Resumo: O presente ensaio analisa o problema que envolve a colisão entre direitos fundamentais proporcionado pela recusa às transfusões de sangue por Testemunhas de Jeová. Mais precisamente, discutir que o direito à vida biológica e à liberdade religiosa, ambos consagrados no artigo 5º da nossa Constituição Federal entram em choque no momento da recusa, cabendo ao aplicador do direito analisar tal conflito, de modo a apresentar uma solução ao caso concreto.
Palavras-chave: Transfusão sanguínea; testemunhas de Jeová; colisão de direitos fundamentais.
Abstract: This essay examines the problem involving the collision of fundamental rights provided by refusing blood transfusions for Jehovah’s Witnesses. More precisely, argue that the right to biological life and religious freedom, both enshrined in Article 5 of the Federal Constitution clash at the time of refusal, leaving the investor the right to analyze this conflict so as to present a solution to this case .
Keywords: Blood transfusion, Jehovah’s Witnesses; collision of fundamental rights.
Sumário: 1 Introdução; 2 A importância das transfusões sanguíneas; 3 As testemunhas de Jeová e a recusa às transfusões de sangue; 4 Dos que defendem a recusa à transfusão sanguínea; 5 Dos que repelem a recusa ao tratamento com sangue; 6 Da colisão entre direitos fundamentais; 6.1 Princípios e regras; 6.2 A solução para colisão entre direitos fundamentais; 7 Considerações finais; 8 Referências.
1. Introdução
O artigo faz menção à recusa às transfusões de sangue, manifestada pelos adeptos à religião Testemunhas de Jeová, por suposto mandamento bíblico.
Primeiramente, discorremos de forma sucinta sobre a história das Testemunhas de Jeová e sua fundamentação para a proibição ao tratamento com sangue.
Nesse segmento, abordamos as divergências que envolvem o tema, demonstrando serem pautadas em direitos fundamentais, igualmente protegidos pela nossa Constituição Federal: o direito à vida e o direito à liberdade de crença.
Posteriormente, analisamos a possibilidade ou não da existência de hierarquia entre os direitos fundamentais, sobretudo, quando da colisão entre eles. Posto isto, falamos sobre os princípios, distinguindo-os das regras dentro do contexto jurídico.
Ademais, enfrentamos algumas questões atinentes às técnicas utilizadas para a solução de conflitos entre direitos fundamentais, apontando a possibilidade de ponderação de valores envolvidos, no sentido de solucionar a questão em dado caso.
Destarte, opinamos sobre o tema apontando ser a escolha mais razoável que se preserve a vida biológica quando de cotejo um com qualquer outro direito.
2. A importância das transfusões sanguíneas
O sangue tem uma importância enorme na vida humana, tanto que pesquisas relativas a este e seus componentes podem salvar vidas ou, pelo menos, melhorar a qualidade de vida de quem sofre com certas doenças. Atualmente, já se pode usufruir de hemoterapias (tratamento com sangue ou derivados) eficazes, em que muitos pacientes se beneficiam com uma única doação de sangue, a partir do uso seletivo dos seus componentes.
Contudo, a ciência médica tem apresentado tratamentos e cirurgias sem a utilização de sangue, devido à grande preocupação quanto ao seu uso, como constata Mariane Cristine Tokarski citando Celso Ribeiro Bastos:
“Há sim outros tratamentos alternativos – desenvolvidos e utilizados por médicos alopatas, e não por sectários de uma religião específica – que atingem o mesmo resultado. São eles: os expansores do volume do plasma, os fatores de crescimento hematopoéticos, a recuperação intra-operatória do sangue no campo cirúrgico, a hemostadia meticulosa etc. O fato de se ter mais de um tratamento em substituição à transfusão de sangue já nos leva logo a concluir que este não é o único modo de salvar a vida do paciente. Pode-se, portanto, prescindir dele por outras formas alternativas de tratamento” (BASTOS apud TOKARSKI, 2003, p. 2).
A transfusão sanguínea trata-se de um tratamento médico que não é isento de complicações, entretanto, por mais que detenha perigo, é tão importante quanto a um transplante de órgãos, que, igualmente, embora tenha seus benefícios, traz consigo alguns riscos[1].
