviabilizando-se o objetivo da recuperação.” [4]
Consoante análise anterior, a cessão fiduciária de títulos de crédito foi instituída pelo artigo 66-B, parágrafo 3º da Lei de Mercado de Capitais, na redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004, que passou a admitir a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito. Veja-se a íntegra do texto legal:
“Seção XIV
Alienação Fiduciária em Garantia no
Âmbito do Mercado Financeiro e de Capitais
(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)
Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.
§ 1º Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números, marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se encontram em poder do devedor.
§ 2º O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2o, I, do Código Penal.
§ 3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.
§ 4º No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da Lei no 9.514, de 20 de novembro de 1997.
§ 5º Aplicam-se à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei os arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
§ 6º Não se aplica à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei o disposto no art. 644 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.”
Com isso, o sistema legal brasileiro passou a contar com duas espécies do gênero “negócios fiduciários”: 1) a alienação fiduciária de coisa, que pode ser móvel ou imóvel, e 2) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito.
Assim, pode-se concluir que o ordenamento jurídico brasileiro contempla as seguintes modalidades, sob a rubrica de propriedade fiduciária:
1) alienação fiduciária: a) de bens móveis infungíveis (Código Civil); b) bens móveis fungíveis (Lei de Mercado de Capitais); c) de bens imóveis, bens enfitêuticos, direito de uso especial para fins de moradia, direito real de uso e a propriedade superficiária (Lei n. 9.514/97); d) de ações, debêntures, partes beneficiárias e bônus de subscrição (Lei n. 6.404/76); e) de aeronaves e embarcações (Decreto-lei n. 413/69, Lei n. 7.565/86 e Lei n. 7.652/88);
2) titularidade fiduciária: a) cessão fiduciária de direitos e títulos de crédito (Lei de Mercado de Capitais); b) regime fiduciário sobre créditos ou recebíveis imobiliários (Lei n. 9.514/97); c) cessão fiduciária de crédito para fomento da construção civil (Lei n. 4.864/65 e Decreto-lei n. 70/66); d) cessão fiduciária de recebíveis para financiamentos concedidos às concessionárias de serviço (Leis n. 8.987/1995 e 11.079/2004).
É inquestionável, portanto, que a alienação fiduciária e a cessão fiduciária são modalidades de negócio fiduciário de constituição de propriedade fiduciária, preferindo-se, por técnica jurídica, quando se tratar de cessão fiduciária de direitos, falar-se em titularidade de direitos, deixando o termo propriedade para quando a garantia incidir sobre bens móveis ou imóveis, como adverte César Fiuza:
“A transmissão dos bens implica a transmissão do direito de propriedade sobre eles. Ocorre que, dentre os bens que podem ser objeto do negócio fiduciário estão direitos como, por exemplo, direitos patrimoniais de autor. Em nossa técnica jurídica, não se fala em propriedade de direitos, mas em titularidade. Dessarte, a transmissão fiduciária importa a transferência do domínio ou da titularidade sobre uma ou mais coisas e/ou direitos (…)”[5]
E, foi justamente assim que a Lei n. 11.101, de 2005 incluiu a figura da cessão fiduciária em garantia de títulos de crédito no rol das exceções à regra da sujeição à recuperação judicial, ou seja, como modalidades de negócio fiduciário de constituição da propriedade fiduciária referida em seu artigo 49, § 3º.
A realidade é que, direcionando-se o foco ao direito cambiário, tem-se a importante instituição da cessão fiduciária de títulos de crédito pelo artigo 66-B, § 3º da Lei de Mercado de Capitais, na redação dada pela Lei n. 10.931, de 2004, tratando-se de espécie do gênero negócio fiduciário para a constituição da propriedade fiduciária em sentido lato (propriedade fiduciária em sentido estrito e titularidade fiduciária).
Pela cessão fiduciária cria-se uma titularidade fiduciária, ficando os créditos objeto da fidúcia excluídos do patrimônio do devedor-fiduciante tão logo seja averbado o contrato no registro competente.
O título de crédito, por sua vez, possui a natureza de coisa móvel e, como tal, é passível de constituir objeto de garantia fiduciária, pois a Lei de Mercado de Capitais admite a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito.
