Resumo: As vidas das mulheres nas prisões são conhecidas principalmente pelo abandono. Além do envolvimento com atividades ilícitas, outros traços em comum marcam essas histórias: a interrupção das trajetórias escolares na infância e adolescência é um deles. Assim, o artigo propõe investigar a atuação e articulação da rede de proteção social nas políticas públicas educacionais a partir das trajetórias escolares de mulheres em condição de privação de liberdade no Presídio Regional de Criciúma é o objetivo desse trabalho. Para a realização desta pesquisa foram utilizadas entrevistas semiestruturadas com mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma. [1]
Palavras-chave: Mulheres; Espaço de Privação de Liberdade; Trajetória Escolar; Rede de Proteção Social.
Sumário: Introdução. 1.1 História das Mulheres e Gênero 1.2 Os Espaços De Privação De Liberdade Femininos 2.1 A Rede De Proteção Social 2.2 Trajetórias Escolares 2.3 Presídio Regional De Criciúma. Notas Conclusivas. Referências.
INTRODUÇÃO
A cadeia é algo que desperta interesse e sentimentos diversos e de forma intrigante, todos os sentimentos e interesses permeiam a curiosidade, já que é um local com modo de funcionamento e finalidade específica com características particulares que povoam a imaginação de boa parte das pessoas. Essa curiosidade é fortalecida pela mídia com as reportagens quando acontecem rebeliões, as facções criminosas, os filmes com as fugas, as novelas com os amores e romances nas celas da prisão.
Esse imaginário em torno dos espaços prisionais constrói e fortalece visões equivocadas a respeito desses lugares, mas também possibilita questionar e investigar que universo tão peculiar é esse, que relações são estabelecidas nesses lugares, que histórias, vidas, estratégias de sobrevivência e tantas outras faces que constituem o mundo ou submundo da cadeia.
Para compreender os espaços de privação de liberdade femininos e investigar a trajetória escolar de mulheres privadas de liberdade em um espaço prisional esta pesquisa percorrerá os estudos de gênero, da criminologia, da história das prisões, da história das mulheres e a história da educação.
Problematizar o contexto social, político e econômico das mulheres privadas de liberdade serão o suporte para identificar e investigar as motivações que levaram as mulheres entrevistadas a reprovarem e/ou evadirem da escola no período da infância e/ou adolescência e as suas relações com o contexto social em que estavam/estão inseridas e que também permeiam as questões da identidade do sujeito (gênero, etnia, classe social etc.).
A pesquisa foi realizada a partir da memória sobre a vida escolar de mulheres em condição de privação de liberdade no Presídio Regional de Criciúma e, a partir das percepções a respeito das suas próprias experiências de vida, investigar e problematizar a atuação, as ausências e/ou falhas das políticas públicas de proteção social, sobretudo, as educacionais.
Para compreender este processo, foram levantadas as seguintes questões norteadores. Quais os principais fatores que contribuíram para as mulheres se envolverem com o crime? A baixa escolarização é um dos fatores que impulsionam esse envolvimento e/ou escolha? Os papeis sociais e normatização de comportamento atribuídos ao gênero influenciam e/ou relacionam-se com esse envolvimento no mundo do crime? Qual a relação entre a privação de liberdade das mulheres e o contexto histórico, social, econômico, etário, étnico, identitário de que fazem parte?
Investigar os espaços prisionais sem compreender as relações que permeiam a vida construída anteriormente a entrada dessas pessoas nesse (sub) mundo[2], é como caminhar no escuro com um feixe de luz muito fraco, já que os vínculos e o passado anterior prisão influenciam diretamente no próprio funcionamento do lugar e se manifestam em características peculiares como a linguagem, dialeto, expressões, as normas e as suas transgressões e também as possibilidades de construir o futuro. A rede de proteção social perpassa todos esses momentos: antes, durante e depois da privação da liberdade. Sua atuação, falhas, articulação, acertos interferem na vida de centenas de mulheres que sobrevivem em um espaço hostil e violento.
1.1 HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO
A história das mulheres é uma área de estudos relativamente nova para a historiografia, sendo definível, sobretudo nos anos 1970/1980, segundo Joan Scott e é visto pela historiadora como “um campo inevitavelmente político”, já que “no final, não há jeito de se evitar a política – as relações de poder, os sistemas de convicção e prática – do conhecimento e dos processos que o produzem […]” (SCOTT, 1992, p 95)
Os papeis sociais atribuídos historicamente às mulheres assumiram em praticamente toda a história da humanidade papel secundário e subordinado a uma suposta posição de superioridade do homem. Em todo tempo milhares de mulheres construíram a história: transgrediram regras, questionaram a sociedade, buscaram estratégias para (sobre) viver e transformaram/transformam as relações sociais que as cercavam/cercam.
Das primeiras sociedades organizadas pelos seres humanos até hoje, as relações e papeis que normatizaram a vida das mulheres partiram do princípio de que o homem é superior e, portanto, a mulher ficaria sujeita as vontades, definições, desejos, abusos, (des) mandos do homem, tendo pouca ou quase nenhuma autonomia sobre sua própria vida. Essa relação que inferioriza a mulher permeou e ainda permeia praticamente todas as organizações sociais humanas.
