Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar os direitos da personalidade sob um enfoque civil-constitucional, visando abordar, especialmente, o conflito de valores albergados em nossa Constituição no que tange à recusa de se submeter às transfusões de sangue e, assim, colocando em risco à própria vida, fundamentada em crença religiosa. O trabalho discorrerá a respeito dos direitos fundamentais como um todo para uma base teórica sólida para o enfrentamento da questão especifica. O conflito entre a vida e manifestação de uma crença religiosa deve ser solucionado utilizando de uma ponderação, a fim de que um não seja óbice à proteção do outro. Contudo, em situações limites, um deverá prevalecer, e afastar a incidência do outro. Vários fatores influem nesta atividade de ponderação, tais como a capacidade do agente, bem como a possibilidade de morte diante da recusa. A doutrina majoritária entende, assim, que caso o sujeito seja capaz ele pode manifestar sua recusa, desde que a ausência da transfusão não possa levar à morte. Então, de acordo com boa parte da doutrina não pode haver recusa quando a ausência do tratamento possa levar à morte, pois o direito à vida seria o direito principal, o primordial, o alicerce ao qual se constrói os demais direitos.
Sumário: 1 Os Direitos Fundamentais. 2 Dos Direitos em Conflito – Liberdade Religiosa e Direito à Vida. 3 Da Colisão entre o Direito à Vida e Liberdade de Religião.
1 Os Direitos Fundamentais.
1.1 Conceito e Classificação.
Os direitos fundamentais tem se tornado o grande fator determinante de civilizações desenvolvidas. Pode-se dizer até que o grau de desenvolvimento de uma nação mede-se a partir da constatação com que os direitos fundamentais são positivados e efetivamente protegidos.
É nesse mesmo sentido a lição de Gilmar Mendes (2003: 231) quando diz que o avanço que o Direito Constitucional tem passado deve muito à afirmação dos direitos fundamentais.
Assim, eles têm um papel decisivo na sociedade moderna, pois confere legitimidade para a atuação de todos os Poderes Constituídos.
Antes, porem, de adentrar ao seu estudo, convém pontuar questões terminológicas, pois são várias as acepções utilizadas para designar esses direitos, sendo muito comum na doutrina, bem como na jurisprudência, a utilização de nomes distintos.
Como foge aos objetivos deste trabalho, passa-se a uma exposição sucinta das expressões mais encontradas na doutrina para designar os direitos da pessoa humana.
a) Liberdades Públicas: Essas liberdades estão mais ligadas à noção dos direitos de defesa, que são aqueles pelo qual o individuo se protege das interferências estatais. Peca por deixar de fora de seu conteúdo os chamados direitos econômicos e sociais, que exigem uma prestação.
b) Direitos individuais: Está associada ao indivíduos isoladamente considerado, essencialmente direitos civis. Por sua vez, peca por deixar de fora as concepções sociais dos direitos do homem, muito em voga na sociedade moderna.
c) Direitos humanos: Esses direitos compreendem as prerrogativas que conferem a todos, indistintamente, o poder de existência digna.
Manifestamos aqui, nossa preferência pela expressão Direita Fundamentais, por ser ela mais abrangente do que as demais e por ter sido a adotada pela Constituição das Republica. Por direitos fundamentais, podem-se entender aqueles direitos que, determinada época e lugar, são tidos como essenciais para o desenvolvimento das potencialidades do ser humano, garantindo-lhe existência digna.
Várias são as classificações dos direitos fundamentais, sendo a mais conhecida delas aquela que as divide em gerações.
Passando ao largo da critica que essa classificação já sofreu por parte de doutrinadores, que entenderam que ela mais presta um desserviço ao seu estudo do que auxilia sua compreensão, passaremos a expô-la.
