Resumo: Este estudo possui um cunho exploratório de alguns temas controversos relativos aos recursos disciplinares militares. Tendo como foco o Regulamento Disciplinar do Exército, levantou-se questões lacunosas e aparentemente insolvíveis à luz da interpretação convencional. Para a solução do problema, enfatizou-se a moderna hermenêutica jurídica, que privilegia os princípios constitucionais na função interpretativa e integrativa das normas de direito público.
Palavras-chaves: Recurso disciplinar militar. Princípios constitucionais. Hermenêutica jurídica.
Sumário: 1. Introdução. 2. Recurso disciplinar militar: delimitação e natureza. 3. Aspectos hermenêuticos: critérios para interpretação e integração dos recursos disciplinares. 4. Da prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração Militar. 5. Da impossibilidade de aplicação da “reformatio in pejus”. 6. Da possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso disciplinar. 7. Considerações finais.
1. Introdução
A Constituição Federal Brasileira de 1988 (CF 88), no seu Art 5º, inciso LV, trouxe importantíssima garantia fundamental e inovadora para o direito administrativo ao estender o princípio do contraditório e da ampla defesa aos litigantes e aos acusados em processos administrativos.
Não obstante, as instituições militares, ao aplicar as punições disciplinares, se valiam apenas das normas insertas nos regulamentos disciplinares editados ao longo dos anos, quase que desprovidos de procedimentos administrativos em sentido específico. Havia apenas uma sumária apuração dos fatos.
De tal modo, o novo Cenário Constitucional impôs a necessidade de os sistemas disciplinares militares se conformarem ao ordenamento jurídico. Por conseguinte, alguns diplomas normativos[1] foram exarados como forma de orientar a aplicação das injunções constitucionais.
Nesta seara, foram elaboradas algumas normas de processos administrativos disciplinares e de controle interno das decisões. Os recursos disciplinares, com nova roupagem, passaram a ter maior relevância, pois a partir do novo cenário possibilitariam aos acusados na esfera disciplinar postular a reforma das decisões administrativas, direcionadas por um rito procedimental previamente estabelecido. Tudo isto deveria convergir para melhor aplicação da justiça interna, assegurar a manutenção dos postulados disciplinares dos militares, evitar a desnecessária e prematura inserção do judiciário nos assuntos internos das corporações e, primordialmente, garantir a segurança jurídica das relações administrativas.
Não se sabe, todavia, qual a efetividade destes diplomas normativos e a sua adequação ao ordenamento jurídico-administrativo haurido com a nova Constituição. Algumas questões restaram não resolvidas em alguns regulamentos, a par da insuficiência de normas específicas ou pela incompatibilidade exegética das mesmas em face da nova ordem, tais como: a possibilidade ou não de agravar a decisão em sede recursal, a prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração Militar, e a possibilidade da concessão de efeito suspensivo ao recurso disciplinar. Por conseguinte, considerando-se a insuficiência de normas específicas sobre o controle interno das decisões disciplinares, surgem as indagações iniciais que pautarão esta pesquisa: como deve ser interpretado/integrado o regulamento disciplinar militar? Como sanar as lacunas normativas do regulamento sobre questões internas de processamento recursal?
Ressalte-se, de antemão, que a análise será meramente exploratória e dar-se-á essencialmente em face das normas aplicáveis aos recursos no âmbito Exército Brasileiro, em particular do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), tendo em vista a sua dimensão histórica e material, a qual regula todos os possíveis aspectos da disciplina militar, bem como pela sua utilização por diversas corporações militares no âmbito dos Estados da Federação.
2. Recurso disciplinar militar: delimitação e natureza
Para que alguns atos administrativos obedeçam aos critérios de legalidade e garantam o respeito aos direitos individuais são previamente estabelecidas fases encadeadas, cujo momento final é a edição do ato administrativo. Esse iter é o processo administrativo.
Esse processo é, portanto, um instrumento estatal para a edição de atos administrativos e se traduz em várias finalidades, como: garantia, melhor conteúdo das decisões, correto desempenho da função, sistematização de atuações administrativas, facilitação do controle administrativo, dentre outras (MEDAUAR, 2002, p. 201-203).