Ainda que essa concepção machista tenha sido o pensamento dominante utilizado para organizar a vida em sociedade, em todos os períodos as mulheres assumiram papeis sociais atribuídos ao homem nas suas ausências (para resolver conflitos entre comunidades rivais, guerras, cruzadas, entre outros) e evidenciaram autonomia para gerir suas vidas, da sua família e da comunidade. Além disso, em muitas organizações sociais as mulheres possuíam poder político, participavam das atividades militares, comandaram reinos e países[3].
Sobre a reavaliação do poder das mulheres, as pesquisas feministas, segundo Michele Perrot:
“Em sua vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de subverter o ponto de vista da dominação, ela procurou mostrar a presença, a ação das mulheres, a plenitude dos seus papeis, e mesmo a coerência de sua ‘cultura’ e a existência dos seus poderes”. (PERROT, 1988, p 169-170)
Em grande parte da história da humanidade a referência machista de superioridade masculina definiu os papeis sociais, porém desde o final do século XIX com o movimento de mulheres e movimentos feministas o modelo de inferioridade feminino foi social e politicamente questionado e entendido como uma construção cultural.
Os papeis de gênero determinam como devemos pensar, nos comportarmos, agirmos e consequentemente vivermos. Esses papeis que são definidos para homens e mulheres são construções culturais, ou seja, não existe uma determinação natural que defina certos papeis com naturalmente masculinos ou femininos. Essas definições de papeis e de gênero são historica e discursivamente construídos ao longo do tempo e estabelecidos com base em relações de poder. “Na história e no presente, a questão do poder está no centro das relações entre homens e mulheres” (PERROT, 1988, p 184)
A construção de papeis sociais com referência na ideia machista de superioridade masculina e de características definidas como naturais para homens e mulheres é naturalizada de tal forma que regula a vida e comportamento de todas as pessoas. Daí surge as práticas de exclusão e violência de homens que não correspondem ao padrão de masculinidade, os casais homossexuais que não tem o arranjo familiar considerado “normal”, as mulheres que não são consideradas femininas ou “não tão femininas assim”, homens e mulheres transgêneros que não são socialmente aceitos, tampouco respeitados e compreendidos.
A heteronormatividade perpassa as relações discursivas e de poder de gênero limitando as possibilidades em um sistema de gênero binário oposicional. (BUTLER, 2016, p 52) Assim como a sexualidade é “construída culturalmente dentro de relações de poder” (BUTLER, 2016, p 65) os padrões normativos que definem o que é e o que não é aceito (re) produzem as práticas de exclusão, preconceito e violências pelo não cumprimento da heteronormatividade instituída e institucional.
Desde o início do movimento de mulheres e feministas, as reivindicações de direitos e questionamento das múltiplas faces das relações patriarcais e machistas não ficaram estáticas, foram sendo transformadas ao longo do desenvolvimento dos estudos de gênero e compreensão das relações que permeiam as vidas das mulheres em sociedade que o modelo de dominação masculina regula e interfere diretamente.
O conceito de gênero, compreendido como construção social e cultural que define papeis tanto para homens quanto para mulheres, veio do movimento feminista, que definia o sexo com naturalmente adquirido e o gênero como socialmente construído. A dualidade sexo/gênero por muito tempo foi fundamental para compreender e questionar papeis sociais e atribuições como naturais para o gênero feminino, tais como submissão, fragilidade e masculino como sexualidade insaciável, habilidade para poder e liderança, entre outros. A partir da década de 1980 essa ideia estava sendo questionada. Em 1990, já na terceira onda do feminismo, na obra Problemas de Gênero Judith Butler descontrói a ideia de que somente o gênero era social e discursivamente construído, mas também o sexo, portanto também compreendido dentro do campo do poder.
“[…] o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras a coerência do gênero”. (BUTLER, 2016, p 56, grifo da autora)
A desconstrução do discurso de uma pretensa universalidade tanto para o sexo, gênero, quanto para a identidade perpassa toda a obra de Butler e também a teoria queer. Portanto não é possível falar em mulher, mas em mulheres, no plural, nem falar em mulheres sem considerar especificidades de etnia, classe social, identidade, zona de moradia, entre outros.
“Como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes”. (BUTLER, 2016, p 32-33). Essa complexidade de relações que nos (trans) forma em sujeito, a necessária busca pela liberdade enquanto sujeitos, a desconstrução de gênero e do que naturalizamos são fundamentais, sobretudo nos espaços prisionais femininos, uma vez que a prisão sendo feito pelo e para os homens (re) produz as práticas machistas e heretonormativas tanto no modelo de espaço prisional para mulheres, quanto nas políticas de encarceramento de mulheres que apresentam recorte étnico, social e etário.
1.2 OS ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE FEMININOS
Os últimos três séculos foram marcados por mudanças significativas no mundo, principalmente na Europa ocidental. A revolução industrial modificou o cenário urbano europeu, transformou as relações de trabalho e os meios de produção, marcou o fim do mercantilismo e uma nova forma de economia capitalista baseada na indústria.