Por mais que existam outros tratamentos alternativos, há que se considerar sua inaplicabilidade a todos os casos, como fomenta Aldir Guedes Soriano:
“[…] remanesce o problema, especialmente nos casos em que há uma grande perda de sangue, e o tratamento, chamado alternativo, não é suficiente, para se manter a vida do paciente. Assim sendo, salienta-se que, apesar da evolução da ciência, a terapia transfusional, continua sendo imprescindível nos casos de hemorragias agudas […]” (SORIANO, 2001, p. 01).
Portanto, há terapias sem utilização de sangue que não podem ser ministradas em todos os casos, havendo situações nas quais só o tratamento hemoterápico (com sangue ou derivados) será realmente eficaz.
Posta nestas breves linhas a importância da transfusão sanguínea e sua relatividade em determinados casos, passaremos ao objeto de discussão do presente trabalho, qual seja, a recusa à transfusão de sangue por parte dos adeptos da religião Testemunhas de Jeová.
3 As testemunhas de Jeová e a recusa às transfusões de sangue
A comunidade religiosa conhecida por Testemunhas de Jeová iniciou suas atividades em 1870, em Alleghny, Pensilvânia, Estados Unidos da América, quando Charles Taze Russell publicou a revista A Sentinela[2], com o fim de expor suas ideias sobre o que considerava como verdade bíblica em contraste com erros doutrinários atribuidos a outras denominações religiosas. A partir do referido, pessoas que recebiam a revista começaram a reunir-se em grupos para estudo da Bíblia, tornando-se conhecidos por “Estudantes da Bíblia” e mais tarde por “Testemunhas de Jeová” (MARTINEZ, 2007, p. 01).
Posteriormente, “visando uma maior divulgação pela página impressa, Russell fundou a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados da Pensilvânia, a qual se tornou o principal instrumento norteador desse grupo religioso” (MARTINEZ, 2007, p. 01).
“As Testemunhas de Jeová são conhecidas mundialmente pela obra de evangelização realizada voluntariamente de casa em casa e também nas ruas, bem como por recusarem muitas das doutrinas centrais das demais religiões cristãs, pelo apego a fortes valores, tais como a neutralidade política, moralidade sexual, honestidade e a recusa em aceitar transfusões de sangue” (MARTINEZ, 2007, p. 01).
Atualmente, há grande divergência acerca da recusa à terapia transfusional por motivação religiosa. Defensores de tal possibilidade sustentam que a recusa é base de um dogma religioso que deve ser respeitado e admitido pelo mundo jurídico.
Todavia, correntes contrárias vêem a vida biológica[3] como interesse preponderante, sob a alegação de tratar-se a vida “[…] de um valor supremo na ordem constitucional, que orienta, informa e dá sentido último a todos os demais direitos fundamentais” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 394).
Delineadas as premissas básicas do trabalho, passemos a uma análise mais profunda dos principais argumentos que envolvem a discussão.
4 Dos que defendem a recusa à transfusão sanguínea
A Constituição Federal preceitua em seu art. 5º, VI a inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
Além disso, o inciso VIII do mesmo dispositivo Constitucional declara que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Seguindo esses ditames, observa-se assegurar a Carta Magna que ninguém será obrigado a recusar suas crenças por imposição do Estado, pois “[…] a liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, alcançando também a possibilidade do indivíduo adepto à determinada religião orientar-se segundo as posições por ela estabelecidas” (GOIÁS, 2009, p. 03).
Nesse sentido discorre João Rodholfo:
“A Constituição ao consagrar a inviolabilidade de crença religiosa, não está dizendo somente que a pessoa está autorizada a acreditar em alguma coisa, antes inclui o direito de exercer os dogmas de sua fé. Isto inclui os cultos religiosos e suas liturgias. Consequentemente, ela também tutela a garantia de expressar sua fé em todos os aspectos de sua vida, como no comportamento, na música ou na decisão sobre tratamentos médicos […]” (RODHOLFO, 2008, p. 01).
Pode-se ressaltar tratarem-se estes mandamentos constitucionais, da base de fundamentação jurídica para a recusa à terapia transfusional por parte dos adeptos à religião Testemunhas de Jeová.
As Testemunhas de Jeová sustentam não terem o objetivo de renunciar à vida, quando recusam o tratamento com sangue, desejando, unicamente, serem submetidos a um tratamento alternativo, uma vez que existem, cada vez mais, tratamentos sem a utilização de sangue.
