Sumário:
1. Introdução – 2. Origem e missão do Direito Penal – 3. Desenvolvimento
histórico e filosófico da pena através dos tempos – 4. As escolas penais: 4.1
Escola Clássica; 4.2 Escola Positiva; 4.3 A Terza Scuola Italiana e
escolas intermediárias; 4.4 A Nova Defesa Social – 5. Principais teorias sobre
os fins da pena: 5.1 Teorias absolutas ou de justiça. Pena retributiva e
expiatória; 5.2 Prevenção geral; 5.3 Prevenção especial; 5.4 Teoria mista ou
unificadora da pena; 5.5 Teoria da prevenção geral positiva – 6. Considerações
finais.
1. Introdução
Conceituar o Direito não é tarefa fácil.
Conhecer seus institutos, suas relações com as
coisas da vida, e estabelecer sobre eles uma verdade universal é mesmo
impossível, não só em razão da enorme diversidade cultural reinante ainda nos
tempos atuais, apesar da globalização, que de certa forma tende a criar um
núcleo mais ou menos homogêneo em vários segmentos, mas, sobretudo, em razão
dos variados fundamentos filosóficos que certos temas encerram. Não é outra a
realidade do Direito e de seus apaixonantes temas.
Talvez por essa razão Hart[1]
tenha sentenciado que mesmo hábeis juristas têm sentido que, embora conheçam o
direito, há muito acerca do direito e das suas relações com outras coisas que
não são capazes de explicar e que não compreendem plenamente.
Para Kant o direito é uma coação universal, que
protege a liberdade de todos. Stuart Mill dizia que o direito é uma liberdade
limitada por outra liberdade.
Conforme Vicente Ráo,[2]
“o direito ampara o ser humano desde o momento em que é concebido e enquanto
vive no ventre materno. E depois o segue e acompanha em todos os passos e
contingências de sua vida, contemplando o seu nascimento e, com o seu
nascimento, o início de sua personalidade. Protege-lhe, com a liberdade, a
integridade física e moral. Prevê e segue, de grau em grau, seu desenvolvimento
físico e moral, dispondo sobre sua capacidade progressiva ou sobre sua
incapacidade. Regula relações de família, como filho, parente, nubente, esposo
e pai, bem assim suas relações patrimoniais, quer tenham por objeto bens
corpóreos, quer recaiam sobre outras pessoas, obrigadas a uma prestação de dar,
fazer, ou não fazer alguma coisa. Prevê e disciplina as conseqüências
patrimoniais e penais da violação de seus direitos”.
E segue o renomado autor afirmando que
“…encontra-se, pois, a origem do direito na própria natureza do homem havido
como ser social. E é para proteger a personalidade deste ser e disciplinar-lhe
sua atividade, dentro do todo social de que faz parte, que o direito procura
estabelecer, entre os homens, uma proporção tendente a criar e a manter a
harmonia na sociedade. Constitui, pois, o direito, o fundamento da ordem
social”.
De uma forma simplificada, para Von Liszt[3]
o Direito é a ordenação da sociedade organizada em Estado; manifesta-se em um
sistema de normas coercitivas que ligam os particulares com a comunidade e que
garantem a consecução dos fins comuns. Todo direito existe para o homem. Tem
por objeto a defesa dos interesses da vida humana. O Direito é, por sua
natureza, a proteção dos interesses.
2. Origem e missão do Direito Penal
Conhecer a origem do Direito Penal, sua missão, e
estabelecer sobre ele alguns conceitos fundamentais é o ponto de partida para
uma compreensão mais profunda de qualquer de seus institutos, notadamente a
pena, como é a pretensão do presente trabalho.
Assevera Maurício Antonio Ribeiro Lopes[4]
que “o Direito Penal, como objeto de ciência autônoma, nasce com o iluminismo.
É nesse momento que o homem moderno toma consciência crítica do problema penal
como problema filosófico e jurídico que é. Os temas em torno dos quais se
desenvolve a nova ciência são, sobretudo, os fundamentos do direito de punir e
da legitimidade das penas (em particular, da pena de morte) na dialética das relações
entre os indivíduos, que tomavam consciência de seu intrínseco valor humano, e
o Estado, saído do período do absolutismo à procura de diferentes estruturas: o
motivo condutor era a concepção jusnaturalista do Estado e do direito. Nessa
perspectiva, tem desde logo importância a elaboração do princípio da legalidade
e, junto a este, com predominante função de garantia, o tema da sanção penal”.
Proteger valores e bens jurídicos fundamentais da
vida comunitária no âmbito da ordem social, e garantir a paz jurídica em sua
plenitude são desafio e tarefa do Direito Penal.
Sauer[5]
ensina que o delito é uma aparição, nunca extirpada completamente, da vida
social de todos os povos e de todas as épocas; ele exige o tratamento e a luta
segundo determinadas linhas de orientação sobre cujo conteúdo essencial os
modernos estados civilizados estão de acordo, apesar dos desvios nas formações
mais recentes.
O mesmo Sauer afirma que o Direito Penal é, segundo
sua essência e conteúdo, o tratamento
jurídico e ético-social do delito.
Na lição de Welzel[6]
“o Direito Penal é aquela parte do ordenamento jurídico que determina as
características da ação delituosa e impõe penas ou medidas de segurança. Missão
da ciência penal é desenvolver e explicar o conteúdo destas regras jurídicas e
sua conexão interna, é dizer, ‘sistematicamente’. Como ciência sistemática
estabelece a base para uma administração de justiça igualitária e justa”. E
arremata: “A missão do Direito Penal é proteger os valores elementares da vida
em comunidade”.
Na concepção de Welzel, a tarefa do Direito Penal é
a necessidade de preservação dos valores éticos-sociais, não se restringindo à
mera proteção de bens jurídicos.
Todavia, como é intuitivo, a concepção de Welzel
não reina absoluta, e conforme assinala Juarez Tavares citando Wessels,[7]
é bastante questionável a matéria referente às funções do Direito Penal. Dentre
as mais diversas e muitas orientações, cita o renomado autor três grupos
principais: a) dos que entendem que sua tarefa consiste, primeiramente, em proteger
os valores éticos-sociais do ânimo (ação) e só secundariamente os bens
jurídicos concretos; b) dos que se fixam exclusivamente (ou quase
exclusivamente) na proteção dos bens jurídicos; c) dos que vinculam a proteção
aos bens jurídicos com outros fins ou mais propriamente com a paz jurídica ou
social.