Consegue-se, deste modo, vislumbrar uma conceituação de processo administrativo, aproveitando-se da lição de Costa (1997, p. 8):
“Processo administrativo é o conjunto de atos administrativos, produzidos por instituições públicas ou de utilidade pública, com competência expressa, respaldados em interesse público, que são registrados e anotados em documentos que formam peças administrativas, disciplinando a relação jurídica entre a Administração e administrados, os servidores públicos ou outros órgãos públicos.”
No caso dos atos disciplinares punitivos, todo o trâmite para a sua produção deve ocorrer segundo um processo administrativo disciplinar, em atendimento ao princípio do devido processo legal.
Os processos disciplinares são garantias aos acusados estabelecidos por parâmetros legais prévios, oportunizando a ampla defesa e o contraditório durante a apuração, cujo desfecho é o julgamento da conduta violadora da disciplina do serviço público e a subseqüente expedição de um ato administrativo punitivo ou absolutório.
Todavia, durante a apuração ou por ocasião do julgamento disciplinar, várias irregularidades podem ocorrer que impeçam a correta aplicação legal. Podem ser incorreções quanto ao desenvolvimento do próprio processo ou inadequações do julgamento. Em outras palavras, a irregularidade pode ser de cunho processual[2] ou de cunho material, relativo ao mérito da questão discutida. É justamente nesses pontos que surgirão as possibilidades de o acusado interpor recursos disciplinares.
Os recursos disciplinares são interpostos após o julgamento nos procedimentos administrativos com vistas a uma reapreciação da matéria por outro órgão ou autoridade, normalmente superior[3], a fim de desconstituir a punição aplicada por uma decisão que seja mais favorável ao recorrente, quer pela supressão da possibilidade de punir, quer pela redução da pena. Este é o interesse demonstrado pelo recorrente e que é albergado pelas normas dos diversos diplomas legais que tratam de processos disciplinares.
Portanto, situam-se os recursos disciplinares no bojo do controle interno[4] da Administração Pública, como forma sucessiva ao processo administrativo disciplinar, tendo em vista a não aceitação pelo administrado da solução originária. Ao instituto aplicam-se as normas de direito administrativo e, mais particularmente, do direito disciplinar, na sua vertente processual.
Na seara militar, os regulamentos disciplinares das respectivas corporações delineiam as regras básicas dos processos e recursos disciplinares. Além das normas administrativas convencionais, outros princípios e regras constitucionais se imbricam nesse contexto, dada a peculiaridade da atividade militar. O princípio constitucional da hierarquia e disciplina militar[5] é o mais claro exemplo da especialidade do tema.
Reitere-se que a processualística disciplinar, inclusive os aspectos recursais, obedece a feições variadas de acordo com as características da corporação a que se destinam, seja na esfera federal, através das Forças Armadas, ou no âmbito estadual, através das Polícias e dos Corpos de Bombeiros Militares. Assim, as regras dos processos ou dos recursos disciplinares são formuladas com amplas variações. Algumas corporações militares estaduais adotam o RDE como regulamento básico da disciplina ou utilizam-no subsidiariamente. Outras expedem seus próprios diplomas e abordam as questões de modo original.
O RDE prevê nos artigos 52 a 57 o processamento dos recursos disciplinares e estabelece prazos, requisitos, pressupostos e demais regras atinentes. Entretanto, algumas situações factíveis não possuem previsão expressa no regulamento, situação que demanda uma interpretação mais cautelosa e apurada. Para tanto, valer-se-á este estudo dos critérios hermenêuticos aplicáveis ao direito e ao processo administrativo disciplinar como indicadores da solução das controvérsias apresentadas.
3. Aspectos hermenêuticos: critérios para interpretação e integração dos recursos disciplinares
Para que o ato disciplinar seja expedido com validade preciso é que a sua formação esteja de acordo com a prescrição legal, uma vez que no Estado Democrático de Direito o ato disciplinar somente será adequado se obedecer ao devido processo legal. Logo, os processos disciplinares são os mecanismos que viabilizam a expedição desses atos.