No século XVIII, contexto da primeira revolução industrial na Inglaterra, a França vivia sob o regime absolutista. Nesse período diversas mudanças sociais relacionadas com o modelo de sociedade capitalista levaram a construção do modelo de aprisionamento que originou os espaços de privação de liberdade que conhecemos hoje.
Como o monarca exercia poder absoluto, os abusos e vinganças nas penalidades definidas pelo rei não tinham limites, já que o poder o legitimava para tal. Nesse contexto os suplícios (FOUCAULT, 1988) passam a ser repensados enquanto espetáculos públicos e outras medidas punitivas foram sendo estabelecidas, já que não se conseguia acabar com a criminalidade, mesmo com os espetáculos de crueldade. O fim do suplício para a pena privativa de liberdade, não por coincidência, veio com o fim do absolutismo e consolidação do capitalismo.
A pena privativa de liberdade ganha o sentido de proteção em relação à propriedade e a sociedade. Com a prisão, dá-se legitimidade ao poder estatal, manutenção da ordem e das leis. Esses espaços vão se caracterizar pelo domínio em relação ao sentenciado, controle do corpo, vigilância e punição (para além da privação da liberdade), ou seja, são espaços eminentemente violentos. (FOUCAULT, 1988)
A luta de classes intensificada com as relações entre a burguesia e o proletariado a partir da revolução industrial, que explorou significativamente a mão de obra feminina e infantil nas fábricas, significou ampliar o domínio do homem em relação à mulher, já que as relações sociais patriarcais e machistas não se limitavam ao espaço doméstico.
As prisões configuram-se como um aparelho repressor do Estado (ALTHUSSER, 1980), porém também caracterizam-se como aparelhos ideológicos, pois além da função de repressão as infrações da legislação, são (re) produzidas as relações do capitalismo e os interesses das classes dominantes, ou seja, essa relação que parte do princípio de inferioridade da mulher e que lhe atribui papeis sociais cultural e discursivamente construídos, intensificados no capitalismo, permeiam a ideia da prisão, uma vez que a prisão é pensada e construída pelo e para os homens.
Sobre a desigualdade de gênero e as prisões a criminologia crítica traz uma reflexão fundamental do crime enquanto um fenômeno social que precisa ser compreendido e problematizado a partir das relações que permeiam o crime, não reduzindo ao ato criminoso em si e a aplicabilidade da pena, conforme a perspectiva da criminologia positivista.
Os fatores sociais na correlação entre o crime e a punição evidenciam que “de certa forma, a escola criminológica veio dizer que o direito penal, proclamado como igualitário para todos os indivíduos não cumpria essa promessa” e que “o direito penal era discriminatório em suas bases ideológicas” (NETTO; BORGES, 2013, p 325) e que, portanto, o machismo, a heternormatividade e os papeis sociais perpassam essa discriminação.
A criminologia crítica feminista vai justamente chamar a atenção para o gênero nessa relação de desigualdade e discriminação, atentando para as questões de classe, etnia, zona de moradia, renda, entre outras particularidades que permeiam a vida das mulheres e relacionam-se diretamente com o crime e o encarceramento.
A relação de desigualdade de gênero é fundamental na relação entre a penalidade da mulher e do homem, já que para a mulher ocorre:
“[…] a punição, em última instância, por não exercerem o papel social definido para o ser feminino pré-determinado pela ordem patriarcal de gênero. Ou seja, a mulher que foge do padrão de normalidade entendido como o da reprodutora, da mãe ou esposa”. (NETTO; BORGES, 2013, p 321)
Mais do que descumprir a lei e cometer um delito, o peso social da prisão para as mulheres ganha o campo moral de não corresponder ao padrão determinado como correto e ideal para as mulheres, já que esta deveria ficar restrita o lar e a maternidade. A punição extrapola a pena privativa de liberdade e caminha com a mulher após a pena cumprida, já que uma vez presidiária, a mulher carrega essa marca que foge os padrões de mulher correta e digna.
A prisão de mulheres no Brasil, ganha destaque a partir do século XIX quando aparecem dados evidenciando mulheres escravizadas presas em calabouços (OLIVEIRA, 2008, p 25). Porém, cabe considerar os três séculos em que indígenas, africanas e afro-brasileiras foram escravizadas, utilizando-se de castigos físicos, abuso sexual e morte como penalidade as faltas cometidas a mercê das vontades dos senhores que possuíam poder ilimitado sobre a sua mercadoria e seus bens[4].
No começo do século XX é que os espaços de privação da liberdade serão pensados para mulheres cumprirem a pena que não fosse do modelo de prisão masculino, separando-as então dos homens. No final da década de 1930 e início de 1940 os primeiros espaços foram adaptados para a privação da liberdade das mulheres.
Nesse contexto, o aprisionamento das mulheres se dava em grande medida por descumprirem as regras que determinavam certos comportamentos como adequados e não adequados para as mulheres, ou seja, estava mais relacionado com a moralização de não cumprirem os papeis sociais do que com o delito em si. Pensava-se na reabilitação das mulheres e regeneração da conduta para torna-se uma boa mãe, doméstica entre outros. A influência religiosa foi determinante nesse contexto.