Para Von Liszt,[8]
se o direito tem como missão principal o amparo dos interesses da vida humana,
o direito penal tem como missão peculiar a
defesa mais enérgica dos interesses especialmente dignos e necessitados de
proteção por meio da ameaça e execução da pena, considerada como um mal
contra o delinqüente.
Seja qual for a orientação a ser seguida, a
missão/função incumbida ao Direito Penal se subordina, entre outros fatores, à
forma de Estado, absoluto ou de direito, que condiciona a produção legislativa
no âmbito do Direito Penal.
3. Desenvolvimento histórico e
filosófico da pena através dos tempos
A origem da pena é a vindita. Nos povos primitivos
a idéia da pena nasceu do sentimento de vingança, inicialmente na forma
privada, e posteriormente foi alçada à categoria de direito.
Segundo René Ariel Dotti,[9]
“é generalizada a opinião de que a pena deita raízes no instinto de conservação
individual movimentado pela vingança. Tal conclusão, porém, é contestada diante
da afirmação segundo a qual tanto a vingança de sangue como a perda da paz não
caracterizavam reações singulares, mas a revolta coletiva”.
O homem primitivo, assinala Oswaldo Henrique Duek
Marques,[10]
“encontra-se muito ligado à sua comunidade, pois fora dela sentia-se
desprotegido dos perigos imaginários. Essa ligação refletia-se na organização
jurídica primitiva, baseada no chamado vínculo
de sangue, representado pela recíproca tutela daqueles que possuíam uma
descendência comum. Dele se originava a chamada vingança de sangue, definida por Erich Fromm como ‘um dever sagrado
que recai num membro de determinada família, de um clã ou de uma tribo, que tem
de matar um membro de uma unidade correspondente, se um de seus companheiros
tiver sido morto’”.[11]
Após o surgimento do Estado, com o aparecimento das
religiões, surgiram regras de Direito Penal com conotação de divindade. A
punição se aplicava em nome desta. Conforme ensinamentos de Henny Goulart,[12]
“sendo o ato considerado como atentado à divindade, a sanção tendia para a
eliminação ou expulsão do transgressor, sacrifício que se oferecia aos deuses”.
A vingança
perdurou até ser substituída pelas penas públicas.
Para René Ariel Dotti,[13]
“a idéia da pena como instituição de garantia foi obtendo disciplina através da
evolução política da comunidade (grupo, cidade, Estado) e o reconhecimento da
autoridade de um chefe a quem era deferido o poder de castigar em nome dos
súditos. É a pena pública que, embora
impregnada pela vingança, penetra nos costumes sociais e procura alcançar a
proporcionalidade através das formas do talião e da composição. A expulsão da
comunidade é substituída pela morte, mutilação, banimento temporário ou
perdimento de bens”.
Não se deve confundir a origem histórica da pena
com sua origem jurídica.
Na correta visão de Henny Goulart:[14]
“A partir do século XV, a elaboração das idéias liberais, condicionada pela
renovação de conceitos a respeito do mundo e do destino do ser humano,
acentua-se, concretizada, afinal, no século XVIII, com os postulados da
Revolução Francesa. Novas concepções surgem, então, no campo penal e, com elas,
as doutrinas acerca do fundamento do direito de punir”.
A abordagem do tema impõe destacar, desde logo, a
figura de Cesare Bonessana, Marquês de Beccaria, filósofo italiano, nascido em
Milão, em 1738, seguidor das idéias de Rousseau e Montesquieu, autor do famoso
livro Dos delitos e das penas (1764),
a quem se tem atribuído a criação da idéia utilitarista e o movimento de
renovação do Direito Penal da época, que deu origem à Escola Clássica, de que
fizeram parte Carmignani, Carrara, Feuerbach, Filangieri, Pessina, entre
outros.
Conforme lição de Carrara,[15]
é quiçá impossível enumerar todos os diversos sistemas que imaginaram os
publicistas para dar ao direito de castigar seu princípio fundamental, e é
difícil o distingui-los, porque, ainda que amiúde são diferentes na
exterioridade das palavras, se unificam no fundo. Contudo, indica os seguintes:
1º) A vingança – Hume, Pagano, Vecchioni, Bruckner,
Raffaelli, Romano e outros – Admitiram que uma paixão avessa poderia
converter-se em um direito exigível, e no direito de vingar-se.
2º) A vingança purificada – Luden – A sociedade
castiga para que o indivíduo não se vingue.
3º) A represália – Doutrina idealizada pelo norte-americano
Francis Lieber, que no fundo não é senão um simples disfarce da vingança.
4º) A aceitação – Sistema por meio do qual se
elimina a questão, pois sustenta que, uma vez promulgada a lei que estabelece a
pena, o cidadão, ao cometer o delito que sabe castigado de tal forma, se
submete voluntariamente a essa pena, e não tem razão de queixar-se dela.
5º) A convenção – Rousseau, Montesquieu,
Burlamaqui, Blackstone, Vattel, Beccaria, Mably Pastoret, Brissot de Warville –
Cessão à sociedade do direito privado de defesa direta.
6º) A associação – Puffendorf – A constituição da
sociedade desenvolve o direito punitivo, por causa da união mesma.
7º) A reparação – Klein, Schneider, Wicker – Parte
do princípio absoluto de que quem haja causado um dano, o deve reparar, de onde
deduz que o delinqüente deve reparar o dano que tenha causado à sociedade.
8º) A conservação – A sociedade, ao castigar,
exerce o direito que tem de ser a sua própria conservação e não pode
conservar-se se não detém os demais, castigando o delinqüente. Esta doutrina
tem se expressado ora com a simples fórmula da defesa social indireta (Romagnosi, Comte, Rauter, Guiliani) ou com
a fórmula mais vaga da necessidade
política (Feuerbach, Krug, Baver, Carmignani). É esta uma idéia perigosa,
porque põe nas mãos da autoridade um arbítrio terrível; e, por outra parte,
indica a razão de castigar, mas não demonstra por que a sociedade tem direito
de castigar um por temor aos outros.