Sustentam ainda que tal recusa fundamenta-se no direito a uma vida digna, tendo como base o princípio da dignidade da pessoa humana[4] garantido pela nossa Constituição[5], pois, recebendo o sangue as Testemunhas de Jeová seriam consideradas impuras em seu meio social, sob interpretação feita dos textos bíblicos de Gênesis, 9: 3 – 4, Levítico, 17: 10 – 14 e Atos, 15: 28 – 29.
Outro fundamento utilizado por seguidores dessa religião para a recusa em submeter-se a determinado tratamento médico reside no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, o qual deixa claro que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei.
Enfim, para esta corrente de pensamento, os adeptos desta religião podem recusar-se ou desautorizar a terapia transfusional. Para tanto, portam, normalmente, um documento identificando-as, com o intuito de não serem submetidas a transfusões de sangue.
Ademais, conforme Ana Carolina Reis Paes Leme “[…] o direito fundamental à liberdade, em acepção ampla, engloba direitos fundamentais a liberdades específicas, sendo uma delas: a liberdade de religião” (LEME, 2004, p. 01).
Seguindo o raciocínio, a mesma autora aduz que:
“A garantia de liberdade, no aspecto da religião, consiste na possibilidade de livre escolha pelo indivíduo da sua orientação religiosa e não se esgota no plano da crença individual, meramente subjetiva, de foro íntimo, mas abarca a prática religiosa, também denominada de liberdade de culto” (LEME, 2004, p. 01).
Assim sendo, à luz dos argumentos expostos, as Testemunhas de Jeová defendem deterem o direito de manifestarem sua orientação religiosa, sendo-lhes assegurado o direito de recusa à prática de atos que atentem contra as suas convicções pessoais.
5 Dos que repelem a recusa ao tratamento com sangue
Corrente contrária à recusa de transfusão sanguínea por motivação religiosa, argumenta tratar-se o direito à vida biológica irrenunciável sob qualquer aspecto, sendo a base para a existência de todos os outros direitos, como se depreende nas palavras de Alexandre de Moraes quando defende que “[…] o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos” (MORAES, 2005, p. 31).
José Afonso da Silva assevera ainda, que a vida é a “[…] fonte primária de todos os outros bens jurídicos” (SILVA, 2005, p. 198).
Neste diapasão Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, afirmam que:
“Sendo um direito, e não se confundindo com uma mera liberdade, não se inclui no direito à vida a opção por não viver. Na medida em que os poderes públicos devem proteger esse bem, a vida há de ser preservada, apesar da vontade em contrário do seu titular” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 398).
Os mesmos autores concluem que:
“Assim, nos casos em que a vida se vê mais suscetível de ser agredida, não será de surpreender que, para defendê-la, o Estado se valha de medidas que atingem a liberdade de outros sujeitos de direitos fundamentais” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 400).
Nesses termos, fazendo uso mais uma vez das ponderações de Ana Carolina Reis Paes Leme, pode-se afirmar que:
“A vida é um direito fundamental, garantida constitucionalmente como bem inviolável, máxime do nosso ordenamento e protegida pelo Estado com prioridade, uma vez que constitui suporte indispensável para o exercício de todos os demais direitos” (LEME, 2004, p. 01).
Seguindo o raciocínio, o Código Penal em seu art. 146, § 3º inciso I, prescreve que não configura o delito de constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
Relativamente ao assunto, complementa Pedro Lenza que:
“[…] se estiver o médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, pois, fazendo uma ponderação de interesses, não pode o direito à vida ser suplantado diante da liberdade de crença, até porque, a Constituição não ampara ou incentiva atos contrários à vida” (LENZA, 2009, p. 01).
No que tange à postura do médico, vale frisar, se não prestar a devida assistência, pode incorrer no delito de omissão de socorro, descrito no Art. 135 do Código Penal[6].
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1.931/2009[7], veda ao médico (Art. 22) deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte, além de (Art. 31) desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
Vários Tribunais de Justiça já se posicionaram a respeito. Dentre eles, destacamos um do Rio Grande do Sul (AC 70020868162 – 5ª C. Cível – rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack – j. 22.08.2007):
“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. […] Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares” (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 01).