Mesmo que a quantidade de mulheres presas tenha aumentado durante o século XX e XXI, há que se considerar que esse número é muito inferior a quantidade de homens privados de liberdade. Segundo Heidi Ann Cerneka: “para o Estado e a sociedade, parece que são somente 440.000 homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28.000 desses presos menstruam”. (2009, p 63)
2.1 A REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL
Refletir os espaços de privação de liberdade femininos traz a questão de que sujeitos fazem parte desse lugar. Quem são essas mulheres? De onde vem? Por que e como se envolveram com o crime? Que crime(s) e por que os cometeram?
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres havia 37.380 mulheres custodiadas no Sistema Penitenciário considerando os dados de junho de 2014, havendo um aumento de 567,4% da população feminina entre 2000 e 2014. (DEPEN, 2014) Na apresentação do relatório, o perfil das mulheres privadas de liberdade são:
“[…] jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento. Em torno de 68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico”. (DEPEN, 2014, p.05)
Pensar sobre essas mulheres e as suas vidas, é pensar o meio social de que fazem parte, ou seja, compreender de forma materializada os paradigmas da sociedade capitalista. Essas histórias de vida invariavelmente relacionam-se com a rede de proteção social, seja no acesso às políticas públicas ou nas suas ausências e falhas, antes, durante e depois da privação da liberdade.
A rede proteção social é compreendida como uma ação integrada de diversos setores que, a partir das suas competências, articulam políticas públicas de controle social, proteção e garantia de direitos. Setores como o da saúde, educação, assistência social, conselho tutelar, centros comunitários, entre outros, são fundamentais na tessitura da rede que consegue melhores resultados quando os setores compreendem a sua correlação na garantia de direitos.
As políticas públicas para crianças e adolescentes são fundamentalmente importantes, já que são vistos como seres em condição peculiar de desenvolvimento e possuem prioridade absoluta a partir da tríplice responsabilidade compartilhada garantida no Estatuto da Criança e Adolescente. Até o reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos na Constituição Federal de 1988 e as medidas protetivas regulamentadas no Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a caminhada não foi fácil já que ficaram a mercê dos (des) mandos dos adultos.
De acordo com Johana Cabral, a partir do ECA foi instituído um Sistema de Garantias de Direitos às crianças e adolescentes, esse sistema compreende “as Políticas de Prevenção, de Atendimento, de Proteção, Promoção e Justiça” (CABRAL, 2012, p 55)
Dois setores da rede que possuem papel fundamental no acompanhamento das crianças e adolescentes são a saúde, sobretudo nos profissionais de agentes de saúde que acompanham diretamente as famílias nas suas casas, e a escola que pode construir um vínculo com esses sujeitos. Porém, as políticas públicas existirem e estarem articuladas entre si na teoria, ter um documento que garanta o Sistema de Garantia e a proteção integral não significa que elas realmente estejam funcionando.
De onde vem as falhas da rede de proteção? A rede é feita por seres humanos que cometem erros, equívocos, acertos, fazem suas interpretações e que nem sempre são adequadas. Errar faz parte da complexidade do que é ser gente. A falta de investimento nas políticas públicas e/ou de políticas públicas efetivas são fatores a serem pensados. A não articulação ou má articulação dos setores. Falta de democratização, tanto do acesso quanto da participação na construção, efetivação e avaliação dos sujeitos usuários que são protagonistas das políticas públicas.
Fator relevante nessa complexidade de tecer a rede e chegar nos sujeitos de direitos é a própria sociedade, ou seja, os conceitos e ideologia que permeiam o capitalismo. Sociedade que é machista, sexista e intrinsecamente desigual que transpassa todos os aparelhos do Estado capitalista.
2.2 TRAJETÓRIAS ESCOLARES
Pensar em trajetórias escolares significa pensar na rede de proteção social, já que ela perpassa por diversos setores e por todos os momentos da escolarização. A escola é o palco principal dessas histórias que se entrecruzam com outros setores da rede de proteção ou não.
Não há como falar em educação sem falar em diversidade, que vai desde a diversidade étnica, sexual, etária, econômica, cultural, social, identitária à diversidade linguística, entre outras formas. Esses novos sujeitos que reivindicam novas pedagogias (ARROYO, 2012) não são novos, eles sempre estiveram na escola, ou vivendo de acordo com os seus padrões e parâmetros tornando-se uma afronta à ideia de escola homogênea ou estavam na escola com os seus modos de vida sufocados por um currículo e um ambiente homogeneizador.
A escola, de acordo com Althusser (1980), é o principal aparelho ideológico do Estado e tem importante papel na engrenagem no sistema capitalista que precisa de bons operários que produzam muito, questionem pouco e cumpram o seu papel de bons funcionários, obedientes e servis ao sistema que lhe impõem. A educação bancária, abordada por Paulo Freire (2015) é elucidativa no sentido de que expressa bem os interesses das classes dominantes e as relações entre opressores e oprimidos na escola. A escola serve as classes dominantes porque por ela é mantida, gerenciada, voltada e criada. Classe dominante masculina, heterossexual, branca, cristã, conservadora, machista e sexista.