Rachel Sztajn sintetiza estas idéias na seguinte passagem:
“Dizer que título de crédito é coisa móvel resulta de aperfeiçoamento e generalizações ocorridos ao longo do tempo, sendo a desvinculação da relação jurídica que lhe dá origem, talvez, a mais relevante nesse processo. Facilita a rápida realização do direito mencionado no documento que se transfere com facilidade, garantindo-se ao cessionário ou portador legitimado, a segurança de que seu direito não estará preso a exceções que poderiam atingir a sua própria existência”.[6]
Arreda-se, assim, eventual argumento de que o artigo 1.361 do Código Civil permite apenas que na alienação fiduciária o credor venha a assumir a condição de proprietário fiduciário sobre a coisa móvel infungível, e não sobre o direito/crédito. Todavia, o Código Civil, em seus artigos 1.361 a 1.368-A, constitui um sistema fiduciário mobiliário geral, o qual convive, lado a lado, com o sistema especial mercadológico-financeiro, regulado, principalmente, pelas Leis 4.864, de 1965 (bens móveis) e 9.514, de 1997 (bem imóvel), dentre outras. Tal é a orientação do próprio artigo 1.368-A do Código Civil, que delimita o seu alcance.
É de se observar que o Código Civil se refere às espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária, que compõem, por sua vez, a propriedade fiduciária em sentido lato. A primeira – propriedade fiduciária em sentido estrito – incidente sobre coisa (bem móvel ou imóvel); e a segunda – titularidade fiduciária – incidente sobre direitos/créditos.
Não resta dúvida, portanto, de que alienação fiduciária e cessão fiduciária mesmo sendo institutos distintos, em ambas as modalidades o credor passa à condição de proprietário fiduciário, pois a transmissão fiduciária importa a transferência do domínio ou da titularidade sobre uma ou mais coisas e/ou direitos.
A propósito, o próprio parágrafo 3º do artigo 68-B da Lei n. 4.728, de 1965, ao admitir a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, refere-se a:
a) posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária;
b) ou posse do título representativo do direito ou do crédito (p. ex. título de crédito);
c) podendo o credor, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária.
Nota-se, assim, que ao fazer referência a propriedade fiduciária, o dispositivo da Lei de Mercado de Capitais o faz de forma genérica ou em sentido lato, englobando tanto a alienação fiduciária quanto a cessão fiduciária.
Então, se a legislação prevê a existência dessas duas modalidades distintas de negócio fiduciário (alienação fiduciária e cessão fiduciária), pela mesma razão a exceção prevista pela Lei de Recuperação de Empresas, em seu artigo 49, § 3º, contempla ambas as espécies.
Excluir da recuperação judicial apenas e tão somente o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, depõe contra os princípios cardeais dos títulos de crédito, da autonomia privada e da eficiência econômica, não tendo agido com acerto a Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no julgamento AI n. 1.0109.08.012108-9/001-01, principalmente ao afirmar o ilustre Desembargador Relator em seu voto que “a cessão fiduciária de títulos de créditos não se encontra na exceção prevista no § 3º do artigo 49 da Lei de Falências”:
“Não obstante tal fundamento, apto a ensejar o desprovimento do agravo, por amor do debate apresento outro fundamento para igualmente desprover o recurso, e que é o seguinte: a cessão fiduciária de títulos de créditos não se encontra na exceção prevista no § 3º do artigo 49 da Lei de Falências.
Com efeito, procede a afirmação do Administrador Judicial, em sua manifestação, de que tais bens móveis (títulos de crédito) não se inserem dentre aqueles mencionados no referido artigo.
(…) Além de não constar, nesse dispositivo legal, expressamente, a expressão títulos de crédito, como afirmado pelo administrador judicial, pelo que se percebe da parte final do dispositivo legal, está o legislador se referindo a bens móveis materiais, pois dispõe sobre retirada do estabelecimento, o que não se aplica aos títulos de crédito, pois os créditos em geral são bens móveis imateriais.
Em suma, os títulos de crédito cedidos fiduciariamente pela recuperanda sujeitam-se à recuperação judicial.”[7]
Totalmente equivocada a decisão do tribunal mineiro. Primeiro, porque evidente que o título de crédito tem natureza jurídica de bem móvel, não se confundido com o crédito que ele exterioriza; segundo, porque o apego literal ao texto da lei – como se o direito a ele se resumisse – fez com que o tribunal cometesse o equívoco de arredar a cessão fiduciária da definição ampla de propriedade fiduciária, que ora sustentamos; terceiro, porque não se mostra eficiente do ponto de vista coletivo, criando externalidade negativa[8] e, certamente, prejudicando o mercado creditício e aumentando os spreads com a fragilização da garantia da cessão fiduciária de títulos de crédito.