O RDE, apesar da sua generalidade e força normativa histórica, não exaure seus conceitos detidamente, deixando grande margem de discricionariedade aos aplicadores da disciplina, mormente no que tange à questão do processo e do recurso disciplinar. Em alguns casos, inexistem normas procedimentais específicas a regular determinadas situações. Pergunta-se, portanto, qual a melhor forma de integrar as possíveis lacunas normativas do referido sistema disciplinar? Como efetuar o controle das decisões disciplinares, quando não há um delineamento exaustivo de determinados procedimentos?
A resposta soa naturalmente com a aplicação das regras de hermenêutica jurídica[6], à luz dos preceitos constitucionais.
Interpretar é buscar o alcance e o sentido da norma em apreço. Integrar, por sua vez, é preencher possíveis lacunas existentes nas normas analisadas, a partir da aplicação de métodos previamente estabelecidos. Deste modo, a hermenêutica jurídica consegue extrair o perfeito alcance e conteúdo das normas, ainda que haja omissões legislativas. Para tanto, se vale de processos de interpretação convencionais, quais sejam o literal ou gramatical, histórico, teleológico e sistemático. Diante das lacunas, se utiliza da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. Lembre-se, ainda, que a interpretação jurídica deve sempre estar calcada nos princípios constitucionais, a base do ordenamento jurídico pátrio, sob pena de inocuidade.
O Direito Administrativo é um ramo do Direito Público Interno de forma que a sua interpretação não se vale estritamente das regras de Direito Privado; utiliza-se destas apenas como fundamento de base. Tem aquele ramo uma principiologia específica que o informa e que delimita seu modo de encarar as normas. Segundo Hely Lopes Meirelles (2001, p. 43), há que se considerar três pressupostos específicos na interpretação do Direito Administrativo: a desigualdade jurídica entre Administração e administrado; a presunção de legitimidade dos atos da Administração e a necessidade de poderes discricionários para atender ao interesse público.
Desta forma, os métodos interpretativos relativos ao Direito Civil – contidos nos art 1º a 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) – são admitidos pelo direito administrativo[7] com a ressalva citada. Portanto, quando se trata das lacunas do direito[8] administrativo disciplinar, a integração das normas será pautada pela analogia, costumes e princípios do direito, com a observância daqueles pressupostos inerentes ao Direito Público.
“Sendo o direito administrativo de elaboração pretoriana e não codificado, os princípios representam papel relevante nesse ramo do direito” (DI PIETRO, 2000, p. 67). Ademais, mormente no âmbito da Administração, várias normas são editadas em vista de circunstâncias momentâneas, o que resulta na produção múltipla de textos, sem reunião sistemática. Os princípios, por sua finalidade diretiva e informadora, servirão para suprir lacunas, melhorar a compreensão de textos desvinculados entre si, além de proporcionar certeza aos cidadãos quanto ao conteúdo dos seus direitos e deveres.[9]
Para tal, encontra-se difundida a partir do pós-positivismo[10] jurídico a idéia de interpretação constitucional como baliza hermenêutica. “Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados.” (BARROSO, 2005)
Há, ainda, a necessidade de destacar o preceito do art 69 da lei 9.784/99, que assim versa: “Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”. A lei em apreço regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal e serve de subsídio para todos os tipos de processos administrativos, inclusive os disciplinares. Não obstante, sua aplicação subsidiária terá guarida apenas nos casos em que o silêncio da norma do processo disciplinar não se traduza em vedação, mas se constitua em verdadeira lacuna ou incompletude. Havendo o “silêncio eloqüente” da norma, ou seja, uma vedação intencional pela falta de previsão, não há que se utilizar da subsidiariedade da Lei em apreço.