9º) A utilidade – Hobbes, Bentham – Este princípio
se apóia sobre o falso postulado de que a utilidade
(entendida no sentido de bem material) subministra o supremo princípio do bem
moral e a origem adequada do direito.
10º) A correção – Roeder, Ferreira, Mazzoleni,
Marquet-Vasselot – O fundamento desta doutrina se expressa dizendo que a
sociedade tem direito de castigar o culpável para emendá-lo.
11º) A expiação – Kant, Henche, Pacheco – É um
princípio de justiça absoluta, segundo o qual quem tenha causado um mal deve
expiar sua falta sofrendo um mal.
12º) A defesa continuada – Esta fórmula foi
proposta por Thiercelin como um novo princípio, mais parece um simples
desenvolvimento do princípio da defesa
direta.
4. As escolas penais
4.1 Escola Clássica
Após a contribuição de Cesare Beccaria, nos últimos
anos do século XVIII e na primeira metade do século XIX, sob a efervescência
das idéias iluministas, desenvolvem-se os estudos da Escola Clássica Criminal,
também chamada idealista, filosófico-jurídica, crítico-forense etc., que é
livre-arbitrista, invidualista e liberal, considerando o crime fenômeno
jurídico e a pena, meio retributivo.
Na visão de Roberto Lyra,[16]
os clássicos são contratualistas e racionalistas; foram, inicialmente, mais ou
menos jusnaturalistas, aceitando, em regra, o predomínio de normas absolutas e
eternas sobre as leis positivas.
Para Francesco Carrara a pena é um conteúdo
necessário do direito. É o mal que a autoridade pública inflige a um culpado
por causa de seu delito.
Mais exatamente, na definição de Carrara,[17]
a pena é um mal que, de conformidade com a lei do Estado, infligem os juizes
aos que são tidos culpados de um delito, havendo-se observado as devidas
formalidades. “A pena não é simples necessidade de justiça que exija a expiação do mal moral, pois só Deus tem
a medida e a potestade de exigir a expiação devida, tampouco é uma mera defesa
que procura o interesse dos homens as
expensas dos demais; nem é fruto de um sentimento dos homens, que procuram
tranqüilizar seus ânimos frente ao perigo
de ofensas futuras. A pena não é senão a sanção do preceito ditado pela lei
eterna, que sempre tende à conservação da humanidade e a proteção de seus
direitos, que sempre procede com observância às normas de Justiça, e sempre
responde ao sentimento da consciência universal”.[18]
Para a Escola Clássica a pena é um mal imposto ao
indivíduo que merece um castigo em vista de uma falta considerada crime, que
voluntária e conscientemente cometeu.[19]
A finalidade da pena é o restabelecimento da ordem
externa na sociedade. É o bem social, representado pela ordem que se obtém
mercê da tutela da lei jurídica.[20]
4.2 Escola Positiva
Cesare Lombroso foi o fundador da Escola Positiva.
Teve como precursores Bentham (Inglaterra, 1748-1832) e Romagnosi (Itália,
1761-1835), entre outros.
Segundo Roberto Lyra,[21]
“a Escola Positiva, também chamada italiana, nova, moderna ou antropológica
(Lombroso, Ferri, Garofalo, Fioretti), é determinista e defensivista, encarando
o crime como fenômeno social e a pena como meio de defesa da sociedade e de
recuperação do indivíduo. Chama-se positiva, não porque aceite o sistema
filosófico mais ou menos comteano, porém, pelo método. Inicialmente, sofreu a
influência de Darwin, Spencer e Haeckel, com as novas concepções da natureza,
do homem e da sociedade, mormente a doutrina da evolução”.
Para a Escola Positiva o crime é um fenômeno
natural e social, e a pena meio de defesa social.
Enquanto os clássicos aceitam a responsabilidade
moral, para os positivistas todo homem é responsável, porque vive e enquanto
vive em sociedade (responsabilidade legal ou social).
Para os positivistas o Direito Penal deveria
subordinar-se ora à Antropologia Criminal (Lombroso) ora à Sociologia Criminal
(Ferri) ora à Criminologia (Garofalo).
Cesare
Beccaria disse ao homem: conhece a Justiça; Cesare Lombroso disse à Justiça:
conhece o homem.
4.3 A Terza
Scuola Italiana e escolas intermediárias
Em meio aos extremos bem definidos das Escolas
Clássica e Positiva, surgiram ao longo dos tempos posições conciliatórias.
A primeira dessas correntes surge com a publicação,
na Itália, de um artigo de Manuel Carnevale, denominado “Una Terza Scuola di Diritto Penale in Itália”,
em 1891, que assinala o início do que se convencionou denominar positivismo
crítico.
Comportam destaque, nesta fase, a obra de
Bernardino Alimena (Naturalismo crítico e
diritto penale) e Impallomeni (Instituizioni
di diritto penale).
Embora acolhendo o princípio da responsabilidade
moral, não aceitam que a responsabilidade moral fundamente-se no livre
arbítrio, substituindo-o pelo determinismo
psicológico.
Para Impallomeni, a imputabilidade resulta da intimidabilidade; para Alimena, resulta
da dirigibilidade dos atos do homem,
e a sociedade não tem o direito de punir, mas somente o de defender-se nos
limites do justo.
Surgiram, depois, posições críticas, ecléticas e,
finalmente, unitárias.
São dignas de menção: a Escolas Técnico-Jurídica,
chamada por Ugo Spirito de Concepção
Técnico-Jurídica (Rocco, Manzini, Massari, Battaglini, Paoli, Saltelli, Di
Falco, Finzi); a Escola do Idealismo Atualístico (Groce, Gentile, Costa,
Spirito, Maggiore); e a Escola Penal Humanista (Lanza, Falchi, Montalbano,
Pappalargo). Visa-se a reatar os vínculos do Direito Penal com a Filosofia e a
Moral. O campo da penalidade deve ser idêntico ao da moralidade (Lanza).
O movimento unitário mais significativo foi o da
União Internacional do Direito Penal (Von Liszt, Von Hamel e Prins).