Direitos de primeira geração são aquelas liberdades públicas, fruto do ideal libertário da revolução francesa pelo qual os indivíduos devem ser protegidos das interferências do Estado. São assim, direitos negativos, também denominados direitos de defesa contra o Estado. É considerado de primeira geração levando-se em conta a ordem cronológica de positivação nas Constituições.
Os direitos de segunda geração, por sua vez, são aqueles embasados pelo espírito de igualdade. São os chamados direitos sociais e econômicos. Aqui, o individuo passa a exigir não uma abstenção estatal mas sim um comportamento positivo a fim de promover a igualdade real entre os membros da coletividade.
Por fim, fala-se em direitos de terceira geração para designar aqueles direitos de uma coletividade, são os direitos difusos e coletivos. Salienta-se aqui o espírito de fraternidade.
Assim destaca Celso de Mello em seu voto no MS 22.164/SP:
“Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o principio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota essencial de uma essencial inexauribilidade”.
De mais a mais, diante dessa classificação e das diversas formas de denominar essa proteção a ser outorgada ao ser humano, o que se percebe é uma crescente consciência de se proteger o homem de acordo com as necessidades históricas de cada momento.
2 Dos Direitos em Conflito – Liberdade Religiosa e Direito à Vida.
2.1 Do Direito à Liberdade de Crença Religiosa.
De acordo com a Constituição da Republica, é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. (art. 5º, VI)
A Constituição protege todas as crenças, consagrando um grande respeito à liberdade religiosa, que compreende a liberdade de aderir a alguma religião, e a liberdade de realizar os cultos respectivos.
Antes de seguir adiante, cumpre salientar que o direito a manifestar uma dada religião compreende também a liberdade para não professar qualquer uma. É uma ampla liberdade.
Salienta Gilmar Mendes (2008: 231) que o “Estado brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu, como se deduz do preâmbulo da Constituição, que invoca a proteção de Deus.”
Assim, pode-se constatar que não há qualquer religião oficial ou obrigatória que determine uma ou outra religião.
Há, de fato, uma separação entre Estado e Igreja. Mas isso não significa que o Estado cumpre seu papel simplesmente não impedindo que os indivíduos manifestem suas crenças. Outros dispositivos da Constituição não avalizam esse entendimento. Observem-se a respeito os artigos 210, parágrafo primeiro (O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas publicas de ensino fundamental), bem como o direito à assistência religiosa previsto no artigo 5º (é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva).
Assim, cabe ao Estado promover condições para que a liberdade de crença possa ser desenvolvida nestes ambientes.
É certo que o Brasil é um Estado Laico, por não adotar uma religião certa. Contudo, apesar de não adotar uma determinada religião não se pode chegar à conclusão de que a nossa Constituição fundou um Estado ateu. Essa interpretação é rechaçada levando em consideração a invocação à proteção de Deus constante do preâmbulo da Carta Política de 1988.
MENDES, Gilmar. (2008) “na liberdade de religião inclui-se a liberdade de organização religiosa. O Estado não pode interferir sobre a economia interna das associações religiosas. Não pode, por exemplo impor a igualdade de sexos na entidade ligada a uma religião que não a acolha”.
O que importa investigar é o que pode ser considerado como abrangido pela liberdade de religião, em outras palavras, qual seria o âmbito de proteção desse direito fundamental.
A jurisprudência do STF, nesse sentido, já decidiu que a pratica de curandeirismo não pode ser considerada como inclusa sob o âmbito de abrangência deste direito a professar uma religião, conforme se constata do RHC 62240.
Tão pouco poderia ser considerado como liberdade de crença e culto a execução de outro ser humano a titulo de “sacrifício para os Deuses”.
E isso porque tais práticas configuram crime, ilícitos penais que foram eleitos pelo legislador como condutas altamente lesivas ao convívio em sociedade.
Um dos preceitos constitucionais que mais encarecem o mencionado direito fundamental é o inciso VIII, do artigo 5º pelo qual “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.”