A escola, assim como as relações sociais, é construída com base em relações de poder, que refletem as próprias relações naturalizadas na sociedade e “no interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem o seu exercício, são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades”. (LOURO, 1997, p 45) Daí as práticas de exclusão, (re) produção das violências que interferem diretamente na interrupção das trajetórias escolares.
Nessa escola não cabem outras identidades, outros métodos, outras pedagogias, outros saberes, outras relações, outros acolhimentos. A partir dessa compreensão podemos refletir a evasão escolar e a interrupção de tantas trajetórias que são marcadas pelas violências, pelos abusos e pelas falhas, tanto na escola quanto na sociedade em geral.
Quando a escola, com o papel fundamental que possui na garantia, promoção e proteção de direitos humanos de crianças e adolescentes (re) produz essa perspectiva de educação bancária ou mesmo na tentativa de Outra escola, com Outras pedagogias a rede de proteção falha na sua articulação, quais os possíveis desdobramentos na vida de crianças e adolescentes que estão diretamente interferindo? Isso influencia o envolvimento com atividades ilícitas?
O encarceramento de mulheres está relacionado a baixa escolarização e a feminização da pobreza (CORTINA, 2015), ou seja, possui um recorte social. A falha da rede de proteção social, sobretudo das políticas públicas educacionais no período da infância e adolescência, contribui significativamente para o encarceramento de mulheres.
2.3 PRESÍDIO REGIONAL DE CRICIÚMA
Para compreender a trajetória escolar de mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma, foram realizadas nove entrevistas semiestruturadas com nove mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma[5]. Nove histórias, que de várias formas, entrecruzam-se, aproximam-se, distanciam-se.
As entrevistas foram individuais e seguiram um roteiro previamente elaborado pela pesquisadora. Foram feitas perguntas abertas e direcionadas onde cada mulher entrevistada[6] pudesse falar das suas percepções a respeito da sua experiência, seus sentimentos e como se percebe ou percebia vivendo a sua própria história, possibilitando não só relembrar, mas reavaliar a sua própria trajetória escolar.
A aproximação dessas trajetórias escolares começa na interrupção delas na infância e adolescência, tendo como a principal motivação o contato direto com as drogas ilícitas e com pessoas envolvidas com as drogas. Das nove mulheres entrevistadas, somente duas não possuem histórico de envolvimento com drogas, cinco tiveram contato já na infância ou adolescência, duas o contato veio na vida adulta.
Ao relembrarem as suas experiências escolares e o momento da sua interrupção, as questões familiares de superproteção e falta de liberdade na adolescência aparecem com destaque na fala de duas entrevistadas, que apontam a falta de orientação, diálogo, muita restrição de liberdade como questões que influenciaram ter saído da escola. Essa falta de diálogo estende-se para a escola em todas as falas das entrevistadas.
“Ah eu não tinha muita amizade assim com as professoras, então porque assim eu não tinha muito com quem me abrir, com quem falar então às vezes eu, naquela época, eu estudava, tinha respeito pelas professoras, era assim… com é que eu vou dizer… experiência… não tive assim tanta experiência era só de aprender mesmo”. (informação verbal)[7]
A fala de que o conhecimento adquirido não veio da escola, mas da rua, da vida, é traço marcante. O que traz a reflexão da relação que a escola constrói com os sujeitos que estão no ambiente escolar. As dúvidas e curiosidades sobre drogas e sexualidade são próprias da adolescência e não cabe somente às famílias dar orientação sobre essas questões, já que as famílias, muitas vezes, também tem dificuldades em tratar desses assuntos. A escola nesse sentido tem papel fundamental na articulação entre a família, os adolescentes, as dúvidas e curiosidades e o conhecimento científico. Essa articulação só é possível quando a escola é acolhedora, o que vem de encontro à ideia de educação bancária (FREIRE, 2015).
Em nenhuma entrevista as falas a respeito das escolas demonstraram uma política de acolhimento efetiva. Algumas tentativas de acionar o Conselho Tutelar, outras de chamar a família, alguns professores mais atentos às mudanças de comportamento, mas que não funcionaram efetivamente no sentido de conseguir trazê-las para a escola novamente. A dificuldade que a rede de proteção tem em se articular para alcançar os sujeitos por meio das políticas públicas, é uma dificuldade semelhante que a escola possui no próprio diálogo com as famílias, com os alunos e com as famílias e alunos.
Essas falhas da atuação da escola, da rede de proteção e da articulação entre os setores se dá também pela própria dinâmica da sociedade que apresenta possibilidades e relações mais atraentes e acolhedoras. O tráfico de drogas e a criminalidade é uma dessas possibilidades. O próprio período da adolescência que tem muitas vezes uma visão imediatista, sem pensar no futuro próximo, de viver o hoje, regada a uso de drogas (lícitas e ilícitas), diversão, festas, amigos, afastam da realidade escolar que determina regras, limites, obrigações que possivelmente refletiriam no futuro, na vida adulta, mas que de muitas forma são vistos como chatos.