4.4 A Nova Defesa Social
Depois da II Guerra Mundial, reagindo ao sistema
unicamente retributivo, surge a Escola do Neodefensivismo Social, liderada por
Marc Ancel, na França, e por Filippo Grammatica, na Itália, que segundo seus
postulados não visa punir a culpa do agente criminoso, apenas proteger a sociedade das ações
delituosas. Essa concepção rechaça a idéia de um direito penal repressivo, que
deve ser substituído por sistemas preventivos e por intervenções educativas e
reeducativas, postulando não uma pena para cada delito, mas uma medida para
cada pessoa.[22]
Conforme ensina Damásio E. de Jesus,[23]
“para a Defesa Social, a pena tem três finalidades:
1.ª) não é exclusivamente de natureza retributiva,
visando também a tutelar os membros da sociedade;
2.ª) é imposta para a ressocialização do criminoso;
3.ª) a máquina judiciária criminal deve ter em mira
o homem, no sentido de que a execução da pena tenha um conteúdo humano”.
Considerando que o crime é uma doença, e o
criminoso, portanto, um doente, Manoel Pedro Pimentel[24]
sustentava que a sociedade tem o dever de se defender dos ataques contra bens e interesses tutelados
juridicamente. Todavia, no seu entender a palavra pena deveria ser substituída pela expressão medida de defesa social, ou outra equivalente, afastando-se do
sentido de castigo, e o Direito Penal passaria a ser Direito de Defesa Social; o Código Penal, então, seria denominado Código de Defesa Social. Os presídios já não seriam prisões, e sim casas de tratamento.
Destacava em seus respeitáveis ensinamentos o
renomado penalista, como tríplice objetivo da Defesa Social:
“1 – a pena não tem somente caráter expiatório, mas
interessa também para a proteção da sociedade;
2 – a pena, além de ser exemplar a retributiva, tem
um escopo de melhoramento senão mesmo de uma reeducação do delinqüente;
3 – a justiça penal deve ter sempre presente a
pessoa humana, além das simples exigências da técnica processual, a fim de que
o tratamento penal seja sempre humano”.
5.Principais teorias sobre os fins da pena
5.1 Teorias absolutas ou de justiça. Pena
retributiva e expiatória
Foram defensores das teorias absolutas, entre
outros, Carrara, Petrocelli, Maggiore e Bettiol na Itália, Binding, Maurach,
Welzel e Mezger na Alemanha, mas, principalmente, Kant e Hegel. Para Kant a
fundamentação é de ordem ética, para Hegel é de ordem jurídica.
Para as teorias absolutas a pena é a retaliação e a
expiação, uma exigência absoluta de justiça, com fins aflitivos e retributivos,
opondo-se a qualquer finalidade utilitária.
Na lição de Cezar Roberto Bitencourt,[25]
“segundo o esquema retribucionista, é atribuída à pena, exclusivamente, a
difícil incumbência de realizar a Justiça. A pena tem como fim fazer Justiça,
nada mais. A culpa do autor deve ser compensada com a imposição de um mal, que
é a pena, e o fundamento da sanção estatal está no questionável livre arbítrio,
entendido como a capacidade de decisão do homem para distinguir entre o justo e
o injusto”.
As chamadas teorias absolutas, diz Sauer,[26]
melhor chamadas teorias da pena conforme a Justiça, apóiam-se na filosofia do
idealismo alemão, especialmente em Kant e Hegel. A pena encontra seu fundamento
somente em sua referência ao delito; segundo sua gravidade determina-se sua
quantia como que se satisfazem as exigências do ordenamento jurídico e a
Justiça. Assim como a boa ação merece reconhecimento, a má ação requer
reprovação e compensação.
É conhecido o exemplo apontado por Kant no sentido
de que: “Se a sociedade civil resolver autodissolver-se, com a concordância de
todos os seus cidadãos, mesmo assim, caso esta sociedade habitar uma ilha e
resolver abandoná-la espalhando-se pelo mundo, o último assassino condenado e
preso teria que ser executado, antes do abandono final da ilha pelo último
membro do povo. Isto deverá assim acontecer para que cada um receba a punição
equivalente aos seus atos e a dívida de sangue não permaneça vinculada ao
povo”.[27]
Em síntese, Kant entende que o réu deve ser
castigado apenas por ter delinqüido, Não estabelece nenhuma consideração sobre
a utilidade da pena para ele ou para a sociedade, retirando toda e qualquer
função preventiva – especial ou geral – da pena. “A aplicação da pena decorre
da simples infringência da lei penal, isto é, da simples prática do delito”.[28]
Hegel também é partidário de uma teoria retributiva
da pena. Sua tese resume-se em sua conhecida frase: “A pena é a negação da
negação do Direito”.[29]
Em verdade, Kant e Hegel atribuem à pena um conteúdo talional.
O fundamento da pena em Hegel é jurídico, já que
ela se destina à restabelecer a vigência da vontade
geral, que é a lei, negada que fora pela vontade do delinqüente. “Ela é uma exigência de Justiça e se funda
na pura retribuição. É um fim em si mesma e não serve a qualquer outro
propósito que não seja o de recompensar o mal com o mal (fundamento metafísico
Kantiano). Não tem, pois, uma finalidade, se considerada objetivamente”.[30]
No escólio de Claus Roxin,[31]
são três os inconvenientes que podem ser apresentados na análise da teoria da
retribuição. O primeiro decorre do fato de que a referida teoria pressupõe já a
necessidade da pena, que deveria fundamentar. E assevera: “Pois se o seu
significado assenta na compensação da culpa humana, não se pode com isso pretender
que o Estado tenha de retribuir com a pena toda a culpa. Cada um de nós
considera-se culpado perante o próximo de muitas maneiras, mas não somos por
isso puníveis. E, igualmente, a culpa jurídica acarreta conseqüências de tipos
diversos, como por exemplo, um dever de indenização por danos, mas apenas em
raras ocasiões a pena. A teoria da retribuição, portanto, não explica em
absoluto quando se tem de punir, mas
apenas refere: ‘Se impuserdes – sejam quais forem os critérios – uma pena, com
ela tereis de retribuir um crime’. O segundo, nos seguintes termos: A liberdade
humana pressupõe a liberdade de vontade (o livre-arbítrio), e a sua existência,
como os próprios partidários da idéia da retribuição concordam, é
indemonstrável. Por fim, o terceiro argumento é no sentido de que, mesmo quando
se considere que o alcance das penas estatais e a culpa humana se encontram
suficientemente fundamentadas com a teoria da expiação, colocar-se-ia sempre
uma terceira objeção, a saber: a própria idéia de retribuição compensadora só
pode ser plausível mediante um ato de fé. Pois, considerando-o racionalmente,
não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um
segundo mal: sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao
arraigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas
considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente
distinto da vingança, e que a retribuição tome a seu cargo ‘a culpa de sangue
do povo’, expie o delinqüente etc., tudo isto é concebível apenas por um ato de
fé, que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é
válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal”.