Nesse sentido, vê-se o respeito dado pela Constituição aos indivíduos que professam determinada religião. Até mesmo diante de uma obrigação legal imposta a todos, pode o indivíduo alegar imperativo de consciência fundamentado em sua crença religiosa para que não seja compelido a observar tal conduta, não podendo sofrer conseqüências por esse ato.
Assim, ninguém pode ser compelido pelo Estado, nem mesmo por obrigação imposta em Lei, a fazer algo que seja contrario à sua crença religiosa. De certo haverá de cumprir uma prestação alternativa, mas deixa claro o valor que a Constituição decidiu dar a esse direito fundamental. Esclarecedoras as palavras de Kildare Gonçalves, deixando claro que todas as obrigações legais podem ser objeto da escusa de consciência:
GONÇALVES, Kildare.(2007) “É a recusa ao tratamento médico e a tratamentos sanitários obrigatórios impostos pelo estado para prevenir determinada enfermidade. O Código de Ética Médica, referindo-se aos direitos do paciente, em seu art. 48 veda ao médico exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar. E pelo art. 51, tem o paciente o direito de recusar tratamento para atender às suas convicções, em que o medico é proibido de: …b) efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida, notando-se que nesses casos há uma hierarquia de valores entre o dever do médico e o direito do paciente, devendo-se salientar que a vida vale mais que a crença religiosa”.
Como todo direito, ele não é absoluto, devendo ser realizado uma ponderação com outros direitos fundamentais ou valores constitucionais que eventualmente sejam colidentes entre si.
Mas é somente no caso concreto que pode ser realizada essa atividade de ponderação, pois é da avaliação de todas as peculiaridades e especificidades do caso real que pode ser determinado qual direito a prevalecer.
Demonstrando o caráter elevado desse direito fundamental:
MENDES, Gilmar. (2008) “O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denotar haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jus fundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservador e protegidos, como também ser promovidos e estimulados.”
2.1.1 As Testemunhas de Jeová
Essa religião teve como criador Charles Taze Russel por volta de 1872, que reuniu um grupo de estudo bíblico na cidade de Allegheny.
Russel então, passou a publicar suas idéias em uma revista denominada “A Sentinella”, obtendo grande circulação e leitores em todo o mundo.
Hoje, o fruto dos estudos de Russel são conhecidos como as Testemunhas de Jeová, e:
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Testemunhas_de_Jeov%C3%A1) “Constituem um grupo mundial de milhões de membros, agrupados em células locais designadas por Congregações, unidas sob uma estrutura mundial que coordena todas as suas atividades. Apesar de possuírem o que chamam de organização e nela existirem homens que assumem responsabilidades locais ou mais abrangentes, as Testemunhas não formam distinção entre clero e leigos, tal como acontece com muitas denominações religiosas. Os seus responsáveis não possuem títulos honoríficos, não usam vestimenta ou símbolos distintivos, não se lhes impõe o celibato, não são assalariados e espera-se que sejam os primeiros a dar o exemplo de boa conduta e moral aos restantes membros da congregação.”
O nome, testemunhas de Jeová, foi retirado de uma passagem bíblica, é encontrado em Isaias 43:10, que segundo a tradução do Novo Mundo das escrituras sagradas diz: “Vós sois as minhas testemunhas”, é a pronunciação de Jeová, “sim, meu servo a quem escolhi, para que saibais e tenhais fé em mim, e para que entendais que eu sou o Mesmo. Antes de mim não foi formado nenhum Deus e depois de mim continuou a não haver nenhum”.
É interessante observar, que os seguidores dessa religião utilizam uma interpretação bem peculiar do texto bíblico. Essa interpretação é feita segundo o entendimento aprovado pelo Corpo Governante dos Testemunhas de Jeová. Ou seja, os seguidores confiam nas interpretações dadas pelos lideres.
Por causa disso são acusados por alguns de manipularem as interpretações para conformar a seus interesses.