Todas as falhas, tanto da família quanto da escola, não anulam ou desmerecem as tentativas de trazê-las para a escola. As falhas demonstram um movimento que é de tentar acolher, articular, perceber, agir, fazer intervenção. É essa movimentação que faz muitas outras coisas darem certo, talvez em outro momento, mas que são fundamentais e precisam acontecer.
Esse deslocamento da realidade da sociedade, desse universo prazeroso e dito fácil, com o da escola traz o questionamento dos saberes que estão sendo construídos, das perspectivas de conhecimento, das relações intramuros, da escola com a comunidade e o território que atende e está inserida, ou seja, o lugar ou lugares de que faz parte. A formação humana na sua integralidade vai muito além de decorar conteúdos para uma prova, ou acessar o conhecimento historicamente adquirido. A escola precisa conhecer seu território, compreender as suas demandas, acolher os sujeitos com toda a sua complexidade de cultura, identidade, faixa etária, dúvidas, medos, problemas e dar sentido para o conhecimento acumulado e à realidade daquela demanda, daquele território.
A respeito de ter parado de estudar no início da adolescência, a entrevistada relata que: “eu estava no período de namorar daí a minha vó não aguentou mais e me mandou embora com o meu pai e meu pai me tirou da escola por causa disso. Ele não queria se incomodar, […] simplesmente me tirou da escola” (informação verbal).[8]
A escolarização como um fator secundário para as mulheres parece ser a perspectiva de algumas famílias que as entrevistadas relatam, já que duas pararam de estudar para trabalhar ainda na adolescência e infância, outra para iniciar um curso técnico (que na época, segunda a entrevistada, permitiam fazê-lo sem a conclusão da etapa básica da educação) e então trabalhar. Duas entrevistadas saíram de casa aos nove anos de idade para morar na rua ou em bocas de fumo e nesse contexto já começaram a vender e fazer uso de drogas como crack e maconha.
Duas entrevistadas relatam terem feito a própria matrícula. Uma arrumando um amigo maior de idade que se passou por tio para fazer a sua matrícula porque não tinha ninguém para fazê-la. Outra entrevistada aos nove anos de idade, que já morava na rua, relata como percebe o período que frequentava a escola:
“Eu percebo e consigo lembrar bem pouco porque eu quase não tenho lembrança, eu usei muita droga e estudei bem pouco. Ainda com esforço pra estudar eu mesma me matriculava, roubava os materiais do colégio, roubava os materiais pra poder estudar, nos mercados, pegava a listinha ia de mercado em mercado e lá roubava duas canetas, no outro lápis, no outro a borracha, no outro lápis de cor pra poder estudar um pouco”. (informação verbal)[9]
A respeito da matrícula, ainda relata que ao efetuar a própria matrícula, não possuía documentação pessoal e a escola não questionou a respeito da família. Apresentou-se sozinha dizendo que gostaria de estudar e frequentou as aulas. Estudou até a oitava série do ensino fundamental e reprovou três vezes. Sobre o que sentia com as reprovações afirma:
“Eu me sentia na verdade até vitoriosa porque eu passava por tanta barra, por tanta luta… Eu ia pra aula sem tomar café, não tinha almoço, não tinha nada então eu nem quase dentro da sala de aula eu não tinha cabeça pra estudar eu já tava preocupada onde que eu ia dormir, onde que eu ia tomar banho, o que eu ia comer a hora que saísse dali, então eu quase nem me importava, pra ser sincera”.
Duas entrevistadas relatam uma tentativa de a família fazer com que retornassem à escola, mobilizando conselho tutelar e a própria escola. Sobre a experiência no período que estava na escola afirma: “pra mim era normal, ia, voltava, fumava maconha, fumava cigarro…”. Parou de estudar na 5ª série e só voltava para a escola:
“[…] porque o Conselho Tutelar me obrigava. […] a minha mãe sempre correu atrás, sempre foi atrás de mim, me buscava, eu saia de casa, dormia uma noite em casa, saia fora, fica 15 dias, um mês na rua ela ia lá me buscava de novo, chamava o conselho tutelar. Fui presa na FEBEM […] de Porto Alegre […]”
A baixa escolarização foi apontada como um fator determinante para o envolvimento com o crime para a maioria das entrevistadas. “Eu acho que sim porque se eu tivesse terminado meus estudos minha vida teria tido um rumo completamente diferente”. Sobre o rumo que teria tomado a sua vida, a entrevistada diz que “eu já teria terminado meus estudos, eu já teria… […] queria ter feito uma faculdade, iria tá trabalhando, iria ser independente na verdade. Se eu fosse independente, na verdade, eu não teria nem casado” (informação verbal)[10].
Dos papéis sociais atribuídos às mulheres, o de mãe e dona de casa são os mais determinantes na formação desde a infância. Essa educação voltada para o ambiente doméstico é anterior a Era cristã e caminha até os dias atuais, influenciando diretamente na vida de milhares de mulheres, que veem no casamento a possibilidade de sair da casa dos familiares e ter o mínimo de independência e em contrapartida, acaba tendo dependência financeira do companheiro e a interrupção dos planos de estudar, ter uma profissão, estabilidade financeira.