Portanto, no tocante aos aspectos do processo disciplinar militar, poderá o julgador originário ou em grau de recurso se valer da interpretação sistemática do respectivo Regulamento a partir de princípios constitucionais e legais de direito e processo administrativo disciplinar militar. Ou seja, não se faz uma interpretação isolada de dispositivos ou de partes do regulamento. Do confronto das regras internas do regulamento em estudo, expande-se a interpretação em face dos princípios decorrentes do direito militar e de outros princípios constitucionais. No âmbito das Forças Armadas, cabe, ainda, a utilização supletiva da lei 9.784/99 a fim de sanar lacunas dos referidos diplomas disciplinares.
Por conseguinte, segue-se abaixo a seqüência de problemas não ventilados no RDE que demandam uma análise mais apurada de forma doutrinária. Rememore-se, no entanto, que a interpretação jurídica para as questões listadas se dirige às instituições que adotam o RDE como regulamento disciplinar básico ou supletivo ou, ainda, que possuam regulamentos com regras recursais similares.
4. Da prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração Militar
O “tempo” enquanto fenômeno jurídico possui grande importância prática, pois o seu transcorrer implica na aquisição, perda, extinção ou modificação de direitos. Isto ocorre em qualquer relação jurídica, seja de cunho privado ou de cunho público. Seja em sede judicial ou administrativa, persistem os efeitos do tempo a influenciar as diversas relações e situações jurídicas. Assim, vários institutos jurídicos ganham destaque no cenário do direito, sendo de interesse para este caso a “prescrição administrativa”.
Para tanto, parte-se de uma conceituação proposta por Carvalho Filho (2005, p. 751), ao dispor que a prescrição administrativa é “a situação jurídica pela qual o administrado ou a própria administração perdem o direito de formular pedidos ou firmar manifestações em virtude de não o terem feito no prazo adequado”.
Vê-se, pois, que o instituto da prescrição administrativa pode ser encarado sob dois ângulos: pela ótica do administrado e pela ótica da Administração Pública[11], em situações diametralmente opostas. Interessa, no caso específico da questão posta, perscrutar acerca dos efeitos da prescrição para a Administração.
Sabe-se que são dois os efeitos existentes para a Administração: o de impedir a revogação dos seus atos e o de impossibilitar a aplicação de punições. Este último, por sua vez, é também subdivido por parte da doutrina, que diz haver a prescrição da falta e a prescrição da pena, nos moldes do direito penal.[12] Todavia, no direito disciplinar brasileiro somente se vislumbra a prescrição da falta, não havendo regulação em regime disciplinar de qualquer esfera da federação e ou órgão sobre a prescrição da pena. (COSTA, 2002, p. 81)
Alguns estatutos disciplinares dispõem expressamente acerca da prescrição, enquanto outros são silentes a respeito. Tem-se o exemplo do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei 8.112/90), que prevê o seguinte:
“Art. 142 A ação disciplinar prescreverá:
I – em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
II – em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;
III – em 180 (cento e oitenta) dias, quanto à advertência.”
A controvérsia reside justamente nos diplomas que não especificam prazos de prescrição. Surgem, por conseguinte, diversos posicionamentos doutrinários. Há os que entendem que a Administração não teria prazo prescricional a obedecer, enquanto outros dizem serem aplicadas as regras do direito civil. (CARVALHO FILHO, 2005, p. 752)
O RDE, objeto de análise, não possui referência a qualquer prazo prescricional para as punições a serem aplicadas. Registre-se que pesa forte entendimento de que isto seria uma carta branca para a Administração punir as faltas cometidas a qualquer tempo, conforme o pensamento de Costa (2002, p. 87): “Todos os regimes disciplinares das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) são silentes a respeito de prescrição de punições, o que equivale a dizer que são absolutamente imprescritíveis as penas disciplinares desses regulamentos.”
Por outro lado, há que se considerar que o fundamento da prescrição administrativa é a segurança das relações jurídicas, o qual se constitui em princípio constitucional[13] e também se encontra positivado na lei 9.784/99, no seu artigo 1º. Caberia, então, olvidar do posicionamento doutrinário citado, uma vez que não há jurisprudência para o caso específico dos regulamentos militares?