Feitas, em síntese, tais considerações, conclui o
jurista: “A teoria da retribuição não nos serve, porque deixa na obscuridade os
pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos
e porque, como profissão de fé irracional e além do mais contestável, não é
vinculante. Nada se altera com a substituição, que amiúde se encontra em
exposições recentes, da idéia de retribuição (que recorda em demasia o arcaico
princípio de talião), pelo conceito dúbio de ‘expiação’, na medida em que, se
com ele se alude apenas a uma ‘compensação da culpa’ legitimada estatalmente,
subsistem integralmente as objeções contra uma ‘expiação’ deste tipo. Se, pelo
contrário, se entende a expiação no sentido de uma purificação interior
conseguida mediante o arrependimento do delinqüente, trata-se então de um
resultado moral, que por meio da imposição de um mal mais facilmente se pode
evitar mas que, em qualquer caso, se não pode obter pela força”.
Embora entendendo que a retribuição compensadora
não é condizente com o Estado Democrático de Direito por não respeitar o princípio
da dignidade humana, o que não nos parece correto, Sérgio Salomão Shecaira e
Alceu Correa Junior[32]
destacam que a teoria retributiva apresenta uma grande qualidade quando propõe
a idéia de medição da pena, que atende ao princípio da proporcionalidade, “dado
informativo de qualquer moderna legislação penal”.
5.2 Prevenção geral
Intimidação de todos os membros da comunidade
jurídica pela ameaça da pena.
Destacam-se entre os defensores da teoria da
prevenção geral da pena, entre outros, Beccaria, Bentham, Feuerbach, Filangieri
e Schopenhauer.
Anselm v. Fueurbach foi quem formulou a teoria da coação psicológica, expressão
jurídico-científica da prevenção geral, segundo a qual “é através do Direito
Penal que se pode dar uma solução ao problema da criminalidade”.[33]
Claus Roxin,[34]
entretanto, contraria a teoria da prevenção geral nos seguintes termos: “Em
primeiro lugar, permanece em aberto a questão de saber face a que
comportamentos possui o Estado a faculdade de intimidar. A doutrina de
prevenção geral partilha com as doutrinas da retribuição e da correção esta
debilidade, ou seja, permanece por esclarecer o âmbito do criminalmente
punível. A ela se acrescenta uma ulterior objeção: assim como na concepção da
prevenção especial não é delimitável a duração do tratamento
terapêutico-social, podendo no caso concreto ultrapassar a medida do defensável
numa ordem jurídico-liberal, o ponto de partida da prevenção geral possui
normalmente uma tendência para o terror estatal. Quem pretender intimidar
mediante a pena tenderá a reforçar esse efeito, castigando tão duramente quanto
possível. Outro argumento reside no fato de que, em muitos grupos de crimes e
de delinqüentes, não se conseguiu provar até agora o efeito de prevenção geral
da pena. Por fim, uma última objeção: Como pode justificar-se que se castigue
um indivíduo não em consideração a ele próprio, ma em consideração a outros?
Mesmo quando seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser
justo que se imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal”. E
conclui: “A teoria da prevenção geral encontra-se, assim, exposta a objeções de
princípio semelhante às outras duas: não pode fundamentar o poder punitivo do
Estado nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas conseqüências; é político-criminalmente
discutível e carece de legitimação que esteja em consonância com os fundamentos
do ordenamento jurídico”.
Na precisa compreensão de Mezger, como instrumento
de prevenção, a pena deve “atuar social e pedagogicamente sobre a coletividade”
(prevenção geral) e deve “proteger a coletividade ante o condenado e corrigir a
este” (prevenção especial).
Ameaça que é, a pena constitui, como assinala
Nélson Hungria, “um poderoso meio profilático da fames peccati” e
“um freio contra o crime” que, se de um lado, “reafirma o princípio da
autoridade, que o criminoso afrontou”, de outro representa “um indireto
contramotivo aos possíveis criminosos de amanhã”.[35]
5.3 Prevenção especial
Postulado da moderna política criminal, cuida-se da
prevenção do delito por atuação sobre o autor. Dirige-se exclusivamente ao
delinqüente, para que este não volte a delinqüir.
Segundo Sauer,[36]
não oferece ao juiz na medição da pena nenhum ponto de apoio e não oferece
tampouco referências de valoração adequadas.
Conforme Jescheck, citado por Cezar Roberto
Bitencourt,[37] várias
correntes defendem uma postura preventivo-especial da pena. Na frança, por
exemplo, pode-se destacar a teoria da Nova Defesa Social, de Marc Ancel; na
Alemanha, a prevenção especial é conhecida desde os tempos de Von Liszt, e, na
Espanha, foi a Escola Correcionalista, de inspiração Krausista, a postulante da
prevenção especial. Independentemente do interesse que possa despertar cada uma
destas correntes, foi o pensamento de Von Liszt que deu origem, na atualidade,
a comentários de alguns penalistas sobre um “retorno a Von Liszt”, conforme
leciona Mir Puig[38].
Na lição de Maurach,[39]
em seu conjunto, a prevenção especial está orientada a desenvolver uma
influência inibitória do delito no autor. A sua vez, esta finalidade se
subdivide em três fins da pena: intimidação (preventivo individual),
ressocialização (correção) e asseguramento. Neste sentido, a intimidação e a
ressocialização podem ser concebidas como objetivos positivos, enquanto elas
buscam reincorporar o autor à comunidade jurídica, ou bem mantê-lo nela; busca
assegurar a recuperação do autor para a comunidade.
