Resumo: O artigo trata da crise da cidadania contemporânea e a necessidade de inclusão das comunidades tradicionais pelos ordenamentos jurídicos nacionais, enquanto cidadãos, na perspectiva da diversidade cultural. Delineia-se acerca da crise da cidadania contemporânea, numa análise histórico-sociológica, evidenciando o fenômeno da globalização. Define-se comunidades tradicionais, suas características e sua relação com o meio ambiente. Enfatiza-se acerca da cidadania no constitucionalismo multicultural latino-americano. Conclui-se pela necessidade de uma resignificação da cidadania como nas práticas do Estado plurinacional e multicultural.
Palavras-Chave: crise; cidadania; comunidades tradicionais; constitucionalismo; multicultural.
Sumário: Introdução. 1 Crise da Cidadania Contemporânea. 1. 1 Entendendo a Globalização. 2 As comunidades tradicionais, cidadania e constitucionalismo multicultural latino-americano. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O tema referência para construção do presente artigo é a crise da cidadania contemporânea numa perspectivas histórico-sociológica, optando-se pelo recorte da cidadania relacionada à inclusão das comunidades tradicionais na América Latina.
O estudo objetiva demonstrar que embora os avanços normativos recentes acerca da cidadania no Estado Democrático de Direito, ainda estamos longe de vivenciar a cidadania no âmbito das práticas sociais, ante a desigualdade e a exclusão desencadeadas na modernidade,[1] ao deixar à margem grupos diferenciados, como os povos indígenas.
O referencial teórico situa-se nos apontamentos de Carlos André Birnfeld[2], a respeito de uma conformação contemporânea para a cidadania desencadeada a partir do vislumbramento de um novo movimento histórico, de conteúdo ecológico. Esse movimento, “se funda inicialmente na maior ameaça já vislumbrada pela espécie humana, a exclusão de seu próprio futuro”[3].
Ocorre que o mundo vive um verdadeiro paradoxo, entre as transformações tecnológicas e a decorrente mudança das estruturas produtivas terrestres, como nunca se viu. Nesse contexto, surgem inúmeras dificuldades sociais, existenciais e ecológicas, que em síntese, culminam no processo de exclusão de um grande número de indivíduos.
Como enfatiza Birnfeld:
“[…] exclusão dos frutos da riqueza pela crescente desigualdade de renda, exclusão do processo produtivo pelos crescentes avanços tecnológicos e ainda uma exclusão do pensar, da capacidade criativa, engendrada subliminarmente pelos processos anteriores e respectivos mecanismos de cooptação e de alienação”.[4]
Assim, existe um consenso teórico[5], acerca da profunda crise em que se encontra o processo civilizatório contemporâneo. Para Birnfeld, deve-se analisar essa crise a partir de seu resultado principal, ou seja, “o da intensa capacidade de exclusão apresentada pelo sistema como um todo, crescente num ritmo quase geométrico”.[6]
Logo, a cidadania ecológica aparece como uma reação a esse processo de exclusão, que segundo o autor apresenta-se em quatro faces distintas: uma exclusão dos frutos do processo produtivo; uma exclusão do próprio processo produtivo; uma exclusão do pensar; uma exclusão do próprio futuro.
Nesse sentido, pertinente lembrar as comunidades tradicionais presentes na América Latina. A história da colonização dos países latino-americanos é marcada pela exclusão, exploração e desrespeito às comunidades tradicionais, cujo exemplo expressivo tem-se na história da população indígena.
Nos últimos anos, um movimento pautado na diversidade cultural surgiu no cenário político-institucional dos estados latino-americanos, incorporando muitas reivindicações dos povos indígenas, a que se convencionou chamar de constitucionalismo multicultural.
E, a partir de tais ideias, pretende-se refletir acerca da crise da cidadania contemporânea, ante a emergência de uma cidadania ecológica, fazendo uma possível relação com a questão da cidadania das comunidades tradicionais, a luz desse movimento constitucional multicultural latino-americano.
1 Crise da Cidadania Contemporânea
Ao tratar da crise da cidadania contemporânea, retoma-se a reflexão proposta por Birnfeld, a respeito da intensa capacidade de exclusão desencadeada a partir da profunda crise pela qual a humanidade passa e das faces em que tal exclusão se apresenta.
Quanto a uma exclusão dos frutos do processo produtivo, lembra que “é a mesma que gerou a reação criadora da cidadania social”, e que sua fragilidade demonstra que tal cidadania jamais se efetivou de forma completa, o que hoje se evidencia ante “um cenário onde se constroem abismos cada vez mais profundos entre riqueza e pobreza”.[7]
A exclusão do processo produtivo remete aos desdobramentos do modo de produção em relação ao desenvolvimento tecnológico, pois que como demonstram as últimas décadas, desponta uma “crescente dispensabilidade da interferência humana no processo produtivo”.[8] Com o desenvolvimento das tecnologias, vive-se o fenômeno da globalização, onde as distâncias diminuíram-se através da comunicação instantânea.