Neste ponto de inflexão, cabe destacar os ensinamentos do grande jurista Hely Lopes Meirelles:
“Mas, mesmo na falta de lei fixadora do prazo prescricional, não pode o servidor público ou o particular ficar perpetuamente sujeito a sanção administrativa por ato ou fato praticado há muito tempo. A esse propósito, o STF já decidiu que “a regra é a prescritibilidade”. Entendemos que, quando a lei não fixa o prazo da prescrição administrativa, esta deve ocorrer em cinco anos, à semelhança da prescrição das ações pessoais contra a Fazenda Pública (Dec 20.910/32), das punições dos profissionais liberais (Lei 6.838/80) e para cobrança do crédito tributário (CTN, art. 174).” (MEIRELLES, 2001, p. 642)
Além da legislação citada acima pelo mestre Meirelles, há outras normas de direito administrativo que indicam um critério razoável para o estabelecimento de um prazo. Seria a utilização da analogia como forma de integração das lacunas da lei administrativa. Segundo CAETANO (1997, p. 135), utiliza-se do gênero – prescrição no direito administrativo punitivo – para se chegar através da indução à situação ideal a ser transportada para o diploma omisso. Assim, tem-se o art. 28 da Lei 8.884/94 (Lei do CADE); art 23 da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa); art 1º da Lei 6.838/80 – infrações disciplinares de profissionais liberais; e o art 43 da Lei 8. 906/94 (Estatuto da OAB). Portanto, por analogia aos diplomas citados, já se poderia levantar um critério razoável para identificação dos prazos de prescrição administrativa, qual seja o de 5(cinco) anos.
De tal modo, integra-se o RDE com a idéia de que a regra no direito é a prescrição e que, na ausência de disposição expressa, pode-se estabelecer o prazo de 5 anos por analogia a outros diplomas de direito administrativo punitivo.
Acrescente-se, em tempo, a edição das Orientações sobre Aplicação do Regulamento Disciplinar do Exército expedidas pelo Comandante do Exército em novembro de 2009, que orienta, com base na competência do Art 72 do RDE, que seja considerando o prazo de 5 anos para efeitos de prescrição da ação punitiva da administração.[14]
Portanto, o entendimento doutrinário, jurisprudencial e a práxis administrativa da caserna estão, neste exato momento, em plena conformidade.
5. Da impossibilidade de aplicação da “reformatio in pejus”
A possibilidade ou não de se agravar o resultado da decisão, após a interposição do recurso, é uma celeuma enfrentada pelos operadores do direito disciplinar militar. Trata-se da aplicação da “reformatio in pejus” ou reforma para pior, que implica na possibilidade de haver decisão em recurso agravando a situação inicial.
Em termos doutrinários, duas correntes se contrapõem. Há os que entendem que a decisão do recurso interposto na esfera administrativa pode agravar a situação do recorrente, em detrimento dos que entendem pela absoluta impossibilidade.
Os primeiros pregam a similitude do direito administrativo punitivo com o direito penal processual, que é o grande propulsor do referido princípio. Assim, não seria permitido o prejuízo do recorrente que tentou obter uma decisão mais branda para o seu caso. Normalmente fundam as suas posições em critérios metajurídicos de justiça e equidade. Cite-se, como exemplo, as lições de Lazzarini (1999, p. 408):
“Em que pesem respeitáveis opiniões em contrário, é de entender-se, porém, que o apenado, que recorreu ou pediu reconsideração (anote-se que na Polícia Militar e no Exército, pedido de reconsideração é tido, por força regulamentar, como recurso) não quer agravada a sua situação, ferindo o senso de justiça que, na decisão, ocorra o agravamento não pretendido.”
Por outro lado, os opositores desta corrente rebatem que o direito penal e direito administrativo punitivo, embora com semelhanças, possuem diferentes interesses em jogo, o que inviabilizaria a migração aleatória de princípios jurídicos de um para o outro. Afirmam também que impera no direito administrativo o princípio da legalidade, o qual demanda uma solução imperativa da lei em detrimento de qualquer interesse privado. Deve prevalecer a decisão que confere maior proximidade do comando legal. No mesmo sentido, argumentam que no processo administrativo prevalece o “princípio da verdade material” e que a agravação da decisão original é uma correção de aplicação indispensável, como forma de cumprir a lei.