A prevenção especial não busca a intimidação do
grupo social nem a retribuição do fato praticado, visando apenas àquele
indivíduo que já delinqüiu para fazer com que não volte a transgredir as normas
jurídico-penais. Os partidários da prevenção especial preferem falar de medidas
e não de penas, como assinala Mir Puig.[40]
Para Claus Roxin,[41]
a teoria da prevenção especial tende, mais que um Direito Penal da culpa
retributivo, a deixar o particular ilimitadamente à mercê da intervenção
estatal. Outra objeção consiste no fato de que, nos crimes mais graves, não
teria de impor-se uma pena caso não existisse perigo de repetição, e esclarece:
“O exemplo mais contundente é constituído, neste momento, pelos assassinos dos
campos de concentração, alguns dos quais mataram cruelmente, por motivos
sádicos, inúmeras pessoas inocentes. Tais assassinos vivem hoje, na sua
maioria, discreta e socialmente integrados, não necessitando portanto de ressocialização alguma; nem tampouco
existe da sua parte o perigo de uma reincidência ante o qual deveriam ser
intimidados e protegidos. Deverão eles, então permanecer impunes?” E arremata
afirmando: “A teoria da prevenção especial não é capaz de fornecer a necessária
fundamentação da necessidade da pena para tais situações”. Coloca a última
objeção nos seguintes termos: “O que legitima a maioria da população a obrigar
a minoria a adaptar-se aos modos de vida que lhe são gratos? De onde vem o
direito de poder educar e submeter a tratamento contra a sua vontade pessoas
adultas? Porque não hão de poder viver conforme desejam os que fazem à margem
da sociedade. Será a circunstância de serem incômodos ou indesejáveis para
muitos dos seus concidadãos causa suficiente para contra eles proceder com
penas discriminatórias? Tais perguntas parecem levemente provocadoras”. E
conclui: “Exprimindo numa só frase: a teoria da prevenção especial não é idônea
para fundamentar o Direito Penal, porque não pode delimitar os seus
pressupostos e conseqüências, porque não explica a punibilidade de crimes sem
perigo de repetição e porque a idéia de adaptação social coativa, mediante a
pena, não se legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica
que se baseia noutro tipo de considerações”.
Entre nós, Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Correa
Junior[42]
entendem que a prevenção especial “pode representar uma idéia absolutista,
arbitrária, ao querer impor uma verdade única, uma determinada escala de valores
e prescindir da divergência, tão cara às modernas democracias. Suas qualidades,
por outro lado, são inescondíveis. Esta teoria tem um caráter humanista, pois
põe um acento no indivíduo, considerando suas particularidades, permitindo uma
melhor individualização do remédio penal. Além disso, sua atuação específica
permite o aperfeiçoamento do trabalho de reinserção social”.
5.4 Teoria mista ou unificadora da pena
Sem desprezar os principais aspectos das teorias
absolutas e relativas, como é intuitivo, as teorias mistas ou unificadoras
buscam reunir em um conceito único os fins da pena. A doutrina unificadora
defende que a retribuição e a prevenção, geral e especial, são distintos
aspectos de um mesmo fenômeno que é a pena.
Em resumo, as teorias unificadoras acolhem a
retribuição e o princípio da culpabilidade como critérios limitadores da
intervenção da pena.
5.5 Teoria da prevenção geral positiva
As teorias unificadoras não obtiveram o êxito
desejado junto aos doutrinadores da época, que continuaram os estudos e
pesquisas para uma perfeita teoria sobre os fins da pena.
Da
insatisfação reinante, dos estudos e pesquisas que nunca cessaram, surge a
teoria da prevenção geral positiva, que se apresenta com duas subdivisões:
prevenção geral positiva fundamentadora e prevenção geral positiva limitadora.
A primeira não visa a intimidação ou a proteção de
bens jurídicos. Busca, apenas, a afirmação de vigência da norma perante a
sociedade.
Para a segunda, a prevenção geral deve expressar-se
com sentido limitador do poder punitivo do Estado.
6. Considerações finais
A sociedade e a comunidade jurídica reclamam
resultados ainda não alcançados pelo Direito Penal brasileiro, e um dos
principais caminhos para o estudo e compreensão do tema é identificar o fim, ou
os fins, da pena, já que o Direito Penal tem sido avaliado por aquilo que se
entende deva ser seu resultado, que é buscado, lato sensu, com a pena.
Tem se entendido e proclamado que o Direito Penal,
através da imposição de penas, deve conter a criminalidade, os índices de
reincidência, e resolver as graves
distorções que envolvem a segurança pública.
Conforme já anotamos acima, em linhas de
considerações finais, há quem vislumbre o predomínio da função retributiva da
pena. Nesse sentido é o pensar de Élio Morselli,[43]
para quem: “A pena é integradora, ou melhor, reintegradora dos valores
fundamentais da vida coletiva, somente quando for considerada em função
retributiva, ou seja, como correspondente do mal infligido pelo réu à
sociedade. Se perder de vista este necessário significado de decorrência de um malum actionis, considerando, assim, a
pena como um instrumento de política criminal, então, não mais será possível
conseguir a neutralização do alarme social, nem, por conseguinte, a
reconstituição do equilíbrio intrapsíquico individual e coletivo.
Conseqüentemente, nem o sentimento de Justiça nem a consciência jurídico-social
encontrarão a necessária satisfação e consolidação”.
O conceito de retribuição é um conceito ético. A
propósito, na lição de Giuseppe Bettiol:[44]
“No estágio atual do desenvolvimento cultural, qualquer sofrimento infligido ao
culpado além da exigência retributiva é realmente um mal; e é sentido também
como mal insuportável todo sofrimento infligido nos limites formais da
retribuição quando esta não for entendida como adequada ao conceito de
retribuição. O verdadeiro conceito de retribuição é um conceito ético que deve
ter presente a natureza moral do homem. É com base na idéia de retribuição que
o critério da proporcionalidade ingressou no Direito Penal, já que a pena
retributiva deve ser estritamente proporcionada ao comportamento anterior. A
força real da pena está, realmente, em sua justiça, ou seja, em sua
proporcionalidade. Quando se desvia dessa diretriz termina-se por remover do
Direito Penal sua base ética e por negar-se ao réu toda garantia substancial de
liberdade. Entre o ente homem e o ente pena deve existir perfeita correlação,
porque o homem enquanto pessoa moral tem ‘direito’ à pena, não podendo ser
violado em sua natureza para ser submetido a medidas profiláticas, que dizem
respeito apenas ao aspecto ‘zoológico’ da personalidade humana. O homem somente
se salva salvando a idéia retributiva da pena”.