No entanto, tanta tecnologia e desenvolvimento de um lado, e um comprometimento cada vez maior de grande parcela da população que vive as mazelas do desemprego, da miséria e da marginalidade. O desemprego aparece tanto pela falta de trabalho, com a substituição da mão-de-obra pelas máquinas, como pela falta de qualificação do trabalhador, não apto a operar as novas tecnologias.
Para Birnfeld, o sistema capitalista transnacional ao integrar setores pré e pós-industriais, propicia crescentes e diferentes abismos de exclusão:
“Tanto no abismo da desigualdade na distribuição da renda, como no da aptidão, que, evidentemente, estão intrinsecamente relacionados, reforça-se o binômio incluídos-excluídos: ocorre que a exclusão, que basicamente se daria pela não participação nos melhores frutos do processo produtivo (desigualdade) passa a dar-se concomitantemente, também pela não participação no próprio processo produtivo (aptidão).”[9]
Com relação à exclusão do pensar, o autor destaca que é a menos perceptível e a mais fatal em qualquer tipo de cidadania, pois que diferente da fome ou do desemprego, a exclusão do pensar “complementa o ciclo do amordaçamento da cidadania silenciosa e sorrateiramente”.[10] Ela se manifesta de duas formas: em mecanismos do sistema de consumo – aqui a realização dá-se a partir das coisas que se pode ter em detrimento do ser[11] e um certo tipo de idolatria da ciência – “legitimação de uma lógica arbitrária ancorada numa racionalidade pretensamente neutra, técnica e absoluta”[12].
Por fim, a exclusão do futuro, ou seja, a destruição ecológica apresenta-se como a mais nova face da crise contemporânea e da qual emerge a necessidade de uma dimensão ecológica da cidadania – muito embora, a cidadania ecológica seja uma reação imprescindível às quatro faces mencionadas anteriormente. Nessa face de exclusão, há devastação e esgotamento dos recursos naturais, com risco para todas as espécies do planeta, inclusive a vida humana.
Nesse sentido, Eveline de Magalhães Werner Rodrigues refere acerca dos elementos de um novo constitucionalismo surgido na América Latina, e que
“[…] podem contribuir para a proteção da vida, que precisa ser um novo objetivo estatal e social, para além do objetivo de proteção da pessoa humana. A afirmação de direitos da natureza, e mais ainda, a perspectiva apontada pelo ideal de bem viver, agregam uma referência importante na busca por novas soluções”.[13]
Nessa perspectiva, quer-se abordar sobre a condução que alguns Estados na América Latina têm adotado, ao retomar ideais de seus povos originários, “contornos estes que expressam uma ruptura tão forte com o estado atual do pensamento jurídico ocidental dominante, que vem sendo denominado de novo constitucionalismo latino-americano”, o qual se acredita ser relevante no recorte ao tema que propusemos inicialmente: cidadania e inclusão das comunidades tradicionais na América Latina.
No entanto, importante ainda atentar para algumas considerações acerca da globalização, para entendermos o contexto atual onde se inserem tais sociedades, uma vez que entender o fenômeno da globalização é fundamental para entender a própria crise da cidadania.
1. 1 Entendendo a Globalização
A globalização, nos alerta Octavio Ianni[14], “não é um fato acabado, mas um processo em marcha”. De acordo com o autor[15], a globalização no mundo resulta de um novo ciclo do capitalismo em expansão, em que o modo de produção e o processo civilizatório demonstram alcance mundial. Tal processo envolve nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações que desencadeada na chamada sociedade global: “uma totalidade abrangente, complexa e contraditória” [16].
Para Milton Santos[17], a globalização representa “o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista”, sendo fundamental para entendê-la analisar “o estado das técnicas e o estado da política”.[18] Explica que no final do século XX com o avanço da ciência, tem-se um sistema de técnicas dirigido pelas técnicas da informação, o que propicia um elo entre as demais resultando num sistema técnico de presença em todo o planeta.
Como resultado tem-se o mercado global que utiliza esse sistema de técnicas e que demonstra o quanto perversa pode ser a globalização. Dessa forma, a globalização propicia o desenvolvimento das desigualdades e contradições da vida social nacional e mundial. Atente-se ao fato de que a partir desse mercado e em função dele elaboram-se os processos políticos. Ou seja, de acordo com Santos, “isso poderia ser diferente se seu uso políticos fosse outro”[19].
Portanto, a história do capitalismo apresenta-se em períodos, com ações e evoluções diferenciadas, mas dentro de um sistema. E o período atual do capitalismo é um momento de crise, uma crise global, conforme manifestam os fenômenos globais e como Birnfeld considera em seu estudo anteriormente apresentado.
2 As comunidades tradicionais, cidadania e constitucionalismo multicultural latino-americano
Pretende-se nesse ponto do trabalho, cientes da crise da cidadania na contemporaneidade, analisar de forma geral a relação entre comunidades tradicionais, cidadania e constitucionalismo multicultural latino-americano.