No caso, o Hospital alegou que se faz necessária ordem judicial determinando a realização de transfusão de sangue, imprescindível para a continuação do tratamento médico na paciente, ora apelada, a qual se recusa a submeter-se ao referido procedimento, por ser Testemunha de Jeová.
Entendeu o Tribunal supramencionado, ao negar provimento ao recurso, que “No caso dos autos, revela-se desnecessária a intervenção judicial, pois o médico e a instituição hospitalar, ao prestarem seus serviços aos pacientes, têm o dever de realizar todo e qualquer procedimento técnico necessário para a manutenção da vida” (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 03).
Nesse contexto, não há necessidade nem utilidade da intervenção jurisdicional, pois o médico é obrigado a empregar todos os meios disponíveis para salvar a vida dos pacientes. Portanto, diversamente do alegado nas razões recursais, a manifestação judicial não é imprescindível, porquanto o profissional da medicina tem o dever de tratar o internado, em caso de risco de vida, independentemente de seu consentimento (RIO GRANDE DO SUL, 2007, p. 03-04).
De mais a mais Pedro Lenza apregoa que:
“Conforme noticiado pela Assessoria de Comunicação Social do TRF1, no julgamento do Agravo de Instrumento 2009.01.00.010855-6/GO (26/02/2009), o desembargador federal Fagundes de Deus registrou que no confronto entre os princípios constitucionais do direito à vida e do direito à crença religiosa importa considerar que atitudes de repúdio ao direito à própria vida vão de encontro à ordem constitucional – interpretada na sua visão teleológica. Isso posto, exemplificou o magistrado que a legislação infraconstitucional não admite a prática de eutanásia e reprime o induzimento ou auxílio ao suicídio. Dessa forma, entende o magistrado que deve prevalecer ‘o direito à vida, porquanto o direito de nascer, crescer e prolongar a sua existência advém do próprio direito natural, inerente aos seres humanos, sendo este, sem sombra de dúvida, primário e antecedente a todos os demais direitos” (LENZA, 2009, p. 01).
Essa corrente defende a necessidade de tratamento hemoterápico em respeito à própria vida biológica. Sustenta não haver alternativas à transfusão sanguínea para todos os casos que dela necessite, principalmente, naqueles casos em que o tratamento (chamado alternativo), não é suficiente para manter a vida do paciente, como quando há grande perda de sangue.
Destarte, vislumbrados os principais argumentos que sufragam ou não pela recusa à transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová, nota-se existir um conflito entre bens jurídicos consagrados na Constituição (direito à vida biológica e a liberdade de crença).
Posto inexistir hierarquia entre os direitos fundamentais, discutir como se resolve a celeuma que envolve a colisão entre referidos direitos é o principal alvo do nosso estudo, conforme investigaremos a seguir.
6 Da colisão entre direitos fundamentais
A colisão de direitos fundamentais ocorre quando um direito fundamental interfere diretamente no âmbito de proteção de outro, ou seja, quando dois ou mais direitos consagrados na Constituição encontram-se em contradição no caso concreto.
A solução para tais conflitos fica a cargo do julgador, que para resolver a colisão, deve buscar o sacrifício mínimo dos direitos em “jogo”, realizando a ponderação dos bens envolvidos, conforme observamos na lição de Robert Alexy:
“Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta” (ALEXY, 2008, p. 93).
Vale ressaltar, nenhum princípio tem primazia sobre os demais. Ocorre, todavia, que dado princípio deverá ser aplicado ao caso concreto em determinadas circunstâncias, por ser mais viável do que o outro, sem invalidar o que não foi aplicado.
Antes de apresentarmos como isso se realiza, convém tecer comentários acerca da diferença entre duas espécies de normas: os princípios e as regras.
6.1 Princípios e regras
O ordenamento jurídico deve ser compreendido e interpretado como um sistema de normas, cujas espécies são os princípios e as regras. Importante enfatizar as distinções existentes entre referidas espécies normativas, para que possamos entender a chamada “colisão de princípios”.
No entendimento de a aplicação de uma regra se opera na modalidade do “tudo ou nada”, ou seja, se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se ordena, nem mais nem menos[8]. Diante de um conflito entre regras apenas uma delas será considerada válida e como conseqüência, a outra regra deverá ser retirada do ordenamento jurídico, pois será sempre inválida, a menos que seja estabelecido que essa regra encontra-se em uma situação que excepcione a outra.