Também comporta destaque a lição de Eduardo Correa,[45]
para quem “a retribuição impõe o estabelecimento do quantum máximo de pena que é justo que o delinqüente sofra. Mas,
sendo assim, logo se vê que a retribuição pode sempre conciliar-se com o quantum de pena exigido pelas
necessidades de prevenção geral – a pena que seja necessária e suficiente para
intimidar a generalidade das pessoas, afastando-as da prática de crimes: ponto é que a prevenção seja justa.
Retribuir significa ainda, porque a retribuição supõe e se liga à culpa do
agente, estimular o sentido de auto-responsabilidade do delinqüente: é
essencial dar-lhe a idéia de que está nas suas mãos o corrigir-se; que,
portanto, esta tarefa não pode pertencer ao sistema de execução das penas (o
qual só lhe pode fornecer os meios
para tanto) mas a ele próprio. Assim, se consegue, por esta via, um sistema
monístico que não exclui, antes envolve, a possibilidade de realização de fins
éticos, afastando ou evitando, por outro lado, as críticas da prevenção geral”.
De qualquer forma, seja qual for o suporte
filosófico que se adote, cremos que é inafastável a utilidade da pena. Conforme
asseverou Marco Antonio de Barros em excelente artigo: “Incogitável a
desvinculação da pena de um sentido útil. A utilidade lhe é inerente (e aqui
vamos sempre enfocar a pena privativa de liberdade). Além do Estado visar fortalecer
a repressão preventiva por meio do traço intimidativo que a sanção penal possa
exprimir na consciência do indivíduo, do ponto de vista estrutural, permite-se
tripartir as funções da pena em retributiva, humanitária e ressocializadora”.[46]
Com efeito, na prática, salta aos olhos no Direito
Penal brasileiro uma enorme antinomia entre o desejo do legislador e a
realidade evidenciada. Os fundamentos filosóficos determinantes da prática
legislativa (cominação das penas) não alcançam a finalidade pretendida, não se
concretizam na aplicação e execução das penas.
Na maioria dos processos criminais submetidos à
apreciação do Poder Judiciário inexiste uma correta avaliação da culpabilidade,
das circunstâncias que influenciam na aplicação das penas, que quase sempre
muito pouco se distanciam do mínimo legal, e raríssimas vezes se aproximam do
limite oposto.
Até porque inexistentes elementos suficientes,
porquanto não investigados adequadamente, não há uma correta aferição da
culpabilidade, da conduta social, da personalidade do agente, dos motivos, das
circunstâncias e conseqüências do crime, de maneira que a individualização da
pena torna-se falha, desatendendo o espírito do legislador infraconstitucional
e também a regra constitucional asseguradora de tal direito público subjetivo.
O Estado revela-se absolutamente incompetente
diante da questão penitenciária.
É preciso anotar, ainda, que, modernamente, para
punir os crimes mais graves a pena aplicada com maior freqüência é a de prisão,
e, “ingressando no meio carcerário, o sentenciado se adapta, paulatinamente,
aos padrões da prisão. Seu aprendizado nesse mundo novo e peculiar, é
estimulado pela necessidade de se manter vivo e, se possível, ser aceito no
grupo. Portanto, longe de estar sendo ressocializado
para a vida livre, está, na verdade, sendo socializado
para viver na prisão. É claro que o preso aprende rapidamente as regras
disciplinares na prisão, pois está interessado em não sofrer punições. Assim,
um observador desprevenido pode supor que um preso de bom comportamento é um
homem regenerado, quando o que se dá é algo inteiramente diverso: trata-se
apenas de um homem prisionizado”.[47]
A conclusão a que chegou Marco Antonio de Barros[48]
no artigo precitado é a de que “nos dias atuais a pena privativa de liberdade
não espelha a justa punição filosoficamente inspirada pelo legislador.
Teoricamente a pena tem como características, além da função repressiva, os
fins retributivo, humanitário e ressocializante do condenado. Todavia, da forma
como as coisas caminham, hoje a pena é de ser tida apenas e tão-somente como
expiação. Castigo severíssimo para determinadas infrações de menor gravidade.
Portanto, de pouco sentido útil, já que desobediente aos dogmas ético, humano e
ressocializador”.
Para uma singela conclusão a respeito dos fins da
pena nos dias atuais, ousamos estabelecer e adotar um paralelo com o raciocínio
de que se vale a doutrina do direito penal de intervenção mínima, para quem o
direito penal só deve intervir nas questões essencialmente penais.
Adotando tal critério e considerando que a formação
moral do homem e da sociedade não depende de qualquer punição, na essência, e
que deve ser alcançada através de outros estímulos éticos-sociais, temos que a
finalidade primeira da pena é somente punir. Punir é retribuir uma violação da
norma de conduta, com a conseqüência legal que a própria sociedade houve por
bem estabelecer, direta ou indiretamente. A essência é a retribuição.
Se o legislador deve estabelecer como delito
somente aquilo que interessa ao Direito Penal, usando o mesmo raciocínio
conclui-se que a pena não pode ter outra finalidade que não a punição com
sentido retributivo; não se presta, de forma principal, a corrigir, educar ou
fincar preceitos éticos-sociais, em curto ou longo espaço de tempo, na personalidade
deformada, ou não, do criminoso. Se só interessa ao Direito Penal o que é de
Direito Penal, só cabe à pena a adequada e justa retribuição do mal: a punição.
Se por ser adequada e justa ela terminar por surtir outros efeitos educativos,
secundários, de prevenção especial ou geral, melhor ainda. Todavia, não quer
dizer que não surtindo estes outros efeitos educativos não estaria alcançando
seus fins.
Não é com a pena que se irá educar aquele que
durante mais de dezoito anos de convivência social não conseguiu se
autodeterminar para a vida ordeira.
Agregada a idéia de retribuição, não como
finalidade primeira, segue a idéia de estímulo a que o criminoso se
autodetermine em conformidade com os padrões vigentes de conduta social. Assim,
a prevenção especial é secundária e não deve integrar, na essência, os fins da
pena.