Esses fatores sociais que se cruzam nas trajetórias de vidas e que invariavelmente afetam as trajetórias escolares corroboram as estatísticas nacionais do perfil social das mulheres privadas de liberdade no país e das entrevistadas. Segundo o Infopen Mulheres em junho de 2014, 50% das mulheres privadas de liberdade no Brasil possuem o Ensino Fundamental incompleto, 4% são analfabetas e 14% possuem o Ensino Médio incompleto, ou seja, mais da metade não completou a escolarização básica (Ensino Fundamental e Médio). (DEPEN, 2014)
A curiosidade em relação às drogas é característica comum na fala da maioria das entrevistadas. Essa curiosidade resulta do envolvimento com pessoas ligadas ao tráfico ou usuárias de drogas e daí entrarem para o tráfico. Outras falas relacionam o uso e envolvimento com as drogas ilícitas porque queriam conhecer esse mundo, não atribuindo a influência de outras pessoas, mas a uma escolha individual. Duas entrevistadas afirmam não ocupar posição no tráfico, sendo somente usuárias de droga.
A boa vida e dinheiro fácil foram motivações encontradas para traficar drogas ilícitas, que, independente do discurso criminalizante, constitui uma forma de comércio cuja finalidade é obtenção do lucro (CORTINA, 2015). Duas entrevistadas envolveram-se com o tráfico devido aos companheiros já terem envolvimento com essa atividade.
“Na verdade, quando eu fui parar na noite, eu queria sair daquilo ali, não era agradável pra mim, e eu conheci meu marido, eu gostei dele na verdade eu realmente gostei, mas eu tinha a esperança dele parar de traficar depois que a gente fosse se juntar, mas dai a gente foi se envolvendo cada vez mais e daí era muito dinheiro, era uma vida boa, já não passava necessidade como eu já tinha passado, já podia comprar as roupas os calçados, tudo o que eu queria, […] dai foi virando uma rotina, o que pra mim era ter uma oportunidade de fazer com que ele parasse de traficar e fazê-lo levar uma vida digna trabalhando tudo certinho e eu querer trabalhar, o dinheiro começou a subir pra cabeça. Por eu ter passado muito trabalho na minha adolescência não ter as coisas que eu queria que toda menina tinham eu deixei me influenciar pra ter uma vida boa”. (informação verbal)[11]
Três das nove entrevistadas em algum momento da vida foram prostitutas, sendo que uma usava a prostituição para conseguir dinheiro para sustentar o uso de drogas. Nesse sentido, os papeis de gênero de muitas formas são transpostos: assumindo uma posição no tráfico de drogas, saindo de casa e tomando as rédeas da própria vida acarretando escolhas de toda ordem que implica em criar estratégias para sobreviver, independente de relacionamentos formais ou não. Essas histórias aproximam-se no protagonismo das suas próprias vidas, sujeitos da sua própria história, ou seja, não possuem papel secundário ou coadjuvante conforme a construção social do gênero.
Mesmo nos casos das duas entrevistadas vítimas de violência (doméstica e sexual), a busca por estratégias para libertar-se das amarras dessas violências que causam marcas profundas, manifestam-se como uma forma de construírem as suas próprias histórias e serem protagonista delas.
Retomar os estudos dentro da prisão é uma das formas encontradas de ganhar a remissão da pena, conforme a Lei de Execução Penal, mas também de reconstruir ou construir uma nova vida, ocupar a cabeça, adquirir conhecimento e, sobretudo, repensar as próprias histórias. Se em outro momento da vida, sair da escola significou mudar o curso das suas histórias, retomar os estudos, apresenta-se como uma possibilidade de construir um novo caminho.
Com uma vida marcada pela violência sexual e pela capacidade de superar as dificuldades e reinventar-se a cada dia, uma das entrevistadas, parou de estudar no período de alfabetização: “Estudei até o segundo ano no sítio, agora que eu sinto que eu to estudando agora né, eu to estudando com a professora, com mais outros professores né, a gente tá aprendendo um pouquinho” (informação verbal)[12]. Sobre o significado de voltar a estudar no espaço prisional diz:
“Significa que eu retomei a minha vida e quero aprender alguma coisa boa pra mim, para mim ensinar as minhas netas né, que eu tenho as netas maravilhosas, as netas lindas, que eu amo muito que Deus me deu três filhos, Deus me deu uma filha e dois filhos homens. Eles são maravilhosos, não fumam, não bebem, não fazem nada errado, só trabalham então é um motivo de eu tentar continuar viva, de eu ter vontade de continuar vivendo. É esse o motivo aí.” (informação verbal)[13]
Para sobreviver em um espaço de privação de liberdade é preciso reinventar inúmeras maneiras de conseguir a melhor qualidade possível de vida em um ambiente violento, que controla a vida a pessoa privada de liberdade e tendo pouco o quase nenhum acesso a basicamente tudo, pra tanto, a criatividade é a grande companheira para inventar estratégias de sobrevivência. Ser mulher e sobreviver nesse espaço é duplamente mais difícil, pela estrutura criada pelos e para os homens e pela moralização do envolvimento com o crime. Em meio a essas dificuldades reafirmar-se enquanto mulher e sujeitos históricos dentro dos espaços prisionais é fundamental e necessário para poder sobreviver. Nesse sentido muitas mulheres conseguem conquistar autonomia sobre as suas vidas – ainda que limitadas pelas regras do espaço – repensar suas relações sociais, suas trajetórias de vida, seu próprio futuro.