Não é o caso aqui, de aprofundar no estudo dessa religião, mas sim de entender o problema que se coloca pelo presente trabalho. Então, qual seria o fundamento usado pelas Testemunhas de Jeová para rejeitarem a transfusão de sangue?
Segundo Silvia Mota (2007), tal fundamento é encontrado nas interpretações que são feitas das seguintes passagens da Bíblia: Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma – seu sangue – não deveis comer (Gênesis, 9:3-4).
LEVÍTICO, 17:10-14; Atos 15:28,29 “Quando qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo”.
Assim, para eles, renunciar ao recebimento de sangue seria cumprir os ensinamentos religiosos que professam, independentemente se isso poderia levá-los a morte ou não.
2.2 Do Direito à Vida.
O caput do artigo 5º da Constituição da Republica afirma que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”
É lógico e intuitivo que deve ser considerado o mais fundamental de todos os direitos, pois sem a vida não há qualquer outro direito. É condição básica para que sob ele se construam os demais direitos.
Alexandre de Moraes (2005) explica as acepções do direito à vida, segundo este autor, a acepção positiva significa o direito de continuar vivo, e a acepção negativa tem o sentido de se ter uma vida digna.
É noção pacifica que o direito à vida não se limita a simplesmente continuar respirando como um organismo vivo, mas impõe uma vida digna.
O autor acima citado expõe que “o inicio da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do ovulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto.”
O direito à vida é garantido pela Constituição contra qualquer tipo de interrupção artificial do processo natural da vida humana, tanto é que é vedado pelo direito penal a pratica do aborto, bem como da eutanásia.
Disso se extrai a importância e valor desse direito fundamental que é verdadeira conditio sine qua non dos demais direitos.
Segundo a lição de Uadi Bulos (2007):
“O direito a vida não abre brechas para o império de artifícios médicos destinados a abreviar doenças incuráveis ou terríveis. É por esse motivo que a ordem jurídica proíbe todas as formas de manifestação da eutanásia. Ainda quando seja impossível prever ou impedir o exato momento em que alguém, sponte sua, elimina sua vida, mais certo ainda é que não é facultado ao homem dispor de sua própria morte.”
3 Da Colisão entre o Direito à Vida e Liberdade de Religião.
Cumpre neste tópico, investigar o ponto especifico do presente trabalho, a saber, se seria possível invocar o direito fundamental da liberdade religiosa como fundamento para impedir um tratamento médico com transfusão de sangue para salvar a vida da pessoa.
Antes disso, porem, algumas linhas a respeito de como se da a solução da colisão entre direitos fundamentais devem ser escritas para possibilitar o enfrentamento do tema.
3.1 Colisão de Direitos Fundamentais.
O tema da colisão dos direitos fundamentais é tema corrente na jurisprudência das cortes e dos trabalhos dos estudiosos. É questão que instiga o aplicador do Direito a encontrar soluções mais justas diante dos conflitos.
Modernamente, a dogmática constitucional classifica as normas jurídicas em duas grandes categorias, as regras e os princípios.
Gilmar Mendes (2008), citando Gomes Canotilho assim define as regras jurídicas:
“As regras correspondem às normas que, diante da ocorrência do seu suposto de fato, exigem, proíbem ou permitem algo em termos categóricos. Não é viável estabelecer um modo gradual de cumprimento do que a regra estabelece. Havendo conflito de uma regra com outra, que disponha em contrario, o problema se resolverá em termos de validade. As duas normas não podem conviver simultaneamente no ordenamento jurídico”.
Sendo assim, percebe-se que a aplicação das regras jurídicas se dá por simples subsunção do fato à norma, o que exige um menor esforço do interprete/aplicador. Ainda a respeito das regras, elas são dotadas de uma maior densidade normativa, sendo entendidas como concretizadoras dos princípios.