Não obstante as duas correntes doutrinárias básicas, José dos Santos Carvalho Filho (2005, p. 748) faz uma distinção no tocante à corrente que admite a “reformatio in pejus”. O referido autor distingue as situações em que a reforma da decisão atende a critérios objetivos ou subjetivos. Veja-se.
Se houver necessidade de correção da decisão original por elementos essencialmente objetivos, tais como correlação da pena com a gravidade, enquadramento incorreto, utilização errônea de circunstâncias atenuantes ou agravantes, dentre outras, é possível que o órgão julgador do recurso proceda a correta aplicação da lei ao caso concreto e corrija a decisão recorrida, ainda que o resultado seja desfavorável ao recorrente. Em suma, no caso de comprovada ilegalidade, seria possível a reformatio in pejus.
No caso oposto, todavia, quando houver a apreciação apenas subjetiva dos elementos constantes dos autos, tais como apreciação das provas, dos elementos do processo, do grau de dolo ou de culpa, dentre outros, não poderá haver a reforma para pior, segundo o magistério do referido autor. É que neste caso não consta uma análise de legalidade, mas apenas uma apreciação subjetiva divergente, acerca das mesmas circunstâncias jurídicas formalmente válidas.
A par destas constatações, deve-se perquirir sobre o que se encontra positivado na legislação (RDE) e, além de uma interpretação meramente literal, averiguar outras formas de exegese. Para tanto, veja-se o que diz o RDE nos seus artigos 41 e 55, verbis:
“Art. 41. A punição disciplinar aplicada pode ser anulada, relevada ou atenuada pela autoridade para tanto competente, quando tiver conhecimento de fatos que recomendem este procedimento, devendo a respectiva decisão ser justificada e publicada em boletim. (…)
Art. 55. Se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado.
Parágrafo único. Se apenas em parte, a punição aplicada poderá ser atenuada, cancelada em caráter excepcional ou relevada.” (grifei)
O RDE não prevê expressamente a agravação da punição. Prevê apenas a atenuação, que seria uma diminuição no seu quantum. A partir de uma interpretação histórica acerca da questão específica, percebe-se que no antigo regulamento disciplinar (Decreto 90.608 de 1984) era prevista a agravação da punição disciplinar, que assim versava:
“Art 39 – A punição aplicada pode ser anulada, relevada, atenuada ou agravada pela autoridade que a aplicar ou por outra, superior e competente, quando tiver conhecimento de fatos que recomendem tal procedimento.” (grifei) Decreto 90.608/84
Com o silêncio acerca do preceito agravador pelo novo RDE, nos artigos 41 e 55, pode-se entender que houve a revogação da norma anterior, pois quando um novo diploma regula inteiramente matéria idêntica e expressamente a declara, há a revogação total do diploma. Vide a Lei de Introdução ao código civil[15], que trata desta questão interpretativa.
Nesse caso específico do Regulamento não existe lacuna normativa e sim o “silêncio eloqüente”. O RDE apresenta claramente quais são as possibilidades de decisão em recursos disciplinares. Como não há qualquer contradição interna com suas próprias regras, tampouco com outras regras das Leis estatutárias ou da Constituição Federal, deduz-se pela interpretação sistemática que o texto regulamentar alinhou-se à corrente doutrinária que inadmite a agravação da decisão em sede recursal. Percebe-se nas entrelinhas a preocupação com os ditames de justiça e equidade em face daquele que responde a um processo disciplinar. Logo, o silêncio da norma é do tipo “eloqüente” e deve ser interpretado como vedação à possibilidade de agravação de punição em sede de recurso.
6. Da possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso disciplinar
Os recursos disciplinares, à similitude dos recursos judiciais, podem ser dotados de duplo efeito: devolutivo e suspensivo.