As oportunidades de retomar os estudos e trabalho mostram-se mecanismos essenciais para a ressocialização e para a emancipação social e humana dessas mulheres e todas as pessoas que cumprem pena privativa de liberdade. A rede de proteção social articulada dentro das prisões tem papel primordial para que retomem a vida após a pena cumprida. A má articulação da rede na saída dessas pessoas para retomar a vida em liberdade é uma das principais causas de reincidência[14], já que cabe questionar: aonde vão morar? Como vão sustentar a si e aos seus dependentes? Como reconstruir os laços familiares? Aonde e quando vão trabalhar? Que direitos lhes são garantidos? Quem articula o acesso a esses direitos? As políticas públicas de reinserção social consideram, compreendem e problematizam quem são esses sujeitos que estão retomando a vida em liberdade e as suas reais necessidades?
Parte de algo maior, as falhas da educação e da rede de proteção social não acontecem somente pelas dificuldades da sua articulação, as relações de exploração da sociedade capitalista precisam que a educação e a rede de proteção falhem. O recorte social, étnico e etário das pessoas privadas de liberdade materializam a necessidade dessas falhas da rede de proteção, já que as engrenagens do sistema capitalista, ou seja os aparelhos do Estado – a escola e a prisão – (re) produzem os “clientes” que atendem as demandas dessas engrenagens. Daí a necessidade de (re) pensar as políticas públicas, principalmente na educação, como forma de diminuir as desigualdades e promover a transformação social a partir das políticas públicas que é responsabilidade do Estado Democrático de Direito que vivemos, já que de acordo com Boaventura Souza Santos “sem direitos de cidadanias efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada” (2007, p 90).
Notas conclusivas.
A partir das entrevistas com mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma, podemos concluir que rede de proteção social tem atuado na promoção e garantia de direitos fundamentais, porém a má articulação da rede e entre a escola e a rede de proteção contribui para a interrupção de trajetórias escolares. O envolvimento com drogas ilícitas seja na infância, adolescência e vida adulta, com pessoas usuárias e com o tráfico de drogas também apresenta-se como um fator relevante na interrupção das trajetórias escolares.
A restrição da liberdade pela família na adolescência, dificuldade de diálogo da escola são fundamentais para pensar as falhas e intervenções, resultados da relação entre a escola e as famílias, os alunos, a rede de proteção social e o território. Além do próprio sentido da escola e seu papel na garantia e efetivação de direitos humanos de crianças e adolescentes.
Não concluir as etapas básicas de ensino (Fundamental e Médio) e consequentemente o Ensino Superior e Técnico, apresenta-se como uma das principais motivações do envolvimento com o crime para a maioria das entrevistadas.
A pena privativa de liberdade das mulheres e as estratégias de sobrevivência em um espaço feito pelo e para homens mostram-se como uma necessidade a afirmação enquanto sujeito, a construção de autonomia e (re) avaliação dos papeis sociais de gênero. O contexto social de uma suposta submissão e papel secundário das mulheres na história e na sociedade são subvertidos tanto no período de privação de liberdade quanto antes, já que as mulheres entrevistadas mostram-se protagonistas da sua própria história, ainda que estas tenham sido marcadas pelas falhas das políticas públicas e das amarras da sociedade, como machismo, sexismo e desigualdade social e de gênero.
As relações da sociedade capitalista legitimam a exclusão social e de gênero, feminização da pobreza, as falhas da rede de proteção social e a sua articulação. Os aparelhos do Estado que (re) produzem os conceitos e perspectivas do capitalismo onde os papeis sociais de gênero social e discursivamente construídos, se materializam, tanto na escola quanto na prisão, afetando diretamente na vida das mulheres que tem a trajetória escolar interrompida e no cumprimento da pena privativa de liberdade.
Para o próprio funcionamento do capitalismo, os aparelhos do Estado e as políticas públicas precisam das falhas, já que são essas falhas que fazem as engrenagens do sistema continuar funcionando, engrenagens permeadas pela definição de papeis de gênero, machismo, sexismo, homofobia, desigualdade social entre outros. Daí o perfil social das mulheres privadas de liberdade apresentado nos dados nacionais estarem em consonância com a condição das mulheres privadas de liberdade no Presídio Regional de Criciúma: feminização da pobreza, baixa escolarização e relação com o tráfico e consumo de drogas.
Bacharel e Licenciada em História ela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Pós-graduanda em Educação Diversidade e Redes de Proteção Social pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Acadêmica de Segunda Licenciatura – Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER
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