Regras se limitam a descrever com certa precisão, situações idealizadas, hipotéticas formadas por fatos. A hipótese de incidência é bem delineada. Outra característica marcante dessa espécie de normas é sua baixa carga axiológica.
Dirley da Cunha Jr (2008) também citando o mestre português Gomes Canotilho assim leciona a respeito das regras “são normas de textura fechada, juridicamente densas, que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida”.
Por sua vez, os princípios são, na lição de Robert Alexy, citado por Dirley da Cunha Jr (2008):
“Os princípios são mandatos de otimização, caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida de seu cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas.”
Assim, os princípios são aquelas normas jurídicas que tem grande carga axiológica, porém carecem de densidade normativa justamente pelo fato de não descreverem de modo objetivo e claro seu suposto de incidência.
Como bem se observa pela simples leitura da Constituição, as normas que definem os direitos fundamentais são em sua grande maioria normas-princípios.
Desta forma, como a Constituição é pluralística, albergando vários valores a serem igualmente protegidos, os princípios constantemente entram em rota de colisão.
Nesta linha de idéias, partindo da premissa de que grande parte dos direitos fundamentais são veiculados por princípios, e que a aplicação destes se dá mediante a técnica da ponderação, exige-se do aplicador do direito uma atenta atividade hermenêutica a fim de não fulminar o conteúdo de um dos princípios em beneficio de outro.
A atividade de ponderação é realizada com os olhos no caso concreto, pois é nele que deve ser buscada alguma peculiaridade a fazer prevalecer naquele especifico caso um dos princípios em conflito.
Em abstrato é inviável estabelecer uma preferência a priori do que deve preponderar, justamente por serem eles dotados da mesma hierarquia.
Lança-se mão, constantemente, do principio da proporcionalidade para solucionar esses conflitos. Pelo principio da proporcionalidade, o aplicador do direito passa a tentar conciliá-los a fim de que ambos preservem sua normatividade, e não haja o sacrifício de nenhum.
É conhecida da jurisprudência da Corte Maior brasileira, o uso da técnica da concordância pratica, que estabelece que os conflitos entre direitos fundamentais ou outros valores constitucionais devem ser resolvidos à luz do caso concreto. Somente diante dele será possível uma solução justa. Não deve haver um sacrifício de direito, mas sim sua concordância.
Em que pese ser essa técnica muito utilizada e prestigiada, de certo ela somente pacífica a consciência do aplicador do Direito, pois há, naquele especifico caso sub judice um sacrifício por completo de um dos direitos em colisão.
Ou seja, teoricamente não seria aceitável fulminar por completo todo o conteúdo de um direito fundamental e aplicar, também por completo, o outro direito ou norma constitucional.
Mas, na pratica, e isso é o que mais importa, um dos direitos, em casos limite, seria totalmente fulminado e apagado, não sendo realizado em nenhuma medida.
Aqui, podemos exemplificar com o tema objeto deste estudo. Imagine um paciente que necessita de uma intervenção cirúrgica urgente a fim de preservar a sua vida, e não haja qualquer outro meio alternativo idôneo suficiente para o mesmo fim; imagine também que esse mesmo paciente que está com sua vida em risco seja uma testemunha de Jeová, religião que não permite transfusão de sangue.
Qual seria a solução?
Aplicando a ponderação de princípios propugnada pelos constitucionalistas, a solução seria uma aplicação de ambos na medida em que cada um possa se realizar na medida do possível.
Mas qual medida seria essa possível, que pelo simples realizar de um direito (a transfusão/cirurgia) fulminaria por completo o outro (liberdade religiosa) ?
É nesses casos que se diz que a concordância pratica, na tentativa de solucionar um conflito, tenta ponderar com os elementos do caso concreto, a fim de que um dos direitos, no especifico caso concreto seja preservado.
Ainda no caso tomado por exemplo, se o paciente receber a transfusão de sangue a sua liberdade de religião estará por completo fulminada naquele caso concreto, pois em nenhuma medida fora respeitado.