O efeito devolutivo, que é a regra, ocorre pelo conhecimento de toda a matéria objeto de análise pelo órgão julgador do recurso. Devolve-se àquele que irá julgar o recurso todas as questões discutidas no processo disciplinar.
Já o efeito suspensivo se caracteriza pela impossibilidade de cumprimento da punição disciplinar aplicada no processo originário, enquanto não houver um novo pronunciamento do órgão superior que ratifique aquela decisão. Ocorre ainda com a suspensão do cumprimento da punição, após interposição do recurso, até o seu julgamento final. Nesse caso, confirmada a punição na decisão do recurso, reinicia-se o cumprimento do restante que faltava para o término do prazo.
Ressalte-se, no entanto, que o efeito suspensivo somente ocorrerá se houver previsão expressa no diploma disciplinar, conforme asseverado por maciça doutrina. Neste sentido:
“Vale dizer, o efeito será meramente devolutivo, não alterando, portanto, a plena eficácia, a plena execução do ato punitivo, isto é, o recurso ou o pedido de reconsideração não suspendem a execução do ato punitivo, salvo se, ao contrário, dispuser a lei ou o regulamento disciplinar.” (LAZZARINI, 1999, p. 408)
Esta assertiva, longe de ser apenas uma construção doutrinária, encontra-se positivada na lei 9784/99: “Art. 61. Salvo disposição legal em contrário, o recurso não tem efeito suspensivo”. Retome-se, portanto, o ensinamento da aplicação subsidiária desta lei ao processo disciplinar do RDE.
O fundamento da exceção ao efeito suspensivo é justamente a presunção de legitimidade dos atos administrativos disciplinares, pois o indivíduo terá que cumprir a decisão, até que apuração posterior possa desconstituí-la, se houver respaldo legal. Prevalecem, até prova em contrário, os efeitos da decisão da Administração.
Ressalte-se, também, que a ampla adoção do efeito suspensivo na seara militar poderia enfraquecer a regularidade dos serviços e relações no seio das organizações militares, posto que as punições disciplinares seriam postergadas no tempo, causando uma atenuação do necessário imediatismo disciplinar. Notadamente na esfera militar, tal circunstância destruiria os seus pilares básicos: a hierarquia e a disciplina, já que as punições para terem o efeito desejado precisam ser imediatas. A pronta disciplina no meio militar visa não somente à educação do punido, mas reveste-se também de fator preventivo e intimidatório com a educação da coletividade.[16]
O silêncio do RDE acerca do efeito suspensivo dos recursos não autoriza a sua utilização, a princípio. Ademais, essa imprevisão de efeito suspensivo é corroborada pela prescrição do seu artigo 47, que não prevê lapso temporal para o início do cumprimento da pena:
“Art. 47. O início do cumprimento de punição disciplinar deve ocorrer com a distribuição do boletim interno, da OM a que pertence o transgressor, que publicar a aplicação da punição disciplinar, especificando-se as datas de início e término.”
Por outro lado, entendem os doutrinadores que há possibilidade de concessão do efeito suspensivo quando ficar patente a sua necessidade, mesmo ante a inexistência de previsão legal. Segundo Carvalho Filho (2005, p. 746), o fundamento desta medida seria a autotutela administrativa, pois se a autoridade pode paralisar de ofício sua atividade, poderá fazê-lo também diante de um recurso sem o efeito suspensivo. Na mesma linha é o entendimento de Meirelles (2001, p. 634):
“No silêncio da lei ou do regulamento, o efeito presumível é o devolutivo, mas nada impede que, nessa omissão, diante do caso concreto, a autoridade receba expressamente o recurso com efeito suspensivo para evitar possíveis lesões ao direito do recorrente ou salvaguardar interesses superiores da Administração.”
Observe-se que, da mesma forma, estas premissas estão assentadas no parágrafo único do artigo 61 da Lei 9.784/99: “Havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido, dar efeito suspensivo ao recurso”.
Assim, a partir de uma análise em que sejam sopesados os possíveis prejuízos para o administrado, poderá o julgador do recurso conceder ou não o efeito desejado. Transpondo tais ensinamentos para a esfera normativa do RDE, percebe-se que não se deve interpretar o silêncio do texto como um imperativo de cunho proibitivo. Veja-se.