Ancorando-se nas lições sempre balizadas de Carlos Maximiliano, “o espírito da norma há de ser entendido de modo que o preceito atinja completamente o objetivo para o qual a mesma foi feita” [9], ou seja, redução do custo do crédito pelo respeito às garantias dos credores.
É certo que a cédula de crédito bancário garantida por cessão fiduciária que tem por objeto títulos de crédito perfaz-se de forma segura e eficiente a mobilização, circulação e titularidade do direito creditório, uma vez que os princípios da autonomia e independência das obrigações cambiais permitem ao credor-endossatário-fiduciário exercer o seu direito contra os coobrigados, não sendo contra ele oponíveis as exceções pessoais que o devedor direto dos títulos eventualmente tivesse com o devedor-endossante-fiduciante em recuperação judicial.
Tal efeito, aliás, decorre da circulação dos títulos de crédito em garantia por meio do endosso-fiduciário, o qual, com a inadimplência do devedor-endossante-fiduciante, consolida a titularidade do crédito para permitir ao portador legitimado exercer plenamente os direitos emergentes dos títulos em face dos coobrigados, nos termos da garantia constituída na cédula de crédito bancário.
Em outras palavras, ao ser emitida a cédula de crédito bancária com a cessão fiduciária de títulos de crédito em garantia cedularmente constituída, o devedor-endossante-fiduciante, por meio do endosso-fiduciário, transmite a propriedade dos títulos de crédito ao credor-endossatario-fiduciário, constituindo-se em favor deste uma propriedade resolúvel, ao passo que o devedor-endossante-fiduciante é investido da qualidade de proprietário sob condição suspensiva, e poderá tornar-se novamente titular da propriedade plena dos títulos ao implementar a condição de pagamento da dívida que constitui objeto da cédula de crédito bancário.
Ademais, o credor-endossatário-fiduciário, por força do mencionado parágrafo § 3º do artigo 49, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá realizar a garantia (no caso os títulos de crédito), exigindo-os dos coobrigados (endossantes, avalistas e aceitante) por meio de ação própria, a qual não se sujeita à suspensão prevista no caput do artigo 6º da Lei n. 11.101, de 2005, diante dos princípios da autonomia e independência das obrigações cambiais.
Igualmente, não se aplica ao credor-endossatário-fiduciário a exigência de manter em conta vinculada os valores eventualmente recebidos com a realização da garantia. Tal hipótese, prevista no § 5º do mesmo artigo 49 da Lei n. 11.101, 2005 aplica-se somente a crédito sujeito aos efeitos da recuperação judicial, ou seja, quando se tratar de “crédito garantido por penhor sobre títulos de credito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários”. Nesse sentido, decidiu a 15ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 7.222.504-8, sendo relator o desembargador Cyro Bonilha,
“Anote-se, por fim, que não se aplica ao caso em tela o disposto no § 5º, do art. 49, da Lei n. 11.101/05, regra que se refere a crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários. O penhor (garantia real sobre coisa alheia) não se confunde com alienação fiduciária”.[10]
Como o credor titular da posição de proprietário fiduciário, incluindo, com se disse, a alienação fiduciária e a cessão fiduciária, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial descabe falar em depósito do valor referente à garantia em conta vinculada; ao contrário, ocorrendo inadimplemento ou mora da obrigação garantida, o credor-endossatário-fiduciário deverá portar-se na forma do § 3º do artigo 66-B da Lei n. 4.728, de 1965, isto é, poderá realizar a garantia fiduciária, devendo aplicar o preço no pagamento do seu crédito e eventuais despesas, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. A exclusão da vedação de pacto comissório do sistema fiduciário mercadológico-financeiro viabiliza e ampara tal atitude do credor.
E, mesmo que se entendesse pelo depósito da quantia referente à realização da garantia fiduciária em conta vinculada, a partir da interpretação da expressão “crédito garantido por direito creditórios” (conforme artigo 49, § 5º da Lei n. 11.101, de 2005) como “crédito garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios”, ainda assim o credor fiduciário estaria excluído da recuperação judicial, pois poderia após o prazo de cento e oitenta dias de suspensão, previsto no artigo 6º, § 4º da Lei n. 11.101, 2005, levantar a quantia em seu favor na forma do § 3º do artigo 66-B da Lei n. 4.728, de 1965. Nesse sentido, o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no Agravo de Instrumento n. 540.384-4/4-00, assim ementado:
“Recuperação Judicial. Cessão fiduciária de créditos. Credor não sujeito aos efeitos da recuperação. Hipótese, entretanto, de depósito das quantias recebidas em conta vinculada no período de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/05.