Iniciamos na tentativa de conceituar comunidades tradicionais, o que não é uma tarefa simples. Na opinião de Antonio Carlos Diegues e Rinaldo Sergio Vieira Arruda[20], podemos entender como:
“[…] grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos”.[21]
No caso do Brasil, as populações indígenas são um exemplo expressivo de comunidade tradicional. Apesar de um passado excludente em relação a esses povos, se legislou superando as ideias assimilacionistas e integracionistas das Cartas Constitucionais brasileiras anteriores, que não estendiam aos povos indígenas a titularidade de direitos como indivíduos. Anteriormente, no Brasil os direitos dependiam de que tais deixassem de serem índios, integrando-se ao sistema jurídico como “não-índios”.
Oportuno ainda, notarmos que as comunidades tradicionais caracterizam-se:
“a) pela dependência freqüentemente, por uma relação de simbiose entre a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida; b) pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido por oralidade de geração em geração; c) pela noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) pela moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados; e) pela importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado; f) pela reduzida acumulação de capital; g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; h) pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e a atividades extrativistas; i) pela tecnologia utilizada que é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final; j) pelo fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos centros urbanos; l) pela auto-identificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta das outras”.[22]
Na leitura das características acima, salienta-se a importância do respeito e da preservação dos conhecimentos tradicionais dessas culturas pela forma como se relacionam com a natureza. Além disso, tais populações dependem dos recursos naturais como quesito de sobrevivência familiar, sendo muito peculiar a forma ecológico-sustentável de suas atividades.
No entanto, sabe-se que a relação do homem branco colonizador com tais comunidades tradicionais ainda hoje não é algo harmônico. Longe disso, diversos conflitos envolvendo disputas por terras, por exemplo, tem demonstrado a fragilidade contemporânea (que parece arrastar-se pelo tempo) de composição amigável, muito embora tenhamos todo um aparato legal na defesa dos interesses dessas comunidades.
Em interessante abordagem, Jane Felipe Beltrão e Assis da Costa Oliveira,[23] refletem sobre o movimento de modificação das normas constitucionais nos países da América Latina, como Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai ao ratificarem tratados internacionais pressionados pelo crescente protagonismo indígena, desde os anos 1970.
De acordo com os autores, vários instrumentos jurídicos foram incorporados pelas legislações nacionais dos países em questão, no sentido de reconhecimento da diversidade cultural:
“A luta pela ins/constituição cidadã dos povos indígenas implica na inscrição de marcadores sociais da diferença como conceitos jurídicos impressos na legislação, sobretudo no plano constitucional, que revelam maneiras de se apresentar e representar o discurso sobre a diversidade cultural, definindo as condições de possibilidade para utilização dos direitos para a emancipação ou violação às coletividades indígenas.”[24]
Então, emerge o movimento chamado de constitucionalismo multicultural latino-americano, pautado na ideia de igualdade e respeito aos diferentes povos e culturas, e que objetiva diminuir as diferenças, garantindo a diversidade. Dessa forma, muitos dos Estados nacionais na América Latina ao reformarem suas Constituições passaram a incluir reivindicações dos povos indígenas.
Acerca disso, Raquel Fajardo, esse movimento de inclusão de normas protetivas dos direitos indígenas nas Constituições latino-americanas, com grande influência do multiculturalismo e dos tratados internacionais trouxe significativas possibilidades ao reconhecer: o caráter plurinacional do Estado com o direito à identidade étnica e cultural; a dignidade das culturas ao romper com a superioridade da cultura institucional ocidental; os povos indígenas como sujeitos políticos; do direito consuetudinário dos povos indígenas e a jurisdição especial.
Logo, a cidadania indígena na forma da lei estaria garantida ante a constitucionalização das garantias de proteção e promoção da diversidade cultural, da autonomia política e do pluralismo jurídico. No entanto, no âmbito social percebe-se o quanto frágil e delicada é a questão, uma vez que a cultura colonialista que permeia as relações na peculiaridade de cada país no contexto latino-americano, ainda tende nas ideias de homogeneização e universalização de valores. E o que é possível observar nas contínuas formas de violência, opressão e discriminação sofridas pelos povos indígenas.
Conclusão
O presente trabalho objetivou contribuir na discussão acerca da cidadania referente aos povos indígenas, partindo da tese da crise da cidadania e da necessidade de conformação de uma dimensão ecológica para defesa do meio ambiente e do planeta ante a crise desencadeada pelo fenômeno da globalização em sua ação perversa. O planeta está em crise e é necessário voltar o olhar para alternativas em defesa do meio ambiente, numa dimensão da cidadania ecológica.
Da mesma forma, o colonialismo deixou a margem os povos indígenas e a defesa dos direitos desses grupos sociais passa a ser imprescindível no tocante à proteção do meio ambiente, eis que como se demonstrou tais povos possuem conhecimentos tradicionais e uma relação diferenciada de respeito e trato à natureza, que se apresenta como uma real contribuição para salvaguarda dos ecossistemas e do que ainda não foi destruído pela ação desenfreada dos objetivos econômicos da globalização.
Nesse sentido, o movimento Constitucional latino-americano demonstra avanços quanto à defesa dos direitos indígenas e consequentemente da cidadania desses grupos. Embora ainda seja necessário amadurecer o debate social acerca da importância da convivência harmônica e o respeito aos grupos diferenciados nas sociedades latino-americanas, superando a cultura ocidental de ideias de homogeneização e universalização de valores.
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