Apesar da aplicação do princípio da hierarquia e disciplina militar e a necessidade de aplicação tempestiva e imediata da reprimenda disciplinar, os fundamentos para a concessão discricionária de efeito suspensivo estão assentados no princípio da eficiência. Se a autoridade vislumbra, desde logo, que há possível mácula no julgamento originário do processo e que o cumprimento da pena poderá se transformar em medida excessiva, poderá se valer do seu poder hierárquico para suspender a cumprimento da pena durante o processamento do recurso. Dessa forma, como guardião da moralidade e gestor da Administração, a autoridade militar evitará uma possível futura anulação da punição infligida.
Aplica-se, no caso, o princípio da autotulela administrativa em consonância com os pressupostos do “periculum in mora” descritos no artigo da lei citada.
Ressalte-se, no entanto, o caráter discricionário da medida, pois, além de verificar os pressupostos de urgência e necessidade, o julgador “poderá” ou não conceder o efeito suspensivo, de ofício ou a pedido do recorrente. Pela letra do RDE, e até mesmo pela utilização subsidiária da Lei 9.784/99, não existe a previsão de efeito suspensivo ao recurso, o que retira qualquer possibilidade de direito subjetivo por parte do recorrente.
Assim, do confronto entre os princípios constitucionais, autoridade disciplinar que julgar o recurso deverá sopesar aquele que deverá preponderar no caso concreto, se o princípio da hierarquia e disciplinar militar ou o princípio da eficiência e da segurança jurídica. Portanto, a Administração decidirá mediante critérios de conveniência e de oportunidade para a concessão do efeito suspensivo.
7. Considerações finais
A evolução do panorama jurídico a partir das últimas décadas foi marcada pela mudança do paradigma interpretativo, culminando na fase do Pós-positivismo jurídico. Os princípios passaram a ter maior aplicabilidade, desempenhando concomitantemente as funções fundamentadora ou criadora de normas, interpretativa, supletiva, integrativa, sistematizadora do ordenamento jurídico e limitativa de direitos.
Esse influxo de idéias confrontou-se com a inadequada e anacrônica interpretação literal que impregnava o tema dos regulamentos disciplinares militares e deixava questões em aberto. A partir da “filtragem constitucional” proporcionada pela moderna hermenêutica jurídica, erige-se a idéia de que o sistema disciplinar militar deve ser interpretado com base nos princípios da carta maior e nos princípios jurídicos de direito público, com a certeza de que as possíveis lacunas normativas serão preenchidas.
Desse modo, questões aparentemente lacunosas do RDE são solvidas com as seguintes interpretações: prescreve em cinco anos a pretensão punitiva da Administração Militar; não é possível o agravamento das decisões disciplinares proferidas em grau de recurso; e, por fim, torna-se possível conferir o efeito suspensivo ao recurso disciplinar, mediante discricionariedade da autoridade recorrida.
Longe de esgotar as possíveis controvérsias, este estudo deixa assente que há plena viabilidade de integração dos direitos individuais e das garantias constitucionais ao direito disciplinar militar, a partir da utilização dos princípios jurídicos como um novo vetor interpretativo.
Major do Exército Brasileiro; Mestre em Operações Militares; Pós graduado em Direito Processual Civil, em Direito em Administração Pública e em Psicopedagogia e Orientação Educacional; Pós-graduando em Direito Militar; Bacharel em Direito e em Ciências Militares.
Uma das dúvidas mais comuns entre clientes e até mesmo entre profissionais de outras áreas…
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regula o trabalho aos domingos, prevendo situações específicas…
O abono de falta é um direito previsto na legislação trabalhista que permite ao empregado…
O atestado médico é um documento essencial para justificar a ausência do trabalhador em caso…
O cálculo da falta injustificada no salário do trabalhador é feito considerando três principais aspectos:…
A falta injustificada é a ausência do trabalhador ao trabalho sem apresentação de motivo legal…