Os princípios, diferentemente das regras, são mandados de otimização que se caracterizam por poderem ser cumpridos em diferentes graus. São normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, dependendo não só das possibilidades fáticas como das jurídicas (ALEXY, 2008). Em se tratando de uma colisão entre princípios, Alexy[9] esclarece que:
“Em face de uma colisão entre princípios, o valor decisório será dado àquele que tiver maior peso relativo no caso concreto, sem que isso signifique a invalidação do princípio compreendido como de peso menor. Em face de um outro caso, portanto, o peso dos princípios poderá ser redistribuído de maneira diversa, pois nenhum princípio goza antecipadamente de primazia sobre os demais” (ALEXY apud PEDRON, 2005, p. 71).
Ademais, os princípios contêm uma carga valorativa maior, um fundamento ético, indicando uma determinada direção a seguir.
Conforme Alexy “os princípios não são valores, mas podem ser equiparados a estes. Mesmo os princípios tendo uma operacionalização idêntica aos valores, existe uma diferença básica entre eles. Os valores apontam para o que pode ser considerado melhor, ao passo que os princípios, como normas, apontam para o que se considera devido” (ALEXY, 2008, p. 144-145).
Segundo Barroso “[…] há pelo menos um consenso sobre o qual trabalha a doutrina em geral: princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica e integram, sem hierarquia, o sistema referencial do intérprete” (BARROSO, 2006, p. 340). Que, além disso, “embora os princípios e regras tenham uma existência autônoma, em tese, no mundo abstrato dos enunciados normativos, é no momento em que entram em contato com as situações concretas que seu conteúdo se preencherá de real sentido” (BARROSO, 2006, p. 348).
Os princípios são tidos como normas de um grau de generalidade relativamente alto, enquanto as regras seriam dotadas de menor generalidade. As regras são normas que exigem um cumprimento pleno, ao passo que os princípios não são determinantes para uma decisão. Portanto, as regras são aplicadas de maneira silogística, enquanto os princípios por meio de ponderação ou balanceamento. E embora os princípios possam ser aplicados com maior ou menor intensidade, à vista de circunstâncias jurídicas ou fáticas, isso não afeta sua validade (PEDRON, 2010).
6.2 A solução para colisão entre direitos fundamentais
Frequentemente os princípios entram em rota de colisão e apontam direções diversas. A colisão de princípios tanto é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético, uma vez que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes. Por essa razão, o aplicador do direito, com base no caso concreto, “[…] irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível” (BARROSO, 2006, p. 339).
Neste viés Paulo Bonavides diz que “em determinadas circunstâncias, um princípio cede ao outro, sendo que […] os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, o princípio de maior peso é o que prepondera” (BONAVIDES, 2006, p. 280).
Frisa-se que se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, um dos princípios deve recuar. Entretanto, vale insistir, isso não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que tenha que se introduzir nele uma cláusula de exceção.
Ocorrendo a colisão entre direitos fundamentais surge um problema bastante discutido, que é saber qual direito deve prevalecer, levando-se em conta que nenhum direito é absoluto.
A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de escolher qual deles prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro dentro do caso concreto.
O intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, à vista dos elementos do caso concreto, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, tais como os que fazem parte do nosso tema, ou seja, relativamente ao direito à vida e a liberdade de crença. Notemos que predominantemente, a aplicação dos princípios nesses casos se dá mediante ponderação.
No entendimento de Barroso:
“A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas” (BARROSO, 2006, p. 346-347).
Conclui o mesmo autor “que o raciocínio ponderativo está sempre associado às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas” (BARROSO, 2006, p. 347).
Esse procedimento de ponderação é descrito por Barroso “como um processo de três etapas, das quais na primeira é feita a identificação das normas aplicáveis, enquanto na segunda é feita a compreensão dos fatos relevantes. Ultrapassados estes momentos, parte-se para a terceira etapa, condizente à atribuição geral de pesos, donde se possibilita uma conclusão” (BARROSO, 2006, p. 346-347).
Portanto, para transpor o conflito causado pela recusa às transfusões de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, o intérprete utilizará a técnica da ponderação, pautado no princípio da proporcionalidade e razoabilidade. Ressaltando-se que o juízo de ponderação deve sempre visar o sacrifício mínimo dos direitos contrapostos.