Por outro lado, caso se proteja o direito à religião, o direito à vida estaria sendo, também por completo, deixado de lado, e em nenhuma medida sendo aplicável, afinal, não há como morrer menos ou mais.
Por tudo isso, vê-se que a aplicação dessas técnicas não resolvem satisfatoriamente o problema, talvez insolúvel.
No HC 89544, do Supremo Tribunal Federal, assim ficou consignado:
“Observou-se que ambas as garantias, as quais constituem cláusulas elementares do princípio constitucional do devido processo, devem ser interpretadas sob a luz do critério da chamada concordância prática, que consiste numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas, ao mesmo tempo, não acarrete a negação de nenhum.”
Percebe-se, conforme já exposto, que essa técnica é bastante utilizada.
3.2 A Recusa em Receber Transfusão de Sangue e o Direito à Vida.
Conforme já se mencionou ao longo deste trabalho, para a nossa Constituição, tanto o direito à vida como o direito à crença em uma religião são valores muito caros para a nossa sociedade. Assim, ambos estão positivados no catalogo do artigo 5º da Carta Política.
Como o tema é polemico e não há como solucioná-lo de forma peremptória a ponto de inadmitir qualquer solução em contrario, alguns entendimentos antagônicos entre si despontaram nos que se debruçaram sobre o tema.
De uma lado, há aqueles que defendem que o direito à liberdade religiosa deve ser respeitado a todo custo, pois é uma escolha do paciente que tem suas crenças, suas convicções e com base nelas quer viver. Assim, alguns defendem que sua autonomia de decidir se querem ou não serem submetidos à transfusão de sangue é uma escolha livre.
Postulam ainda, em seu favor, que a medicina está em constante evolução e que, certamente, outras técnicas são também eficientes para o tratamento, não havendo necessariamente que se submeterem ao método que não é compatível com sua religião.
Ainda na defesa da recusa, existe o argumento no sentido de que a dignidade da pessoa humana é protegida respeitando-se a escolha do paciente. Isso porque caso fosse submetido, contra a sua vontade, à transfusão, isso seria uma afronta à sua condição de crente em suas convicções.
Neste sentido, há o conhecido caso da mulher que após ter sido submetida ao tratamento contrario à sua religião fora rejeitada pela sua comunidade, assim relatado: “para salvar a vida de uma paciente, que se recusava terminantemente, por motivos religiosos, a consentir em transfusão, após difícil parto, praticou tal ato, contra a vontade da parturiente e de seu marido. A mulher, após obter alta, não foi aceita em seu lar, pelo cônjuge, nem pôde mais freqüentar a Igreja, sendo repudiada por todos”.
Esse caso ilustra muito bem a situação daqueles que defendem que deve prevalecer a liberdade religiosa. Pois a vida seria preservada com o tratamento, mas a vida seria indigna a partir de então, pois aquele paciente tinha suas crenças, que foram sumariamente desrespeitada.
Ressalte-se que, como é intuitivo, quando não haja o risco para a vida do paciente, sua vontade de não submeter à transfusão de sangue deve ser estritamente observada.
Logicamente, se o paciente está em condições mentais de manifestar sua opção, não há porque desrespeitá-la e, mesmo contra a sua vontade realizar a intervenção médica.
Em sentido contrario, desponta o entendimento que defende que nesse especifico conflito, deve prevalecer o direito à vida pois é o mais básico de todos os direitos.
Caso exista o fundado risco de morte da pessoa, defendem que a intervenção deva ser realizada mesmo contra a vontade do paciente, ainda mesmo que estiver em condições mentais para manifestar a recusa.
É esse o entendimento do Conselho Federal de Medicina (apud TOKARSKI):
“O paciente se encontra em iminente perigo de morte e a transfusão é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la“.