Recuperação judicial. Depósito em conta vinculada que não significa depósito em conta judicial. Mantença do valor sob responsabilidade do credor, desde que com atualização monetária e juros das cadernetas de poupança. Recurso parcialmente provido.”
Ainda, para embasar tal entendimento, pode-se também reconhecer que a cessão fiduciária de títulos de crédito é espécie de propriedade fiduciária de bem móvel, pela própria natureza das cártulas como bem móvel, cujos favorecidos, portanto, encontram-se excluídos dos efeitos da recuperação judicial.
Deve-se destacar, contudo, que para os efeitos da exclusão pretendida, a formalização da garantia fiduciária constituída pela cédula de crédito bancário deve seguir as determinações previstas na legislação aplicável, ou seja, registrando-se o negócio fiduciário cedularmente constituído no Registro de Títulos e Documentos, conforme determina o artigo 1.361 do Código Civil, bem como o artigo 42 da Lei n. 10.931, 2004, a fim de surtir efeitos contra terceiros.[11]
Não registradas as cédulas de crédito bancário, portanto, inexiste a propriedade fiduciária, não se abrindo ensejo à aplicação da norma excludente prevista no artigo 49, § 3º da Lei n. 11.101, de 2005.
A propósito, o registro da cédula de crédito bancário na forma mencionada confere ainda maior garantia ao endosso-fiduciário que não objeto de declaração cambial específica na cártula, bastando simples assinatura do endossante, pois se trata de modalidade de endosso pleno. Em tal situação, a publicidade da garantia fiduciária revelada pelo registro afasta eventual alegação no sentido de caracterizá-lo como endosso simulado.
Seguindo a linha de raciocínio pela exclusão da cessão fiduciária de títulos de crédito em garantia da recuperação judicial, faz ainda mais sentido quando se constata que o legislador estabeleceu que na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.
Os contratos, portanto, não podem e não devem ser rompidos por conta da recuperação judicial e de forma unilateral, principalmente no tocante ao regime de garantias. Assim, posta em vigor a Lei n. 11.101, de 2005, o resultado final é o de tornar imune à recuperação os credores na posição de titulares de cessão fiduciária de títulos de crédito em garantia, com preconizado pelo seu artigo 49, § 3º, os quais, diga-se de passagem, não têm direito a voto na Assembléia-Geral de Credor – não obstante possam participar dos conclaves sem ingerência – mas , caso queiram, podem aderir ao plano de recuperação, como diz Bezerra Filho,
“a Lei, ao dizer que tais créditos não se submetem à recuperação judicial, mesmo assim não proibiu a inclusão deles no plano. Se houver – embora extremamente improvável – anuência do credor, esses valores podem ser incluídos na decisão que concede a recuperação na forma do art. 58, se houver concordância do credor.”[12]
Em suma, a cessão fiduciária de títulos de créditos em garantia é expressamente prevista no § 3º do artigo 66-B da Lei n. 4.728, de 1965, sendo certo que, mediante endosso-fiduciário, transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel dos títulos, com as aplicação de todos os princípios do direito cambiário, desde que ao pacto fiduciae seja dado publicidade mediante competente registro, nos termos da legislação aplicável à espécie, já mencionada.
O regime brasileiro de recuperação da empresa deve ser palco da busca pela preservação da unidade produtiva viável, equilibrando os interesses do devedor e de seus credores em um ambiente de eficiência econômica e respeito à autonomia privada, orientado por três premissas desafiadoras: primeiro, pela recuperação da empresa viável em crise, em razão da sua função social e estímulo à atividade econômica, atendendo aos postulados da eficiência econômica e autonomia privada, a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito; segundo, por uma falência célere e eficiente no pagamento dos credores e na preservação produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis; terceiro, pelo equilíbrio entre os interesses do devedor e de seus credores, respeitando-se o sistema de garantias creditícias.
Advogado. Doutorando em Direito Privado (PUC/MG). Mestre em Direito Comercial (UFMG). Coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor de Direito Empresarial nos cursos de pós-graduação da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, Faculdade de Direito Milton Campos, Centro de Atualização em Direito em convênio com a Universidade Gama Filho, Centro de Estudos da Área Jurídica Federal e Praetorium em convênio com a Universidade Cândido Mendes. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial e da Associação Brasileira de Ensino do Direito. Autor dos livros Ilegitimidade do boleto bancário, Direito empresarial aplicado e co-autor de Direito societário na atualidade, editados pela Del Rey.
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