Em grande parte da doutrina e jurisprudência brasileiras, “os termos proporcionalidade e razoabilidade são tratados como equivalentes” (NOVELINO, 2009, p. 170).
O princípio da proporcionalidade pode ser melhor compreendido pela análise de três requisitos: a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Adequação significa que as medidas tomadas sejam aptas a atingir o fim desejado. Necessidade significa verificar, se a medida tomada é a menos gravosa para alcançar os fins desejados, e a proporcionalidade em sentido estrito é a análise se as vantagens superam as desvantagens, “[…] aferida por meio de uma ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos.” (NOVELINO, 2009, p. 174).
7 Considerações finais
Podemos afirmar inexistirem soluções prontas para os conflitos de direitos fundamentais, por envolverem valores contrapostos.
A recusa a tratamento médico, pautada em convicção religiosa, busca guarida na inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença, nos princípios da dignidade da pessoa humana e, ainda, no princípio da legalidade.
O conflito entre a irrenunciabilidade do direito à vida e a liberdade religiosa, como em toda colisão de direitos fundamentais, deve ser solucionado por meio da análise das peculiaridades do caso concreto, para que se possa chegar ao resultado constitucionalmente desejado.
No que tange a nossa proposta (discutir a recusa a transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová) casos em que o paciente seja absolutamente capaz e esteja consciente para manifestar sua decisão, desde que exista algum tratamento alternativo ou este não corra risco de morte, grande parte da doutrina inclina-se para o entendimento de que a vontade do paciente deve ser respeitada. Com base no Parecer 1.931/2009, este também é o posicionamento do Conselho Federal de Medicina Medicina ao conceder ao paciente o direito de decisão sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas e ao estabelecer que o médico, após esclarecer ao paciente sobre o procedimento a ser realizado, deve obter seu consentimento ou de seu representante legal, desde que o paciente não se encontre em risco iminente de morte.[10]
“Entretanto, nos casos em que exista um risco iminente de morte, depois de esgotados todos os meios alternativos, e sendo a transfusão de sangue imprescindível, esta deve ser concretizada, ainda que contra a vontade do paciente, não podendo, o médico ser responsabilizado, pois sua conduta é pautada em normas jurídicas.Em se tratando de paciente incapaz ou inconsciente, a manifestação de vontade não pode ser suprida ou substituída pela dos pais ou responsáveis. A vida do incapaz deverá ser sempre primada e garantida até o momento em que ele possa, conscientemente, usufruir os seus direitos individuais, incluindo seu direito à liberdade religiosa. Se iminente o perigo de vida, é direito e também dever do médico a utilização terapêutica indicada, conforme sólida literatura médico-científica, não importando naturais divergências, sob pena de responsabilização tanto dos médicos, quanto dos responsáveis” (NOVELINO, 2009, p. 180).
É possível notar que o Estado, ao apreciar o caso, tende a colocar-se como maior interessado na vida do paciente, autorizando a transfusão de sangue contra a vontade do paciente, desde que, em iminente risco de vida e ainda, não havendo tratamento alternativo que substitua o procedimento indicado pelo médico.
Ademais, caso o aplicador do Direito vislumbre uma possível colisão entre dois ou mais princípios, deve-se analisar o caso concreto em face dos postulados normativos, fazendo-se necessária a ponderação dos valores envolvidos, com aplicação dos princípios específicos da proporcionalidade e razoabilidade.
Importante observação a ser feita, reside no fato de que não existe lei proibitiva, no sistema jurídico, da opção pela recusa à transfusão de sangue. Mas, ainda não é pacífico o entendimento quanto à questão. Todavia, como forma para solução deste conflito, a técnica de ponderação de interesses, a qual é atribuída pesos a princípios conflitantes, é a que merece melhor destaque ao nosso sentir.
Concluímos, por derradeiro, ser a escolha mais razoável que se preserve a vida biológica quando de cotejo um com qualquer outro direito. Não resta dúvida para nós, que a transfusão de sangue deve ser feita pelo médico caso o paciente se encontre em iminente risco de morte, pois para salvaguardar o direito à vida biológica é tolerável sua preponderância sob o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade religiosa, pois não existe ideologia que seja forte suficiente para se sobrepor à preservação do bem maior que é a defesa do direito à vida biológica.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – FADILESTE -Reduto/MG.
Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE
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