Logicamente esse estatuto do Conselho não resolve qualquer problema, simplesmente é uma instrução para os profissionais da área.
O médico poderia realizar o tratamento mesmo contra a vontade do paciente caso existisse o risco de morte. Essa é a conclusão a que chegam aqueles que defendem a primazia da vida à liberdade religiosa.
Há o entendimento manifestado por Pablo Stolze e Rodolfo Pampolona (2003) que dizem que:
“Nenhum posicionamento que se adotar agradará a todos, mas parece-nos que, em tais casos, a cautela recomenda que as entidades hospitalares, por intermédio de seus representantes legais, obtenham o suprimento da autorização judicial pela via judicial, cabendo ao magistrado analisar, no caso concreto, qual o valor jurídico a preservar”.
A posição de Flávio Tartuce (2009) é no sentido de proteger e preserva o direito á vida, são essas suas palavras:
“Como todo o respeito ao posicionamento em contrario, entendemos que, em casos de emergência, deverá ocorrer a intervenção cirúrgica, eis que o direito à vida merece maior proteção do que o direito à liberdade, particularmente quanto àquele relacionado com a opção religiosa. Em síntese, fazendo uma ponderação entre direitos fundamentais – direito á vida X direito à liberdade ou opção religiosa-, o primeiro deve prevalecer.”
É lógico, que essa é uma opinião pessoal dos juristas citados, tão respeitáveis quanto a opinião de um leigo que nunca estudou o assunto de forma aprofundada. Com isso estamos querendo demonstrar, conforme já mencionamos, que não há qualquer resposta verdadeira, real.
Não pode o estudioso outorgar ao seu ponto de vista a condição de “melhor argumento” refutando aos demais.
Isso demonstra que o tema é complexo e não há solução que possa ser denominada de correta.
Alguns casos já chegaram aos nossos tribunais, que aqui serão devidamente transcritos:
(TJSP, Ap. Civ. 123.430-4 – Sorocaba – 3ª Câmara de Direito privado – relator Flávio Pinheiro – 07.05.2002 “Indenizatória – Reparação de danos – Testemunhas de Jeová – Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem prevalecer perante o bem maior tutelado pela Constituição Federal que é a vida – Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sanguíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos – Inexistência, ademais, de recusa expressa ao receber transfusão de sangue quando da internação da autora – Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuadas com exames médicos, entre outras, que não merece ser acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante – Recurso não provido”.
E ainda há outro julgado:
TJRS, Apelação Cível 70020868162, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS “Apelação cível. Transfusão de sangue. Testemunha de Jeová. Recusa de tratamento. Interesse em agir. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligencias necessárias ao tratamento do paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares, Recurso desprovido“.
Flávio Tartuce (2009) concorda plenamente com a posição dos julgados transcritos dizendo que “não há como não concordar com as duas decisões”
Logicamente, há sim como discordar!
Ambas correntes de entendimento são bem fundamentadas e devem ser respeitadas.
3.2.1 A Recusa feita por pessoa capaz
A recusa feita por quem está plenamente no exercício de sua capacidade não envolve maiores problemas, desde que não haja risco de morte. E isso porque, de acordo com o principio da legalidade, encartado no artigo 5º, II, da Carta Política, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Dessa forma, existindo a capacidade para se exercer os atos da vida civil pessoalmente, é plenamente possível que o individuo impeça o tratamento que considere ofensivo à sua religião.
Sendo assim, para que houvesse a imposição de se submeter a um dado tratamento, haveria a necessidade que esse deve decorresse de uma lei (abstraída ainda a discussão a respeito de sua compatibilidade com a Constituição).
Neste sentido:
TOKARSKI apud BASTOS, Celso. (2003) “[…] o paciente tem direito de recusar determinado tratamento médico, inclusive a transfusão de sangue, com fundamento no art. 5º, II, da CF. Por este dispositivo, fica certo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei (princípio da legalidade) [..]”.