A prevenção geral é apenas uma ambição remota.
A autodeterminação é da essência do ser humano. No
mais das vezes a pena não serve de contra-estímulo ao criminoso que a recebe,
até porque ao se autodeterminar para o crime já conhece a existência da
possibilidade de punição, e até a possibilidade de ser morto em eventual reação
da parte ofendida, de terceiros ou policiais, e mesmo assim não se demove de
seu desiderato. Por óbvio, servirá menos ainda a outro qualquer criminoso
potencial. A parcela ordeira da sociedade, distante da realidade criminosa,
ínfimo ou mesmo nenhum reflexo sofrerá da apenação imposta a outrem, na sua
particular formação e personalidade. Um homem de bem não deixa de cometer
crimes porque um certo e determinado criminoso fora condenado. Fosse o inverso,
campeando a impunidade, toda a sociedade ordeira se voltaria para a prática de
crimes os mais variados, e não é isso que ocorre.
Após avaliadas as diversas teorias e doutrinas que
acima se expuseram, a conclusão a que chegamos é no sentido de que o fim da
pena é a retribuição.
Notas:
[1] HART, Herbert. L. A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa : Fundação Calouste
Gulbenkian, 1994. p. 18.
[2] RáO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Ed. RT, 1997. p.
48-49.
[3] LISZT, Franz von, Tratado de derecho penal. Madrid : Reus, 1927. p. 2.
[4]
“Alternativas para o direito penal e o princípio da intervenção mínima”. RT
757/402.
[5] SAUER,Guilhermo. Derecho penal – Parte
general. Barcelona : Bosch. 1956. p. 7.
[6] WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. 4. ed. Santiago : Editorial Jurídica de
Chile, 1997. p. 1.
[7] WESSELS, Johannes. Direito penal – Parte geral. Trad. Juarez Tavarez. Porto Alegre :
Fabris, 1976. p. 3.
[8] Op. cit., p. 5.
[9] DOTTI, René Ariel. Bases e
alternativas para o sistema de penas. 2. ed. São Paulo : Ed. RT, 1998. p.
31.
[10] MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos
da pena. São Paulo : Juarez de Oliveira, 2000. p. 2.
[11] FROMM, Erich. Anatomia de
destrutividade humana. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro :
Zahar, 1975. p. 366. Apud MARQUES,
Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2000. p. 3.
[12] GOULART, Henny. Penologia I. 1.
ed. São Paulo : Editora Brasileira de Direito, 1975. p. 25.
[13] Op. cit., p. 31.
[14] Op. cit., p. 27.
[15] CARRARA, Francesco. Programa de Derecho Criminal, Parte general,
Bogotá, Temis, vol. II, § 601, p. 44-47
[16] LYRA, Roberto. Novíssimas escolas
penais. Rio de Janeiro : Borsoi, 1956. p. 6.
[17] Op. cit., § 584, p. 34.
[18] Op. cit., § 610, p. 62.
[19] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As
três escolas penais. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1938. p. 263.
[20] CATTANEO, Mario A. Francesco Carrara e la filosofia del diritto penale, Torino, G.
Giappichelli, 1988, p. 105
[21] LYRA, Roberto. Expressão mais
simples do direito penal. Rio de Janeiro : Ed. Rio, 1976. p. 28.
[22] CALÓN, Cuello. La moderna penología. Barcelona : Bosch,
1958. t. 1/26. Apud JESUS,
Damásio E. de. O novo sistema penal. São Paulo : Saraiva, 1977. p. 34.
[23] JESUS, Damásio E. de. O novo sistema
penal. São Paulo : Saraiva, 1977. p. 34.
[24] PIMENTEL, Manoel Pedro. “Ensaio sobre a
pena”. RT 732/769-778, out. 1996.
[25] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. São
Paulo : Saraiva, 1999. p. 99.
[26] SAUER, Guilhermo. Derecho penal – Parte general. Barcelona : Bosch, 1956. p. 18.
[27] ASHTON, Peter Walter. “As principais teorias de direito
penal, seus proponentes e seu desenvolvimento na Alemanha”, RT 742/444.
[28] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão –
Causas e alternativas. São Paulo: Ed. RT, 1993. p. 103.
[29] Idem,
ibidem.
[30] SCHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRêA JUNIOR, Alceu. Pena e Constituição. São Paulo : Ed. RT,
1995. p. 99.
[31] ROXIN, Claus. Problemas
fundamentais de direito penal. Lisboa : Vega, 1986. p. 19-20.
[32] SCHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRêA JUNIOR, Alceu. Op. cit., p. 100.
[33] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão –
Causas e alternativas. São Paulo : Ed. RT, 1993. p. 115.
[34] Op. cit., p. 22-23.
[35] HUNGRIA, Nélson. Novas questões
jurídico-penais. Rio de Janeiro : Jacintho, 1940. p. 132.
[36] SAUER, Guilhermo. Op. cit., p. 56.
[37] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal – Parte
geral. São Paulo : Ed. RT,
1999. p. 112.
[38] MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Barcelona : Bosch,
1976. p. 70.
[39] MAURACH, Reinhart. Derecho penal – Parte general. Buenos Aires : Astrea, 1995. p. 761.
[40] MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoría del delito en el Estado Democrático de
Derecho. Barcelona : Bosch, 1982. p. 70.
[41] Op. cit., p. 21.
[42] Op. cit., p. 100.
[43] MORSELLI, Élio. “A função da pena à luz
da moderna criminologia”. IBCCrim 19/45-46. São Paulo, Ed. RT, ano 5,
jul./set. 1997.
[44] BETTIOL, Giuseppe. Direito penal.
Trad. Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco. São Paulo : Ed. RT, 1976. v. III. p. 102.
[45] CORREA, Eduardo Direito criminal. Coimbra : Almedina, 1999. p. 65-66.
[46] BARROS, Marco Antonio de. “Abalos à
dignidade do Direito Penal”. RT 747/489.
[47] PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a pena na atualidade. São
Paulo : Ed. RT, 1983. p. 158.
[48] BARROS, Marco Antonio de. “Abalos à
dignidade do direito penal”. RT 747/492.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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