Não haveria como compelir uma pessoa capaz de se submeter ao tratamento que não acarretasse perigo de morte a uma pessoa que lhe recusasse, e o médico que assim procedesse não teria sua conduta justificada perante o ordenamento.
O Conselho de Medicina editou o parecer nº 21/80 que diz que:
“A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais segura para a melhora ou cura do paciente. Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender ao pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue”.
O problema, conforme já apontado e enfrentado, se dá quando o a recusa é feita por pessoa capaz, mas há o perigo de morte. Aqui, conforme também já se apontou linhas acima, a posição que prevalece é a de que a recusa não deve ser aceita e o procedimento da transfusão pode ser realizado.
Assim, teria o medico que a realizasse a justificativa de sua conduta, não podendo responder por essa sua atuação.
E prossegue o Conselho de Medicina (apud TOKARSKI) dizendo que
“O paciente se encontra em iminente perigo de morte e a transfusão é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.”
É o entendimento tão somente majoritário, repita-se, que não pode ser entendido como a decisão correta e a única possível. É plenamente respeitável e defensável.
O entendimento acima é tão defensável quanto àquele que defende o contrario. Assim, podemos citar Soriano (apud TOKARSKI), para quem:
“ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se à tratamento terapêutico contra a vontade livre e conscientemente manifestada”. “[…] Como não há lei obrigando o médico a fazer transfusão de sangue no paciente, todos aqueles que sejam adeptos da religião “Testemunhas de Jeová”, e que se encontrarem nesta situação, certamente poderão recusar-se a receber referido tratamento, não podendo por vontade médica, ser constrangidos a sofrerem determinada intervenção. O seu consentimento, nesta hipótese é fundamental. Seria mesmo desarrazoado ter um mandamento legal obrigando a certo tratamento, até porque podem existir ou surgir meios alternativos para chegar a resultados idênticos”
Colacionamos aqui, ainda mais, a posição defendida em voto do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, quando o conselheiro aduz que:
“Deverá o medico procurar os recursos técnicos e científicos para proteger a saúde do paciente, sem contrariar a sua vontade expressa (…) Não se trata, entretanto, de um dever. Há que se respeitar, data vênia, à vontade de quem quer que seja, legalmente “competente”, inclusive de morrer sem ser violentado em sua crença. Não existe, para mim, a obrigação de viver – logo, não será omissão de socorro e sim respeito a individualidade do paciente, deixar de transfundir sangue quando ele não queira, procurando-se todos os recursos técnicos e científicos para proteger sua saúde, sem contrariar a sua vontade expressa (…)”.
Nossa opinião, é nesse sentido. Não há uma obrigação de viver, o Estado não detém a propriedade de nossas vidas, nem tampouco a coletividade.
Aqueles que acreditam em suas religiões acreditam em algo maior, maior do que até mesmo essa vida. Então, diante desse quadro, é de se refletir se seria realmente viável adotar-se esse cansado discurso de defesa da vida.
Ora, se a vida fosse tão defensável assim talvez fosse a hora de se acabar com a fome e miséria que levam á morte. Mas talvez o discurso seja mais fácil nesse caso especifico.
O tribunal de Tóquio já decidiu no seguinte sentido:
Holanda, Fábio “Se houver um acordo bem estabelecido entre as partes, de que não se deve aplicar transfusão de sangue sob quaisquer circunstâncias, este tribunal não o julga ser contra a ordem publica e por isso, não o considera inválido; Todo ser humano está fadado a morrer algum dia, e o processo que conduzirá ao momento da morte pode ser decidido por toda pessoa.”
É a posição que mais nos agrada. Pois confere uma imenso respeito à liberdade de crença do individuo. Afinal, se proteger a vida fosse tão importante quando esses argumentos tão invocados, fosse a hora de resolver o problema da fome, que também como a recusa de transfusão de sangue, podem levar à morte.
Advogado
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